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A tramoia de Iago
Crítica do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza,
visto no Théâtre Odéon, em Paris

Iago (Nicolas Bouchaud) conspira contra Othello (Adama Diop) e Desdêmona (Emilie Lehuraux). Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Montagem de Jean-François Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez

Desde o início do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza – tragédia escrita pelo dramaturgo William Shakespeare provavelmente em 1603 – ficamos sabendo que o soldado Iago alimenta um ódio mortal por Othello, pois inveja seus feitos heroicos e porque seu comandante promoveu Cássio para o posto de tenente; nas palavras de Iago, “um teórico”, que nunca liderou um batalhão numa guerra.

Iago faz de tudo para destruir seu dirigente. Junto com Roderigo envenena o senador Brabantio, pai de Desdêmona, ao informar que ela fugiu com Othello. Conspira contra Othello e Cássio e utiliza muitos truques, artimanhas, conversas cruzadas, insinuações e um lenço perdido para persuadir Othello de que Desdêmona e Cassio são amantes.

É uma teia intrigante. Como Iago consegue empurrar Othello – o grande estrategista – para o abismo do ciúme. Sutis manipulações indicam caminhos, pois Iago é especialmente hábil em detectar e explorar as fraquezas humanas.

A versão do encenador Jean-François Sivadier para Othello – que passou pelo Théâtre Odéon, em Paris, antes de prosseguir em turnê europeia – explora as questões nevrálgicas da peça, mas com algumas lentes do século 21 e muitas das contradições acumuladas. Entre elas o feminicídio que já foi chamado de “crime passional”, e o racismo que exala dessa (daquela, da nossa) sociedade. Veneza enaltece os feitos do protagonista, mas o despreza – escancaradamente ou veladamente – como pleno cidadão.

É a primeira peça que assisto desse realizador. Então, para situar, Sivadier é um ator, dramaturgo e diretor de teatro e ópera, de 58 anos, que tem no currículo releituras de alguns clássicos. Em 2007 encenou Rei Lear no Festival de Avignon. Em 2022, recebeu o Grande Prêmio do Teatro da Académie Française pelo conjunto da sua obra.

A tradução francesa de Jean-Michel Déprats acentua as ambiguidades e os contrastes muito valorizados na encenação, que imprime um ritmo alucinante, que oscila da tragédia ao pop, com improvisações cômicas, escolhas sonoras setentista, que inclui Dalida, Freddie Mercury, John Lennon.

Cassio (Stephan Butel ), Othello e Iago. Foto: Jean Louis Fernandez

Sivadier escala um ator negro para o papel de Othello, como deve ser. Mas nem sempre foi assim. No passado não tão remoto, em muitas montagens, Othello era interpretado por um ator branco, algumas vezes com o rosto pintado de preto, na tradição racista do blackface. No artigo Othello joué par un Blanc : le théâtre français est-il raciste ? , de 16 octobre de 2015, a articulista Françoise Alexander questiona no jornal Le Monde a escolha do Philippe Torreton, um ator branco, para o papel principal de Othello na encenação de Luc Bondy.

A discussão rendeu outros artigos, como o da  atriz, cantora e dramaturga Yasmine Modestine, Pourquoi la distribution d’Othello par Luc Bondy est entièrement blanche?  . Mas a encenação não estreou, pois o renomado diretor, que já estava doente à época, morreu em novembro daquele ano.

Desdêmona (Emilie Lehuraux) e Othello (Adama Diop) . Foto: Jean Louis Fernandez

Quando entramos no teatro, Othello, interpretado pelo franco-senegalês Adama Diop, troca algumas palavras em Wolof com Desdêmona (Émilie Lehuraux). Ficamos sabendo, por exemplo que amor se diz mbëggeel. Nesse pequeno jogo amoroso do prólogo, Othello pede a mão de Desdêmona na língua falada no Senegal.

Na primeira parte da peça, Adama Diop, com dreadlocks, compõe um Othello solar, orgulhoso, leal, apaixonado, confiante, que aposta nos valores elevados, consciente do seu gênio militar. Mas esse homem que se fez a si mesmo não esquece das suas origens, de que foi arrancado de sua terra para ser escravizado. Seu talento guerreiro o libertou e engrandeceu. Mas enquanto estrangeiro da Veneza, ele reconhece o racismo dessa gente.

Em seu Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi reflete sobre a condição de Othello: “Como veneziano, ele deve chefiar a frota; como mouro, não tem permissão para pedir em casamento nenhuma veneziana”.

Se o texto de Shakespeare vibra em alto grau na denúncia contra o racismo. Jean-François Sivadier reforça essa perspectiva e dedicou o papel do Doge de Veneza (principal magistrado, que preside o senado) a uma atriz negra.

Othello ambicionava vencer o preconceito, mas encontrou Iago no meio do caminho para tirá-lo do eixo. Em Shakespeare: a invenção do humano, Harold Bloom analisa que, “entre todos os vilões da literatura, ele tem a honra nefasta de ocupar uma posição inatingível […] Nem mesmo o diabo – em Milton, Marlowe, Goethe, Dostoievsky, Melville – pode competir com Iago”.

