Arquivo do Autor: Pollyanna Diniz

Querido público pagante, sobrevivente de guerra
Crítica de Cabaré Coragem

Cabaré Coragem é o primeiro espetáculo do Galpão pós pandemia de covid-19. Foto: Humberto Araújo

Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.

Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.

Teuda Bara é madame, a dona do cabaré do Galpão. Foto: Humberto Araújo

A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.

Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.

Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.

O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.

Singura (Inês Peixoto) nos dá as boas-vindas neste cabaré brechtiano. Foto: Humberto Araújo

As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.

Espetáculo atualiza debate sobre luta de classes. Foto: Humberto Araújo

O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.

Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.

Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.

Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.

O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.

O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.

Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.

Discussão sobre etarismo permeia a encenação. Foto: Humberto Araújo

Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.

No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie MesserA balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.

Galpão, grupo mineiro, é um dos principais representantes do teatro de grupo brasileiro, em atuação há 42 anos. Foto: Humberto Araújo

A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.

O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.

O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Cabaré Coragem no Festival de Curitiba 2024. Foto: Humberto Araújo

Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu

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Atrizes orquestras e teatralidade exposta*
Crítica de Ana Lívia

Ana Lívia, espetáculo da Cia. BR116, tem texto de Caetano W.Galindo

Até Ana Lívia, peça da Cia. BR116 com texto de Caetano W. Galindo, que estreou no ano passado em São Paulo e agora participou do Festival de Curitiba, Bete Coelho e Georgette Fadel nunca haviam trabalhado juntas. Vê-las em cena, interagindo afiadíssimas, como se só elas duas – e cenário, música, iluminação – fossem uma orquestra inteira com arranjos estranhos e belos, é um dos primeiros impactos do espetáculo.

Quando a peça vai acontecendo, quem se permite embarcar na encenação pode ter o corpo impactado pela vibração e experimentação das linguagens literária e teatral e descobre, por fim, que é o próprio teatro, desnudo, que se dá a ver ali, de modo febril e pulsante, desejoso de interação, solicitando que estejamos juntos a cada nova partitura dessa música.

Nessa encenação, na qual respiramos no mesmo ritmo das atuações, pode-se considerar irônico que a incomunicabilidade seja uma das questões latentes no diálogo entre as atrizes. Como em muitas relações que se desdobram no tempo, essas duas estão naquele espaço não se sabe desde quando, talvez desde crianças, talvez sejam duas personagens, ou uma só. Mas o que se estabelece entre elas vai além da apreensão formal de sentidos e, apesar disso, a escuta e, consequentemente, o diálogo, não se torna efetivamente viável. Uma delas quer muito contar algo à outra, ler o texto que acabou de receber, a outra sente que não tem oportunidade de falar, que mesmo quando fala não é ouvida.

Ainda assim, é como se respondendo não necessariamente, ou pelo menos não unicamente, ao que uma diz à outra, os corpos reagissem aos estímulos numa sincronia cronometrada. As duas se sucedem, até se interrompem, falam a mesma frase ao mesmo tempo numa intimidade desconcertante, disputam como se estivessem numa batalha, mas não se borram.

Bete Coelho está em cena e também assina codireção. Foto: Annelize Toledo

Georgette Fadel. Foto: Annelize Toledo

Ao mesmo tempo em que cada uma possui características bastante específicas na encenação, ao ponto de um dos melhores momentos do espetáculo ser justamente a cena em que uma imita a outra, elas também estão imbricadas como se pudessem ser uma só. Há um espelhamento potencializado pela experimentação da linguagem cênica e da linguagem literária, além do apuro técnico, do domínio de cada palavra, de cada suspiro e silêncio, de cada gesto colocado no momento exato pelas atrizes.

Se cenário, iluminação, figurino e muitas vezes até o texto sugerem uma sisudez, há cenas de humor escancarado, nas quais os ensaios das atrizes se estabelecem como espetáculo pronto à interação com a plateia, aos aplausos do público. As mudanças de registro, saindo muitas vezes radicalmente, sem escalas, do gesto contido ao exagero, ajudam na composição do humor nessa tragicomédia. É um corpo disposto ao risco do jogo e do caricatural em suas possibilidades de expressão, um risco teatral sabidamente calculado em suas filigranas.

Nesse sentido, a cenografia de Daniela Thomas, parceira de trabalho de Bete Coelho há mais de três décadas, deixa a caixa do teatro exposta ao público, nessa reiteração de que o que estamos acompanhando é teatro, uma configuração completamente diversa das últimas montagens da companhia, que tiveram cenografias assinadas por Thomas e Felipe Tassara. Em Mãe Coragem (2019), um espetáculo grandioso, o ginásio do Sesc Pompeia foi transformado para receber a encenação que era também uma instalação cenográfica, um campo de batalha, uma arena, planos distintos, público dividido em vários locais no espaço. Em Molly Bloom (2022), o cenário era uma cama, disposta num plano mais alto, mas que incorporava possibilidades de difusão das imagens dos atores: o reflexo no espelho, as projeções ao vivo em várias telas.

