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Transborda integra o Cena Expandida

Transborda encerra com apresentação do Barbarize e Mun-há. Foto: Divulgação

Fabiana Pirro apresentou Cara de Pau. Foto: Divulgação

Coletiva fez performances no centro do Recife e Morro da Conceição. Foto: Divulgação

O Transborda surgiu da urgência de trazer uma ação integrada entre as unidades do Sesc Pernambuco, promovendo um diálogo efetivo sobre questões que vazam a cena, sinaliza Ariele Mendes, técnica de Artes Cênicas do Sesc-PE e uma das curadoras do programa. O projeto está estruturado em três eixos: acessibilidade, mediação e sustentabilidade. Só na cidade do Recife são desenvolvidas duas edições do Transborda, e cada uma delas, com recortes bem diferenciados e característicos.

Neste ano, o Transborda integrou três Unidades do Sesc: Piedade, Casa Amarela e Santo Amaro. Em Jaboatão (Sesc Piedade), a ação ocorreu de 28 de agosto a 03 de setembro, e promoveu um forte diálogo com a Colônia de pescadoras de Barra de Jangada e com espaços culturais independentes, lançando um olhar sobre as águas e os elementos naturais da cidade. Tudo isto pelo viés da dança, performance e música.

As ações que integram o Cena Expandida foram tocadas pelo Transborda de Casa Amarela e Santo Amaro. Em Casa Amarela, o recorte temático escolhidos foi Altos e Baixos. Entre 5 e 11 de setembro foram realizadas intervenções, performances e espetáculos nas praças, ruas e centros culturais. Entre as atrações da programação participaram as Violetas da Aurora, que ocuparam a Praça do Sebo, a Coletiva, com performances na Rua Nova, Praça do Diário e Morro da Conceição e A Escola Pernambucana de Circo, que se apresentou no Centro Social Dom João da Costa. No dia 10 o projeto chegou ao Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, com apresentações de Fabiana Pirro (com o espetáculo Cara de Pau), a Ciranda Sant’anna e o Bloco Afro Daruê Malungo. E também no Daruê, o Coletivo D(Elas) em Cena realiza a performance O que você deseja?

Cavalo, da Qualquer um dos dois, de Petrolina. Foto: Divulgação

Já em Santo Amaro as ações se instalaram a partir das premissas: ancestralidade, corpo e território. Na programação, já foram exibidos Cavalo, da Qualquer um dos dois, de Petrolina, e Ser Rizoma, de Lane Luna Luz. A Praça do Campo Santo recebeu uma programação intensa, com apresentações de Lippe Dj, do Afoxé Afefé Lagbará, Bione e o espetáculo Deslenhar do Coletivo Miçanga.

Também passaram pela programação Na Bagagem Poesia e O Dia em que a Morte Sambou.

Grupo Totem mostrou seu trabalho mais recente, ITAÊOTÁ. Foto Divulgação

O Grupo Totem exibiu ITAÊOTÁ, com encenação de Fred Nascimento, trabalho conduzido pelo conceito de descolonização, tendo como referência os modos de resistir e existir de povos indígenas e africanos, para a construção de um futuro ancestral. Em ITAÊOTÁ, a ideia é mostrar uma maior comunhão, chamando as pessoas para a autoresponsabilidade em relação ao momento difícil que vivemos, propor esta mudança prática entre todas as nossas relações.

O Transborda finaliza neste sábado, em festa, com o Baile Barbarize e performance de Mun-há.

Vale ressaltar que esta programação é fruto celebrativo de relações que são construídas pelas equipes do Sesc e suas lideranças (em Piedade de Isis Agra, em Casa Amarela, Breno Fittipaldi e em Santo Amaro, Ailma Andrade) com espaços e coletivos no decorrer do ano.

 Neste ano o Transborda integra o projeto Hub PE Criativo, uma realização do Sesc e Sebrae em Pernambuco. Este projeto conduz ações disparadoras de processos junto a sete territórios de atuação (Recife, Goiana, Jaboatão dos Guararapes, Arcoverde, Petrolina, Triunfo e Garanhuns), e visa estimular ações que desencadeiem formação e fomento para a cadeia produtiva da cultura. 

Entrevista: Ariele Mendes – técnica de Artes Cênicas do Sesc-PE

Ariele Mendes é técnica de Artes cênica do Sesc. Foto: Divulgação

– Quais as características específicas do Transborda? Pergunto isso porque o Sesc-PE tem vários festivais. E no Recife e em Pernambuco também existe uma fartura nesse quesito. 

O Transborda surgiu da urgência de trazer uma ação integrada entre as unidades do Sesc Pernambuco, promovendo um diálogo efetivo sobre questões que transbordam a cena. Para além de abordagens estéticas, mas também sobre elas. O encontro entre os supervisores de cada território friccionava os temas urgentes para discussão, tomando como base as territorialidades de cada unidade envolvida. Este é um projeto feito a várias mãos, que conta em sua natureza, desde o princípio, com discussões coletivas, mas sempre priorizando respeitar a identidade de cada território. 

Não tardou para se chegar nas perguntas latentes que atravessam o fazer artístico: Qual a dimensão da cadeia produtiva da cultura? Quais os possíveis caminhos para a sustentabilidade do artista? Como fortalecer as redes, pontos de cultura e as articulações comunitárias a partir da ação deste projeto? Como buscar formas mais assertivas de chegar ao nosso público? 

Hoje o projeto se estrutura em três eixos basilares de abordagem: acessibilidade, mediação e sustentabilidade. 

Para efetivar estes pilares, foram desenvolvidas, junto às Unidades, um profundo estudo sobre os territórios, investigando fatores como os pontos de cultura e coletivos artísticos existentes nas cidades. Também foi feita uma pesquisa com os agentes culturais para mapear seus contextos e as percepções que tinham sobre seu próprio fazer, além de efetivar uma profunda busca sobre a territorialidade de cada lugar em que o projeto era desenvolvido. 

Assim, o diferencial do Transborda, as linguagens da cena é exatamente o seu escopo estrutural: a busca para o fortalecimento do trabalho de redes internas e externas ao Sesc, as perguntas motoras que o estimulam e a organicidade com que este processo é desenvolvido. Trata-se de uma ação que traz o artista para a cena, mas também o convida a pensar junto sobre a sua trajetória pelo viés dos meios de produção que o levaram àquele lugar. 

– Quais as motivações do Sesc em realizar esse Festival? 

Entendemos que o Transborda, mais do que um Festival, se trata de um movimento, uma pesquisa contínua. Os recortes curatoriais são flutuantes, se renovam a cada instante. 

Na pandemia foi necessário se reinventar, buscar estratégias, continuar o diálogo com os fazedores da cultura, para resistir e seguir existindo.

Hoje, mais do que nunca, sintonizar no radar os possíveis caminhos que tragam respostas para as perguntas propulsoras do projeto seguem urgentes. E em cada território, novas inquietações e disparadores surgirão a cada ano. E assim será a cada edição. Trata-se de um movimento contínuo e constante, que precisa de estruturação. 

Longe de mim achar que temos respostas prontas, e que bastamos para solucionar uma questão tão intrigante que é a incessante busca pela sustentabilidade da cadeia produtiva da Cultura. Somos uma pequena parte de algo muito grande e diversificado – isto fica claro, por exemplo, quando percebemos que só na cidade de Recife desenvolvemos duas edições do Transborda, e cada uma delas, com recortes bem diferenciados e característicos –

mas nosso papel é de propor ações, instigar reflexões, mediar processos e garantir o acesso e a diversidade em nossas programações. As mudanças só serão consolidadas a partir da inteiração e atravessamento de cada agente deste ecossistema, se percebendo parte de um todo e expandindo sua atuação de maneira consciente na mobilização e articulação de cada iniciativa, para buscar possibilidades junto ao poder público, às instituições e à sociedade civil.

 – Qual a posição do Transborda no mapa da cidade (e do país) no que se refere à formação de público, a balançar as estruturas, a honrar a tradição nas artes cênicas ou traçar pontes com o contemporâneo? 

Neste ano o Transborda integra o projeto Hub PE Criativo, uma realização do Sesc e Sebrae em Pernambuco. Este projeto conduz ações disparadoras de processos junto a sete territórios de atuação (Recife, Goiana, Jaboatão dos Guararapes, Arcoverde, Petrolina, Triunfo e Garanhuns), e visa estimular ações que desencadeiem formação e fomento para a cadeia produtiva da cultura. Esta iniciativa busca estratégias para a sustentabilidade dos agentes culturais durante todo o ano, e surge com muita força junto ao Transborda, por instigar processos de reflexões e inquietações que já se faziam presentes, mas agora ganham uma perspectiva concreta. 

As ações desenvolvidas em setembro dizem respeito ao período do Festival Transborda, onde realizamos apresentações e oficinas, mas as atividades do Hub PE Criativo seguem até 2023, com feiras, roteiros de turismo criativo, formações artísticas e de empreendedorismo, palestras, desfile e exposições artísticas. O público-alvo passa a ser, além da comunidade, os agentes do setor cultural e da rede de serviços ligado a ele (hotelaria, transporte, turismo, alimentação, etc.), visando o mapeamento e a qualificação profissional numa perspectiva ampliada, considerando a cena, o festival e os desdobramentos de impacto da ação que transbordam a cena. 

A sustentabilidade é um fator que sempre foi uma questão para o setor cultural. É de extrema importância nos questionarmos sobre caminhos possíveis e lançarmos a provocação para artistas e a sociedade civil sobre a importância da cultura na estruturação do país, tanto do ponto de vista simbólico e educativo, quanto sobre o fator econômico, pois o movimento que geramos vai além de impactos diretos, reverberando e fortalecendo outros setores da economia também.  

 – Quais as estratégias do Sesc para as artes da cena do Recife e de Pernambuco? O que é prioritário e urgente? 

O Sesc Pernambuco é uma Instituição referência na formação, fruição fomento e difusão das artes cênicas. Projetos como as Escolas Sesc de Teatro e Dança garantem uma ação sistemática de sensibilização e experimentação artística, impulsionando o surgimento de novos artistas/coletivos em todo o estado. Já os projetos especiais, como as Aldeias, o Transborda, as mostras de artes, movimentam a cadeia produtiva, promovem encontros, intercâmbios e parcerias. Particularmente, em minha trajetória, fui uma das pessoas impactadas diretamente pela ação do Sesc a partir dos anos 2001, quando iniciei meus estudos em teatro na Unidade do Sesc de Piedade. Lá pude experienciar processos nos cursos livres, no Curso de Interpretação para Teatro (CIT), no Núcleo de pesquisa e no Grupo artístico. Também Piedade foi meu campo de estágio, e onde me formei gestora, participando ativamente das produções e curadorias de projetos como Aldeia Yapoatan, Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação, Mostra Na Onda da Dança, Projetos Aplausos, Mostra de Formas Animadas, entres muitas outras iniciativas. Por isto, compreendo que é preciso olhar sempre com muito carinho e respeito a história do que já foi construído, fortalecendo toda a tecitura que estrutura estas ações e trabalhar a partir delas, com proposições que visem atender as necessidades de hoje. 

Atualmente, o Sesc Pernambuco possui 24 Unidades Operacionais localizadas em todo o estado. Destas, 17 atuam com ações de artes cênicas, sendo 10 delas sedes da escola sistemática de teatro, 9 de dança e 1 com o viés de circo social que está prevista para iniciar suas atividades no 2° semestre de 2022. O que posso dizer é que a diversidade é a nossa grande potência e também um desafio. O respeito aos territórios deve estar sempre na ponta da lança de nossa ação. Para isto, é necessário o mapeamento e diálogo contínuo com a comunidade, com a classe artística e com os espaços e agentes culturais/sociais, para a partir deles, entender qual será o formato e as linhas de ações propostas para cada cidade/localidade. Mas existem diretrizes que acredito que precisamos fortalecer em todos os espaços: 

– Um olhar pedagógico: toda ação de cultura é formação, ainda que em formato de fruição. Durante todo o ano, as atividades desenvolvidas devem dialogar umas com as outras, em um processo de retroalimentação continuado. Em algumas Unidades, isto já acontece de maneira muito orgânica, e faz toda diferença. Em outras, é preciso estruturar mais este direcionamento. 

