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Monga, um espetáculo em construção
Farofa do Processo
Segunda parte

Monga, trabalho em andamento de Jéssica Teixeira, na Farofa do Processo. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

O espetáculo em processo Monga, concebido e protagonizado por Jéssica Teixeira visita o lugar do estranho com ousadia, para falar de si e de uma dinâmica do mundo opressor/repressor. Para isso, a artista mergulha na jornada de Julia Pastrana, mexicana que adquiriu notoriedade sob a alcunha depreciativa de “mulher-macaco”, figurando como uma das principais inspirações dos espetáculos de curiosidades, conhecidos como Freak Shows, no Brasil e no mundo. O trabalho Monga foi apresentado na Farofa do Processo, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, e nós assistimos no dia 5 de março, na sessão das 11h.

Começamos nossa reflexão por Julia Pastrana (1834-1860), uma mulher indígena mexicana que se tornou conhecida mundialmente como “a mulher mais feia do mundo” devido a uma condição genética rara, designada como hipertricose terminal (caracterizada por um crescimento excessivo de pelos em partes do corpo), combinada com uma possível forma de acromegalia, que conferiam traços faciais e dentárias incomuns.

Pastrana foi vendida ou entregue a um administrador de espetáculos, Theodore Lent, que se tornou seu empresário e mais tarde seu marido. Lent explorou a aparência de Pastrana, exibindo-a em shows por toda a Europa e América do Norte, onde ela era anunciada como a “mulher-urso” ou “mulher macaco”.

Julia era uma artista talentosa, com habilidades que incluíam canto e dança. Ela possuía uma voz mezzo-soprano – dizem que encantadora – e apresentava peças musicais desde ópera a canções populares da época. Poliglota, ela falava várias línguas, incluindo espanhol (sua língua materna), inglês e francês, o que facilitava sua comunicação com o público de vários países, durante suas turnês.

Apesar de sua fama, a artista teve uma vida marcada por exploração e desumanização, o que evidencia o início do entretenimento comercial baseado na objetificação e na exploração de corpos não normativos.

Os conceitos teóricos e as referências nos permitem entender seu caso não apenas como um evento isolado, mas como parte de uma estrutura mais ampla de opressão e objetificação. Em Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color, Kimberlé Crenshaw desenvolve o conceito de interseccionalidade para explicar como diferentes sistemas de opressão (raça, gênero, classe) interagem na vida das mulheres negras. Aplicado à situação de Pastrana, esse conceito ajuda a entender como sua exploração foi moldada não somente por seu gênero, mas também por sua etnicidade e suas características físicas.

Prazer Visual e Cinema Narrativo, de Laura Mulvey, é um texto seminal que introduz a ideia do “male gaze” argumentando que as mulheres são objetificadas nas narrativas cinematográficas para o prazer do espectador masculino. Embora Mulvey se concentre no cinema, seu conceito pode ser utilizado ao contexto de Pastrana, onde ela foi objetificada e desumanizada para entretenimento público.

Judith Butler discute, em Problemas de Gênero: Feminismo e a Subversão da Identidade“, a performatividade do gênero e como as normas de gênero são socialmente construídas e mantidas através de atos performativos repetidos. A exploração de Pastrana destaca a rigidez e a crueldade das normas de gênero e beleza, bem como a violência da não conformidade.

Essas referências teóricas fornecem uma estrutura para compreender a vida e a exploração de Julia Pastrana não apenas como um caso de curiosidade do século 19, mas como um exemplo da contínua objetificação, marginalização e desumanização de corpos não normativos e da persistente construção do “outro” nas sociedades patriarcais e coloniais.

Ao explorar essas dimensões, podemos reconhecer a relevância contínua de sua história para as discussões feministas contemporâneas sobre corpo, identidade e resistência.

Após sua morte em 1860, o abuso persistiu com a exibição de seu corpo e do seu filho. Essa exploração, iniciada por seu marido Theodore Lent, reflete a objetificação de Julia em vida e a desumanização após sua morte, configurando a extensão da dominação patriarcal. No século 20, os corpos foram esquecidos e depois redescobertos, mostrando a fascinação contínua pela imagem de Julia. Somente no século 21, após esforços de ativistas e do governo mexicano, Julia foi repatriada e enterrada no México em 2013, um gesto simbólico para restaurar sua dignidade.

Cena do espetáculo em andamento Monga, com Jessica Teixeira. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

Jéssica Teixeira sinaliza nas tramas de Monga os preceitos do “realismo traumático” de Hal Foster. A peça se ergue em um complexo de células narrativas, incluindo a jornada de Julia Pastrana, o poema-prosa Entre fechaduras e rinocerontes de Frei Betto, uma conversa com Deus, reflexões sobre a ausência, interações com a plateia, algumas músicas incluindo uma sobre o inferno, numa exploração crua da percepção social dos corpos e da incessante busca por sentido em um mundo fragmentado.

Teixeira, habilmente, não se limita à representação direta da realidade; em vez disso, ela convoca uma série de técnicas que sugerem um encontro falho com o real, alinhando-se com a teoria de Foster. A utilização de luzes estroboscópicas, microfones e uma variação de cenários do claro ao escuro forja uma atmosfera imersiva e projeta a repetição do irrepresentável, gerando um choque que supera o visual ou temático para perturbar a própria estrutura da obra.

A atuação despojada, com a atriz por vezes usando uma máscara de macaco, critica a busca incessante por um ideal inatingível de perfeição. Esse ato desafia os espectadores a confrontar suas próprias percepções e preconceitos.

A peça Monga se engaja com o conceito de “abjeto”, conforme explorado por Foster, ao abordar temas considerados repulsivos e marginalizados como meio de confrontar e refletir sobre as condições sociais contemporâneas. A conversa com Deus e a música que proclama que “o inferno está cheio” provocam diretamente o público, desafiando crenças religiosas e sociais arraigadas. Enquanto a interação direta com a plateia questiona a vida e nossa duração neste planeta e a suposta completude dos corpos ou corpos perfeitos.

Ao incorporar o texto de Frei Betto, Entre fechaduras e rinocerontes, Teixeira enriquece a narrativa. Embora a essência poética do texto original ofereça profundas reflexões sobre a vulnerabilidade humana, penso que uma adaptação mais radical – com cortes e justaposições – removendo as camadas de moralidade católica poderiam destilar suas qualidades sem perder a essência.

Monga oferece insights valiosos sobre as dinâmicas da arte contemporânea e sua capacidade de engajamento com a realidade traumática. É um meio de explorar e expressar as complexidades e contradições do mundo atual, destacando os desafios de representação, engajamento e resistência em um mundo pós-ideológico.