Iago é defendido com brilhantismo por Nicolas Bouchaud, ator que já trabalhou em várias montagens de Sivadier. O artista explora as nuances desse personagem manipulador invejoso e dá o seu show na cena, canta clássicos do rock , cospe vinho tinto e espaguete, invoca as caretas do Coringa dos filmes de Hollywood e explode qualquer barreira de gênero interpretativo.

Quem não te conhece, que te compre!!!! O espectador conhece a verdadeira face de Iago e seus passos e maquinações, compartilhados nos solilóquios. Mas todas as outras figuras compram a face angelical, leal e humana que sua máscara diabólica esconde. Sempre atuando, disfarçado de amigo fiel, ele ouve de suas vítimas – Othello, Desdêmona, Cássio – “Honesto Iago”.

Atriz Émilie Lehuraux no papel de Desdêmona. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Jisca Kalvanda como Emilie, a esposa desprezada de Iago. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Algumas escolhas artísticas e de tom dão mais estatura às personagens femininas. Pequenas adições de pulsações contemporâneas ecoam na peça as lutas feministas e antirracistas destes tempos. A encenação adota uma postura mais aguerrida e menos de vitimização das figuras da mulher.

Émilie Lehuraux, junta frescor juvenil, magnanimidade e determinação para legitimar sua Desdêmona, seja em cena mais amorosas ou no enfrentamento a seu pai e à sociedade racista, no comitê dos senadores.

Ela canta Undress me conhecida na voz de Juliette Gréco, no centro do palco, descalça sobre um grande lençol, mortalha que outros atores vão desdobrar. E manifesta sua vivacidade para se defender do marido ensandecido de ciúme, que a acusa violentamente. A mesma atriz também assume com desenvoltura o papel de Bianca.

Emilie (Jisca Kalvanda), a esposa desprezada de Iago, funcionária de Desdêmona, fica com a incumbência de delatar os culpados e desmascarar suas mentiras. Na cena final, ela diz que a verdade quer prevalecer e ela não deve se calar. E faz um discurso contundente, que parece atravessar os tempos.

Sim, a essência da encenação está nos atores, o diretor investe no jogo dos intérpretes. Stephan Butel faz um Cássio que expõe as fragilidades de um militar. Na cena da bebedeira arquitetada por Iago, ao som de We Will Rock You, do grupo Queen, Butel exibe o lado mais ingênuo do seu tenente.

De silhueta longa e vocação camaleônica, Cyril Bothorel assume vários papéis, incluindo o de pai intratável de Desdêmona, que anda furiosamente pelo palco de pijamas despejando logorreia racista. Gulliver Hecq, como Roderigo também apaixonado por Desdêmona e manipulado por Iago, expõe a estupidez da personagem.

Os flertes de Jean-François Sivadier com a cultura pop ressaltam as pontes da época de Shakespeare com o mundo contemporâneo.

Cena da bebedeira de Cássio. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

São interessantes os recursos materiais que o Odéon–Théâtre de l’Europe dispõe para fazer a arte funcionar. Tenho certeza de que o diretor pernambucano Quiercles Santana ficaria bem-motivado em criar nesse espaço. Para se ter uma ideia. A cenografia do espetáculo é composta por molduras rotativas de madeira com grandes lonas de plástico transparente. Pois bem, na cena em que Othello está transtornado as molduras giram e com os efeitos de luz e som, por alguns instantes somos sugados para mente desestabilizada de Othello. Nesse momento, o mundo treme, a vida se comprime numa grande vertigem.  

Iago quer rebaixar Othello à vulgaridade e provar que os valores como a honestidade, o amor e a honra valem muito pouco no final das contas. Nesse sentido, a encenação põe em movimento duas visões de mundo antagônicas. Se uma é calcada na dignidade, a outra distorce os sentidos pela corrupção.

O confiante Othello muda de discurso e de comportamento no decorrer do espetáculo. No início da peça, o protagonista rebate com brio as acusações de Brabâncio e fala de maneira equilibrada para provar o seu amor frente ao grupo de senadores. Mas, no final, ao baixar ao nível de seu algoz, Iago, utiliza metáforas desprezíveis nas palavras que destina a Desdêmona.

Quando Othello cai ao nível de seu falso amigo, ele se assemelha a Iago. Otelo abdica de ser Otelo. E essa operação em cena é linguagem explosiva.

O diretor Jean-François Sivadier arisca borrar os personagens. Após o intervalo nesta montagem com os cinco atos, por breves minutos, os dois atores – Nicolas Bouchaud e Adama Diop, de frente para o público, um ao lado do outro, repetem as mesmas falas e trocam de papeis. Essa jogada põe em andamento séculos de leituras interpretativas dos dois personagens e reforça que isso é teatro, frenético teatro, num jogo magistral de atores.

Máscara branca de Othello na montagem de Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

E para as cenas finais, do assassinato, do suicídio, da queda no abismo,  Othello aparece com uma máscara branca. Adama Diop imita gestos e caretas caricaturando a postura do selvagem. A cena tensiona as questões contemporâneas e complexifica a máscara branca. A mão do crime é preta, mas o braço da manipulação é branco.

E não nos enganemos. Ao desnudar o processo de humilhação e controle social Shakespeare nos lembra que nos assemelhamos aos seus personagens em abjeção.