– Percebo a urgente necessidade de considerar com mais amplitude o espaço da linguagem de circo em todo regional. Temos uma presença majoritária da dança e do teatro em nossas programações, o que entendo ser natural, tendo em vista que temos as escolas consolidadas há bastante tempo. Sei que existem muitas especificidades, tanto técnicas, de estrutura, quanto a realidade dos circos tradicionais, que possuem características bem próprias, mas percebo a necessidade de um diálogo aberto, reconhecendo que precisamos nos adaptar, buscar estratégias mais acessíveis para ampliar oportunidades. 

– O Sesc também é um importante agente cultural, com quadro técnico especializado, com pesquisas e experimentações aprofundadas. Olho para nosso corpo de professores e supervisores, para os alunos/atores/bailarinos que fazem parte ou passaram pelo Sesc, e enxergo o quanto promovemos iniciativas importantes e quanto temos pessoas dedicadas, competentes e comprometidas. Cada processo desenvolvido em sala de aula tem uma importância fundamental, inclusive, para realimentar a classe cultural das cidades. Temos trabalhos de bastante qualidade e relevância. Fortalecer essa rede, promovendo encontros e intercâmbios entre as Unidades é uma diretriz que propomos porque sei o quanto essas trocas instigam e inspiram, reoxigenando as ações diárias. Também ressalto o processo de coletivos artísticos que se formam, oriundos destas experiências e que, com o tempo, se tornaram independentes e tem grande representatividade e atuação em suas cidades. Digo isto pois acredito que esta diretriz não diz respeito apenas ao Sesc, mas ao surgimento de novos coletivos. 

– Penso que as nossas programações devem focar, de maneira prioritária, nas produções locais, promovendo um encontro entre os coletivos, estimulando o setor das regiões e valorizando as produções, por exemplo, do interior, onde encontramos obras de bastante qualidade. No entanto, não pretendemos fechar as portas para as produções oriundas de outros lugares. Estas virão para dialogar, trocar, aprender e ensinar, mas precisam fazer sentido nos contextos em que irão atuar. Reconhecemos sua extrema importância para trazer provocações, inspirar e desestruturar possíveis paradigmas. 

Por fim, entendo que políticas estruturantes precisam de tempo para maturar e se efetivar. Cada passo, cada provocação, talvez só reverbere daqui há anos… É preciso paciência para alimentar diariamente o processo e muita humildade para ouvir e aprender. Para conduzir processos, é necessário escuta e observação, para então, mediar, colaborar e propor. 

 – Neste ano, com previsão para os seguintes, o Transborda integra a Cena Expandida com mais quatro festivais. O que as artes da cena (e seu público) da cidade do Recife do Recife e de Pernambuco ganham com essa ação? 

A inserção do Transborda na Cena Expandida faz todo sentido para a ação do projeto, pois se trata de uma articulação entre festivais que buscaram trabalhar em rede para se fortalecer, tal qual foi o primeiro estímulo para o surgimento do Transborda, mas em instâncias institucionais. 

O público terá acesso no mês de setembro à uma vasta programação, organizada de maneira estratégica para que seja possível acompanhá-la de forma mais integral possível, pois as datas e horários foram pensados, evitando o choque entre as programações. Também, pela diversidade de contextos e perfis de cada festival, chegamos a públicos variados: conseguimos trazer a produção local, dar espaços de compartilhamento para os experimentos cênicos desenvolvidos pelas escolas de artes, contamos com programações de projeção nacional e internacional, evidenciamos a rica produção desenvolvida pelos grupos do interior do estado e oportunizamos processos de residências e experimentos a partir de mediadores de renome nacional e internacional. O Cena Expandida é um presente para o público, para os artistas e todos aqueles que compõe o organismo vivo da Cultura. 

– Qual a pergunta que não quer calar? Tem resposta? 

Como podemos multiplicar iniciativas como esta, articulando ações em cadeia, como forma de resistência e cumplicidade? A resposta não possa dar sozinha. Precisamos estar juntos na caminhada, traçando novas rotas, nos organizando de maneira estratégica para seguir em frente, articulando o discurso em conjunto, sem perder nossa essência e identidade.

 

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Festival Estudantil garimpa artistas
e investe na formação de público
*Ação Cena Expandida*

A Praieira, do Pantomima Grupo de Dança do Recife. Foto: Divulgação

Veredas da Salvação tem adaptação e direção de Rodrigo Hermínio. Foto: Divulgação

O Festival Estudantil de Teatro e Dança (Feted) funciona como um laboratório estético, uma porta de entrada artística na perspectiva de renovar quadros da cena na cidade do Recife. Essa partilha do sensível atua na base também para a formação de novos púbicos.

A sua 19ª edição acontece de 8 a 18 de setembro, no Teatro Apolo, região central do Recife, com trabalhos de alunos das escolas públicas e privadas inscritas no edital.

Retrato de Família abre a programação. Com texto de Nelson Rodrigues, a livre adaptação das peças Senhora dos Afogados, Toda Nudez Será Castigada e Álbum de Família discute as hipocrisias da sociedade. Já Vereda Da Salvação, clássico brasileiro de Jorge Andrade, mergulha no debate sobre fanatismo religioso e posse de terra.

Versões de Molière, Gil Vicente e Ariano Suassuna, respectivamente, Médico à Força, Auto da Barca do Inferno e A Farsa da Boa Preguiça, estão no repertório do programa.

Uma empresa de cupidos, mas com alguns funcionários atrapalhados movimentam a peça Departamento de Emergências Amorosas.

Fred Nascimento dirige peça de Samuel Beckett, em Fim de Jogo – Desmontagem para grupo da Escola Municipal de Arte João Pernambuco. A programação completa está no final do post.

Fim do Jogo, encenação da Escola João Pernambuco, dirigida por Fred Nascimento. Foto: Divulgação

As peças de dança estão concentradas no dia 18 de setembro, com participações do Ballet COMPAZ,  Pantomima Grupo de Dança , Grupo Celeiro do Passo, Studio oito de Danças, Colégio Equipe e Grupo Soma.

Criado em 2003 pelo produtor cultural Pedro Portugal, o Feted busca dar visibilidade e incentivar novos talentos. Alguns integrantes de grupos consolidados na cidade do Recife já passaram pelo festival, a exemplo do Magiluth, Trupe Ensaia Aqui e Acolá, Grupo Teatral Ariano Suassuna e a Trupe Mulungu Teatro de Bonecos e Atores.

Duas mulheres da cultura pernambucana são as homenageadas neste ano: a professora, diretora teatral, atriz e produtora cultural Albanita Almeida e a professora, coreógrafa e diretora artística Viviane Lira.

O Feted – Festival Estudantil de Teatro e Dança integra a Cena Expandida, articulação que junta cinco festivais no mês de setembro: o Cena Cumplicidades – Festival Internacional de Artes da Cena, o Feteag- Festival de Teatro de Agreste, o Reside – Festival Internacional de Teatro de PE, e o Transborda – as linguagens da cena, do SESC PE.  Atualizações sobre a iniciativa podem ser conferidas nas redes sociais @cenaexpandidarec.

19º FESTIVAL ESTUDANTIL DE TEATRO E DANÇA (FETED)
Onde: Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife. Telefone: 3355 3321).
Ingressos: R$ 20,00 (deste valor, R$ 12,00 são direcionados a cada grupo, como forma de incentivo à produção).

Retratos de Família abre a programação do festival. Foto Divulgação

PROGRAMAÇÃO – TEATRO

Dia 8 de setembro de 2022 (quinta-feira), 19h
RETRATOS DE FAMILIA (Espaço Cênicas – Recife-PE)
Texto: Livre adaptação de três obras clássicas de Nelson Rodrigues: Senhora dos Afogados, Toda Nudez Será Castigada e Álbum
de Família.
Direção Antônio Rodrigues

Dia 9 de setembro de 2022 (sexta-feira), 19h
DEPARTAMENTO DE EMERGÊNCIAS AMOROSAS (SESC/Cine Teatro
Samuel Campelo- Jaboatão dos Guararapes-PE)
Texto: O Grupo.
Direção Anderson Damião

Dia 10 de setembro de 2022 (sábado), 16h
BOI ESTRELADO (Grupo Teatral Ariano Suassuna – Igarassu-PE)
Texto: Albanita Almeida.
Direção André Ramos

Dia 10 de setembro de 2022 (sábado), 19h
VEREDA DA SALVAÇÃO (Desvendando o Teatro – Teatro do Amanhã – Recife-PE)
Texto: Jorge Andrade / Adaptação: Rodrigo Hermínio.
Direção Rodrigo Hermínio

Dia 11 de setembro de 2022 (domingo), 16h
MÉDICO À FORÇA (Grupo Teatral AchylesCoqueijo – GTAC – Recife-PE)
Texto: Molière adaptação: Fabio Siqueira.
Direção: Marcos Santos

Dia 11 de setembro de 2022 (domingo), 19h
NARRATIVAS DE UMA HISTÓRIA DE FÉ (Desvendando o Teatro – Teatro do Amanhã – Recife-PE)
Texto: Coletivo.
Dramaturgismo/Direção: Rodrigo Hermínio

Dia 13 de setembro de 2022 (terça-feira-feira), 19h
QUEBRANTO DE UMA LUA CHEIA (Escola Estadual Cônego Jonas Taurino – Recife-PE)
Texto e direção: Sérgio Neves Barbosa

Dia 14 de setembro de 2022 (quarta-feira), 19h
AUTO DA BARCA DO INFERNO (Espaço Cênicas- Recife-PE)
Texto: Livre adaptação da obra de Gil Vicente.
Direção: Antônio Rodrigues

Dia 15 de setembro de 2022 (quinta-feira), 19h
A FARSA DA BOA PREGUIÇA (SESC Casa Amarela – Recife-PE)
Texto: Ariano Suassuna
Direção: Adriana Madasil / Iná Paz

Dia 16 de setembro de 2022 (sexta-feira), 19h
CORDEL ESTRADEIRO, UMA VIAGEM IMPRESSIONANTE AO SERTÃO (Escola Mun. Maria De Lourdes Dubeux Dourado Recife – Ipojuca-PE)
Texto e Direção: Márcio Silva Lima

Dia 17 de setembro de 2022 (sábado), 16h
UM SONHO ENCANTADO (Organização de Auxilio Fraterno – OAF –Recife-PE)
Texto e direção: Marcelinho Maracá

Dia 17 de setembro de 2022 (sábado), 19h
FIM DE JOGO – DESMONTAGEM (Escola Municipal de Arte João Pernambuco -Recife-PE)
Texto: Samuel Beckett.
Direção: Fred Nascimento

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 16h
CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS (Espaço Cultural Socorro Raposo – Recife-PE)
Texto e Direção: Sissi Loreto

PROGRAMAÇÃO – DANÇA
Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19h
DANÇA DAS BONECAS (Ballet COMPAZ – Recife-PE)
Coreografa: Liliane Freitas

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:05h
A PRAIEIRA (Pantomima Grupo de Dança Recife-PE)
Coreografas: Taynanda Carvalho e Viviane Lira

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:10h
CocoDub (Pantomima Grupo de Dança) – Recife-PE)
Coreografas: Taynanda Carvalho e Viviane Lira

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:15h
CAMARÁ: TERRA DE BRINCANTE (Grupo Celeiro do Passo – CCVA – Recife-PE- Recife-PE)
Coreografo: Anderson Henry

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:20h
FERVENDO/ ANDANDO NO PASSO DO FREVO (Studio oito de Danças – Recife-PE)
Coreografa: Liliane Freitas

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:25h
ENCONTRO (Colégio Equipe Recife-PE)
Coreografas: Taynanda Carvalho e Viviane Lira

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:30h
CHORINHO (Grupo Soma)
Coreografas: Brenda Schettini;

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:35h
WE CAN DO IT (Grupo Soma)
Coreografas: Sabrina Arruda

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:40h
CORRA (Grupo Soma)
Coreografas: Sabrina Arruda

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:45h
VALSA DAS HORAS (Grupo Soma)
Coreografas: Juliana Siqueira

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:50h
REVOLUTION (Grupo Soma)
Coreografas: Sabrina Arruda

Dia 18 de setembro de 2022 (domingo), 19:55h
MIRLITONS (Grupo Soma)
Coreografas: Juliana Siqueira

Programação da Cena Expandida

Feted – 8 a 18 de setembro (@feted.pe)
Transborda – 8 a 18 de setembro (@sescpe e sescpe.org.br)
Cena Cumplicidades – 10 a 30 de setembro (@ccumplicidades e cenacumplicidades.com.br)
Feteag – 20 a 30 de setembro (@feteag e feteag.com.br)
Reside – 22 a 28 de setembro (@residefestivalbr e residefestival.com.br)

 

Entrevista: Pedro Portugal

Pedro Portugal, produtor do Feted – Festival Estudantil de Teatro e Dança. Foto: Divulgação

– Pedro, o que te motiva, o te move a tocar o Festival Estudantil de Teatro e Dança?

