Arquivo da tag: Quiercles Santana

Nos tempos da peste
Crítica do espetáculo Poema,
do Grupo do Ator Nu, do Recife

Edjalma Freitas no espetáculo Poema. Foto Rogério Alves /Divulgação

A peste tem muitas facetas. Todas horrendas, sabemos com a memória bem acesa pelos óbitos da pandemia. Quando a arte transborda do real pode amplificar o registro de um tempo, expondo em combinações complexas as dores e precariedades da existência. Na fase mais crítica da pandemia de Covid-19, o poeta, jornalista e gestor Antonio Martinelli criou e publicou em São Paulo, em 2020, sua Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], pela n-1 edições. Ele construiu versos inspirados na calamidade que parou o mundo. É uma escrita sôfrega e inflamada, que percorre geografias e sugere imagens de convulsão das cidades diante das perdas.

Do Recife, o ator Edjalma Freitas foi instigado pelo texto e articulou uma equipe para criar um espetáculo virtual em 2021. Poema (um título muito genérico, que não traduz o espírito da coisa) foi erguido de forma virtual nos piores momentos da incerteza provocada pela crise sanitária e agravada no Brasil por um governo genocida.

A dramaturgia da peça está calcada nos poemas Brasilândia, Zona Norte; Calvário e O Eco de Bérgamo. As palavras ganharam uma força diferente no palco (antes na telinha da virtualidade), que tem a ver com compartilhamentos. Muitos olhos dividindo as inquietações do instante. Assisti ao espetáculo em duas oportunidades on-line, em 2021, e em duas sessões em 2022, no Itaú Cultural.

A pulsação do medo, dos fantasmas, do isolamento e do desejo quase desesperado de viver são sustentados pela luz de Luciana Raposo e pelas sonoridades produzidas por Tarcisio Resende e Pedro Huff, que trabalham os climas da interpretação. Há densidades, mas elas vão se distanciando no retrovisor da memória do vivido.

O vírus acentuou a fragilidade da vida humana. Edjalma Freitas busca transpassar essa vulnerabilidade na toada das palavras de Martinelli. O corpo impregnado da cal desses tempos investe na carga dessas tragédias. Algumas vezes o peso se restringe às palavras, quando parece que o corpo ainda procura o devir das cicatrizes que combinem com a gravidade dos episódios expostos.

Sozinho no palco, o ator narra as desgraças, a partir da convulsão de três cidades, uma do Brasil, outra do Equador e a terceira da Itália. Nas partituras corporais possíveis para traduzir o horror, Edjalma avança por Brasilândia, contaminada por outras pragas: do açoite da herança escravocrata às marcas da exploração bandeirante nos degraus da desigualdade.

As visões indignadas do diretor teatral Quiercles Santana estão na cena, com o registro da obstinação em fazer arte, mesmo em condições precárias ou adversas. E disso tira fios para construção de linguagens. A diretora de cinema Tuca Siqueira também participou da criação do experimento na versão on-line, nos idos de março de 2021. 

O texto é de Antonio Martinelli e a direção de Quiercles Santana 

O ato Calvário conta o que aconteceu na portuária Guayaquil, no Equador. “A cidade que abandonou seus doentes em cima das macas, seus mortos, em cima das mesas. [carnes para urubus nas praças públicas]”, nos versos de Martinelli.

A escuta do colapso em Guayaquil é contundente. As imagens desconcertantes suscitadas pelo texto se expandem para Manaus e outros territórios onde houve falta de ar. As feridas expostas pelos sons das palavras escancaram a miserabilidade humana.

“Toda hora é de luto em Guayaquil”, marca uma batida no tempo quase musical. Com pequenas nuances de leituras, se avulta o imponderável diante da morte. Mas não há imprevisibilidade que ampare a incompetência e a maldade na incumbência de gerir situações de calamidade púbica. 