Sim. É difícil imaginar um mundo sem Shakespeare (It is hard to imagine a world without Shakespeare), como registra o diretor do The Folger Shakespeare Library Michael Witmore, em Othello, o Mouro de Veneza, na edição que leva em conta o conhecimento que se tem da obra do dramaturgo no século 21. (Aqui o link da peça em inglês para baixar gratuitamente).  O bardo inglês prossegue expandindo nossas consciências.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Poesia e dramaturgia, tentativa e esperança de vida
Crítica do espetáculo Miró: Estudo nº2

Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth. Foto: João Maria Silva Jr

– Prédios não caem. Prédios são demolidos.

Essa é uma das falas-síntese do espetáculo Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth. Na noite de 27 de abril, cerca de trinta ou quarenta minutos depois que a peça havia terminado na Avenida Paulista, em São Paulo, mais um prédio caia na Região Metropolitana do Recife. Seis pessoas morreram e cinco ficaram feridas, entre elas uma mulher de 32 anos, e sua filha, uma adolescente de 16 anos. Os corpos foram encontrados abraçados debaixo dos escombros.

O edifício Leme, no bairro de Jardim Atlântico, em Olinda, era do tipo caixão, possuía 16 apartamentos e estava condenado desde o ano 2000. Como não tinha sido demolido, o prédio acabou ocupado. O jornal Folha de Pernambuco publicou que, de acordo com a Defesa Civil de Olinda, a cidade tem 110 imóveis com risco iminente de desabamento, todos prédios do tipo caixão que, como explicam as matérias de jornal, são edifícios construídos com uma técnica de alvenaria na qual as paredes fazem a função de sustentação da estrutura, sem que vigas ou pilares sejam utilizados.

Os 70 prédios do Conjunto Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, também Região Metropolitana do Recife, eram desse tipo. Como reforça o texto do espetáculo do Magiluth, foram construídos com recursos do antigo BNH, Banco Nacional da Habitação. Em 1995, um dos prédios foi interditado pela Defesa Civil por conta de rachaduras. Em 2005, todos os blocos foram interditados.

Muribeca dá nome ao conjunto habitacional, ao bairro em Jaboatão dos Guararapes, ao lixão desativado em 2009, que era o maior aterro sanitário de Pernambuco (“o sonho da casa própria ali, lado a lado com o lixão”, diz mais ou menos assim a dramaturgia do Magiluth), e ao poeta Miró, Miró da Muribeca.

Miró da Muribeca (1960-2022), João Flávio Cordeiro da Silva, era uma figura icônica do Recife. Era orgulhoso de viver de sua poesia. Ele próprio vendia seus livros e performava de um jeito único os poemas – sobre a cidade, o cotidiano, os problemas sociais, os encontros, os amores, o que poderia até ser considerado banal e, a partir do olhar de Miró, da sua elaboração, escrita e enunciação, ganhava forma e relevância.

Miró morreu em 2022 em decorrência de um câncer, mas também era alcoólatra.

Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Foto: João Maria Silva Jr.

E foi a partir dessa pessoa que o Magiluth enveredou na criação de mais uma peça, num processo que também se debruça sobre o teatro, o ofício, o como fazer. Em Estudo nº 1: Morte e Vida (2022), a partir de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a pergunta que disparava a encenação era “como montar uma peça?”. Agora, o grupo se questiona “como fazer uma personagem?”.

Essa pergunta é apresentada logo no início da peça e, a partir dela, discussões e possibilidades vão sendo compartilhadas com o público. Miró é uma pessoa ou uma personagem? O que é um protagonista? Um antagonista? Um coadjuvante? Figurantes? Elenco de apoio? E outras interrogações vão ecoando puxadas pela provocação inicial: quando estava performando, Miró era personagem? E nós, quando somos personagens? Só no vídeo para as redes sociais?

Para além das definições que enveredam pelas artes da cena, que podemos falar daqui a pouco, as fricções mais interessantes se dão quando esses conceitos tensionam as questões sociais alinhavadas pela dramaturgia.

A situação que desencadeou a escrita de um dos primeiros poemas de Miró, por exemplo, é trazida ao palco: uma abordagem policial a cinco jovens que estavam a caminho do Centro do Recife. Dali viria Quatro horas e um minuto*, poema publicado em seu primeiro livro, Quem descobriu o azul anil?:

quatro horas
quatro ônibus
levando vinte e quatro
pessoas
tristonhas e solitárias

quatro horas e um minuto
acendi um cigarro
e a cidade pegou fogo

cinco horas
cinco soldados
espancando cinco pivetes
filhos sem pai e
órfãos de pão

seis horas
o Recife reza
e eu voando
pra ver Maria

(Quatro horas e um minuto)

Na cena criada pelo Magiluth, os cinco jovens do bairro dos Coelhos, na periferia do Recife, estão andando e tirando onda pela rua até que um deles é abordado por um policial: “Tá rindo do quê, boy?”. A pergunta é seguida por um tapa.

Quando esses jovens se tornam protagonistas? De que forma eles são protagonistas? Qual a diferença entre um João “dos Coelhos” e um João? Entre um João da Muribeca e um João de Casa Forte? João de Casa Forte precisa ser nomeado? Quais outras estruturas podem servir para nomear João de Casa Forte? O colégio Santa Maria ou o Mackenzie, por exemplo, servem a esse propósito? Por outro lado, quais estruturas inexistem na construção do João da Muribeca, dos Coelhos, do Jardim Romano, de São Miguel Paulista? Um poeta marginal pode ser protagonista?