Eu comecei a mexer com teatro em 1981 com Marcus Siqueira (criador do Grupo de Teatro Hermilo Borba Filho). Trabalhamos um ano juntos. Depois eu fui fazer CFA (Curso de Formação do Ator) no Teatro Joaquim Cardozo. E virei produtor em 1989. Trabalhei com Enéas (Alvarez) muitos anos no TEBO. Nos últimos anos do TEBO Enéas estava muito obeso e não podia subir as escadas. No Teatro do Forte das Cinco Pontas tinha que subir as escadas. E Sonia Medeiros fazia anos que não aparecia lá. Então, os últimos cinco anos do TEBO quem fez fui eu. Praticamente eu que fazia; Enéas dava as coordenadas, mas quem botava para moer era eu. Então, qual o motivo? O motivo era aquele que Enéas tinha: de descobrir novos talentos, de descobrir gente nova na cidade, mexer com o público, mexer com a cidade e realmente isso nós estamos conseguindo. Para você ter uma ideia, nessa nova geração, o festival este ano faz 20 anos. É a 19ª edição porque teve um ano que não aconteceu por causa da pandemia. Ano passado nós fizemos online. Então o festival tem 20 anos e a geração que está aí dessa época, 90% que trabalha com teatro passaram pelo festival estudantil. Ou como técnico, como ator, como diretor, como autor. Você não faz ideia da minha emoção quando vejo um espetáculo de um amigo, não sei porque é tanta gente que passou no festival que não sei… não me lembro de todos, claro… Praticamente 400 que passam pelo teatro por ano, tem anos que é mais. Teve um ano que só de dança foram 36 coreografias. Tinha coreografias com mais de 30 meninas e meninos. Então, faz as contas de 18 edições … multiplica por isso. Então, esse é o motivo para continuar fazendo. Eu não sei se vou continuar fazendo, eu estou ficando cansado. Tenho 65 anos e estou ficando cansado. E trabalhar sem dinheiro é muito complicado. Todo ano eu tenho que ir atrás de um amigo “ohhh meu amigo, faça a arte para mim. Oh, companheiro faça isso, oh amigo faça isso”. Aí sempre dou um agrado, mas não é o preço justo, porque a gente não tem dinheiro. A minha motivação é ver as pessoas passando na rua e muitas pessoas falando comigo: “Pedro, eu faço teatro por sua causa!”, “Pedro, eu comecei a fazer teatro com você”. Rapaz, você não faz nem ideia. Então essa é a minha motivação.  

– Você “herdou” esse festival de Enéas Alvarez, é isso? Como foi isso?

Olha, realmente, eu não herdei o festival de Enéas, não. O festival é em cima de ideias de Enéas, o TEBO. O TEBO começou como festival estudantil de teatro na Casa da Cultura e eu participei desde o primeiro ano. Eu trabalhava na Casa da Cultura. Foi lá que conheci Marcus Siqueira; nós trabalhamos mais de um ano juntos. E comecei a me envolver com o festival. Aí Enéas ficou muito chateado com o festival, porque não dava dinheiro e as pessoas ainda falavam mal do festival. Ele não ganhava dinheiro e ainda era esculhambado. Enéas iria terminar no 13º. E dona Clea Krause (primeira-dama do Recife de 1979-1982  e de 1985-1988), que faleceu, a mãe de Priscila Krause, essa mulher gostava muito de teatro. Mas isso é outra coisa. Então dona Clea disse a Enéas: “Rapaz, termina com 15”. Aí ele fez 15 anos de festival e aí o festival parou por sete, oito anos, eu não me lembro agora não. Não tenho isso na cabeça, não. O festival passou mais de sete anos parado. Aí eu conversei com alguns amigos para a gente fazer o festival e um produtor quis fazer comigo e nós fomos atrás de algumas pessoas. Fomos atrás do Sesc, formos na Fundarpe – e não vou dizer o nome das pessoas por ética – e as algumas disseram “ah isso já passou, o tempo não é mais disso, não”; “Pedro, isso é uma viagem sua”. E o produtor cultural que estava pensando em fazer comigo, também desistiu. Aí eu disse: “sabe de uma coisa, vou fazer esse negócio sozinho”. Então, é ideia do TEBO sim, mas é uma coisa em outro formato, no meu estilo, não mais do TEBO. Agora tem teatro e dança.

– Seu festival está num lugar estratégico para a formação de público, pois a mostra de vem de produções de escolas públicas e particulares, cursos livres de teatro e dança, ONGs e universidades. Que análise você faz desse papel de formador de público?

Acho o teatro Apolo um teatro legal; no centro da cidade, um teatro pequeno, que se você botar 100 pessoas tem um público legal. A gente fez todos os anos lá. Teve um ano que a gente fez a dança no Barreto Júnior. Já teve anos que a gente fez a dança no teatro do Chocolate. Mas não foi legal. Já fizemos no teatro do Parque também, a parte da dança, quando eram muitas meninas dançando. Teve ano que eram mais de 36 coreografias. E eram em dois dias. O Apolo é um lugar estratégico e o teatro é bem equipado, dá pra fazer os nossos trabalhos.

O Festival estudantil trabalha com ONGs, cursos de teatro, escolas públicas e privadas. Como é que a gente consegue formar público? Trazendo os pais para ver os filhos. Para fazer pessoas que nunca foram ao teatro sair de casa só se for para ver a família. Então a gente tira os pais de casa, tira a família inteira; vai primos, vai vizinhos, vai colegas, vai amigos. Isso é a nossa estratégia de formar público. E até os atores. Claro, 90% ou mais não serão atores, até porque não tem campo para todo mundo. É feito jogador de futebol. Eu mesmo gosto de futebol. Jogador de futebol, minha filha, é um milhão para sair sete ou oito jogadores. É feito o teatro. Como eu disse, 300, 400 passam pelo Festival Estudantil –atores, bailarinos e técnicos –,mas a maioria não será nem uma coisa nem outra.  Mas pelo menos leem um texto de teatro, vão ao teatro ver os espetáculos, sabem o que é o teatro. E outra coisa: abre a cabeça das pessoas. E é nossa ideia de as escolas chamarem arte-educadores para montar espetáculos nas escolas. Isso aconteceu durante um tempo, algumas escolas montaram espetáculos para o festival. Vinham para o festival estudantil, depois iam para o Feteag de Caruaru, iam para Vitória, iam para os festivais de estudante, que Pernambuco tem muito festival de estudante. O Feteag praticamente já não faz mais com escolas, só em Caruaru mesmo, mas não tem mais aquele festival grande, de competição, não existe mais. O Feteag se voltou para o lado profissional e até um lado mais internacional. Então era nossa ideia, mas o tempo vai mudando e a gente vai tentando adequar. Mas uma coisa é certa, as pessoas que passam pelo teatro e pela dança serão outras pessoas no futuro. Isso eu tenho certeza.

– Como você interpreta a política públicas para as artes da cena do Recife e de Pernambuco? O que é prioritário e urgente.

Eu vou ser muito sincero. Eu não tenho partido político. Eu voto em pessoas, geralmente de esquerda. Porque acho que a esquerda é mais ligada à cultura. Mas não tenho partido. Tenho as minhas convicções, gosto de estudar o candidato para votar nele.

Nós tivemos um boom muito grande na cidade do Recife na era PT de João Paulo. João da Costa começou a desmontar tudo. Então você vê que são as pessoas. PT de João Paulo e PT de João da Costa, entendeu. João da Costa acabou com o SIC municipal e outras coisas que não quero comentar aqui. O que é que falta? Faltam políticas sérias na cidade. Mas o político geralmente não investe em cultura. Por que não investe em cultura? Porque a pessoa quanto mais analfabeta melhor para eles. Dá para ver a porcentagem da pessoa que vota na direita e na esquerda. Na área da cultura as pessoas são mais antenadas. E eles não querem isso. O político em si quer as pessoas quanto mais – não são todos, claro, tem as exceções – mas a maioria deles, quanto mais burra melhor para eles, porque fica feito manada. Quem lê um livro, quem vai ao teatro, vai ao cinema, vai a uma dança, quem vai ver espetáculo de ópera ou até mesmo vai a um show, já tem outra cabeça e isso eles não querem. O que a gente precisa é de político na câmara ligado à arte. Sem política a gente não chega em canto nenhum. As pessoas que entram, tem uns que tem umas ideias boas, boa-vontade, mas esbarra. A arte é sempre última coisa que o político olha.

– Fale brevemente do cardápio dessa edição, os trabalhos. E como foi viabilizada a edição.

Nesta edição temos 12 espetáculos de teatro e 10 coreografias. Então é um cardápio bem legal de espetáculos de todas as linhas que você possa imaginar. Os textos são muito interessantes. Vou dizer feito um amigo meu dizia: o espetáculo em si pode não ser a oitava maravilha do mundo, mas só você escutar o texto já sai do teatro mais culto um pouquinho. Ultimamente temos espetáculos muito interessantes. Tem gente do Sesc, da Cênicas que é Toni Rodrigues que faz trabalhos muito legais. E tem coreografias muito boas. A dança é sempre um ponto alto no festival. Tem muitas escolas de dança boas que estão participando com a gente.

– Você sempre fala que faz o festival “na raça”. Isso é motivo de orgulho ou preocupação.

É verdade. São 20 anos de festival, mas 19 edições. A gente ganhou patrocínio: três Funcutura, três SIC municipal (teve um que a gente ganhou, mas o dinheiro não foi entregue, mexerem em tudo, acabaram com o SIC. Como é que se acaba com um edital depois de estar na rua, depois da comissão julgadora julgar os projetos, tudinho e não pagar as pessoas?!). Eu soube que meu projeto tinha sido classificado. Tinha já uma pessoa captando o dinheiro … é muito complicado. Em dois anos ou três – não me lembro direito – a prefeitura deu um dinheiro que chama do balcão. Foi na época de João Paulo – que foi muito bom para a cultura  – e arrumaram um patrocínio para a gente. Não era um patrocínio grande, mas dava para a gente fazer alguma coisa. Mas o resto dos anos, nós fazemos com o dinheiro da bilheteria e com as inscrições.

Dizem “Pedro, teu festival não passa no Funcultura porque cobra ingresso”.  Minha gente se não cobrasse ingresso o festival tinha acabado. Outra coisa. Esse ano o ingresso é R$ 20, mas desses R$ 20, R$ 12 é para as escolas, para ajudar num figurino, num adereço, num ônibus, para se mexer. Então para nós sobra R$ 8 este ano, porque ano passado era R$ 6. Nós vivemos muito em cima do ingresso. Dá para pagar uma parte das contas. A gente podia oferecer cursos e várias outras coisas, mas como fazer isso sem dinheiro? A gente não tem dinheiro nem para pagar decentemente uma pessoa que faça a arte. Tem horas que fico morrendo de vergonha. Ontem eu estava falando como o menino que faz a programação visual, Douglas Duan, – gente da melhor qualidade e a programação visual dele é linda. Eu disse a ele, “Duan, é tão chato pedir todo ano a você”. A gente dá um trocado ao cara.