A interação com a plateia, um momento crucial de Monga pode requerer ajustes em sua dramaturgia. Em vez de questionar diretamente a presença de burgueses na audiência, por exemplo, Teixeira poderia optar por um caminho mais indireto, lançando uma série de perguntas provocativas que funcionem como espelho, refletindo os preconceitos e as suposições do público. Esse mecanismo pode desarmar e chegar ao miolo das crenças e atitudes do espectador.

A artista, ao se declarar habitante e dona de um “corpo extremo”, estabelece uma conexão com Pastrana, desafiando as normativas sociais que moldam a percepção dos corpos e questionando as fronteiras entre o normal e o anormal. Essa ligação honra a memória de Pastrana e amplifica a posição de Monga na defesa da dignidade inerente de cada ser humano, independentemente de sua aparência.

Monga se apresenta como uma obra que desafia as convenções, tanto em forma quanto em conteúdo. A atuação e direção de Teixeira sintetizam uma dança entre luz e sombra, entre o visível e o invisível, criando um espaço onde o realismo traumático de Hal Foster encontra um novo sopro.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Farofa do Processo
Algumas anotações
Primeira parte

Intensa movimentação na Oswald durante os dias da Forafa do Processo. foto: Ivana Moura

Gabs Ambròzia, da Corpo Rastreado. Foto: Ivana Moura

Muitas possibilidades de encontro

“Farofa, farofa, farofa’, esse anúncio feito ao megafone por Gabs Ambròzia, uma das figuras da Corpo Rastreado, projeta a natureza lúdica e inclusiva do evento e vai continuar ecoando na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, e na cabeça de muita gente. De 2 a 10 de março, foram muitos gestos políticos de grupos, spoilers do bem de espetáculos em andamento, conversas, armações para insurgências. Momentos de pura festa e a lembrança que estamos em guerra por existir… a luta continua. Muitas vezes o clima era tão festivo que senti a vibração do carnaval de Olinda de finais das manhãs. Esses processos, sonhos em construção, todos legítimos cada qual do seu jeito, repercutem e seguem. Ficam imagens ricas e vibrantes.

No Teatro de Contêiner Mungunzá, um ponto da Farofa do Processo desse ano (o outro era a Casa do Povo), vi uma correnteza de gente a se deslocar do lado de fora empurrada pela chuva, enquanto lá dentro do teatro os atores buscavam motivos para expressar a vida e entender até onde vai a arte… Aporia.

Nessa atmosfera de engajamento crítico e criativo, aliades para a rebelião, bandos em manifestação, corpos em combate refletem um espírito de resistência e a busca por transformações sociais. Lindo ver o fluxo desses dias na Oswald, das salas cheias e sessões esgotadas para um batimento suave. Celebração do gesto artístico, da reflexão crítica e da ação coletiva. Encantamento especial na Farofada, almoço preparado e distribuído pela equipe da Corpo Rastreado para alimentar estômagos e ideias, refeição compartilhada para aprontar para outros combates. Uma dramaturgia especial esses almoços de conversas ao pé do ouvido e gargalhadas soltas.

Esse território de encontros, espaço tão rico de diálogo onde a fricção de linguagens da cena acontece com força em aberturas meios e conclusões de processos, espetáculos revisitados. Eita danou-se, como diz Marcelino Freire, escritor que foi prestigiar um dos processos, o da turma do Carrossel.

O domingo de programação intensa já chega com gostinho de quero mais. “Farofa, Farofa, Farofa!”. Último dia dessa edição.

Um salve para o Boteco Crítico, do projeto Arquipélago, que em três encontros botou na prática a experiência de pensar/repesar/ fazer/refazer a crítica em outros patamares, mais democráticos, numa discussão honesta que também está buscando seus caminhos, de reimaginar o papel da crítica cultural na contemporaneidade. Desde o nome, a tentativa é desmitificar a crítica, aproximando-a de quem chegou junto.

Compartilhar, uma palavra quase mantra da Farofa do Processo tem poder.  

Acompanhei algumas ações da Farofa do Processo e faço alguns comentários a partir dos que acompanhei.

Equipe do espetáculo Magnólia, em processo de construção. Foto: Ivana Moura

Marina Esteves e sua equipe (idealização e atuação @vimvermarina, direção musical @daninega, texto: @lucasmouradr, dramaturgia @vimvermarina e @lucasmouradr , Banda da Zé Pretinha: @vinisampaioofficial @djkmina @larioliveiratp @gisahspreta )
apresentaram o processo criativo do espetáculo Magnólia, uma peça que enfrenta as opressões na conjugação de raça, gênero, e identidade com narrativa afro-futurista.

A inspiração na música Magnólia e no álbum A Tábua de Esmeralda de Jorge Benjor adiciona camadas intertextuais da canção que tematiza alquimia, espiritualidade e transformação. Foi com esse álbum lançado em 1974 que Benjor consolidou sua posição como um dos músicos mais febris do Brasil.

A personagem central, Magnólia, vivida por Marina, simboliza a resistência, luta e avanços frente às opressões sistêmicas. O sonho como recurso narrativo funciona como estratégia estilística e como uma poderosa ferramenta de exploração e manifestação da subjetividade da personagem.

Para apresentar a jornada de Magnólia, que a leva além dos limites terrestres, a atriz apresentou o roteiro cantado com uma banda ao vivo. Forte e poética essa demonstração do processo, repleta do impacto da diáspora africana e da posição de que as grandes e pequenas transformações são protagonizadas pelas mulheres negras.

Éden, direção de Tarina Quelho . Foto: Ivana Moura

A peça Éden, apresentada na Farofa do Processo, bateu como uma obra provocadora para explorar assuntos como a crise climática, o esgotamento de recursos materiais e subjetivos, e a busca por significado em um mundo cada vez mais desencantado. A menção de que a peça  é uma obra de cli-fi (ficção climática) sugere uma intenção de engajar o público em uma reflexão sobre as consequências ambientais de nossas ações e escolhas.

A produção disse que o processo de montagem está na sua etapa final e na cena vai utilizar mais de 10 mil sacos plásticos no cenário, o que me pareceu uma tentativa de chamar atenção para o consumo excessivo e a poluição e criar uma atmosfera visualmente impactante que serve como pano de fundo para a narrativa distópica. Na sessão da Farofa, com apenas uma amostra desse cenário, as montanhas de sacos plásticos foram apenas imaginadas pela plateia.

O deboche e a descrença são manipulados pelo elenco, fazendo com que a peça circule entre o cinismo e um humor corrosivo. Essas escolhas podem desafiar a plateia, gerando desconforto em algumas pessoas. A minha percepção viajou do Éden ao inferno.  

A diretora Tarina Quelho ao mencionar que a obra transita entre teatro, dança e performance, e que busca borrar os limites entre teoria, (auto)ficção e cena, destaca que ela está sempre arriscando novas possibilidades na cena.