O cenário de Guayaquil desse momento lá, – no auge da pandemia, com suas assombrações e tempos suspensos – remete para muitos Brasis. De muitas vítimas como os Yanomamis, alvos do desprezo dos vermes inescrupulosas que ocuparam o poder e anularam vidas na escolha do uso das verbas públicas. Fome e peste como dados da necropolítica.

Peça tem três pequenos atos. Foto Rogério Alves / Divulgação

No poema O Eco de Bérgamo, Martinelli expõe sua intimidade com as artes visuais, avançando  por muitos séculos da arte ocidental, mas dificulta para o leitor não tão próximo da linguagem. O autor cita pinturas famosas como O Nascimento de Vênus, de Botticelli; A Última Ceia, de Leonardo da Vinci e A Balsa da Medusa, de Théodore Géricault, para falar dos efeitos da pandemia na cidade italiana.

O eixo escolhido pelo escritor para o roteiro em Bérgamo é a série Espacios Occultos, do espanhol José Manuel Ballester. O pintor e fótógrafo madrilenho apagou as figuras humanas das obras. Ou como disse o crítico de arte e professor espanhol Francisco Calvo Serraller, despojou as obras dos seus personagens e de “todas as suas ações miseráveis ou desesperadas”, mantendo as paisagens do fundo da tela.

O ato de Bérgamo é mais espinhoso para levar ao palco. São muitas obras apontadas, de Cristo Crucificado, de Velázquez, passando por Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, de Goya, a Guernica, de Pablo Picasso, além das já mencionadas nessa crítica. O embaralhamento das narrativas e definição das estratégias dramáticas ainda se mostram um desafio para a equipe.

A peça faz um registro da pandemia, numa percepção de dentro do tempo histórico e se se posiciona contra a política pública criminosa do governo nazifascista e de seus iguais pelo mundo. Na cena, o mais frágil gesto à expressão mais virulenta transbordam de ação política. Os aliados da peste têm as mãos sujas de sangue nas mortes. Poema reforça o coro: “Sem anistia”.

FICHA TÉCNICA
Texto: Tetralogia da Peste [ + dois tempos, uma cidade]
Autor: Antonio Martinelli
Direção: Quiercles Santana e Tuca Siqueira (on-line)
Elenco: Edjalma Freitas
Cenografia e figurino: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Trilha sonora: Henrique Huff e Tarcísio Resende
Provocação corpo/voz: Henrique Ponzi
Vídeo (computação gráfica): Pingo
Designer gráfico: Hana Luzia
Fotografia: Rogério Alves
Produção: Cia do Ator Nu
Duração: 50 min
Indicação etária: 16 anos

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , ,

Teatro em tempo de peste

Edjalma Freitas encena três poemas da Tetralogia da Peste, de Antonio Martinelli. Foto: Toni Rodrigues

“Toda hora é de luto em Guayaquil”, diz o texto de Antonio Martinelli, Tetralogia da Peste. Aqui no Brasil também. O Jornal Nacional, há mais de um ano, divulga o número de mortos diariamente. Ontem, 23 de abril, eram 386.623 pessoas. É nesse contexto que o ator e produtor cultural Edjalma Freitas lança Poema. As apresentações serão neste sábado (24), às 20h, e domingo (25), às 18h e às 20h.

“É a urgência da hora. Um espetáculo de quarentena, pandêmico, com as condições que temos, com a pouca verba da Aldir Blanc, com as dificuldades de ensaiar presencialmente, com os adiamentos da estreia porque o diretor pega covid, porque o estado decreta lockdown. Tudo isso está refletido nesse trabalho”, explica Freitas. Com texto do jornalista e gestor cultural Antonio Martinelli, o espetáculo tem direção de Quiercles Santana e direção audiovisual de Tuca Siqueira.