Agora a preocupação é que tenha um ano ruim de público e a gente tenha que pagar do nosso bolso. Houve ano que paguei do meu bolso sim. Porque a gente viajou em coisas. Foi prometido dinheiro… Instituições prometeram e a gente botou a logomarca nos cartazes e no fim não deram dinheiro, não. Este ano nós temos o apoio da Prefeitura do Recife, pela Secretaria de cultura e Fundação de Cultura.

– Neste ano, com previsão para os seguintes, o festival estudantil integra o Cena Expandida com mais quatro festivais. O que as artes da cena (e seu público) da cidade do Recife e de Pernambuco ganham com essa ação?

A Cena Expandida, como é um piloto, vamos ver no que vai dar. Eu, Paula (de Renor), Fábio (Pascoal) e Arnaldo (Siqueira) principalmente os quatro – o Transborda é do Sesc – estamos com muita esperança de ser uma coisa muito legal. E vão chegar mais festivais, que já estiveram conosco, mas por causa do tempo não ficaram este ano. Acho que vai ser uma coisa muito interessante essa Cena Expandida. Daqui a um ano ou dois, um mês vai ser pouco para abrigar tanto festival. É aquela história, unidos somos fortes.

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“Eu me fiz.
De certa forma,
eu fiquei grávida
de mim mesma, eu me pari”.
ENTREVISTA: Renata Carvalho

Atriz, escritora e transpóloga Renata Carvalho, no lançamento do livro Manifesto Transpofágico, em São Paulo. Foto: Ivana Moura

“O olhar dela melhora o meu. Depois que a conheci, meu mundo se transformou completamente”, revelou a produtora Gabi Gonçalves, da Corpo Rastreado, sobre as micro revoluções provocadas pela trajetória da atriz, diretora, escritora e transpóloga Renata Carvalho. A emoção de Gabi ao falar da potência dos caminhos trilhados pela autora do livro Manifesto Transpofágico foi um momento lindo numa noite repleta de amorosidades. O lançamento ocorreu no dia 6 de abril, na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo.

Manifesto Transpofágico é a transpofagia da transpologia de uma transpóloga. Em outras palavras, Renata se veste de sua própria pele, seu corpo travesti. Alimentando-se de sua “transcestralidade”, ela narra a historicidade que carrega no corpo. A artista devora, deglute e subverte posições do pesadelo conservador de forma combativa contra a herança colonial, numa experiência pessoal renovada. Renata cria o seu festim transpofágico.

A publicação da Editora Monstra, iniciativa editorial da ONG Casa 1, tem edição bilíngue (inglês e português) e duas brochuras extras, em espanhol e francês. Além de introdução assinada pela professora Jaqueline Gomes de Jesus (IFRJ). “O texto é uma forma de registrar como memória que em 2022 tinha uma travesti fazendo um espetáculo, que esse espetáculo tinha uma pesquisa aprofundada, uma transpofagia”, avalia Renata.

Meu corpo (TRAVESTI) veio antes de mim,
(pausa)
sem eu pedir.
Ele é mais velho do que eu.
(TRAVESTI)

A pesquisa, chamada de Transpologia, foi iniciada em 2007, quando Renata Carvalho atuou como agente de prevenção voluntária de ISTs, hepatites e tuberculose.  Em Santos (SP), ela cuidou de travestis e mulheres trans na prostituição, por 11 anos. Essa vivência motivou a criação do solo Dentro de Mim Mora Outra, que levou aos palcos em 2012, narrando sua travestilidade.

O livro é versão editada do solo que protagoniza e que assina a “travaturgia”, encenado desde 2019. Com direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi, a peça Manifesto Transpofágico expõe acontecimentos ligados à travestilidade, compartilhamento íntimo da existência de Renata e sua subjetividade e resgate histórico de dados de sua “transcestralidade”.

Ao expor os fluxos do próprio caminho de forma corajosa, ela questiona a visão cisnormativa sobre o corpo travesti, tratamento social, violências intensas ou sutis, a patologização, a criminalização, a sexualização, enfim a construção social, imagética, midiática do corpo transgênero. E ressalta que o que está em jogo é a sobrevivência, é a própria vida.

A entrevista em vídeo foi realizada no dia do lançamento do livro Manifesto Antropofágico, no dia 6 de abril de 2022, no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

A conversa está dividida em cinco partes curtas.

Na primeira, Renata Carvalho discorre sobre sua percepção do tempo, diz que se sente mais calma, mesmo que o clima de ameaça de morte dos corpos trans ainda seja uma realidade no Brasil.

Transfake e da representatividades trans é tema do segundo bloco.

No terceiro bloco, a artista defende que é preciso celebrar as conquistas – como a deliberação do STJ (Supremo Tribunal de Justiça), do dia 5 de abril. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006), é aplicável a mulheres transexuais no país. A decisão inédita passa a proteger com essa Lei todas as mulheres vítimas de violência doméstica. E destaca a importância da atuação de figuras trans nos espaços de entretenimento, como ocorreu com Linn da Quebrada, no BBB.

A encenação O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu estreou em agosto de 2016, no Festival Internacional de Londrina (FILO). Teve grande repercussão e muitas polêmicas foram geradas em função de censuras. O monólogo prega a tolerância, a harmonia, o perdão, o acolhimento, o respeito e o amor e Jesus é interpretado por Renata Carvalho. O espetáculo foi censurado em Jundiaí, Salvador e Garanhuns por ordens judiciais. No Rio de Janeiro e no Recife por pressões religiosas. E muitas tentativas de censura por ódio injustificável, resistência de bandos fundamentalistas religiosos, juízes de direito e grupos conservadores. Renata conta sobre essas memórias doloridas na quarta parte.

No quinto bloco, ela vislumbra futuros possíveis e festeja sua atuação no audiovisual.

Obrigada Renata pela entrevista, pela gentileza e vivacidade de sempre. Parabéns Corpo Rastreado, Editora Monstra, ONG Casa 1,e todos os envolvidos nesta ação do lançamento do livro, “que foi pensado há muito tempo e há muitas mãos”, e que “vai ganhar lugares que a gente nem consegue ter noção”, como salientou a Gabi Gonçalves

RENATA CARVALHO, nasceu em 1981, em Santos (São Paulo).
É atriz, diretora, dramaturga, escritora e transpóloga (antropóloga transgênero).
Fundadora do MONART – Movimento Nacional de Artistas Trans, onde criou o Manifesto Representatividade Trans, que visa que artistas transgêneros interpretem personagens transgêneros.
Lançou o Coletivo T, o primeiro coletivo artístico formado integralmente por artistas transgêneros em São Paulo.

 

 

 

 

 

SERIVÇO

     

Livro Manifesto Transpofágico
Edição bilíngue: de R$ 20,00 a R$ 40,00
Brochuras em espanhol e/ou francês: de R$ 10,00 a R$ 20,00

Para solicitar um exemplar:
contato@corporastreado.com
(11) 3031-7138
corporastreado
corporastreado.com
@casa1 / @editoramonstra 

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@renatacarvalhooficial  @bibliotecamariodeandrade 

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Uma conversa sobre Nordeste, teatro de grupo e política
Entrevista || Magiluth e No Barraco da Constância Tem!*

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Veja só. Foto: reprodução de tela

Piragem etnográfica do complexo, espetáculo do grupo No Barraco da Constância Tem!. Foto Edouard Fraipont

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. Foto: reprodução de tela

Não sabemos dizer ao certo se acontece noutras regiões do país, mas no Nordeste, o telejornalismo tem uma certa fixação por buracos. O desejo de estabelecer uma relação com as populações geralmente mais periféricas das cidades faz com que problemas que afetam o cotidiano das pessoas, como os buracos das ruas, ocupem bastante espaço na programação diária das emissoras. A partir desse mote e das metáforas infindáveis que pode desencadear, o grupo cearense No Barraco da Constância Tem! criou O desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, experimento audiovisual apresentado no Cena Agora, do Itaú Cultural, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas.

Sabe o cubo mágico? A edição de texto e vídeo desse trabalho é como essa quebra-cabeças com assuntos que aparentemente não teriam ligação, mas fazem todo o sentido. O trabalho resgata a história de Manuel Olímpio Meira, um pescador que lidera um grupo numa viagem de jangada de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A empreitada é bem-sucedida e vira até matéria na revista Time, despertando o interesse de Orson Welles, que vem ao Brasil para filmar a história dos pescadores. Mas, durante as filmagens, há um acidente e Manuel Jacaré desaparece no mar.

O experimento imbrica o sebastianismo – foi o rei D. Sebastião quem desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 –, à história do pescador, à percepção que os nordestinos têm de suas cidades (há um trecho ótimo com supostas entrevistas de crianças europeias, mas usando o áudio de um vídeo com crianças nordestinas, falando sobre a relação delas com o Crato e se elas gostariam de permanecer na cidade quando crescessem), e até ao turismo ufológico no Ceará.

Como nós, Yolandas, adoramos proporcionar encontros e intercâmbios, enviamos o link desse vídeo para algumas pessoas, inclusive para Giordano Castro, do Magiluth. E, como a gente esperava, o grupo pirou com a ideia do No Barraco… para discutir o Nordeste. Resolvemos então promover esta conversa entre esses dois coletivos que nunca se encontraram pessoalmente, mas poderiam dar match.

O trabalho que o Magiluth apresentou no mesmo evento, Cena Agora, está disponível no Instagram e no YouTube do grupo. Veja só… é uma leitura comentada da matéria publicada na Veja São Paulo, que incitou a discussão sobre Nordeste pelo Itaú Cultural, e anunciava em sua manchete: São Paulo – Capital do Nordeste. Foi a primeira vez que os atores do Magiluth leram a publicação.

O grupo No Barraco da Constância Tem! é formado por Ana Carla de Souza, Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte. Damasceno, Honório, Renan e Sarah participaram da entrevista “coletiva”. Já do Magiluth, que junta Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner, participaram Giordano e Erivaldo. Foram quase três horas de conversa e nem tinha uma cerveja gelada na mediação, o que certamente vai acontecer no próximo encontro, seja na Mamede Simões, no Recife, ou na Instituto do Ceará, em Fortaleza.

*Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || MAGILUTH E NO BARRACO DA CONSTÂNCIA TEM!

Pollyanna Diniz: Como era o cenário de teatro no Recife e em Fortaleza quando vocês decidiram criar o Magiluth e o No Barraco da Constância Tem!, respectivamente? Por que se juntar em grupo?

Giordano Castro: Quando a gente surge, era muita coisa acontecendo aqui em Recife, dinheiro jorrando, o estado investindo. Mentira! Mas a gente tinha um cenário teatral local bem melhor do que nos últimos seis anos. O Magiluth surge em 2004. Entramos na universidade e quatro pessoas que faziam parte daquele grupo tinham mais interesse na prática do que na licenciatura. Começamos a entender que estar em grupo era a saída para furar uma bolha da cidade. É natural, vão se formando blocos e agrupamentos e o pessoal mais novo sempre tem um pouco de dificuldade. Depois que começamos a fazer, buscamos exemplos e inspirações noutros coletivos, grupos, alguns até contemporâneos. Mas estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas. 

Estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas.
Giordano Castro – Magiluth

Honório Félix: O No barraco da Constância tem! surgiu em 2012. Estou desde o começo. Temos agora outra configuração de grupo, mas lá no começo éramos eu, Tayana Tavares e Ariel Volkova. Eles não saíram, mas estamos passando por um momento de transição, de entendimento de como está funcionando esse coletivo. O Barraco surgiu porque eu, Tayana e Ariel trabalhávamos juntos, mas tínhamos uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente não via na cidade. E não é porque a gente não admirava as pessoas, mas olhávamos ao redor e tínhamos vontade de fazer uma coisa que não estava ali. Tínhamos vontade de pautar e de estabelecer a nossa própria poética, mesmo não sabendo muito bem o que era isso. 

Trabalhamos muito entre o teatro e a dança, mas também partilhamos outras zonas de interesse. Esse grupo movimenta uma série de pessoas em projetos e criações diversas. Temos essa característica de ter um núcleo, digamos assim, mas estamos sempre nos juntando com alguém, trabalhando com uma série de pessoas que estão ao nosso redor.