Éden pula de um assunto ao outro sem parcimônia, ensaia práticas sexuais e conecta com conceitos do teatro e da performance, fala de relações, pensa em identidade, dá pitaco sobre o que é pertencimento em um mundo em crise.

A ideia de que a arte não pode alcançar todos os públicos é pertinente, e isso fica mais evidente em algumas obras. Éden, que parece projetada para atrair um público mais jovem, talvez mais alinhado com as plataformas digitais como o TikTok, por sua agilidade, leveza e abordagem irreverente. Isso confere um valor artístico e  impacto de sua mensagem. Só não é para todos; como nada, aliás.

Serra Pelada. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

O teatro de Dal Farra procura questionar a ética do poder, testando limites humanos e apontando novas possibilidade de olhar fatos, eventos, ideias, pensamentos. O trabalho em processo Serra Pelada – Boca de Ouro – Xingu, ainda em estágio inicial, se posiciona – evidentemente – contra a lógica extrativista tanto em seu tema quanto em sua metodologia. Investiga a natureza da arte, do consumo e do olhar. Em um primeiro momento essa obra em andamento chega friccionando as imagens emblemáticas de Sebastião Salgado, a peça/filme Boca de Ouro de Nelson Rodrigues, carrega o Googlemaps para levar para uns lugares de difícil acesso e diz que está cansado de alegoria.

A obra critica o capitalismo em todas as estruturas e examina os sistemas de dominação colonial presentes em Nelson Rodrigues e se arrisca a reinterpretar a obra do autor de Boca de Ouro à luz de perspectivas contemporâneas,. Vamos ver no que vai dar. O processo ainda está no seu estágio inicial de produção da @tablado_sp, (nesse trabalho tem financiamento da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo), que compartilhou na Farofa do Processo as motivações e inquietações que impulsionam a peça.

Os atores @flowkountouriotis e @silva_monalisa_ fizeram uma leitura interpretativa da peça em andamento, que tem previsão de estreia para janeiro de 2025.

Figueiredo, espetáculo com Pedro Vilela. Foto: Divulgação

O espetáculo Figueiredo se propõe a mergulhar nas complexas camadas da história brasileira, especialmente no que concerne às violências cometidas contra os povos indígenas. A peça, apresentada por Pedro Vilela, com um texto poderoso em mãos e o auxílio de imagens projetadas, associa teatro com ato de memória e resistência.

A dramaturgia fez opção pela leitura direta dos fatos, com projeção de vídeos de arquivo e a utilização de pedaços de madeira no palco. No decorrer do espetáculo os espaços de ocupação são reduzidos como metáfora para a restrição e a asfixia cultural e física vivenciadas pelos povos originários ao longo da história.

A montagem é baseada no Relatório Figueiredo, de aproximadamente 7.000 páginas, que detalha uma série de atrocidades cometidas contra os povos indígenas do Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985). Esse documento leva o nome de Jader Figueiredo Correia de Oliveira, o procurador que foi encarregado de investigar as denúncias de violências e injustiças contra os indígenas.

A política de desenvolvimento nacional implementada na época priorizava a expansão econômica a qualquer custo. A qualquer custo. Então, os projetos de infraestrutura, como a construção de rodovias e represas, expansão da fronteira agrícola, passaram por cima dos povos indígenas, que tiveram territórios frequentemente invadidos e expropriados. E forçaram a barra com a “política  integracionista” para os indígenas, com violações dos direitos e apagamentos de identidades. Um verdadeiro horror.

O Documento Figueiredo foi fruto de uma investigação que durou cerca de três anos, iniciada em 1963, e revelou uma série de crimes contra os indígenas, incluindo genocídios (muitos de autoria de funcionários do governo ou fazendeiros e garimpeiros acobertados pelo governo), casos de tortura, violência física e sexual , escravidão, deslocamento forçado.

Esse documento ficou desaparecido por décadas, sendo redescoberto apenas em 2013, durante o governo de Dilma Rousseff, no contexto marcado pela atuação da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012. A CNV reacendeu o debate sobre as violações dos direitos dos povos indígenas durante a ditadura e reforçou a necessidade de políticas de reparação e justiça.

Levar para a cena esse documento é importante para o debate público, lembrando que a memória pode ser uma ferramenta viva de conscientização e transformação social.

A reação emotiva por parte do plateia, muitos aos prantos ao final da apresentação, atesta a capacidade do espetáculo de tocar em feridas abertas da sociedade brasileira. A força do texto e da dramaturgia, aliada às imagens e a simbologia do cenário, criam uma experiência que pode contribuir com o debate para mudanças.

O espetáculo é um documento importante para falar do Brasil, de seu passado, presente e futuro, mas ainda há espaço para um tratamento de encenação, para que Figueiredo evolua, podendo criar novas formas de interação com o plateia, utilizar elementos multimídia adicionais, ou procedimentos cênicas que aprofundem ainda mais o impacto da obra.

Há muito mais para falar sobre essa experiência da Farofa do Processo. Vamos tentar nos próximos posts.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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O valor dos processos nas artes da cena

Gabi Gonçalves, produtora da Corpo Rastreado. Foto: Divulgação

Gabi Gonçalves, produtora da Corpo Rastreado. Foto: Divulgação

Enviei umas perguntas para Gabi Gonçalves, da produtora Corpo Rastreado, na perspectiva de postar aqui no Yolanda, no formato perguntas e respostas, sobre a Farofa.

As questões seguiram por zap. A comunicação por um tipo de aplicativo desse, não totalmente direta, deixa dúvidas e achei interessante expor essas dúvidas, pensando que estamos falando do projeto Farofa do processo.

No 29 de fevereiro, a  produtora estava em Bogotá e eu em São Paulo, trancada num quarto durante uma noite insone para terminar um trabalho.

Recebi as respostas no dia 1 de março, por volta de 1h da manhã, mas só consegui ouvir os áudios no final da tarde. Achei interessante registrar essa troca praticamente na íntegra a partir desses breves diálogos por áudio e texto que criam uma rasura, um troço meio performativo, por suas condições.

ENTREVISTA || GABI GONÇALVES

Ivana – A Corpo não escolhe, a Corpo aceita?!!!! Como funciona essa lógica de quem entra na Farofa?