Três poemas da Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], lançado pela N-1 Edições, compõem a dramaturgia do espetáculo: Brasilândia, Zona Norte, Calvário e O Eco de Bérgamo. Edjalma Freitas se deparou com a obra por meio de um post no Instagram. “Quando o livro foi lançado, Galiana Brasil fez uma postagem nos stories dela. Achei bonito aquilo que ela escreveu, achei o nome Tetralogia da Peste interessante e, logo na sequência, fui ler. Fiquei tomado pelo texto, pela força das palavras, pela capacidade de geração de imagens que aqueles poemas tinham – que eu nem chamava de poema ainda. Era muito dramático, trágico. Quando terminei a primeira leitura, na segunda já li em voz alta, muito mexido, com vontade de performar essas palavras”. O mote é a pandemia, enquanto esse fim do mundo ainda está acontecendo e as feridas expostas.

Traduzir a linguagem do palco para o audiovisual foi uma das inquietações da equipe de criação. A opção pela transmissão ao vivo e não pela gravação acirrou os questionamentos com relação à linguagem. “O espetáculo chega às pessoas através do meio digital e a gente nunca pegou numa câmera!”, conta o ator. Foi aí que a diretora Tuca Siqueira entrou na história. “Quando o espetáculo já estava de pé, nessa reta final, ela veio fazer a direção de fotografia: como essa câmera se desloca, o que essa câmera pega, como se movimenta. São saberes do audiovisual, que ela quem trouxe. Eu não me atreveria a fazer uma coisa transmitida, flertando com essa linguagem, sem uma pessoa do audiovisual presente. É uma peça de teatro, os saberes do teatro, está tudo ali, desde a minha atuação, os signos, os elementos. A gente construiu uma peça de teatro, mas que flerta diretamente, arranha, fricciona com os saberes do audiovisual, já que as pessoas vão ter acesso por meio de um celular, de um computador, de uma tv”, explica.

Como conta com o apoio da Lei Aldir Blanc, a peça tem ingressos gratuitos, que podem ser retirados pelo Sympla. O projeto que ainda tem ares de sonho é levar a peça aos palcos, assim que possível.

Espetáculo será ao vivo, com transmissão pelo YouTube

Ficha técnica:
Poema
Atuação: Edjalma Freitas
Autoria: Antonio Martinelli
Direção: Quiercles Santana
Direção audiovisual: Tuca Siqueira
Trilha sonora original: Pedro Huff e Tarcísio Resende
Cenografia e figurino: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Provocação corpovoz: Henrique Ponzi

Serviço:
Quando: sábado (24), às 20h, e domingo (25), às 18h e às 20h
Onde: Transmissão pelo YouTube
Quanto: Gratuito. É preciso retirar ingressos pelo Sympla 

Postado com as tags: , , , , , , , , ,

Precisamos repensar o sentido de existir
Crítica de Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1)

Andrezza Alves e Marcondes Lima em Portugal e Enne Marx, no Recife. Foto Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1) se apresenta como um experimento cênico virtual, uma abertura de processo, um work in progress. No material de divulgação, os artistas afirmam que, – diante do quadro em que o Brasil se encontra, com as mortes pela Covid-19, pela Polícia Militar, por feminicídio e por fome – “precisamos repensar, mais que nunca, o sentido de existir, resistir, persistir. Yorick … é um dos frutos dessa reflexão”.

Exibido em duas sessões ao vivo durante o Festival Reside – Lab, com debate na sequência, o espetáculo em construção toca ou aproxima-se de questões nevrálgicas nesses dias de peste e da peste. Aponto algumas que consegui captar: valorização do ser humano, autoimagem, Lei Aldir Blanc e sua implantação em Pernambuco, direito ao trabalho e valorização do conhecimento de todos, empatia seletiva, direito ao luto, imigração, como lidar com o contato à distância, etiqueta no online, como produzir humor, como sobreviver sem atropelar o outro e sem perder a ternura.

Inspirado no Ato V, Cena I d’A Tragédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, a peça junta seis artistas: Andrezza Alves; Daniel Machado, Enne Marx, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana, que assina a direção. Os três que performam – Andrezza, Enne e Marcondes – foram estudar e morar em Portugal e passam – ou passaram, no caso de Enne, pela experiência da imigração no país europeu, nosso colonizador, e sentiram na pele a desconfiança que recai sobre estrangeiros. As performances deles estão carregadas dos atritos gerados por esses sentimentos de ressalvas no acolhimento pleno aos brasileiros em Portugal.