O No Barraco surge de uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente
não via em Fortaleza. Tínhamos vontade de pautar
e de estabelecer a nossa própria poética.
Honório Félix – 
No Barraco da Constância tem!

Pollyanna: Fiquei curiosa com o nome do grupo. Qual a história?

Honório: A constância tem a ver com a qualidade de ser constante, de construir essa constância na criação, na elaboração, no exercício poético. E o barraco tem a ver com esse lugar que é acochado, mas que cabe, e tem uma relação de “barraquear”, de bater o pé, de chutar a porta, de barraco, de confusão, de contenda. Aí o Barraco é um pouco esse pandemônio, cabe muita coisa, muita gente, e se faz na elaboração constante.

Renan Capivara: Faço parte de uma leva mais recente que ingressou no Barraco, junto com Felipe e Sara em 2018. Entramos por ocasião do projeto Delirantes. Era de montagem, mas também se desdobrou e continuamos produzindo e criando mais coisas. E é interessante que essa relação não começou em 2018, porque eu conhecia Honório há muito tempo e conhecia William há um tempo. Conheci Honório no curso técnico em Dança em 2013 e acredito que trabalhar com ele agora vem um pouco dessa relação, que vem de um espaço formativo, e isso é muito importante de sublinhar.

Felipe Damasceno: Sou artista da dança, minha formação básica é da dança, mas como o Barraco trabalha com teatro, dança, e outras linguagens, não sei se faz mais sentido dizer que sou da Dança. Já nem sei mais de onde é que eu sou! Minha formação não passa pela universidade, pela estrutura acadêmica, formal, institucional. A minha formação foi sempre embasada nessa coisa de coletivo. Naquela época, ainda não existia faculdade de dança, então a formação da maioria das pessoas era muito dentro dessa lógica dos agrupamentos. Você está neste grupo tal e esse grupo, coletivamente, descobre como é que forma as pessoas, que caminhos tem que seguir. A coisa era meio entrelaçada, formação e criação.

Sarah Nastroyanni: Tenho crush no Barraco desde 2016, quando assisti Marlene pela primeira vez. Aí a gente passou um tempinho se paquerando, se queixando, até eu me tornar barraqueira em 2018 junto com Damas e Renan. E quando a gente se juntou, Renan falou um pouco de Delirantes, um dos projetos que a gente já se jogou, mas quando a gente se juntou mesmo, eu e Honório, foi para enviar cartas para artistas e espaços de exposição na cidade, apelando a autoria do mictório (Fonte), aquela obra que é atribuída formalmente ao Marcel Duchamp, ao fantasma da baronesa falida Elsa von Freytag-Loringhoven, que é a verdadeira autora . E começou com essa ação da gente escrever anonimamente cartas, mas se desdobrou. É um babado que está rolando até hoje, das cartas passou para exposição, vídeos em artes visuais, em diversas linguagens. E é um prazer conhecer vocês pessoalmente, do jeito que dá.

Pollyanna: Se vocês pudessem escolher um trabalho marcante, uma virada de chave na trajetória do grupo, qual seria?

Erivaldo Oliveira: Para mim, a virada de chave, muito simbólica, foi em Aquilo que o meu olhar guardou para você: a possibilidade de a gente trabalhar a partir do teatro, a partir do grupo. O espetáculo surgiu em 2011, num projeto também do Itaú, chamado Rumos Teatro, a primeira edição. E esse foi o primeiro edital que a gente recebeu uma grana, tinha a possibilidade de ter uma sede, um espaço onde a gente pudesse trabalhar. O grupo se modificou muito a partir daquele momento. Largamos os outros trabalhos e voltamos a entender que era dali que a gente podia se unir, ter forças, no sentido de sobrevivência, no sentido de viver daquilo que a gente veio ao mundo para fazer. Tem essa chave de estruturação.

 

Aquilo que o meu olhar guardou para você. Foto: Blenda Souto Maior

Um torto, solo do Magiluth. Foto: Pollyanna Diniz

Viúva, porém honesta. Foto: Victor Jucá

Giordano: Vou subverter, Polly, vou dizer três trabalhos que marcam coisas bem diferentes e são bem importantes. O primeiro é Um torto, um solo do grupo, que dá uma guinada nessa busca poética que Honório falou, que eles não sabiam ainda quando surgiram, a gente também, a mesma coisa, me vejo muito nesse lugar. Mas acho que Um torto, por mais verde que seja, faz uma quebra nos trabalhos que a gente tinha feito. Depois dessa quebra, seguimos essa avenida que Um torto abriu de pesquisa e pensamento. O segundo trabalho é Viúva, porém honesta. Deixando a modéstia um pouco de lado, foi um trabalho de sucesso, de lotar casas, de fazer com que a gente entrasse nos principais circuitos. Já frequentávamos circuitos de festivais, mas com Viúva, ele chuta a porta e ele é mais do que a gente, é o próprio trabalho que se impõe. E o trabalho depois desse, logo em seguida, é O ano em que sonhamos perigosamente, que é o trabalho dentro da nossa trajetória que, se a gente pensar em questões de receptividade, pode ser considerado um fracasso. Mas, para o grupo, para tudo que significa e o que aconteceu, acho que é um dos trabalhos mais fodas e interessantes que a gente fez, enquanto pesquisa de linguagem. É um trabalho que surge de um desses momentos que, como Honório falou, vocês estão vivendo uma renovação, acho que isso acontece muito e várias vezes dentro de um coletivo, a gente passou por várias guinadas. Uma guinada de amadurecimento se dá por causa desse trabalho, durante esse trabalho.

Honório: Vou falar dos mais antigos. Acho que o primeiro trabalho que é uma virada de chave é o Piragem etnográfica do complexo (2013), que construímos despretensiosamente e que nos levou  para vários lugares. É um trabalho curto, de meia-hora, mas viajamos, fizemos um bocado de canto, fazíamos desde pátio de universidade até apresentação em galeria, em festival de performance. Foi um trabalho que nos colocou noutra perspectiva: “acho que a gente pode realmente investir nisso, né? Vamos continuar trabalhando?”.

Tem uma coisa interessante que rolou no Cena Agora, nesse último trabalho, que foi O desaparecimento do Jacaré Alcácer-Quibir. Ivana perguntou como a gente pensa montagem e edição no nosso trabalho durante o debate. E logo depois Ariel, um dos membros do coletivo, me telefonou para falar sobre o Jacaré, que foi incrível, que o debate foi lindo, e que ele ficou com isso martelando na cabeça, a pergunta da Ivana. E ele falou assim: “Honório, na verdade a gente funciona muito por essa coisa de montagem, de edição”.

Nesse sentido, outra virada de chave foi quando entramos no Porto Iracema das Artes, uma escola daqui do Ceará voltada à formação e pesquisa, no laboratório de pesquisa teatral com o projeto Encenações contracenadas – entre o distanciar e o invadir. Tínhamos dois anos de grupo e fizemos esse projeto que era super ousado: convidar cinco encenadores de Fortaleza para que cada um dirigisse uma cena de cinco minutos com a gente e, a partir de como eles trabalhavam procedimentos de direção, a gente ia ver como fazia uma edição, misturar essas cinco poéticas e “roubar” a autoria deles. A gente vai roubar isso aqui, vai se apropriar, hackear os procedimentos e inventar uma maneira de colocar essas relações diferentes para contracenar. Deu um trabalho medonho, porque realmente dá trabalho editar esse material, cenas muito diferentes entre si. E gerou um trabalho chamado Nada como quando começou. O Piragem era um grande sucesso e era conhecido pelo deboche. O Nada não tinha essa característica de deboche, mas tinha uma característica de atrevimento e, em certo sentido, era um trabalho que levantou uma suspeita sobre as pessoas: o que é que eles estão fazendo? Era um grupo que não é nem de teatro, nem de dança, está fazendo uma coisa esquisita, misturando um monte de gente.

E outra virada de chave, que meio que resvala até onde estamos agora, são dois trabalhos: Marlene – dissecação do corpo do espetáculo (2016) e Rara (2017). Marlene é um espetáculo que foi um sucesso, mas demorou a engatar. É um trabalho longo, de duas horas, com várias mudanças de atmosfera, meio grandioso, quase operístico, e tem essa característica de decadência. Mas ali a gente foi entendendo e trabalhando esses procedimentos de montagem, de edição, de costura, de mistura, vou por ali, vou aqui, vou misturar essa história que tem a ver com teatro de Fortaleza com uma história de Hollywood dos anos 1950 e daqui eu vou lá para as divas do jazz. É um trabalho que vai falando um pouco sobre essa relação da decadência, da diva, da história do teatro e do porquê a gente perpetua esse imaginário. Acho que é uma virada de chave junto com Rara, nosso trabalho de ficção científica. Começamos a entender uma zona de interesse, não estabelecer uma metodologia de trabalho, mas realizar uma criação em camadas, misturar assuntos. A gente entendeu nesses dois trabalhos que isso era o que a gente fazia, foi uma tomada de consciência e de que seria interessante continuar investindo nisso.

Nada como quando começou. Foto de Luiz Alves

 

Marlene – Dissecação do corpo do espetáculo. Foto de Toni Benvenutti

Rara. Foto: Luiz Alves

Sarah: Vou falar de um trabalho marcante de um ponto de vista bem pessoal que, para mim, mobiliza muitas das características do nosso fazer, que é Auto de Danação, que foi feito no fim do ano passado, uma performance por WhatsApp, oriunda de uma residência. Quando falo que mobiliza certas características, é de constância, porque vem de uma pesquisa de 2018, que teve uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria, uma coisa muito recorrente nos trabalhos do Barraco. Quis mencionar esse porque vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. Sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui, fico curiosa para saber de vocês como é que foi esse processo de Tudo que coube numa VHS, e o que vocês estão pensando e produzindo agora, como foi se inventar a partir dessas plataformas?

Auto de Danação, uma performance por WhatsApp, mobiliza muitas das características do nosso fazer, uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria. Vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. É sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui. Sarah – No Barraco da Constância tem!

Giordano: Sarah, esse trabalho nasce do desespero e do medo da morte. No ano de 2019, pré-pandemia, estreamos Apenas o fim do mundo, um trabalho bem recebido pela crítica, entramos nas premiações nacionais. Mas o Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. Vendo que os festivais estavam fudidos, porque muitos já estavam convidando a gente, mas faziam: “ah, a gente está meio sem grana e tal”, decidimos investir num espaço nosso aqui no Recife. Se tudo desse errado, faríamos espetáculo de domingo a domingo e tiraríamos a grana da bilheteria, o que, obviamente, não seria essas coisas, mas iríamos nos mantendo, fazendo o nosso trabalho. Aí, Sarah, a gente se fudeu. Toda a grana que tínhamos em caixa, investimos neste Casarão. Dois meses do Casarão, pandemia. E todos os festivais que a gente ia participar, que iriam ajudar a repor a grana, foram caindo. Também faríamos uma estreia em cima do Morte e Vida Severina, que caiu. Em abril, Erivaldo nos disse que a gente tinha mais um mês e meio de grana. Fudeu, véi. Foi quando começamos a pensar em criar: será que a gente adapta algum trabalho? Fomos esbarrando em questões. A internet da gente é uma bosta, as câmeras são ruins, não vamos conseguir fazer um trabalho online. Aí conversei com os meninos e disse que estava com uma ideia. E nasceu Tudo que coube numa VHS. Não foi uma pesquisa, não era algo que a gente já estava pensando. As primeiras ideias eram: como fazer um trabalho que levasse em consideração a maneira como a gente tem se comunicado, através dessas plataformas, um trabalho que fosse seguro tecnologicamente, que eu não ficasse na mão de uma internet muito boa, que as pessoas que participassem também não precisassem disso, que fosse simples. E as outras coisas fomos entendendo. A gente entendeu, por exemplo, que o trabalho não poderia ser muito longo. E, resumindo, Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas.