Gabi – A Corpo não escolhe, a Corpo aceita, eu não entendi se é uma pergunta ou se é uma afirmação, né? Mas a Corpo escolhe e a Corpo aceita. Imaginar essa possibilidade de uma curadoria, que não é exatamente isso que a gente faz, mas é uma aproximação desses artistas e desses agentes, como os produtores, porque muitas vezes a gente vai atrás dos produtores também, principalmente quando não são projetos que estão próximos de nós. A gente se aproxima deles para entender o quanto eles se interessam ou não de estar nesse movimento, que é a Farofa, que eu tenho gostado de chamar de movimento. Eu sei que é sempre necessário colocar em caixas mais organizadoras, como festival, como um movimento conjunto e poderosíssimo entre artistas e produtores, encontrando outros espaços e outros modos de fazer. Então, a nossa lógica não tem a ver com quem eu vou escolher, quem é bom, quem é ruim, o que eu quero, o que eu não quero. Não, a gente olha para o cenário, a gente conhece as pessoas, conhece os artistas, sabe em que momento eles estão e pergunta se eles têm desejo de fazer parte desse movimento nesse momento, se não, num outro momento, porque já fizemos várias. Então, é isso, a Corpo escolhe, a Corpo aceita, a Corpo não escolhe, a Corpo aceita, a Corpo observa. Na verdade, somos pessoas. Quando a gente está falando da Corpo, é esse coletivo de 26 pessoas que trazem ideias, que trazem propostas, que trocam com os artistas, os artistas indicam outras pessoas. Então, é um movimento bastante coletivo que resulta nesse formato que a gente está apresentando agora, nesse recorte dessa Farofa de 2024, pelo menos até agora, é essa.

(Era uma pergunta!)

Ivana – Que tipo de trabalho interessa à Corpo? E o que não interessa?

Gabi – Eu não consigo te responder essa pergunta desse jeito, de forma tão direta, porque eu não construo interesse de uma maneira tão rápida. Não é assim, isso me interessa e não me interessa. Eu preciso de tempo, eu preciso estar junto, eu preciso conhecer, eu preciso trocar, eu preciso compreender, eu preciso brigar, eu preciso fazer as pazes. Então, assim, eu me interesso por ideias, por posicionamentos, mais que tudo. Eu acho que é isso, é como essas pessoas, esses artistas se posicionam diante da arte que fazem, diante dos trabalhos que fazem, o quão essas ideias e esses trabalhos são vitais para essas pessoas. Porque é isso, eu acompanho a trajetória desses artistas.

Então, numa trajetória, quiçá bastante longa, que é o que desejo para todos, todas e todes. Em alguns momentos nós vamos fazer coisas interessantes, noutros não vamos fazer coisas interessantes. Vamos acertar, errar e tudo isso junto. Isso que é a beleza de você poder passar um tempo prolongado vendo o desenvolvimento dos artistas, aprendendo pra caramba com eles. E o que não me interessa, talvez… Não me interesso por teatro musical, tem muita gente maravilhosa fazendo, fazendo bem. Eu jamais conseguiria fazer bem. Eu não me interesso em trabalhar com artistas globais, pessoas famosas, porque é um jeito muito peculiar de fazer, que eu respeito, mas eu não acredito muito, não me faz brilhar os olhos, mas eu realmente respeito bastante. Então é isso, se eu tivesse que dizer o que me interessa, o que não me interessa. Todo o resto que tiver desejo de investigar e de gastar tempo, eu me interesso. Aí eu posso te dizer que me interesso.

Ivana – Por que a produção resolveu trabalhar nesse formato?

Gabi – Por que a produção resolveu trabalhar nesse formato? Eu não sei se eu entendi essa pergunta. Por que a produção resolveu trabalhar em que formato exatamente? Acho que essa pergunta talvez eu gostaria que você me explicasse um pouco melhor. Por que a Farofa é nesse formato? É isso? Porque a gente está dando luz mais à produção do que se é dado normalmente, é isso. Eu fiquei confusa com essa, estou com medo de responder errado.

Ivana – Em tantos anos de festival é possível mapear mudanças ou tendências de uma cena brasileira a partir da Farofa?

Gabi – Bom, essa pergunta eu te diria, eu começaria te respondendo que não, eu não vejo mudança nenhuma, porque eu acho que seria muita pretensão da minha parte te responder que sim, assim de imediato, até porque a gente só existe há quatro anos, a gente fez muitas edições, essa é a nossa oitava edição, se eu não me engano, que eu também não fiquei contando, mas foram muitas já para quatro anos, então, no mínimo, fiz duas ou três por ano. O que acho é que a gente da Corpo Rastreado, como produtor, a nossa ideia é abrir espaço.

Então, a gente vai caçando meios e modos de abrir mais espaço para que os artistas tenham condição de mostrar os seus trabalhos. E eu venho percebendo ao longo do tempo que o processo está definhando em termos de importância dentro do todo. Então, o que eu poderia te dizer é que eu acho que as pessoas hoje em dia, de alguma maneira, já esperam a oportunidade de poder ou não participar da Farofa e sabem que ali elas podem experimentar livremente.

É óbvio que quatro anos não é nada para isso, então o que eu imagino é que ao longo de mais pelo menos quatro anos a gente vai ter que ir mostrando para os artistas, mostrando para o mercado, mostrando para o público que o processo é uma coisa linda, divina, que vale a pena ser compartilhado. Então, o que a gente está fazendo é abrir espaço de compartilhamento. E esse compartilhamento mais genuíno, onde o artista mostra como ele está organizando as ideias, mas ainda inseguro, sem saber, e abrindo isso para uma troca. E eu acho isso lindo, eu acho incrível. A gente não precisa mostrar só produtos incríveis que morrem depois de um mês. A gente precisa mostrar que existe muita coisa por trás disso. Então, se eu tiver algum desejo nos próximos quatro anos, é que a gente entenda o valor do processo.

Ivana – Você acha que expor o trabalho em processo aproxima-se da crítica genética no aspecto de “revelar os segredos da fabricação da obra”?

Gabi – Eu acho que sim, eu acho que se aproxima sim, e eu acho bonito você revelar segredos, eu acho que nós não somos mágicos nem ilusionistas que precisam tanto desses segredos, a magia tá também na feitura. Eu só acho que não é uma questão de exposição, sabe? É uma questão de compartilhamento mesmo. Compartilhar o trabalho em processo. Trazer as suas ideias e as suas incertezas e as suas dúvidas genuinamente para trocar com outros. Por isso que, esse ano, a gente perguntou para cada um dos artistas com quem você quer conversar, com quem você gostaria de conversar, para quem você gostaria de mostrar o seu processo. E aí nós convidamos essas pessoas para que elas estejam lá para essa troca. E essa troca é muito aberta. Como ela vai acontecer, a gente não sabe, só vai acontecer em algum momento ali, entendeu?

Então, vão ser trinta e tantas trocas diferentes. A gente tá bem, assim, eu tô bem curiosa para ver como é que vai ser isso, porque eu tenho certeza absoluta que, por exemplo, para um aluno que está estudando teatro e tudo mais, poder se aproximar desse tipo de ação, se aproximar do trabalho do artista tão genuinamente, eu só vejo ganhos e possibilidades de futuro. Então, acho que revelar os segredos de como a gente faz uma obra é muito foda, porque as camadas de aprendizado são infinitas.