Um dos trunfos do Magiluth em Estudo nº2 é a engenhosidade na construção da dramaturgia. Poesia virou texto de teatro. Foi cortada, recortada, mudou de lugar, outros textos foram acrescentados, mas a poesia está lá. A obra de Miró está lá, adaptada ao teatro de um jeito imbricado, sem começo, meio ou fim, sem delimitações, invadindo todos os espaços no palco e espraiada.

Além disso, não há uma tentativa de fazer uma peça biográfica ou documental, apesar de alguns elementos biográficos e documentais nos ajudarem a ter pistas dessa pessoa-personagem, como alguns depoimentos de vizinhos de Miró. Mas não há muitas explicações – por exemplo: em nenhum momento o grupo conta que a cena desses jovens virou um dos primeiros poemas de Miró. Ela apenas está, existe, como dramaturgia e poesia, sem a necessidade de muitas explicações, a própria cena dando conta do seu contexto.

Depois de um prólogo estendido, guiado pela pergunta sobre como fazer uma personagem, o Magiluth expõe as suas escolhas para levar Miró personagem ao teatro. E essas escolhas, ao que me parece, carregam certo ineditismo na trajetória do grupo. O que o espectador acompanha é quase um processo de simbiose entre Erivaldo Oliveira, ator protagonista que interpreta Miró, e o poeta. Desde a dramaturgia, quando as fotos de Erivaldo se misturam às referências de Miró. Qual o nome da mãe de Erivaldo mesmo? E do poeta? Quem é filho único? Quem tem muitos irmãos? Os dois perderam as suas mães e esse buraco impactou a vida dos dois, talvez com pesos diferentes.

E essa construção vai alcançando de mansinho a cena – o conhaque que Erivaldo bebe repetidas vezes, a imagem da Muribeca na projeção do telão – e o corpo do ator, que é primeiro Erivaldo, personagem de si mesmo no palco, e vai aos poucos mimetizando Miró. Que imita o seu jeito de andar, de abrir os braços, de se expressar, que carrega a guia no pescoço com o dorso nu. Até que Erivaldo e Miró são um e são múltiplos: ator-personagem no palco, poeta-performer no vídeo.

Não tem como não exaltar o trabalho de Erivaldo Oliveira como ator em Miró. Principalmente para quem, como eu, acompanho o trabalho do grupo há muito tempo. Como quase tudo na vida, o trabalho do ator também é uma construção. Treino, repetição, aperfeiçoamento, faz de novo e novo. Uma das palavras-síntese para Magiluth é processo. Em Miró estão o Erivaldo de Viúva, porém honesta (2012) e da mãe fabulosa que ele ergueu em Apenas o fim do mundo (2019) e que tinha uma cena inesquecível com o Luiz de Pedro Wagner. Erivaldo tem mapeado Miró em sua consciência, em seu corpo, ora ao se conter, ora ao se expandir.

A cena em que se banha é como um nascimento, um batismo, um banho de mar no chuveiro, a cura para o porre de realidade e conhaque e, ao mesmo tempo, uma ode ao que pode vir. As ligações que faz aos poetas amigos, Wellington (Wellington de Melo), Cida (Cida Pedrosa) e Wilson (Wilson Freire), revelam a dor e os dramas internos do poeta-pessoa-personagem em cenas tristes e lindas.

Mas, como disse, a escolha me parece inédita ao grupo: levar uma personagem real à cena mimetizada. Interpretá-la de tal modo que o público possa se impressionar com as semelhanças entre ator e pessoa-personagem.

De outro modo, os polos colocados em cena quando o grupo apresenta, de um lado, a construção de uma personagem dramática, de modo tradicional, com caracterizações, como na cena de Giordano Castro; e de outro, o ator mais cru, que segue a sua intuição, é personagem de si mesmo, como na cena de Bruno Parmera, também não são escolhas recorrentes do grupo ao longo do seu repertório.

O Magiluth geralmente vai por outro caminho, o do ator-performer que não está necessariamente interessado em mimetizações, que ajudou a construir uma dramaturgia em sala de ensaio e, a partir do texto, das ações propostas e do corpo consegue estabelecer um estado de presença que alcança o espectador. Um estado de presença que, do palco, idealmente, integra o espectador à encenação. E o mais interessante no grupo é que esse estado, essa energia que os atores vão erguendo em cena, se dá no coletivo, no jogo e na interação entre aqueles atores, como se um puxasse e mobilizasse o outro até o lugar que desejam alcançar, todos juntos.

E essa é uma das quebras em Miró: Estudo nº2. Esse estado de presença coletivo, do modo como ele acontece em outras encenações, como O ano em que sonhamos perigosamente (2015), Dinamarca (2017) e Estudo nº1: Morte e Vida, por exemplo, não se estabelece da mesma maneira. O protagonismo, neste caso, também está relacionado à presença. Então, na maior parte do tempo, essa linha de forças está desnivelada. É um demérito do espetáculo? Não, é apenas um modo diverso de colocar as peças no tabuleiro da encenação e uma experiência diferente na trajetória do grupo.