Andrezza e Marcondes. Foto captação de tela

Como sabemos, a cena dos Coveiros (Ato V, Cena I) de Hamlet, de Shakespeare está impregnada das marcas culturais do tempo em que foi escrita/encenada pelo bardo inglês. As milhares de versões dessa peça atualizam as marcas históricas de cada período. Na cena específica, dois coveiros, que ostentam a sabedoria do povo, chegam ao Cemitério de Elsinor, carregando pás e outras ferramentas.

No texto shakespeariano, as personagens citam as Escrituras, debatem a origem da nobreza, o julgamento de Ofélia, que tem como veredito o direito dela ganhar um enterro cristão, subvertem termos lógicos, produzem humor e podem instalar o riso pelo tom ambíguo, irônico e sarcástico. Hamlet e Horácio também entram na cena e o príncipe da Dinamarca filosofa sobre de quem seria um dos crânios desenterrados pelos coveiros. “Pode ser a cachola de um politiqueiro […] que acreditou ser mais que Deus”, na versão de Millôr Fernandes.

Fernandes indica inclusive que, no trato do humor, o tradutor não deve explicitar o que o autor busca deixar implícito, elucidar aquilo que ele quer deixar secreto, encorpar o humor que é fino ou tornar sutil o humor que é denso.

É uma sintonia fina. Penso que seja justamente esse o ponto mais susceptível do experimento. 

Traçar uma ligação entre a cena dos Coveiros e a realidade da pandemia que vivemos é um ideia interessante e pode-se seguir milhares de caminhos. Em Yorick há texto shakespeariano adaptado e a performance dos atores repleta de suas impressões, seus corpos atravessados pelas dores das centenas de milhares de vidas perdidas para a Covid-19. Em Hamlet, o humor funciona como um respiro da tensão trágica. 

Sabemos, como já nos ensinou o filósofo francês Henri Bergson, de que só há comicidade naquilo que é propriamente humano. Os mecanismos que provocam o riso são buscas constantes.

A literatura canonizada de Shakespeare foi escrita para ser encenada. Como prescreveria Hamlet à trupe de atores: – Adaptem a ação à palavra, a palavra à ação!

Rolhas de garrafas de vinho representam túmulos

O experimento utiliza um fundo de terra e sobre ele os quadrados se alternam, ocupam a tela inteira, dividem a tela, sem inovações no formato. E insistem na queda da conexão com a internet. Uma interação entre artistas e plateia executada durante a sessão é materializada nas perguntas feita aos espectadores. “Que figura pública você gostaria de ver enterrada?”; “O que te abate no dia a dia? O que te derruba? O que destrói fácil tua alegria”; “Que golpes, que traições, que rasteiras te arrasam?”…. Com direito a resposta do público pelo chat, que é visualizado na tela. São trocas que traçam vínculos de cumplicidade, mesmo que provisórios.

Todas as pontuações de sarcasmo e ironia com a imagem, a reputação e posicionamentos dos malditos políticos brasileiros são bem-vindas e elevam a temperatura. Muitas rolhas de garrafas de vinho são apresentadas como túmulos, que aumentam durante a conversa.

O trabalho começa com Andrezza batendo no teto. Depois olha para a câmera e pergunta: “A morte, a merda, a miséria, a pústula, a praga, a peste, a fome, a infâmia, a febre podem gerar uma boa dramaturgia?”.

Depois muda de registro – da live, abertura de processo, demonstração de trabalho, experimento cênico ou que seja – com o contraponto de Enne, que diz que soa um pouco arrogante o começo. A outra rebate que essa “simpatia sintética tem dado nos nervos, da afabilidade forçada…” E vira a chave, no tom de falsete de simpatia criticando quem é simpático no online. Pareceu-me afetado. E se a intenção era estabelecer a hilaridade da cena, para mim não funcionou.