Ivana – Penso em colocar como pergunta e resposta, se você concordar em responder. Pode ser por áudio, se achar melhor.

Gabi – Ivana, eu não tenho certeza do que você está pensando em fazer com essas perguntas, porque você me fala se pode ser uma entrevista ou não. Eu acredito que sim, se você achar que dá para ser como uma entrevista, se precisar editar alguma coisa, eu poder te responder a partir do que eu entender, porque eu acho que pode ser que seja uma pergunta-chave, sabe? Do que nós estamos fazendo, o que exatamente é a Farofa, porque eu fiquei na dúvida se nessa entrevista a gente estava falando da Corpo ou da Farofa, porque muitas vezes você fala a Corpo aceita, Corpo isso, é a Corpo óbvio, mas essa ação da Farofa ela é muito maior do que a Corpo, é um movimento que parte de todos e todas e todes nós, mas ele é, ele fica muito maior que a gente.

E eu gosto disso, eu gosto desse lugar. Eu gosto de imaginar que eu tô começando de uma maneira e eu não tenho a menor ideia como vai terminar. É desse jeito que eu gosto de pensar em curadoria. Por isso que eu não assino como curadoria, porque o curador poderia ficar chateado comigo. Então, eu prefiro assinar como produtora e ser essa pessoa que está testando outros paradigmas, porque é isso que a gente está fazendo. A gente está testando outros paradigmas para encontrar mais saídas, mais possibilidades. A Farofa não deixa de ser um espaço onde eu estou tentando criar mais possibilidades de trabalho para os artistas. No fundo, é isso. Estou buscando mais possibilidades de trabalho. Organizo isso em um movimento que é a Farofa. Mas sei qual é o objetivo todo o tempo, sabe? Que, obviamente, é em cima de muitos erros, alguns acertos e continuidade. Sigo sempre com essa possibilidade, fazendo, refazendo, avaliando e refazendo, e fazendo de novo, errando, acertando um pouco, enfim, a gente tá aí nesse movimento bem vivo, sabe? É um organismo bem vivo. O que a gente sabe que o que a gente tem, a gente divide. Isso pra mim é muito importante. Então a gente não perde, a gente divide pra multiplicar. Então esse é o nosso, digamos, o nosso lema, o nosso canto pra subir.

 

 

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“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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A luta continua
Crítica do espetáculo Antígona na Amazônia
Festival d’Avignon

Antígona na Amazônia. Montagem de Milo Rau. KAy Sara na tela e Frederico Araujo no palco. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Milo Rau, de boné do MST, orienta a reencenação. Foto Philipp Lichterbeck / Divulgação

Pablo Casella ao violão e Frederico Araujo no chão do palco; na tela, Gracinha Donato, Frederico Araujo, Coro e Celia Maracajá. Foto Cristophe Raynaud de Lage / Divulgação

Antigone in the Amazon (Antígona na Amazônia), do diretor suíço Milo Rau, escancara para o mundo a violência extrema praticada contra as populações indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam pelo seu direito à terra no Pará, e no Brasil. A peça reforça, da perspectiva de quem pensa o presente-futuro do planeta, a urgência de ações contra a desflorestação desse “pulmão do mundo”, onde o capitalismo devora a natureza. Ou como pontuou a atriz e ativista Maria Raimunda, numa conversa no Festival d’Avignon, as forças conservadoras matam gente, rio, animais, árvores, floresta, com a mesma crueldade.

Para falar dessa situação brasileira (e é bom que se pontue, ferozmente agravada nos quatro anos do desgoverno Bolsonaro [2018-2022], o pior presidente que o Brasil já teve), Antígona na Amazônia cruza a ficção da tragédia de Sófocles Antígona com o real do  episódio sangrento do Massacre do Eldorado dos Carajás (ocorrido em 1996), a resistência exemplar do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que reúne cerca de 500 mil militantes), a atuação de ativistas indígenas e negros e a questão amazônica com suas implicações. O quadro cênico é impactante, ambicioso e emocionante.

Essa releitura de Antígona se dispõe em resistência, reverberando vozes e fatos. Se faz teatro de carne, sangue, ossos, coração porque adota o ponto de vista da militância, da sabedoria amazônica, da trajetória de lutas. A causa dos trabalhares rurais, dos sufocados pelo capitalismo selvagem ganham o primeiro plano. Com isso, Milo Rau afasta a possibilidade de se projetar como figura do salvador branco, como pareceu pender em outras montagens.    

Coro inclui sobreviventes da chacina (de chapéu, à esquerda Maria Zelzuita que faz um relato comovente na parte gravada da peça) e integrantes do MST de todo o Brasil. Foto Philipp Lichterbeck / NTGent / Divulgação

Foi o MST que fez a proposta do trabalho cênico a Milo Rau em 2019, quando ele esteve no Brasil. Talvez pela trajetória do encenador, do ativismo no teatro, de encarar temas complexos, provocantes ou explosivos. Juntos escolheram conectar Antígona com a chacina de Eldorado dos Carajás. Rau tendo no horizonte um princípio do Manifesto Gent, redigido por ele em 2018, de não apenas imaginar o mundo, mas de mudar esse mundo. Os trabalhadores, os indígenas, carregando no corpo o combate de invasões e colonizações.

Produção de despedida de Rau à frente NTGent, pois ele agora passa a ocupar em Viena a função de diretor artístico do Wiener Festwochen, Antígona na Amazônia estreou em 13 de maio de 2023, no Teatro NTGent, na cidade de Gante [Gent, em holandês], na região de Flandres, a parte da Bélgica que fala holandês. A montagem foi aplaudida efusivamente no Festival d’Avignon e tem apresentações agendadas em vários países europeus até pelo menos junho de 2024. A previsão inicial era de estrear em 2020, mas o mundo parou com a pandemia da Covid 19. E todos nós sabemos bem o que se passou.

O espetáculo fecha a Trilogia dos Mitos Antigos, de Rau, formada por Orestes em Mossul, de 2019 (uma adaptação de fragmentos da Oresteia, de Ésquilo, produzida e filmada no Iraque arrasado pela guerra); e O Novo Evangelho, um filme de 2020, inspirado na vida de Jesus, tendo entre os participantes refugiados de um acampamento na Itália.

Milo tem no currículo a releitura de eventos reais levados ao palco, como fez também com Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie (2020) [nossa crítica das peças] trabalhos em que utiliza como procedimento o relato do processo criativo, filmagens e a convocação para refletir sobre questões controversas.