Em Ana Lívia, o principal elemento cenográfico é uma longa mesa formada por praticáveis de teatro e três cadeiras e, nesse reforço do local em que estamos todos juntos, as atrizes no palco, nós na plateia, vemos os refletores da iluminação de Beto Bruel expostos, além de todo o ambiente do palco, as laterais, o fundo.

Quais as nossas expectativas quando vamos ao teatro? A todo tempo, Ana Lívia faz questão de lembrar que o que estamos acompanhando ali é teatro, apontando para um caminho que reconhece e explora a própria natureza da linguagem.

O espetáculo é estruturado a partir de uma teatralidade acentuada pela reiteração da linguagem teatral. Mesmo que não que precisasse, a teatralidade está posta, mas o que essa operação propicia aos espectadores?

Ao insistir na exposição da teatralidade, o espetáculo fricciona as expectativas convencionais em relação ao que um espetáculo de teatro pode ser. Esse constante lembrete da artificialidade da representação talvez funcione como um mecanismo de distanciamento, convidando os espectadores a uma postura mais analítica e menos absorvida emocionalmente pelo drama.

Caetano W. Galindo, professor curitibano, tradutor especialista em James Joyce, em sua primeira incursão como dramaturgo (mas em seu segundo trabalho com Bete Coelho, já que assinou a tradução e a consultoria dramatúrgica de Molly Bloom), oferece ao público a possibilidade de enveredar por múltiplas interpretações, além de propor um exercício formal de linguagem. A estrutura não linear supera a tradição do teatro dramático, questionando a expectativa de uma narrativa coesa e fechada. Essa estrutura aberta estimula os espectadores a participarem ativamente na construção desses significados, o que pode tanto desafiar quanto expandir o horizonte.

É um texto que envereda por polos duais: ao tratar de teatro e de ficção, faz pulsar a realidade; ao falar de morte, questiona o que fazemos e como encaramos a vida. Qual a versão real da história do quase afogamento de um cachorro? Existe verdade? A imagem da água está sempre presente, seja pelo barulho de mar que se faz ouvir insistente na mente das atrizes, seja o cenário de um lago ou o rio.

O texto e aquelas atrizes nos fazem questionar como lidar com a inquietude, o desassossego, a iminência de que tudo pode mudar a qualquer momento. O que podemos controlar? No texto de Caetano W. Galindo, quase nada. E essa é uma característica que o potencializa, porque é como se escapasse das nossas mãos, mas permanecesse ecoando no ouvido e no corpo inteiro pelo modo como foram concatenadas as palavras.

A construção do texto privilegia a sonoridade, o encontro entre as palavras, a habilidade na construção do diálogo que não necessariamente tem como intenção possibilitar a comunicação. A experimentação do que um som promove no corpo das atrizes e na plateia. Há, por exemplo, um jogo de troca de palavras com sonoridades parecidas, mas sentidos completamente diferentes, que enriquece e deixa os diálogos ainda mais interessantes e curiosos.

Espetáculo faz exercício de linguagem. Foto: Annelize Toledo

Na primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba, no último dia 26, o Teatro da Reitoria estava lotado e, dependendo do lugar em que você estivesse sentado, o áudio das atrizes parecia baixo, de modo que não foi fácil acompanhar o que elas diziam em todos os momentos da peça. Mas o texto, mesmo que não ouvido em sua integralidade, proporciona saltos às cenas quando reverbera no corpo das atrizes numa expansão deliberada da oralidade ao corpo.

As atrizes estão sempre se referindo ao autor do texto que elas estão ensaiando, um “ele” indeterminado. A terceira cadeira na mesa permanece desocupada, discreta, quase imperceptível. As palavras desse autor, escritas a pedido delas, estão grafadas no caderno azul ou chegam pelo celular. E talvez nessa operação que, mais uma vez, reforça a teatralidade, a autoria desse texto para aquelas atrizes não está circunscrita apenas ao que elas querem dizer, mas em como elas podem dizer. Voltamos então nesse circuito, que é cíclico e parece não ter fim, um ensaio que é vida representada, que pode se suceder indeterminadamente, à qualidade de presença e ao jogo entre essas atrizes. Atrizes-orquestras-inteiras ocupando o palco.