É difícil sincronizar intenção, fala dos atores, tempo, sonoridade teatral e a função do clown contemporâneo de traçar papel social e político, ter tiradas aprofundadas, com enigmas, comentários de verdades profundas com humor.

Ou assumir a função de bobo da corte, daquele que com sagacidade conta para o rei aquilo que os outros não tem coragem de dizer, como já fez Yorick do título, de dizer as verdades brincando, como lembra Hamlet ao pegar no crânio de Yorick.

O experimento encerra com duas cenas gravadas, muito bonitas. A sequência em que Andrezza se maquila  e, vestida de Ofélia, entra no rio, quer dizer na banheira, e a passagem de Enne com uma ficha no pé em um local que lembra um necrotério. Isso ao som de La Llorona, uma canção popular mexicana de domínio público, com música de Andres Henestrosa, interpretada à capela por Marcondes Lima.

Andrezza, vestida de Ofélia

Para concluir, provisoriamente, minha reflexão sobre o experimento, traço uma linha da preocupação dos artistas com o sentido de existir e recorro a um ensaio, do qual gosto muito, da filósofa Judith Butler: Pode-Se Levar Uma Vida Boa Em Uma Vida Ruim?, na tradução de Aléxia Cruz Bretas.

Não há um caminho fácil de resposta. A vida de cada pessoa é única e o mundo é constituído de desigualdades, opressões, e cada vez mais formas de apagamento.

O texto de Judith Butler foi proferido durante a cerimônia de entrega do Prêmio Adorno, em Frankfurt, em 11 de setembro de 2012. Moral e política a partir das reflexões adornianas ganharam outros argumentos para discutir limites da ética na contemporaneidade. É possível levar uma “vida boa” frente aos dispositivos de desumanização, precarização da vida e partilha desigual da vulnerabilidade?

“A conduta ética ou a conduta moral e imoral é sempre um fenômeno social – em outras palavras, não faz absolutamente qualquer sentido falar em conduta ética e moral separadamente das relações entre os seres humanos, e um indivíduo que existe puramente para si mesmo é uma abstração vazia”.
Theodor W. Adorno,
Problems of Moral Philosophy, trans. Rodney Livingstone, Polity Press, Cambridge, 2000, p. 19, citado no ensaio de Judith Butler

Butler aponta que parece que a moralidade, desde o início, está ligada à biopolítica. “Por biopolítica entendo aqueles poderes que organizam a vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária como parte de uma gestão mais ampla das populações através de meios governamentais e não governamentais, e que estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si”.

É uma negociação constante com essas formas de poder. Mas é desigual. E até a pergunta dói. “As vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas?”
E ela então discorre que nos mecanismos políticos nem todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário. As vidas de quem são passíveis de luto, e as de quem não são?

No Brasil comandado por Bolsonaro, a política de morte foi fortalecida, muito antes da pandemia da Covid-19. Não avistamos no horizonte um futuro seguro e vivemos com a sensação de vida danificada como experiência cotidiana.

É a necropolítica, um conceito concebido pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe, que trata da soberania do Estado que dita quem pode viver e quem deve morrer.
Isso é inaceitável. Nossos corpos defendem vida digna para todos seres viventes.

Ficha técnica:

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor
Criação cênica e dramaturgia: Andrezza Alves, Enne Marx, Daniel Machado, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana
Dramaturgia: Quiercles Santana e William Shakespeare
Performance: Andrezza Alves, Enne Marx e Marcondes Lima
Direção de arte: Marcondes Lima
Assistência de direção, foto, vídeo e edição: Daniel Machado e Geraldo Monteiro
Designer e direção musical: Daniel Machado
Criação em arte-tecnologia e plataformas digitais: Geraldo Monteiro
Produção: Andrezza Alves
Direção geral: Quiercles Santana

Postado com as tags: , , , , , , , ,

As duras linhas do diário de um ator na pandemia
Crítica de 72 dias

Paulo de Pontes registra cotidiano de um artista em isolamento em 72 dias. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A matéria da Folha de S. Paulo, publicada neste domingo, 28 de março de 2021, registra: “O Brasil voltou a bater recorde na média móvel de mortes por Covid neste domingo: 2.598. É o maior número desde o início da pandemia e um crescimento de 42% se comparado com a última semana, o que indica tendência de alta nos óbitos pela doença (…)”.