Um dos momentos em que essa energia está um pouco mais equilibrada, embora em níveis menores de força, é quando os atores voltam ao procedimento recorrente de criação de cenas curtas, que se desenrolam como um jogo, e incorporam referências e citações de trabalhos anteriores. Se, como disse, processo é palavra-síntese do Magiluth, essas cenas são antropofagia. Olhar para si mesmo, para o mundo, voltar ao que foi, trazer coisas novas, acrescentar camadas de significação.

Por exemplo: pelo menos desde O ano em que sonhamos perigosamente (ou talvez desde Aquilo que o meu olhar guardou para você, 2012) o grupo traz à cena questionamentos sobre a ocupação do espaço urbano e a especulação imobiliária. Em Miró, os diálogos entre um engenheiro e um aprendiz, Giordano Castro e Bruno Parmera, sobre as especificidades na construção de um conjunto habitacional explicitam o descaso com o direito à moradia digna diante da sanha capitalista de construtores – aqueles da mesma laia dos que estão erguendo não sei quantas torres no Cais José Estelita, no Recife. Se antes o grito desesperado chamava por Stella, de Um bonde chamado desejo, em O ano em que sonhamos perigosamente, agora chama por Norma.

(…)

domingo era o dia mais feliz
antes de norma beijar um outro na boca

(Onde estará Norma?)

O casal de Todas as histórias possíveis, experimento criado durante o isolamento social provocado pela pandemia de covid-19, aquele que se forma despretensiosamente e depois ganha a chave da casa do outro, recebe um áudio dizendo o que tem na geladeira e um convite para que fique à vontade, se sinta em casa, pode ser o mesmo casal que passa 22 anos juntos em Miró e depois não consegue imaginar a vida sem o outro?

estou pronto
eu também
foram
deixando para trás 22 anos juntos
naquele apartamento
dentro do elevador nenhuma palavra
térreo
agora teriam 22 mil ruas para seguir
seguiram

nenhum dos 2 sabia pra onde

(Separação)

O morto, que “é bom porque a gente deixa ele lá, no lugar, e quando volta ele tá lá, igual, na mesma posição” e que a gente coloca “flores por cima para esconder o cadáver”, de O ano em que sonhamos perigosamente, aquele que morre de exaustação pela precarização do trabalho em Estudo nº1: Morte e vida e permanece lá, no mesmo lugar, até o fim da peça, talvez aqui haja esperança, talvez ele não tenha morrido, cancelem o coveiro. O coração ainda bate.

(…)

ele pensou que agora estava
definitivamente morto
quando o legista disse:
não
não levem agora
o coração ainda bate
(…)

(Muita hora nessa calma)

Miró talvez seja a resposta mais imediata e ainda um pouco crua e, por isso tão verdadeira e bonita, ao que estamos vivendo. A resposta e a contribuição do Magiluth, porque é o que eles sabem fazer, continuar fazendo teatro, mesmo que o mundo lá fora esteja acabando como foi em O ano… ou nos experimentos durante a pandemia. Se, como dizem na dramaturgia, tentativa é a palavra mais importante no espetáculo, não é também uma das que mais fazem sentido hoje? Se vivenciamos tantas mortes, se perdemos Miró, como trabalhamos esse luto coletivamente, fazemos viva a sua obra e o seu legado, e entregamos juntos beleza e arte? A cidade pega fogo há bastante tempo. Foi o cigarro que eu acendi? Que acendemos juntos e não soubemos como apagar? Agora é hora de voltar a construir a cidade, oxalá sobre bases mais sólidas.

*Os poemas ao longo do texto não necessariamente são citados na íntegra no espetáculo.

Ficha Técnica:
Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Miró: Estudo nº2
Quando: 9 de maio, terça-feira, às 20h, no Teatro de Santa Isabel (ingressos esgotados)
13, 14, 20 e 21 de maio, sábado e domingo, às 19h, no Teatro Apolo (ingressos à venda)
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada), à venda no Sympla

Estudo nº1: Morte e Vida
Quando: 16, 17, 18 e 19 de maio, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada), à venda no Sympla

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Olé, olé, olá, Severino, Severino
Critica do espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida,
do Grupo Magiluth

Estudo-N°1- Morte e Vida. Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Estudo-N°1- Morte e Vida. Mário Sergio e Parmera, Erivaldo no chão. Fotos: Vitor Pessoa  / Divulgação

A montagem do Grupo Magiluth, com direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi, explora muitas camadas. 

Giordano Castro, em primeiro plano na peça-palestra

Busco dialogar com o Estudo Nº1: Morte e Vida, espetáculo do pernambucano Grupo Magiluth. Esse desejo de interlocução traça um movimento contrário ao predomínio de intolerância, condenações e cancelamentos desses tempos. Minha vontade é sintonizar com as possibilidades de trocas, perseguindo delicadezas e ludicidade, mesmo para tratar de concretos de durezas, de barbarismos. Esperançando ampliar o círculo. Esse texto que me atravessa, é passado pelo rio Capibaribe, imagino que por outros rios: Tietê, Sena, Tejo, até o Riacho do Ipiranga (onde, conta a História oficial, foi gritada a independência do Brasil) e carrega muito da hidrografia soterrada. É um ensaio ansioso, repleto de incômodos, como o que sinto há semanas no braço direito de tendinite e outras dores de viver mais difíceis de traduzir.