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie. Foto: kurt van der elst / Divulgação

Os brasileiros Pablo Casella e Frederico Araujo e dois integrantes do Teatro NTGent, da Bélgica, Sara De Bosschere e Arne De Tremerie se ocupam de todos os papeis na cena presencial. O elenco já está no palco quando nós, do público, entramos para Antígona na Amazônia. O músico/ator Casella toca violão. Os três intérpretes estão sentados ou mexem em qualquer coisa. Tem um cabide de roupa de um lado e instrumentos musicais do outro. Os telões não ficam expostos o tempo todo, como em outras peças de Milo Rau, eles são acionados em alguns momentos para exibição do material gravado.

O quarteto enfatiza no prólogo, – e explica em intervalos regulares -, a importância da luta política do MST, o ativismo e a resistência da população indígena do Brasil, o sistema artístico da montagem e traça vínculos com a vida de cada um etc. O palco das apresentações está coberto de terra avermelhada.

O teatro de Milo busca juntar arte e ativismo. Em Antígona na Amazônia recebemos junto com o programa a Declaração de 13 de Maio, um manifesto contra a destruição da floresta amazônica e a “lavagem verde neoliberal”. Seus principais pontos são a auditoria imediata dos selos (“rotulagem fraudulenta que perpetua a ficção neoliberal de uma produção industrial ‘sustentável”); o boicote contra todas as empresas envolvidas (a exemplo da Ferrero, Nestlé, Danone, Unilever, cujos produtos estão impregnados por “violações dos direitos humanos, roubo de terras e destruição do mundo vivo/da natureza na América Latina, mas também na Ásia ou na África”, sendo a Agropalma e seus clientes “os exemplos mais cínicos de um sistema global”); defesa incondicional de uma agricultura independente e a mudança radical do sistema. Aqui link com acesso ao PDF para download de versões da declaração em Inglês, francês, holandês, alemão e português

“O caso de um conglomerado brasileiro de óleo de palma – a Agropalma – mostra, de forma drástica, como funciona o sistema da destruição, da supressão de direitos e da exploração. Já há anos, a Agropalma vem sendo acusada de roubo de terras (grilagem), violação de direitos humanos e de condições de trabalho ruins por pessoas que vivem nas suas áreas de cultivo. Tribunais brasileiros já revogaram mais da metade de títulos de propriedade da Agropalma em virtude de comércio ilegal de terras e estelionato.

Mesmo assim, a Agropalma, até hoje, tem certificação atestada por mais de dez selos internacionais. Dentre os clientes do óleo de palma que ela vende, estão dezenas de conglomerados alimentícios como a Ferrero, a Danone e a Nestlé. Da petição de “Salve a Selva” sobre a enganação dos selos no caso da Agropalma ”Amazônia: Grilagem e violência por causa de óleo de palma orgânico, com comércio justo e sustentável“ já estão participaram mais de 75.000 pessoas.”

Campanha conjunta de “Salve a Selva” contra o greenwashing perpetrado pela indústria agrária e alimentícia.

Com Antígona na Amazônia várias ações já foram iniciadas. São células que amplificam esse teatro e esse ativismo político. Veja o vídeo O amanhã não está à venda.

“Um grito de vingança e salvação: é o que os ativistas de arte da ‘Declaração de 13 de maio’ chamam de sua música entre agitprop, batidas latinas e hip-hop de protesto. A primeira canção dos artistas, unindo músicos e cidadãos da América Latina e da Europa, é um apelo à resistência contra o greenwashing e o desmatamento – uma luta alegre pelo futuro de todos nós! Vamos resistir contra o cinismo sangrento e as doces mentiras das grandes empresas de alimentos: Destrua o que te destrói!”
“O amanhã não está à venda”

O clima de resistência já está instalado no lobby do teatro, com banners com frases-convocação para a luta e imagens da montagem. Esse material exposto na antessala funciona como ativador de emoções.

O espetáculo lança as pontes entre a tragédia antiga e a luta dos trabalhadores. No início da encenação um ator faz analogias entre a guerra civil em Antígona e o que acontece como guerra civil no Brasil. A desobediência civil da protagonista de Sófocles é vinculada à campanha de ocupação do MST e os dados de um passado recente do país são misturados com as experiências pessoais dos atores contadas no palco. Bem, já disse que os artista falam de si, mas é para pontuar o movimento de repetição.

Na tragédia de Sófocles, Polinices e Etéocles, (irmãos de Antígona e Ismene, os quatro filhos de Édipo, rei de Tebas), se matam literalmente pelo poder. Creonte, tio do quarteto – irmão de Jocasta, esposa-mãe de Édipo – toma para si o poder, e com sua autoridade baixa uma ordem para ninguém sepultar o corpo de Polinices, enquanto dá honrarias fúnebres ao outro. Antígona não aceita o que entende por arbitrariedade e desrespeito às leis divinas, e se insurge contra a determinação, mesmo sob a ameaça de morte.

Antígona vibra em resistência. A violência em Antígona ocorre majoritariamente fora do palco. A versão de Milo Rau encena a violência no palco e reconstitui a chacina em vídeo.

Como a “adaptação literal dos clássicos” está proibida como princípio daquele Manifesto de Gent, Antígona sozinha não seria possível.

Mas o diretor toma a forma dramatúrgica do texto original de Sófocles, com um prólogo, cinco atos (Ismene x Antígona, Antígona x Creonte, Hâimon x Creonte, profecia de Tirésias, Morte de Eurídice e sua maldição sobre Creonte) e um epílogo.

A tragédia de Sófocles termina com a morte de Antígona, Hâimon e Eurídice, e a partida de Creonte para o exílio, deixando Tebas em desgraça. Em Antígona na Amazônia há um sexto ato, diferente.

Reencenação da chacina. Foto: Kurt van der Elst – NTGent / Divulgação

Uma das principais cenas da peça Antígona na Amazônia é a reencenação do massacre de Eldorado do Carajás, gravada no dia 17 de abril de 2023, quando a chacina completou 27 anos, na Rodovia PA-150 (atual BR-155), na curva do S, com cerca de 300 militantes do MST e outros colaboradores.

Em 1996, uma marcha pacífica com participação de indígenas e membros do MST seguia por essa estrada quando a força repressiva da polícia do Pará interviu com violência, deixando 21 mortos (oficiais), 19 no local, outros dois nos dias seguintes no hospital em decorrência da ação truculenta. Mas existe uma suspeita de outros corpos desaparecidos em decorrência dessa ação. 