Nós não esperávamos tamanha tragédia. Nenhum pesadelo poderia ter previsto essa realidade. Para uma pessoa comum, não os estudiosos ou os infectologistas, ou gente da área, isso nunca passaria pela cabeça, que estaríamos vivendo uma pandemia nessas dimensões. E, mais ainda, que duraria tanto tempo.

Em março do ano passado, quando do dia para a noite tudo fechou e pairava uma sensação de incerteza e de insegurança diante de um risco que não conhecíamos, fizemos projeções. Boa parte delas a partir da gravidade da situação que acompanhávamos pela televisão na Europa e na Ásia. Mesmo assim, irreais. No solo 72 dias, exibido na programação do Reside Lab – Plataforma PE, o ator Paulo de Pontes conta que imaginou que o isolamento social duraria 15 dias. Um ano depois, o acachapante saldo de mais de 300 mil mortos no Brasil, ilusões desfeitas, cenário devastador de guerra. No experimento, como diz o título, foram 72 dias.

O solo se estrutura como um diário de criação gravado por um ator durante este período pandêmico. Na conversa com um amigo do outro lado da tela, ele insiste que não precisa de companhia, que ficaria bem sozinho nas duas semanas que durariam aquela situação mais grave. Como muitos de nós privilegiados, nos agarramos às possibilidades de encontrar coisas boas no meio de tudo aquilo: seria uma chance de parar um pouco, descansar, dedicar-se a atividades que não tínhamos tempo no cotidiano. Finalmente fazer yoga. Levanta a mão quem se identifica! No caso do personagem, montar um espetáculo solo depois de tantos anos de carreira, de ter se empenhado sem intervalos aos projetos de outras pessoas. A metalinguagem se coloca como recurso de maneira muito fluida, quase intuitiva. Somos nós, os espectadores, que estamos ali, aceitando o convite para acompanhar a peça sendo criada em tempo real, quando o pedido por companhia beira o desespero.

O material dramatúrgico se apoia praticamente por completo no real e no autobiográfico. Paulo de Pontes é um ator com uma carreira longeva e profícua, com muitos personagens e projetos em seu repertório. De fato, quando começou a pandemia, ele estava morando no teatro, o espaço da Casa Maravilhas, que serviu como cenário para a gravação. A dramaturgia foi criada em parceria com Quiercles Santana, que também assina a direção. Virou um mergulho nos sentimentos e nas emoções cotidianas que foram se modificando ao longo dos dias arrastados do isolamento. Veio o cansaço, a solidão, o medo, a exaustão.

Diante do acirramento da crise, com o material da vida real pulsando, também surge a preocupação com a situação dos artistas, a necessidade batendo à porta, a sobrevivência que se instaura como pressão diariamente. A campanha de demonização dos artistas como uma política que vem sendo colocada em prática há alguns anos, mas que agora sobe alguns degraus, fazendo jus e coro à necropolítica implantada por este desgoverno, enfrentada por gente como Paulinho. Gente como os artistas que participaram do Reside. Que continuam se articulando, criando, conversando, resistindo, questionando “Quem mandou matar Marielle Franco?”, cansando, mas levantando a cabeça no momento seguinte. E não por romantização, ato de bravura ou qualquer coisa que o valha, mas porque não há outra possibilidade. Porque o teatro é a vocação, faz falta ao corpo, ao espírito.

Experimento utiliza material biográfico. Foto: Keity Carvalho

O experimento é cru em sua natureza dramatúrgica. Escancara o cotidiano de muitos artistas durante a pandemia, que provavelmente passaram por situações semelhantes. Mas essa dureza também nos afasta em certa medida, porque é uma realidade que já nos é muito próxima, que está em nossas próprias casas. Criado no calor do momento, o experimento ainda carrega uma carência de elaboração poética, talvez semântica, talvez em sua capacidade de abstração. Faz falta transcender o cotidiano ou ser capaz de promover conexões que não se atenham só aos fatos mais óbvios, mas se desprendam, possam ir além.