O Grupo Magiluth – com seus atores Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral, Lucas Torres e Pedro Wagner – é uma trupe de homens, rapazes, meninos que fazem arte, que performam, que jogam cenicamente, posicionados (e movendo-se) de lugares para problematizar as masculinidades, o patriarcado, as questões estruturais que escamam de seus corpos, descontruindo. Observo esse universo, não o capto em sua plenitude movente, não só por ser mulher, mas por toda experiência interseccional de identidade. Somos subjetividades não totalmente decifráveis. E a arte faz um mergulho em águas profundas, oferece e desfaz os sentidos em sequência, em paralelo ou de maneira aleatória.

Os artistas do Magiluth, seu diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi, e o assistente de direção e diretor musical Rodrigo Mercadante, essa turma toda cria, de modo arbitrário, os recursos expressivos a partir da peça-poema Morte e Vida Severina – Um Auto de Natal, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) para compor um caleidoscópio das ruínas contemporâneas.

A palavra arbitrariedade vem determinada para falar de escolhas que não seguem réguas, testa outras possibilidades. Tem a ver com impacto da sonoridade da língua no corpo, na caixa preta, nas distorções de vozes da tecnologia digital. Convoca materialidade e seu oposto. Saussure sussurrando. Imagem acústica, representação da palavra. A partir das pontes do Recife desafia regras para desestabilizar certezas – de ideias, de soberanias, das cenas.

Percebo o trabalho do Magiluth erguido feito um ensaio como estimou o filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão Theodor W. Adorno: um jogo aberto de linhas temáticas que se cruzam a partir da ideia de migração, que expõe tensões e contradições do real. Tudo isso encarado de frente, sem o impulso de sublimação. Perguntas e provocações são expostas, num caldeirão que ferve naquele território.

E agora me vem fortemente a imagem da intensa Elis Regina (1945 – 1982), uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, cantando Aprendendo a jogar, uma música de Guilherme Arantes. [Dig dig dig dig dig dagá ah ah Dig dig dig dig dig dagá ah ah (…) Vivendo e aprendendo a jogar … / Nem sempre ganhando / Nem sempre perdendo / Mas, aprendendo a jogar (…) Água mole em pedra dura / Mais vale que dois voando (…)]. No show Saudade do Brasil, de 1980, Elis usava uma camiseta preta, com a imagem da bandeira do Brasil ao centro, escrito “Elis Regina”, no lugar de “ordem e progresso”. Como acontece com frequência nos regimes autoritários, a Ditadura Militar proibiu a intérprete de usar o figurino, numa demonstração feérica de Censura. Eita danou-se. Estou fazendo a minha dramaturgia. Tem vídeo na internet da cantora, que morreu há 40 anos num 19 de janeiro.

Parmera em primeiro plano e Má´rio Sergio ao fundo

Ao se arriscar, Estudo Nº1: Morte e Vida rejeita as formas bem-acabadas, dá um passo além em alguma direção, mas reaproveita antropofagicamente outros processos / estratégias de montagens anteriores da trupe e os atritos do real. O contato com o objeto disparador – a peça-poema de João Cabral – ganha diversas tessituras, amarrações, entradas, desenvolvendo uma rede que aponta para outras ressonâncias, ampliando alcances da obra cabralina.

Dito de outro jeito, a peça é uma transpiração de vitalidade cênica de artistas que sobreviveram / sobrevivem “agarrados a caixas de isopor” neste país afundado em tantas desgraças. É grito por dignidade, que segue de mãos dadas com poemas de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina e outros como O Rio (ou Relação da Viagem que faz o Capibaribe de Sua Nascente À Cidade do Recife) e O Cão Sem Plumas. É forte nos nexos com o real – de que somos muitos Severinos –, da uberização dos trabalhadores às consequências palpáveis do Antropoceno, essas ações destrutivas cometidas contra o planeta Terra.

O abraço com João Cabral é fato e ficção. Está no tom crítico nos vínculos aos problemas sociais, no mergulho no contexto humano e geográfico do Nordeste brasileiro, que espelha em estilhaços outros nordestes do mundo. As palavras que ressaltam o cotidiano de quem se vira com o mínimo compõem quadros inspirados e inspiradores. O inabalável trabalho artesanal cabralino é destacado pelo Magiluth em idas e vindas de significâncias. A abdicação do sentimentalismo lírico é valorizada pelo grupo.

A experiência de assistir ao espetáculo está plena de pequenos abalos sísmicos e da constatação no que se transformou o humano, do alto de sua arrogância. E vem numa construção de imagens de intensa plasticidade, sejam elas para os olhos, ouvidos ou outros sentidos.

Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Publicado em 1955, Morte e Vida Severina é um poema de gênero lírico que traça o percurso de Severino, um migrante nordestino que sai do Serra da Costela, (local fictício, mas com características idênticas ao sertão pernambucano) em busca de uma vida menos “Severina” no Recife capital. Na seca região “magra e ossuda” onde a personagem morava, morre-se de “morte Severina”: “que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte; de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)”.