Erivaldo: Esse trabalho veio no sentido de nos salvar financeiramente e também a nossa sanidade porque, como Gio falou, no começo era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. E o fato de ficar todo mundo dentro de casa, grana acabando, festival caindo, Casarão fechado, isso tudo dá um bug na cabeça. Parece que, pela primeira vez na história mundial, o teatro vai morrer. Morremos, vamos morrer. Era tudo muito assustador. Essa qualidade estética criada a partir da tecnologia, do digital, foi sendo aprimorada com o passar do tempo. Lembro que a gente teve uma reunião com Lubi (Luiz Fernando Marques), porque queríamos fazer Apenas o fim do mundo, porque ele é constituído de muitos monólogos, então pensamos: todo mundo está nas suas casas, vamos fazer os monólogos e criar uma atmosfera para isso. E aí na reunião, Lubi disse: “gente, teatro não existe, não vai existir durante esse tempo de pandemia, porque o teatro requer presença”. E aí esse negócio, de que o teatro de fato requer presença, foi o que mais nos pegou. Como é que, mesmo nessa distância da tela, conseguimos estabelecer presença, no momento real? E o experimento, no momento que foi criado, tinha um frescor, a possibilidade de estar em cena. Não podíamos ir ao teatro, mas as nossas casas viraram palco. Então você está no meio de uma pandemia, de segunda a segunda, fazendo peça? A gente fazia 10 apresentações por noite, de segunda a segunda. Você tem uma ocupação, não deixa de lado os problemas, mas dá uma ressignificada, para ter sanidade e continuar acreditando na nossa potência de criação, na nossa arte. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós, fazedores, que foi importantíssimo, para além da segurança financeira. Na pandemia, diante de tudo que está acontecendo, milhares de amigos tendo que fechar as portas, não tendo como sobreviver, a gente tem que agradecer a uma junção do cosmo que fez esse trabalho existir, a partir da necessidade, do desespero. 

O Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. 
Giordano Castro – Magiluth

 

Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas financeiramente e também a nossa sanidade.  No começo da pandemia, era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós. 
Erivaldo Oliveira – Magiluth

Ivana Moura: Vocês acham que o teatro ocupa o lugar que deveria nas cidades de vocês?

Felipe: Não, o teatro não se encontra numa posição de importância, não tem um protagonismo. O que fazer para que isso mude? É acabar com o capitalismo! A louca! É pensar essas estruturas de difusão, a formação e a circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. Dentro do bojo cênicas, tem uma concentração geográfica em Fortaleza na Praia de Iracema, Centro, Benfica, Aldeota, Meireles, que tem um acesso direto, geográfico, a espaços culturais, enquanto o resto da cidade não tem tanta facilidade. Estamos falando, claro, de espaços institucionais, mas existe uma força muito grande de espaços alternativos, que fomentam uma produção própria. Mas, mesmo assim, tudo se concentra numa parte específica da cidade, que acho que não é muito diferente noutras cidades do Brasil. Estou me sentindo um político. Porque é tão óbvio, pelo menos para mim, acho que para todos que estão aqui, é uma pauta óbvia. 

O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. Direito cultural é manifestação, gente que, nos anos 1980, 1990, pautou que deveríamos ter uma escola de dança na cidade, para rivalizar com essa lógica privada de academias de dança, então precisava ter um curso de dança, um colégio de dança, que depois se transformou no curso técnico em dança. Acho que passa pela poética da arte, mas está mais atrelado à lógica política de como é que a classe artística de cada cidade e de um país se organiza para fazer essa reivindicação. E é sempre muito difícil, porque lidamos com o individualismo. Estamos sempre competindo, essa lógica de edital já incita que só um ou dois vão ganhar. Tem um ponto que sai da poética, da criação, e passa por um viés político de organização da classe.

O teatro não se encontra numa posição de importância. O que fazer para que isso mude? É pensar essas estruturas de difusão, formação e circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. 
Felipe – No Barraco da Constância tem!

 

O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Por que o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife.
Giordano Castro – Magiluth

Giordano: Mas eu acho, Felipe, que é político mesmo. O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Porque o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife. Kleber toma uma água maravilhosa e o filme dele é premiado. Obviamente tem a parte artística, do pensamento, do fazer, mas esse pensamento e esse artista só acontecem quando tem investimento. Se não, ele vai ficar pensando dentro da casa dele, ele vai ser genial dentro da casa dele. Tivemos momentos em que o teatro aqui teve uma visibilidade e ocupou um lugar forte no cenário nacional. Na época da gestão de Peixe (João Roberto Peixe, secretário de Cultura da cidade do Recife de 2001 a 2008), por exemplo, tivemos festivais de teatro que recebiam o que tinha de mais interessante, daqui e de fora. Hoje temos um momento muito difícil, porque desde que começamos a viver dentro do clã Campos, nessa política do PSB daqui, que se destruiu tudo que foi construído durante um tempo de gestão e a cultura virou evento, não virou uma política pública de manutenção, mas sim evento. E o PSB trabalha com medalhões dentro das secretarias, coloca um Ariano Suassuna para ser o secretário de Cultura, coloca uma Leda Alves para ser secretária. São pessoas fofas, maravilhosas, que têm uma história. Colocam essas pessoas como bode expiatório. E aí você chega no Recife, no aeroporto, e a primeira coisa que você vê é um caboclo de lança e um passista, fotos maravilhosas, e essa galera está fudida, porque essa galera só é boa para fazer foto, como imagem, mas não tem manutenção para essas figuras. 

Honório: Em Fortaleza, temos um investimento forte em formação, técnica, básica, e também de graduação, em diversos espaços e linguagens. E, quando se investe em formação, existe muita criação. Mas os espaços de escoamento dessa produção estão sucateados e sem investimentos. Houve um movimento, infelizmente veio a pandemia, de juntar os fóruns de várias linguagens através do Fórum de Linguagens e a gente produziu uma carta que falava de todos os equipamentos do Ceará, alguns até em desuso. Por exemplo, o Teatro Carlos Câmara, tem toda uma equipe lá, e não acontece nada, porque eles criam um mecanismo, o edital de ocupação. Vai lá uma produtora, se inscreve, passa dois anos tentando criar uma programação, acaba essa ocupação, a produtora sai, abre um novo edital, passa um ano o negócio fechado até que saia o resultado de uma nova ocupação. 

E, como o Felipe falou, essa coisa da centralização geográfica dificulta a criação do hábito de ir ao teatro. Existem outros problemas, como a mobilidade urbana e a cultura do medo, que vem de um movimento chamado “Fortaleza apavorada”, que quer reivindicar o lugar da segurança, uma coisa esquisita, a segurança ligada a uma ideia policialesca e de que a cidade é perigosa. Das pessoas criarem um medo e uma insegurança de estarem nas ruas, de quererem ser vigiadas, isso é muito forte. Foi também isso que nos mobilizou a criar essa pesquisa Delirantes, que começou em 2018 e rendeu o espetáculo Delirantes e malsãs

Queríamos criar um espetáculo nas praças públicas, a partir da epidemia de dança de Estrasburgo. Em junho de 1518, uma mulher começou a dançar no meio da rua, num vilarejo, e daqui a pouco todo mundo estava dançando, passaram dois meses dançando, e a maioria dessas pessoas morreram de tanto dançar. Vieram padres para exorcizar aquelas pessoas e também começaram a dançar, bandas de música, mas a galera se “contaminava” e dançava. Não existe uma comprovação do que causou isso, o porquê aconteceu, mas tinha a ver com aquele ambiente de final da Idade Média começo da Idade Moderna, totalitarismo e fortalecimento das monarquias absolutistas. Nos 500 anos desse fato, resolvemos fazer essa pesquisa. Iríamos estrear em março de 2020, com essa ideia de contaminação, de mobilizar uma multidão nas praças e aí acabou que mobilizou uma pandemia! 

 Giordano: Tá vendo? Foram vocês que ficaram pedindo epidemia!

 Felipe: Profético! Invocou esse troço, só pode!

 Erivaldo: E foi forte, né? Porque vocês pediram só para Fortaleza, mas veio para o mundo todo!

Delirantes e malsãs. Foto Toni Benvenutti

Honório: Quando a situação melhorou, cautelosamente começamos a ensaiar nas praças, entendendo o distanciamento social. No começo foi apavorante, entender como se juntar de novo, inclusive para adaptar o trabalho e recriá-lo do ponto de vista do distanciamento. Estreamos em outubro de 2020, fizemos uma circulação por sete praças em Fortaleza e teve público assistindo com distanciamento, num momento mais brando da pandemia. O trabalho está aí, mas só Deus sabe quando vamos dançar de novo. Também é doido entender como é que fica o nosso repertório. Será que vamos fazer algum dia? É uma coisa que tem me atormentado. 

Sarah: Fiquei com vontade de comentar uma coisa. Não é exatamente uma pergunta, mas é porque tem um trabalho de vocês, do Magiluth, que parte da Primavera Árabe e estamos falando das questões políticas que permeiam os trabalhos. Fiquei me lembrando como esse nosso imaginário em relação à forma do político tem se transformado. Vamos considerar dez anos para cá – pego esse recorte porque foi mais ou menos o tempo em que comecei a militar no movimento estudantil secundarista. Em 2013, tivemos o grande babado de junho, Copa do Mundo, tudo mais, aí visualizamos o que era uma multidão na rua, coisa que há muitos anos não tínhamos, os tensionamentos em relação à esquerda, black bloc e tal, e ninguém nunca imaginou que no fim das contas ia dar em Bolsonaro, quanto mais em não ver mais multidão na rua de jeito nenhum! Então, quando vocês fazem essa pesquisa que parte da Primavera Árabe, que passa pelas Jornadas de junho e agora todas as questões concretas de produzir na pandemia, como é que a gente está pensando, e eu fico curiosa para ouvir, a forma do político no teatro?

Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse.
Giordano Castro – Magiluth

Sobre as Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas. Não percebo como um protofascismo.
Felipe –
No Barraco da Constância tem!

 

O ano em que sonhamos perigosamente. Foto: Renata Pires

Giordano: Acho tão foda essa pergunta. Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse. Isso é uma coisa muito maior, mas em movimentos menores, muita coisa aconteceu, como o Ocupe Estelita, que foi um movimento político organizado. Naturalmente, por tudo isso que estamos vivendo, os nossos trabalhos foram desembocando nessas questões, por sermos pessoas que tentam dialogar e falar coisas referentes ao nosso tempo e as coisas que nos atravessam. Então naturalmente os nossos trabalhos foram ficando mais políticos. Mas, individualmente, cada pessoa foi sendo atravessada por essa política e por isso de uma forma diferente. Hoje, confesso que já começo a pensar noutro lugar. Essa é uma discussão que tem passado muito por nós. No começo da criação do Morte e vida, ficamos nos questionando como fazer com que esse trabalho político também fosse poético. Como conseguir equilibrar? Houve momentos em que cheguei para os meninos dizendo: aqui, Karl Marx na mesa. É isso que a gente tem que falar. E hoje penso absolutamente diferente, por estar dialogando, criando em coletivo. A gente tá trabalhando e Erivaldo vem com os cortadores de cana dançando no meio do canavial. E a gente faz “uau!”. Isso é bonito e isso é político. E como equilibrar? 

Felipe: Como não sou acadêmica, posso fazer análises da realidade sem me obrigar a ter referências e nem notas de rodapé. Acho que, após 2010, eu sentia muito um movimento de evitar esse campo político, essa estrutura manifesto, evitar o Karl Marx na mesa. E aí depois teve aquela fase de trabalhos que falavam do fim do mundo. Veio a pandemia, o fim do mundo chegou e a gente vai fazer o quê? Sobrevive, né? E agora vejo umas coisas mais poéticas. Está dado: o mundo acabou e eu vou ser poética. 

Sobre essa coisa das Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas, de pessoas querendo menos R$ 0,20 nas passagens, direitos trabalhistas. Não percebo como um protofascismo. O fascismo está posto há muito tempo aqui.