Neste jogo, Paulo de Pontes é um ator com estofo, que agarra a nossa atenção em 72 dias sem nos permitir dispersar. As precariedades nessa experimentação da linguagem do audiovisual, no isolamento imposto por uma pandemia, são incorporadas à dimensão processual do trabalho e fazem sentido, inclusive na condução da dramaturgia. Afinal, trata-se de um ator que está se virando sozinho, como a grande maioria, para continuar criando, para não perder os laços com alguma dimensão de realidade. Para não perder a oportunidade da dimensão da cura que o teatro nos proporciona a cada novo mergulho. Em 72 dias, o teatro pulsa como necessidade, como linguagem que corre nas veias, que escorre pela câmera. Corte seco e direto.

Ficha técnica:
Dramaturgia: Paulo de Pontes e Quiercles Santana
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Streamer: Márcio Fecher
Produção executiva: Márcia Cruz
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Pontes Culturais e Cia Maravilhas de Teatro

Postado com as tags: , , , , ,

Paulo de Pontes flameja em experimento cênico
Crítica de Inflamável

O ator Paulo de Pontes, no camarim improvisado na sua casa. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

“Como se faz com o nervosismo?”, pergunta o ator Paulo de Pontes, de cara lavada, enquanto aguarda o público para a sessão virtual no Festival Reside Lab – Plataforma PE, de Inflamável, um experimento cênico, com poemas de Alexsandro Souto Maior e direção de Quiercles Santana. “Estou sentindo o mesmo friozinho na barriga que sinto no teatro, a mesma ansiedade, é incrível”.

Dá o primeiro sinal!

“Uma loucura que está o mundo!”, exclama. “Mas continuamos resistindo, experimentando, provando que a gente está vivo”.

No camarim improvisado em sua casa, Paulinho ressalta suas crenças. “O que é mais importante é a vida. E o amor. A gente perdeu muita gente, família, amigos, colegas, conhecidos”.

Começa a se trocar.

“Tem muita gente resistindo, experimentando, continuando a fazer arte. Precisamos valorizar essas iniciativas. Eu parabenizo (nós também) Paula de Renor (diretora geral e curadora do Reside Festival BR – edição especial Reside LAB Plataforma PE)”.

Coloca a lente de contato. Anuncia os patrocinadores. E oferenda a experiência às pessoas que partiram por complicações da Covid-19. Fala que precisamos aprender com essa pandemia a compreender a voz do outro, “Viva a vida! E viva o teatro!”

inflamável junta três poemas de Alexsandro Souto Maior. Foto: Captação de tela

Estamos enclausurados. Estamos enclausurados. Estamos enclausurados reverbera esse experimento cênico, onde a luz é pouca, o espaço é ínfimo e o efeito de claustrofobia nos atinge. Convivemos com o insuportável testemunho de perdas de milhões de vida e no Brasil essa sensação é agravada pela mão genocida que ocupa o  mais alto cargo do Executivo.

A Sonata para Piano nº14 em Dó sustenido menor, Op. 27, nº 2, de Ludwig van Beethoven, – mais conhecida como Moonlight Sonata (Mondscheinsonate em alemão), a Sonata ao Luar, que ostenta características introspectivas, quase de uma marcha fúnebre, – dá o tom grave na peça logo no início.

Os três poemas escolhidos, do livro Inflamável, de Alexandre Souto Maior, lançado em 2019, elaboram profundas conexões com o mundo contemporâneo, como também conectam nossas feridas, do patriarcado, da exploração, da colonização.

O Homem do Pau Brasil, A Margem e Descolonizado trançam a dramaturgia que acessa o passado e tensiona o presente. “Esses homens que não são de folhas / que não são do pau-brasil / Gritam palavras de ordem / Ao som de coturnos e fuzis na mão / Querem mesmo me plantar enterrar”. Plantar no original do poema, enterrar na peça.