Sabemos que migrações existem desde sempre. Nas melhores hipóteses, por curiosidade, pela aventura, pela descoberta. Há outras, não tão prazenteiras. Situações de seca ou alterações climáticas graves e ausência de políticas públicas de enfrentamento dessas situações, a exclusão social e a falta de condições para a sobrevivência. As migrações, que são também movimentos, revelam múltiplas “geometrias do poder”. A montagem do Magiluth obliqua que as mobilidades dos sujeitos contemporâneos são desiguais e faz cintilar palavras como injustiça, miséria, fome, política, violência, fronteiras materiais e simbólicas, poder, uberização.

Pensado em fragmentos, que reflete de maneira multifacetada um painel de forma espiralar (salve Leda Maria Martins),– do cruzamento de ciclos do passado, presente e futuro – esse Ensaio nº 1 desmantela a obviedade do que se pode se entender como Severino, Morte e Vida, Nordeste, nordestino, artista nordestino, João Cabral de Melo Neto. De novo o farol de Adorno: para o filósofo o ensaio se situa na fronteira entre a filosofia e a arte. Rigor e representação não-idêntica, revelando na porosidade as contradições.

Em estudo publicado em 1950, que pensava a pintura de Joan Miró, João Cabral já disse que desaprender é fundamental, sair do automatismo da tradição. Quebrar com procedimentos e hierarquias de valor na arte e na vida. Desaprendo frente à cena do Magiluth.

No campo do poema, João Cabral traça uma constelação de elementos heterogêneos. Ao estudar a obra do poeta pernambucano, o filósofo Benedito Nunes detecta que nesta máquina do mundo, que é o poema, Melo Neto trabalha à maneira de um tear que tece num sentido e destece noutro os fios de diversas tramas complicadas. Em O dorso do tigre (1969) Nunes aponta que Cabral fabrica e destrói, agrega e desagrega, mediante operações diferentes, as várias peças da realidade social e humana. Enxergo essas ações cabralinas no palco.

Acompanhemos o curso do rio, o discurso-rio do Marigluth.

Os microfones, as projeções, o Magiluth joga com a ideia de peça-palestra

A bandeira de Kiribati e as mãos levantadas num pedido de socorro em referência a outro espetáculo do grupo

Na peça são explorados quatro marcos estilísticos: Metateatro, Épico, Documental e pós-contemporâneo, em acúmulos e partículas. Nessa dança estética, a correnteza traz memória de outras obras magiluthianas: Viúva, porém honesta; O ano que sonhamos perigosamente; Dinamarca; Aquilo que meu olhar guardou para você; 1 Torto. São muitas camadas, numa polifonia que aponta para dentro, como a cena do modo de viver hygge (um bem-estar tão acolhedor dos privilegiados) ou o foco de luz, uma reivindicação de Mário Sergio em outra encenação que agora chega tranquilo.

A polifonia aponta para Kiribati (ou Quiribati), na real um arquipélago no Pacífico Central, com quase 120.000 habitantes. Assinala também os Severinos-Thiagos, Severinos-Galos, Severinas-Pretas. Dos rios que correm dentro de cada um de nós. De Kiribati, já em 1989, um relatório da ONU alertou, que esse seria o primeiro país a ser devorado, em decorrência da elevação do nível dos mares, ou seja pela mudança climática. Existem outras correspondências com o Severino saído da seca, como a escassez de água potável.

Um humor carregado da gozação pernambucana (irônico, sagaz, malicioso, diria autoimune, cruel, que manga inclusive de nossa impotência; talvez Roger de Renor possa traduzir melhor essa especificidade de humor), abarca o palco, em fluxos, mirando efeitos variados: gerar reflexões e críticas sociais, produzir jogos num cruzamento dos procedimentos cênicos das peças contemporâneas, desafiar qualquer método absolutista.

Quando navega nas águas épicas traça um paralelo ente a palavra fome como necessidade de comer e o estado de morrer de fome, defendido como um assassinato. O tom mais político lembra da montagem de Morte e Vida Severina, pelo TUCA, em 1965, que ganhou prêmio no festival de Nancy, na França. Esquadrinha que os privilégios de hoje são consequência da usurpação de antes.

Punk rock, hardcore, sabe onde é que faz?
Lá no alto José do Pinho. É do caralho!
Tem Devotos, 3° Mundo que botam pra fuder
Todo sentimento obtido em seu viver…

Quando chegar ao Recife essa cena deve explodir. O cenário é… Em 1988, Cannibal, Neilton e Celo Brown, formaram a banda de punk rock e hard-core Devotos do Ódio (tempos depois o ódio do nome foi suprimido), no Alto José do Pinho, bairro da zona norte do Recife. A atuação do grupo foi fundamental para a mudança do perfil do morro. Com a assinatura de contrato com a Gravadora BMG, e o lançamento do disco Agora tá valendo, de 1997, a banda chega ao sucesso. Mais de 20 anos depois, o Grupo Magiluth constata que os direitos e lucros desse disco estão reservados à gravadora Sony Music, que em 2004 comprou a BMG. O Magiluth assinala: “Nem tudo o que o trabalhador produz a ele pertence.”