Giordano: Concordo com você. O que eu estou querendo dizer é que aquelas marchas foram muito confusas porque existia uma pauta a princípio: começou por causa do aumento de passagem, mas não era somente isso. Depois virou tudo. E nesse “virar tudo” começamos a criar o campo que a direita precisava: o povo está na rua, não aguenta mais, temos que começar a derrubar essa pessoa daí, essa mulher, no caso. Aqueles movimentos tinham que ser muito mais do que simplesmente invadir as ruas, tinham que se tornar movimentos políticos, é o que Mujica falava muito. Eu achava de uma sabedoria muito grande quando ele dizia: “ok que as pessoas estão na rua. E quando é que isso vira política?” 

Pollyanna: Como foi pensar o Nordeste, essa ideia proposta pelo Itaú Cultural no projeto Cena Agora?

Felipe: Tive muita dificuldade porque encarei a proposta como tema: Nordeste. Aí imediatamente lembro da África. Ah, tem Moçambique, Egito, Madagascar, África do Sul, Marrocos, 54 países, mas a gente encara assim, Nordeste. Eita, vixe! Mas, durante o processo, senti que começamos a subverter essas percepções do que é esse Nordeste. Fomos desenvolvendo essas puxadas de tapete entre nós mesmos, como processo dramatúrgico, como poética. O trabalho é deboche, é político, alfineta, passa por todos esses campos.

Honório: Para mim foi o contrário. Fiquei empolgado com a “tag”: temos um lugar para brincar, isso aqui para jogar. Tem uma coisa muito forte em termos de montagem, que aconteceu no processo de edição do vídeo, mas também de construção de roteiro. Criamos um roteiro e depois fomos realocando as coisas, isso vem para cá, isso vai pra lá, porque faz mais sentido. Aí Felipe fala: “vamos pelo buraco”.

Giordano: Como vocês acharam tanto vídeo de buraco?

Felipe: Tem uma recorrência de matéria de buraco nesses jornais da Globo. Fortaleza tem tanta notícia e a pessoa vai falar de buraco? Aí joga no Youtube: “buraco” e vai de tag.

Giordano: Achei genial! Mas o meu primeiro bug nessa proposta foi o livro do Durval, A invenção do Nordeste, que li no processo de Morte e vida, que deixa claro que quem inventou o Nordeste foi o Nordeste. E agora? Que botei essa bomba na mão? Fico achando que é uma discussão tão grande, que volto lá para 2013, será que estamos atirando para o lugar certo? O que estamos discutindo? Volto para a primeira questão: por que tantos artistas saem do Recife? Porque Recife não dá condições para esses artistas. Aí é fudido isso. Nessa encruzilhada Nordeste é que eu me encontro. A gente não cuida da gente mesmo, quando você pensa que durante anos se manteve a política da seca, pelos políticos nordestinos, todos eles, o cearense, o pernambucano, o maranhense, porque isso gerava muita grana. Quando você começa a puxar uma árvore genealógica da política pernambucana e vê que o atual prefeito do Recife estava brigando com a prima dele, que também era candidata. O prefeito que antecedeu ele é casado com uma prima de Eduardo Campos e o governador estudou com a mulher de Eduardo Campos. Está na mão de uma pessoa só, de uma família só, um brigando com o outro, as mesmas pessoas! Em Natal estão brigando os Rosados contra os Alves, essas mesmas famílias, e eles se casam entre si. Será que não estou errando o foco dessa discussão?

Ivana: O capitalismo é implacável em qualquer esfera. As elites não se diferenciam muito. As elites do Nordeste não são mais boazinhas, mais gentis, menos perversas do que as elites de outros lugares, elas sentam na mesma mesa no banquete. 

Giordano: Sabe quando a gente tem aquele bolo de fio de telefone no chão e está querendo tirar só o fio vermelho, mas ele está enrolado em tanta outra coisa? Não tem como discutir o capitalismo sem discutir pautas identitárias. O preconceito contra nordestino está ligado a questões econômicas, não tem como falar de uma coisa e não falar de outra. Caralho! Quando me deram essa bomba, eu disse: “não sei o que fazer!”.

Honório: Tem várias pegadinhas, cascas de banana, você puxa uma coisa e vem outra junto. No nosso processo li um poema que tem muito a ver com o que você está falando. É de um escritor daqui, chamado Talles Azigon. Ele publicou no facebook em outubro de 2020: “Nordeste/os coronéis, os padres, os gringos/ o ridejaneirosampaulo/ não te mataram, nem matarão/ nordeste/ escritoras simpáticas amigas de ditadores,/ mulheres que montam cavalo e usam peixeira/ mulheres mais modernas que artistas plásticos do MoMA,/ machos que matam mulheres/ nordeste,/ terra de ferocidades imensas,/ terra de revoluções,/ braços e cu do Brasil/ nordeste,/ onde ladrões são políticos, literatos/ donos de grandes bibliotecas privadas,/ e bebem suco de manga com açúcar/ lavrado com sangue dos pretos/ o nordestino é antes de tudo um forte:/ forte dos reis  magos,/ forte schoonenborch,/ forte santo antonio,/ forte de santa cruz,/ e mesmo assim/ até hoje/ invadido por europeus/ nordeste,/ quantos países precisaremos erguer/ para conseguirmos ouvir nossa voz,/de nosso sotaque?”

Acho foda porque ele vai colocando as contradições do que é esse Nordeste, dos coronéis, dessas mulheres maravilhosas que andam de cavalo e usam peixeira, mas estão sendo assassinadas por esses machos. O grande escritor cearense, literato, está ligado aos movimentos contra abolicionistas, é tudo muito bizarro. A gente sabe que Gilberto Freyre foi importantíssimo para entender o regionalismo, para fortalecer a ideia de uma arte regional, e servir a quem?

Ivana: Durval Muniz, na abertura do Cena Agora, a partir dessa história que Giordano falou dos laços familiares, da influência e da importância de Gilberto Freyre, que apadrinhou Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. 

Giordano: A gente vai abrindo portas sem fim. Mas eu sou uma das pessoas do Magiluth bem contra Ariano Suassuna.

Ivana: Ai, ai, ai. Faço todas as críticas, mas uma coisa é a cabeça, outra o coração.

Giordano: Ivana, fui pra fazenda dele comer queijo com ele, conversar, ele era um velho engraçadíssimo, maravilhoso. Mas acho uma escrotidão o movimento armorial. Um movimento que nunca existiu, que ele criou tudo, como tinha que ser o desenho, como tinha que ser a dança. Foi ele quem criou, então é um movimento que não existiu. Acho isso um egocentrismo e é muito doido porque Pernambuco compra isso, compra o movimento armorial. Mas se eu falar isso aqui, eu tô fudido, mas é isso aí. Tá vendo? É difícil para mim fazer esse trabalho. 

Acho que a gente precisa ter pé no chão, olhar essas pessoas nos olhos. Não tenho que ficar endeusando Ariano Suassuna, tenho que saber quem é Ariano Suassuna. Ele pode criar o conto de fadas dele, fazer o que ele quiser – e eu acho que, enquanto criador de literatura, dramaturgo, ele é muito foda. Mas não tenho que comprar a mentira dele e nem derrubá-lo. Não sou dessas pessoas que acreditam que tenho que acabar com o legado, desmascarar Ariano Suassuna. 

Não, eu não tenho que desmascarar Ariano Suassuna! Não tenho que desmascarar Karol Conká, minha gente! Não tenho problemas com Karol Conká! Se Karol Conká foi escrota a vida dela toda, e vai continuar sendo escrota, para mim o problema é dela. Agora eu tenho que saber que, num momento das nossas vidas, enquanto eu assistia ao Big Brother e ela me dava um Big Brother, naquele momento tivemos choques de interesses. E depois a vida continua. Entendesse? Tenho choques de interesse com Ariano Suassuna quando ele quer, por exemplo, fundar um ideal de cultura pernambucana, o armorial. Não compro essa ideia, não quero que ele dite a minha forma de fazer, mas acho massa que ele criou o conto de fadas dele, tá ligado? Não quero derrubar as coisas dele, deixa ele lá, como não quero derrubar Gilberto Freyre.

Tenho que olhar para Gilberto Freyre e saber que ele criou uma grande falácia, naquela ideia de mistura pacífica de raça. Mistura pacífica de raça? O caralho! Ninguém estava estuprando ele. É nesse lugar. Aí tenho que falar com ele e dizer: “ei, brother, na boa, tu escreveu Casa-grande & senzala, olha, parabéns por essa ficção”. Vou falar com ele desse lugar. 

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

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Contra a colonização da cultura, dos corpos e desejos
Entrevista || Jéssica Teixeira*

Jéssica Teixeira, atriz, diretora, dramaturga e produtora nascida em Fortaleza. Foto: Autoretrato

Foi no Sesc Pompeia, na zona Oeste de São Paulo, numa noite de sexta-feira fria pré-pandemia-apocalipse, que nos deparamos com o trabalho de Jéssica Teixeira. Era um espetáculo impactante por várias razões, mas principalmente pela qualidade dramatúrgica e pelo talento daquela atriz. A deficiência física de Jéssica estava imbricada às desestabilizações provocadas pelo texto do solo E.L.A, que confrontava os padrões de normalidade atribuídos aos corpos e a construção do que chamamos de beleza e senso estético por vários vieses, inclusive o histórico.

Atriz, diretora, dramaturga e produtora, a cearense de 28 anos, nascida em Fortaleza, não consegue passar despercebida. “Nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante, e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando”. Desde que começou a fazer teatro, ainda na infância, a menina de muita energia acumulada – que além das lições de teatro tinha aulas de dança, violão, teclado, futebol e vôlei – notava como o público reagia ao seu corpo. “Ele”, diz ela, referindo-se ao corpo na terceira pessoa, “sempre chega primeiro”.

Em Lugar de falta, seu trabalho mais recente, apresentado no Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste (s): (contra)narrativas poéticas, a atriz diz sobre as ausências e os vazios que vamos tentando preencher, sem ao menos parar para compreender quais coisas estamos tentando substituir, encaixar nos buracos, soterrando os sentidos. No vídeo, Jéssica evidencia como as pessoas reagem ao corpo que destoa do que seria um padrão como um fardo a ser carregado, até um castigo por algum malfeito em vidas passadas.

Essa entrevista foi respondida entre Porto Alegre e São Paulo, nos intervalos de gravação de dois filmes: Possa Poder, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, e outro ainda sem nome definido, que tem roteiro de Jéssica, direção de Estela Lapponi e “um monte de artistas deficientes no elenco e na ficha técnica”. Na nossa conversa, Jéssica relembra a infância em Fortaleza, fala sobre o movimento teatral da cidade, a decisão de enveredar por produções solo no teatro, a descolonização de corpos e desejos, os artistas com deficiência e as lutas de futuro.

* Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA // JÉSSICA TEIXEIRA

Você começou nas artes cênicas ainda criança. O que a arte fez por sua infância e adolescência? Como se deu a escolha pelo teatro, já mais adulta?

Durante a minha infância e adolescência diziam que eu era hiperativa, mas eu e minha família nunca ligamos muito. O fato é que chegava na escola às 7h e, algumas vezes, saía às 19h, e outras, saía às 22h. Fazia dança, teatro, violão, teclado, futebol, vôlei. Eu tinha muita energia e precisava investir essa energia em algo para ter uma noite tranquila de sono. Sempre levei mais a sério o teatro e a dança. Buscava leituras, referências. Aos 12, parei de fazer aulas de jazz, balé e dança de rua, pois tive um momento muito difícil de dores fortes em uma costela. Parei de fazer aulas de dança, mas nunca deixei de dançar. Fui percebendo que a dança poderia ser dança no meu próprio ritmo e tempo. Comecei a sentir que a dança poderia também ser muito prazerosa, porque por um tempo, atrelava a dança a algo doloroso. Já no teatro, não parei de fazer aulas e, perto de fazer 15 anos, já sabia que encararia o teatro como profissão.