Todos os anos é realizada uma cerimônia em memória desses mortos. Mas por ordem de alguma autoridade, a representação da manifestação neste ano foi primeiramente proibida, e essa célula vital da montagem quase não aconteceu. Maria Raimunda militante do MST no Pará, responsável pela cultura do movimento e que participa da peça, conseguiu convencer os policiais de que aquele teatro também era uma luta por eles. E a magia do teatro se fez. Tudo é filmado. A chegada do carro da polícia, a conversa de Maria, a reação dos guardas vendo a simulação do desempenho de seus pares 27 anos antes.

Sara De Bosschere e Arne De Tremerie na função de policiais. Foto: Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Arne De Tremerie em plano grande na telona. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

A atriz Sara De Bosschere e o ator Arne De Tremerie vestidos com o uniforme atuam como policiais também no palco. As cenas produzidas são fortes, expõem a brutalidade contra os ativistas, mas deixam espaço para mostrar que é uma encenação. Mesmo sabendo que é teatro, a ação é muito chocante e perturbadora.

Essa reconstituição filmada no Pará no dia de aniversário do massacre é duplicada com a encenação de violência também no palco ao vivo, propondo um diálogo pulsante entre a tragédia grega, as memórias das tragédias brasileiras – a de Eldorado dos Carajás e outras, a vivência dos envolvidos no projeto.

Na sala do teatro, os quatro atores que atuam presencialmente dialogam com as imagens gravadas, repetindo gestos, expandindo propostas, interagindo. Eles narram as cenas, falam de si e do episódio focalizado, assumem papeis de Antígona; Creonte; Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona; o músico-narrador. Fazem ziguezagues na linha do tempo.

 

Crianças de uma aldeia. Foto: Moritz-von-Dugern / Divulgaçao

Araujo na pele do militante Oziel Alves Pereira, que enfrenta a policia e é assassinado . Foto Divulgação

Arne De Tremerie presencial e no vídeo com Sara De Bosschere. Tecnologia permite um diálogo preciso. 

No jogo do teatro direto e o que chega pelas imagens filmadas, os atores descrevem a gênese do projeto, o workshop do MST em 2020 com agricultores, outros profissionais e sobreviventes do massacre. Mas também são exibidas as gravações em aldeias indígenas, reservas florestais assentamentos do MST, em cenas cotidianas, algumas com a presença dos estrangeiros.

Numa cena em que alguns indígenas pintam o corpo e riem e mexem no celular e quase sentimos o cheiro da floresta, o estrangeiro fala fala fala e elas se viram para ele para dizer que não entendem nada do que ele diz. Fazer esse giro em torno da ideia de colonização é sensacional.

De Tremerie em outro momento reflete sobre a experiência de estar numa aldeia amazônica longínqua, ele enquanto homem branco europeu, e que poderia ser tomado por “um complexo de culpa disfarçado de ativismo.” É para continuar pensando. 

O dispositivo cênico garante o diálogo entre tantas instâncias. E permite um fluxo na peça que corre entre inglês, português, tucano, flamengo e francês, com legendas em francês e inglês e aparelho para linguagem de sinais.

A sincronização é precisa e produz efeitos admiráveis, que viabilizam que os atores da cena ao vivo conversem com o elenco das gravações. É a tecnologia.

Esses mecanismos e essas escolhas permitem, por exemplo, que Frederico Araujo interpreta um jovem ativista do MST – Oziel Alves Pereira que será espancado até a morte –, Antígona, Polinices um dos filhos de Édipo e, um elemento da repressão e ele mesmo, o ator. Em algum momento ele verbaliza em cena que “no Brasil, quando se é preto, LGBTQIA+ pode-se morrer a qualquer momento, por isso é que eu estou feliz por morrer somente no palco”.

Antigona (Kay Sara), e seu irmão Polinices (Frederico Araujo); Foto: Mortiz Von Dungern / Divulgação

Kay Sara, a atriz ativista indígena – das etnias Tariana e Tukano, de Lauaretê, pequena comunidade do Amazonas, fronteira com a Colômbia – anunciada como a intérprete de Antígona aparece somente nas gravações, nas filmagens, na tela. Ela desistiu do papel-título três dias antes da estreia mundial da peça e voltou para casa no Brasil, no dia 10 de maio.

Nessa sessão inaugural da peça , na Bélgica, os atores explicaram ao público sobre a ausência de Kay Sara, que ela nunca se sentiu confortável na Europa e partiu para ficar com o seu povo. Essa irrupção do real é desconcertante como um drible de craque. Uma ausência que pulsa na cena. É uma recusa ao capitalismo que afirmação de sua subjetividade e identidade. Sua desistência ecoa, vibra cria horizontes para um teatro maior.

Em entrevista ao jornal francês Liberation, Milo Rau explicou as possíveis causas: “Kay Sara não tomou sua decisão por capricho. Ela vinha nos alertando há meses que essa primeira vez no palco seria também sua última aparição diante de um público não-indígena. Subestimamos os constrangimentos da longuíssima turnê de vários anos, que a teria levado a viajar muito para fora da Amazônia, local de sua luta”. O diretor entende que a motivação é duplamente política: Kay Sara não quer ser “fetichizada”.

Kay é uma atriz que já tem um currículo no cinema e nos streamings. Na Antígona na Amazônia, ela participou do processo e das filmagens. Quando o trabalho foi paralisado em 2020, devido à epidemia da Covid, a artista indígena gravou um vídeo com o discurso This madness must stop (Essa loucura tem que acabar), com enorme repercussão entre o público do festival de Viena, onde a gravação foi projetada.

Discurso de Kay Sara por ocasião da abertura do Wiener Festwochen, em 2020, 

 
 
 
 

Kay Sara na tela e Araujo no palco Foto: Kurt van der Elst /NTGent / Divulgação

E como fica essa ausência-presença na cena? Milo Rau engenhosamente incorporou a situação como dinâmica de sua dramaturgia. Araujo substitui Kay no palco. E isso pode criar ruídos ou acréscimos, depende do repertório de quem recebe. Em uma cena, Sara aparece grande na tela e há uma colaboração, complementação ou sobreposição de outro corpo visado pelas atrocidades que vêm de longe.

Uma cena especialmente forte é quando Antígona de Kay descobre que o seu trabalho de enterrar seu irmão, Polinices de Frederico, foi desfeito e ela se encoleriza. A cena se passa na tela, Sara está com seu vestido vermelho. Araujo no palco também chega ao desespero. Ambos gritam e se revoltam contra a injustiça. Nos movimentos de exasperação, o ator jogo terra para o alto e para a plateia. Como eu estava na segunda fila, senti o a fúria da terra lançada.

Celia Maracajá no papel de Eurípedes. Foto: Moritz Von Dungern / Divulgação

Filósofo indígena Ailton Krenak, em vídeo, como o sábio Tirésias. Foto Divulgação,

Outras figuras centrais da tragédia de Sófocles, com Ismene, irmã de Antígona, só aparecem na tela. Ismene é interpretada pela militante negra Gracinha Donato, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Célia Maracajá atriz e cineasta, uma das percussoras da produção audiovisual indígena no estado do Pará, e com participações em montagens dos teatros Oficina e Arena, faz Eurídice, mãe de Hêmon e esposa de Creonte.