É tudo muito engenhoso. A trupe convoca Marx, sem citar o Karl, expõe os paradoxos e contradições do capitalismo com os jogos do próprio teatro. Somos atingidos, alguns de nós, pela ave-bala. O ouro-azul do jeans vem problematizar a noção de independência econômica, de autonomia financeira.

O polo industrial de jeans, em Toritama, é uma espécie de China com um carnaval no meio. Esse ouro-azul está na roupa dos rapazes, e está repleto dos questionamentos levantados pelo documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes. O filme não é uma apologia ao empreendedorismo, ou não somente, nem um réquiem saudosista de uma Toritama mais rural. Seus produtores de jeans batem no peito com orgulho que são “donos do próprio tempo”, mesmo trabalhando 12 horas ou mais por dia. É… são muitas dobras.

Em uma potência assombrosa, o ouro-azul se congrega com os entregadores de aplicativo, entre eles Thiago Dias, que trabalhava 12 horas por dia e morreu durante uma entrega aos 33 anos, vítima de AVC. Fato que se conecta com as Ligas Camponesas e os assassinatos de seus líderes.

Essa cena do canavial, que cruza Michael Jackson com maracatu rural, vale muitas teses

Michael Jackson do Canavial, um vídeo que pode ser encontrado no Youtube, fornece rico material da cultura que se movimenta, sem abandonar totalmente a tradição, mas utilizando as possiblidades do presente. O Magiluth confronta o caboclo de lança com o vídeo, em que a voz do astro do pop anima o trabalhador rural a seguir seus passos na dança. Ele canta que “Billie Jean is not my lover”, ela é apenas uma garota e o menino não é seu filho. Mais uma questão das mulheres não reconhecidas, e essa e uma problemática muito complexa, que apenas pontuo.

O Estudo Nº1: Morte e Vida utiliza as tecnologias, as projeções, justaposições. Quebras de fronteiras se alimentam das práticas teatrais, subverte, testa combinações. É interessante saber que numa entrevista 1998, João Cabral disse que “gostaria de ter sido cineasta”. Sua composição poética aproxima-se das teorias da montagem do cineasta Eisenstein ou do teatrólogo Bertolt Brecht.

O Magiluth expõe dados de pesquisa da internet sobre refugiados e migrantes que tentam fugir de guerras e tentar asilo oficial em países europeus. Em botes e em embarcações superlotadas e sem as mínimos condições de segurança, esses humanos arriscam as próprias vidas (muitos barcos afundaram) sem nenhuma garantia de asilo oficial. Para outros, a travessia é um negócio altamente lucrativo, que pode render por embarcação US$ 1 milhão. São muitos tentáculos do capitalismo, em que a vida importa pouco. Ponte com Brecht.

Deslocamento é uma questão discutida na peça

Em uma cena, depois de anunciar que Kiribati sumiu do mapa, afundou e de já ter citado um trecho do poema O Rio (Para os bichos e rios / nascer já é caminhar), Giordano propõe um jogo a Mário Sergio e Parmera. Os dois, como representantes das duas maiores potências, terão que chegar a um acordo para salvar o mundo. É um diálogo surreal, em que nenhuma parte cede, e a conversa vai ficando cada vez mais insana, com proposta de matar populações inteiras de uma determinada região. Em um jogo de afrontamento direto, o coletivo expõe o esfacelamento da ética, as engrenagens de manutenção de poder e a guerra como saída para o impasse defendida sempre pelos capitalistas.

Todos os dias temos notícias de demonstrações de desumanidades. Em 24 de janeiro o congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, foi assassinado a pauladas por um grupo de homens, na barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Moïse teria ido cobrar o pagamento de diárias atrasadas no quiosque em trabalhava por comissão. No dia 19 de janeiro, o fotógrafo suíço René Robert morreu aos 84 anos de hipotermia, após longa exposição ao frio intenso. Ele desmaiou em uma rua de Paris e ficou sem ajuda por nove horas. Esses dois fatos não são citados na cena do Magiluth. Mas ecoa no ar como espirito desse tempo, sim. 

A humanidade está doente, não há dúvidas. Intolerância, racismo e xenofobia são sintomas dessa deterioração.

Mas apesar de todo esse quadro difícil, Estudo Nº1: Morte e Vida aponta para / e aposta na vida. No seu desejo de convívio, o grupo convoca o espectador a atuar no jogo cênico no entusiasmado grito dos grevistas. Severino está sinalizando alguma saída. Olé, olé, olá, Severino, Severino.

Depois de tantas palavras, o espetáculo prossegue reverberando de afetos.

 

* Assisti ao espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida na estreia, dia 28 de janeiro e no domingo, dia 30 de janeiro.
** Nessas duas sessões, o diretor-assistente/ diretor musical Rodrigo Mercadante substituiu Lucas, que estava positivado com Covid-19 naquela semana. 

Ficha técnica:
Criação e realização: Grupo Magiluth
Direção: Luiz Fernando Marques
Assistente de direção e direção musical: Rodrigo Mercadante
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
Produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite
Produção local: Roberto Brandão

Estudo Nº 1: Morte e Vida, com o grupo Magiluth
Quando: De 28 de janeiro a 6 de março de 2022, sextas e sábados às 21h, domingos, às 18h
Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP)
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Classificação indicativa: 16 anos

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