A Margem propõe um diálogo com um ausente que reivindica ser “… a palafita enlameada / De dejetos / Da casa grande” e “o porão de um navio / Cheio de gritos e gemidos”. Essas lamentações são entrecortadas por frases do Nero brasileiro, que alardeou: “Não sou coveiro”; “É muito mimimi”; “Eu prefiro filho morto…”; “Vocês reclamam demais”.

A presença incendiada de Paulo Pontes oscila entre a suavidade e a revolta com Descolonizado. Cochicha com doçura “Canto o que me sussurra um guanumbi / O que me conta uma cabocla / O que me confessa um rouxinol”, para insurgir feroz “Quando pisar nesta terra / Peça licença…”

Imagens projetam um Recife, cidade tão bela cortada por rios, mas que sangra. Seus artistas inquietos fazem o melhor para honrar a tradição aguerrida dessas terras. Encaram ainda a incompreensão política do papel da arte e da cultura no contexto de uma cidade, de um estado, de um país.

E, neste março, em que fez três anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, a pergunta ecoa na peça. Quem mandou matar Marielle e por quê? Só poderemos pensar que a justiça está atuando como justiça quando essas respostas forem respondidas. O Brasil insurgente das periferias, que desafia o “apartheid racial não oficial” e que enfrenta de peito aberto o patriarcado, exige respostas.

Por que matar uma vereadora eleita em exercício do mandato foi um anúncio de que esse país  ficou mais covarde ao se tornar mais conivente com genocídios de negros, de indígenas, de mulheres. Por que um pouco do Brasil morreu em 17 de abril de 2016 com a abertura do impeachment de Dilma Rousseff, mais um pouco em 14 de março de 2018 com o assassinato de Marielle e Anderson, e mais um pouco com a administração do ódio de Bolsonero, que vem provocando uma tragédia sem precedentes. É muito eloquente o silêncio sobre quem ordenou o crime e por quais razões.

A direção da peça é assinada por Quiercles Santana

Inflamável

Paulo de Pontes é um ator militante. Desde que voltou ao Recife para fazer um trabalho pontual – isso já faz três anos – foi ficando e atuou em uma dezena de espetáculos – com grandes elencos, em dupla, em solo. Se envolveu com a política cultural da cidade do Recife e de Pernambuco, nas lutas com outros artistas e agentes culturais, desde a campanha pelo Teatro do Parque a articulações por editais e outras frentes. Um trabalho nem sempre visível.

Como ator, ele é intenso e totalmente entregue, daqueles artistas apaixonados e apaixonantes. Quando ocorre uma sinergia entre atuação, encenação e dramaturgia é um prazer vê-lo em cena; quando não, reconhecemos o seu esforço.

O experimento cênico junta muitos talentos, com a direção do sempre criativo Quiercles Santana, um dos encenadores mais febris de Pernambuco. O resultado causa uma suspensão reflexiva desse lugar em que pulsam vida e morte. Pelos discursos nômades, somos convocados a percorrer as entranhas do país com suas dores enraizadas nas injustiças sociais.

Feito com uma única câmera de celular, um projetor de imagens, uma janela antiga como cenário, um técnico para modular luz e som, e um ator altamente inspirado, que movendo-se em um exíguo espaço flameja em arte.

Inflamável é um breve poema de resistência. Ao expor os aspectos sombrios desses tempos em situação-limite, de abandono, do mundo paralisado por uma pandemia, atingido pela crise financeira e do Brasil em alta-tensão provocada pelos desmandos da política, a peça aponta para a carga de resistência, para a potência de combate. Não à toa a palavra adiconeg fecha a transmissão. Temos consciência, temos força e temos esperança de que esse jogo vai mudar.

Ficha Técnica:
Autor: Alexsandro Souto Maior
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Produção executiva: Márcia Cruz
Realização: Pontes Culturais

Postado com as tags: , , , ,