Liderança histórica no movimento indígena, crítico do sistema capitalista e do eurocentrismo, o filósofo Ailton Krenak faz uma curta participação (e gigante contribuição) em vídeo como o sábio Tirésias, a voz que aconselha e alerta sobre a situação do planeta e avisa a Creonte que sua loucura vai lhe levar  à ruína.

“Muitos são os monstros mas nada mais monstruoso que o homem” é cantado no início da peça. Os atores ironizam a inteligência humana que surrupia a natureza e provoca tragédias. Praticamente todo o espetáculo corre com a música poderosa e competente de Pablo Casella em primeiro plano ou de fundo. Essa trilha cria os climas emocionais que as imagens apresentam. E talvez por ser tão exuberante fiquei imaginando as camadas e intenções artísticas para produzir esses estados comoventes e como seria a peça sem essa sustentação musical. Penso que tudo é calculado para envolver o espectador, as situações, climas e encaixes. E envolve.

O quarteto do palco joga com muitos estilos de interpretação, do narrativo à dramatização convulsionada, em Frederico Araujo. Pablo abraça o púbico do narrativo ao musical. Há mais contenção no atuar dos dois da Bélgica. Sara De Bosschere como Creonte é uma escolha que pode gerar incômodos na recepção por ela ser mulher no papel do tirano. Em princípio, não vi problema nessas escolhas. Ela assume um Creonte concentrado e de pouca brutalidade nos gestos. Arne De Tremerie, que está em Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza)  de Rau, tem um carisma nas suas atuações. No vídeo, o desempenho ganha com vibração justamente daqueles corpos e o que eles carregam, de história, memória e resistência.

 

O coro na tela e a figura de Creonte , de branco, interpretado por Sara belga. Foto: Divulgação

Maria Zelzuita Oliveira de Araújo faz um relato detalhado da chacina. Foto: Divulgação

Formado por sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás, como Laurindo Ferreira da Costa e militantes do MST de todo o Brasil, a exemplo de Tisiane Kilian, de Santa Catarina, o coro desempenha um papel estruturante na montagem. O coro levanta a voz coletiva, da luta em comum, nas imagens, nos cantos.

Mas também sustenta relatos individuais como de Maria Zelzuita Oliveira de Araújo, sobrevivente da matança e que na reconstituição da cena conta em detalhes o que se passou naquele sombrio 17 de abril. É doloroso até ouvir. Ela lembra a altivez do jovem Uziel, de 17 anos, que foi torturado e morto pela polícia; da repórter Mariza Romão, que fazia a cobertura do movimento e “pediu pelo amor de Deus” para “eles” não invadirem a casa que só tinha mulher e criança (a polícia invadiu), e do seu filho de três anos que disse que a família iria morrer, porque estava lutando por terra para morar.

Ou o canto final do coro que diz “que benção, fazer a prece derradeira, dizer adeus a sua maneira, cada grão de terra sobre o corpo é luz”.

Há algo de esperançar no final da peça de Milo Rau. Talvez para marcar que a luta do MST continua. Ela nunca parou. Pablo Casella diz que é  a magia do teatro. Ter outro desfecho. Trazer os mortos de volta à vida. 

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie na cena

Cena da morte do príncipe, filho de Creonte

Antigone in the Amazon (Antigona na Amazônia)

Concepção e encenação Milo Rau
Elenco: Frederico Araujo, Pablo Casella, Sara De Bosschere, Arne De Tremerie
e em vídeo Gracinha Donato, Ailton Krenak, Celia Maracajá, Kay Sara, o coro de ativistas e ativistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Dramaturgia Giacomo Bisordi
Codramaturgia Martha Kiss Perrone
Colaboração à dramaturgia Kaatje De Geest, Douglas Estevam, Carmen Hornbostel
Cenografia Anton Lukas
Figurinos Gabriela Cherubini, Jo De Visscher, Anton Lukas
Iluminação Dennis Diels
Música Pablo Casella, Elia Rediger
Vídeo Moritz von Dungern, Fernando Nogari, Joris Vertenten
Assistenten de encenação Katelijne Laevens assistida por Carolina Bufolin, Zacharoula Kasaraki, Lotte Mellaerts
Tradução para a legenda Panthea (français), Carolina Bufolin (inglês)
Dispositivo de acessibilidade Panthea
Direção técnica Oliver Houttekiet
Direção de palco Marijn Vlaeminck
Técnica Brecht Beuselinck, Dimitri Devos, Stavros Otis Tarlizos
Produção Klaas Lievens, Gabi Gonçalves (Brasil)

De 16 de Junho de 2023 a 24 Julho 2023, no Festival de Avignon

Produção NTGent

Coprodução International Institute of Political Murder (IIPM), Le Festival d’Avignon, Manchester International Festival, La Villette (Paris), Romaeuropa Festival, Le Tandem Scène nationale d’Arras-Douai, Künstlerhaus Mousonturm (Frankfurt), Équinoxe Scène nationale de Châteauroux, Wiener Festwochen (Viena)

Vídeo de divulgação da peça Antigona na Amazônia

 

 

Tournée :

22 e 23 de setembro de 2023 – Kaserne Basel (Suíça)
3 e 4 de outubro de 2023 – Teatro Argentina no âmbito do Romaeuropa Festival (Itália)
20 de outubro de 2023 – Teatro Polski (Polonia)
De 25 a 28 de outubro de 2023 – Théâtre des Célestins no âmbito do Festival Sens Interdits (Lyon) 
11 e 12 de novembro de 2023 – Culturgest (Portugal)
16 e 17 de novembro de 2023 – Teatro Municipal do Porto (Portugal)
22 e 23 de novembro de 2023 – Centro Cultura Contemporanea Condeduque (Espanha)
28 de novembro de 2023 – Équinoxe Scène nationale de Châteauroux
De 6 a 9 de dezembro de 2023 – La Villette (Paris)
23 e 24 de janeiro de 2024 – Thalia Theater  (Alemanha)
30 de janeiro de 2024 – Stadsschouwburg Brugge  (Bélgica)
7 de fevereiro de 2024 – De Warand, no âmbito do Stilte Festival ( (Bélgica)
De 22 a 25 de fevereiro de 2024 – Schauspielhaus Zürich (Suíça)
1 e 2 de março de 2024 – De Singel-Rode Zaal  (Bélgica)
7, 8 e 9 de março de 2024 – Espoo City Theatre (Finlândia)
De 19 a 22 de junho de 2024 – Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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