Na escola, eu já conseguia perceber as aberturas profissionais que o teatro tinha para além da cena. O teatro para mim não era só o fato de eu ser atriz. Tinha muito estudo de humanidade envolvida. Além disso, eu gostava de estar em vários lugares da cadeia produtiva do teatro: assistia a montagem de luz; ficava ao lado do operador de luz e, às vezes, até operava a luz; operava o som; sentava ao lado do diretor e prestava atenção nas provocações, sugestões; corria atrás das demandas de produção; fazia contrarregragem. Fazia de tudo um pouco, mas, principalmente, assistia muito teatro. Eu era uma espectadora assídua. Quando saía da escola mais cedo, era pra ir ao teatro. Eu brincava que a minha missa/culto do domingo era no teatro. Acho que, por isso, encarei cedo como profissão. Aos 16, prestei vestibular para a primeira turma de Licenciatura em Teatro que tinha aberto na Universidade Federal do Ceará e passei! E, assim que entrei no curso, era aquela aluna que já fazia todas as cadeiras possíveis, porque queria terminar logo essa etapa universitária. Então, aos 20, estava graduada em Teatro e trabalhando com vários grupos daqui de Fortaleza.

É muito conflituoso o olhar do poder público,
da gestão e até da própria sociedade civil
para encarar o artista como uma profissão.

Essa precariedade com a profissão artista
não acontece só aqui em Fortaleza.

 A cena artística cresceu, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Como é o contexto de produção do teatro em Fortaleza? Há incentivos? Grupos e artistas que te inspiram?

O contexto de produção em Fortaleza é muito complexo. Acho que não teve um só ano durante esse meu percurso que eu não pensei em desistir de ser artista ou de sair daqui. É muito conflituoso o olhar do poder público, da gestão e até da própria sociedade civil para encarar o artista como uma profissão. A verdade é que esse conflito, ou melhor, essa precariedade com a profissão artista não acontece só aqui em Fortaleza. Mas aqui há uma realidade de valores de cachês, orçamentos, fomentos, tempos de execução ainda muito precária. Temos muitos equipamentos culturais em Fortaleza e no Ceará, isso não tenho do que reclamar. Mas o que falta é manutenção, política pública continuada e gente trabalhando para que as coisas aconteçam como um dia eu vi acontecerem. A cena artística cresceu a passos largos, principalmente com os cursos técnicos e com a chegada dos cursos de teatro, dança, cinema, entre outros nas universidades, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Aqui tenho grandes artistas e amigos que me inspiram muito. Aos 14, numa dessas saídas da escola para o teatro, assisti a Silvero Pereira em cena, e, desde então, tem sido uma chama acesa dentro de mim, tanto pela qualidade artística que ele sempre buscou e fez acontecer, como também pela firmeza de postura para fazer o que ele acredita da forma mais política e sensível possível. Yuri Yamamoto, Ricardo Guilherme, Maria Vitória, Graça Freitas também fazem parte desses artistas que eu pude conhecer quando era adolescente e carrego sempre comigo.

Como foi a sua trajetória de trabalhos em grupos e quando você percebeu que era a hora de enveredar por uma carreira solo?

A minha trajetória em grupos e coletivos foi intensa e de muito aprendizado. Mas chegou um momento em que eu não me sentia segura quanto aos posicionamentos, pois muita coisa era decidida coletivamente e eu era só uma no meio de tantos. Até que precisei abrir mão desses grupos e coletivos, pois o que acredito precisava ser dito e mostrado com urgência, de uma forma estética e política, e eu percebia que não cabiam essas minhas urgências quando o assunto era “coletivo” ou quando o assunto era “a maioria vota e decide”. As pessoas estranhas como eu são solitárias até nessas horas democráticas de votações e consensos, por incrível que pareça. Então, para me sentir mais segura com os meus posicionamentos e para que eles escapassem do meu próprio corpo, sendo esse meu corpo a minha principal matéria prima de trabalho, decidi, em 2018, quando tinha acabado de finalizar o meu mestrado em Artes na UFC, que iniciaria o processo criativo do meu primeiro solo, E.L.A., que estreou em fevereiro de 2019, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza.

Você diz que seu corpo é um elemento que sempre chega primeiro na relação com as outras pessoas. Como lidar com isso no palco?

Já tracei várias dramaturgias para isso. Depende do que a obra pede. No caso do espetáculo E.L.A. escolhi me apresentar, no início, com o teatro todo escuro, aparecendo apenas a minha voz rouca e o meu sotaque cearense. Antes, eu sentia que quando entrava em cena, eu precisava de um tempo em silêncio antes de falar qualquer coisa, pois o meu corpo já falava demais com os espectadores. Então esperava e sentia com calma o tempo de falar para que em algum momento ele, o meu corpo, e a minha fala, dialogassem mais “harmonicamente”. Para isso, percebi também que precisava trabalhar muito a voz, então estudei e treinei as técnicas vocais mais diversas possíveis, porque é muito curioso como o meu corpo fala. É muito forte. E eu digo isso porque dá pra ver nas expressões faciais e corporais de quem assiste. E a minha voz não poderia ficar aquém do meu corpo, né? Então trabalhei muito esse corpo/voz de forma “unida” e “harmônica”, mas também “isolada” e “deslocada”.

CONFIRA A CRÍTICA DE IVANA MOURA A PARTIR DO ESPETÁCULO E.L.A

 Desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

Como descolonizar os nossos corpos e desejos?

Sendo curioso, curiosa, parando de consumir o óbvio, o formatado, o mesmo de sempre. Olhando para si, cuidando de si. A cada dia que passa o nosso corpo muda, se transforma, envelhece. A gente possui um infinito dentro da gente e eu me pergunto o motivo pelo qual muitas pessoas ainda insistem nas mesmas coisas, se nós estamos em constante mudança. Precisamos acompanhar nossas mudanças para que os nossos corpos sejam uma ótima companhia para a gente. E possam desejar muito além de uma forma, possam ser desejados, se permitam ser desejados. Acho que o desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como também para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir.

Qual a importância da escrita dramatúrgica no seu trabalho? Que lugar isso ocupa?

Falar de dramaturgia é falar de tudo. Corpo, movimento, elementos de cena, objetos, luz, cores, texto. Acho um dos lugares mais interessantes hoje para criar em teatro, cinema, dança, artes visuais. Não consigo pensar em uma criação sem falar de dramaturgia, porque ela é uma teia que vai conectando tudo. Pode ser um universo inteiro num corpo pintado num pequeno quadro emoldurado ou um mundo dentro de uma caixa preta com vários corpos amontoados – ou com ninguém. As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir, e isso ganha uma infinidade de possibilidades de criação a partir das nossas escolhas artísticas. Então, prezo muito pelas diversas dramaturgias e pela escrita dramatúrgica. Tenho gostado, cada vez mais, de escrever meus próprios textos, pois sei que muitos dos textos que eu atuei durante a minha vida, consegui compreender a região/território em que o texto se passava e que o artista habitava, seus lugares de fala, dos personagens e do artista, todo o contexto que envolvia a obra. Mas, hoje, sinto que preciso, de vez em quando, escrever a partir do meu contexto e do meu ponto de vista, que ainda passa por certos apagamentos e invisibilidades, infelizmente.

Acho que ser um corpo com deficiência neste país
ainda é pesado, infelizmente…
porque não dá para passar despercebida nunca.

Quais lutas fazem Jéssica se engajar e desejar futuros melhores?

A primeira luta é a de poder ter uma vida simples, banal e corriqueira, como qualquer outra, sem ser tratada de forma especial, com cuidados extremos. Viver uma vida sem tanto carregamento dos outros sobre mim. Acho que ser um corpo com deficiência neste país ainda é pesado, infelizmente. Hoje mesmo estava conversando com uma amiga e falei pra ela sobre um meme que vi que dizia assim: “é tanta luta, que eu já tô ficando agressiva”. Falei rindo, num tom de brincadeira, mas acaba sendo sério, porque não dá para passar despercebida. Pelo menos nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando. Desaprendem a falar e encontram problema onde não tem.

Outra luta que acredito é tirar os mistérios, os tabus, o eufemismo, quando a gente for falar sobre essas pautas afirmativas, porque eu gostaria profundamente que essas palavras fossem normalizadas nos vocabulários das pessoas: capacitismo, luta anticapacitista, pessoa com deficiência, pessoa de pele preta, negro, pessoa gorda, pessoa cega, surda, travesti, trans, indígena. Às vezes, as pessoas ainda sentem receio de falar sobre ou de errar. Mas como a gente avança com medo ou criando mistérios e tabus sobre esses corpos? Acredito que existem muitas coisas que a gente só aprende errando, infelizmente, mas se a gente não falar e discutir sobre tudo isso, não caminhamos para esse futuro melhor, mais digno e menos cansativo para todes.

 

A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+.

Falamos muito em acessibilidade nas artes, mas nos parece que ainda temos pouquíssimos artistas com deficiência nos palcos. O que você acha e como podemos mudar as coisas?

Acredito que não é que temos poucos artistas com deficiência nos palcos deste país, acho até que temos muitos. O problema está em nós mesmos, que não nos damos conta desses artistas, que estão espalhados por aí, construindo seus próprios espaços de atuação. O nosso olhar ainda está muito voltado para uma produção artístico-cultural quase intocável pelo seu “selo de qualidade”: padrão, clean, normativo, linear, fino, classe A, cheio de clarezas e esclarecimentos. A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+, mas por que insistimos em reforçar e acompanhar essa cultura brasileira segregacionista e seletiva?

Neste último ano, pude me aproximar de 40 artistas com deficiência que estão atuando há muitos anos no setor cultural. Com alguns desses artistas, criei profundas afinidades e, inclusive, conseguimos trabalhar juntos, ainda que virtualmente. E foi a partir desses encontros que percebi o quanto os nossos corpos produzem linguagem, discursos, estéticas, que, por muito tempo, não eram reconhecidas pelas pessoas sem deficiência como pesquisa e produção artístico cultural. A nossa pesquisa, criação e produção era vista apenas como cota ou como critério de pontuação em editais.

A mudança da minha compreensão aconteceu quando conversávamos sobre os signos que escolhíamos para colocar nas nossas obras e sobre as nossas construções de discursos, e percebemos como esses signos e esses discursos se encontravam e se repetiam, ainda que de formas diferentes. Afinal, somos corpos estranhos, mas muito singulares entre o nosso “meio em comum”. Digo meio em comum, porque ainda não consigo dizer se somos uma comunidade exatamente, por tantas especificidades e singularidades.

Daí acredito que a mudança só vai acontecer quando houver uma virada na compreensão dos fazedores, críticos, curadores e consumidores das artes. Nós somos cultura viva também. Uma latente e estranha forma de sobreviver, de se comunicar, de se manifestar, de se vestir, de escrever e de performar neste mundo.

Em Lugar de falta, você fala muito sobre as coisas que nos faltam e que nós não paramos para percebê-las. O que nos falta como artistas de teatro no Nordeste do Brasil?

A falta é território presente em nossos corpos e nas nossas regiões. O que falta num, não falta noutro, porque o que falta neste outro, já é outra coisa. Lugar de falta é lugar de contradição também, porque é demais. Falta muito e, às vezes, sinto que a gente tenta esconder ou desviar atenção dessas faltas. Parece que é preciso que estejamos sempre muito preenchidos, cheios de respostas, muito completos, inteiros e preparados. Mas a gente sabe que não é assim. Então, acho que a maior falta nossa é a consciência dessas faltas.

No Lugar de Falta, quando vou falar sobre as pessoas “inteiras”, falo exatamente das pessoas que acham que são inteiras, que acham que têm tudo. Porque pessoas que têm tudo simplesmente nem existem. A hegemonia do belo, do padrão, do saudável é uma grande utopia, porque nunca será alcançada tal e qual idealizamos. Mas, infelizmente, ainda existem bilhões de pessoas buscando fazer parte dessa hegemonia do sucesso e precisando de corpos notoriamente não hegemônicos para depositar as suas próprias faltas, que se esforçam para esconder todos os dias. 

O que realmente nos falta é olhar para nós mesmos. Acho que essa é a principal falta. Conseguirmos nos escutar e nos percebermos de diversas formas. Conseguir acolher, cuidar e alimentar este corpo cheio de sensações que carregamos todos os dias. Com certeza, isso vai fazer toda a diferença na nossa relação conosco, com o outro, com o mundo e também vai refletir diretamente na nossa criação e produção artístico cultural.

 

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