O espetáculo Ana Lívia foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

A sonoridade é um dos elementos importantes na peça. Foto: Annelize Toledo

Ficha técnica:

Texto: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas
Codireção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes
Elenco 1: Bete Coelho e Georgette Fadel | Elenco 2: Bete Coelho e Iara Jamra
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Assistente de direção: Theo Moraes
Direção musical: Felipe Antunes
Assistente de direção musical: Fábio Sá
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Diretor técnico: Rodrigo Gava
Desenho de luz: Beto Bruel
Assistente de luz: Sarah Salgado e Pamola Cidrack
Operadora de luz: Patricia Savoy
Operador de som: Rodrigo Gava
Contrarregra: Theo Moraes
Designer gráfico: Celso Longo + Daniel Trench
Diretor de comunicação: Maurício Magalhães
Assessoria de imprensa: Fernando Sant’Ana
Design de mídia social: Letícia Genesini
Assessoria jurídica: Olivieri e Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de ensaio: CASAVACA
Produtora executiva: Mariana Mantovani
Direção de produção: Lindsay Castro Lima

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Shakespeare esteja conosco!
O relato de uma substituição plena de afeto
e amor ao teatro*

José Roberto Jardim e Paulo de Pontes no Teatro de Santa Isabel, em 18 de novembro. Foto: Marcos Pastich

Tay Lopez substituindo Paulo de Pontes no dia 19 de novembro. Foto: Arquivo pessoal

Terminou neste domingo, 26 de novembro, a 22ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN). Infelizmente, o Satisfeita, Yolanda? não conseguiu acompanhar de perto a programação, pois não havia recursos para arcar com o trabalho da crítica. É uma pena. Pode ser tema de conversas e reflexões vindouras.

Mas, desde o dia 16, histórias aconteceram: nos palcos e fora deles. Muitas, nem ficamos sabendo, são quase restritas, tiveram como cenário coxias, plateias, bares pós-espetáculo. Mas uma delas, em especial, nós soubemos e achamos que merecia ser registrada.

Sueño é um espetáculo livremente inspirado em Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare, com direção e dramaturgia do pernambucano Newton Moreno, um dos homenageados do FRTN ao lado de André Filho.

A peça de 2h30 de duração, dois atos, estreou em São Paulo em novembro de 2021, na retomada do teatro presencial, nos jardins do Teatro João Caetano. Em agosto deste ano, fez uma temporada no Itaú Cultural.

Um dos destaques do elenco é o pernambucano Paulo de Pontes, que voltou ao Recife há alguns anos, depois de duas décadas morando em São Paulo. Paulinho, como é conhecido, brilha em cena. E havia uma grande expectativa por sua apresentação em casa, no Teatro de Santa Isabel.

Imaginamos que seria uma consagração, merecida. Mas as coisas nem sempre estão no nosso controle. E no dia 18 de novembro, logo depois da primeira cena de Paulo de Pontes, o espetáculo foi interrompido. O ator passou mal e não conseguiu continuar a peça.

Mesmo assim, no dia seguinte, o espetáculo aconteceu: Paulo de Pontes foi substituído por Tay Lopez, ator pernambucano que mora em São Paulo, mas tinha acabado de gravar um filme na Paraíba e estava de férias na cidade. Lopez fez uma leitura encenada do texto.

Diante dessa história cheia de inesperados e de ode ao teatro e a sua efemeridade, pedimos ao ator Tay Lopez que, no calor do momento, na segunda-feira, dia 20 de novembro, escrevesse um relato de experiência. Queríamos ouvir como foi viver tudo isso, deixar essa história registrada e compartilhá-la com outras pessoas.

É esse o texto que postamos aqui.

Obrigada, Tay Lopez, por atender ao convite de Newton Moreno e ao nosso.

Paulo de Pontes está bem.

Infelizmente, não conseguimos registros de imagem profissionais da sessão do dia 19 de novembro, então publicamos fotos amadoras, feitas de celulares por amigos que estavam na plateia.

“Shakespeare esteja conosco! O relato de uma substituição plena de afeto e amor ao teatro” *

Por Tay Lopez

Sábado, 18 de novembro, Festival Recife do Teatro Nacional, importantíssimo festival da cidade, que foi retomado bravamente este ano.

O cenário é o Teatro de Santa Isabel, lugar tão significativo para a cidade e para mim: me recordo quantas histórias vivi nesse teatro!

Peça: Sueño, do consagrado autor e amigo Newton Moreno, homenageado pelo festival juntamente com André Filho.

No foyer do teatro, um encontro festivo. Amigos de longa data, afetos, abraços. Feliz em estar na cidade de férias. Feliz em estar com minha mãe para vermos juntos uma peça que tanto gosto e que eu já tinha visto duas vezes em São Paulo. Há 2 anos, na estreia, retomada do teatro presencial, vi a montagem no Teatro João Caetano. E, há poucos meses, em agosto, revi na sua segunda temporada, no Itaú Cultural.

Espetáculo começa no Santa Isabel. Paulo de Pontes, irmão, amigo, confidente, entra em cena com seu Shakespeare maravilhoso. Plateia na mão.

Todos estavam na expectativa em ver Sueño na cidade, mas o espetáculo é interrompido, pois Paulinho não conseguiu voltar ao palco depois da primeira cena. Ela passou mal e precisou ser atendido por especialistas em um hospital próximo.

Vou ao camarim, procuro informações, me comunico com a família, com amigos e fico sabendo que, graças a Deus, não é nada grave. Volto para casa, durmo. Sonho com Paulinho. Estamos indo fazer um espetáculo juntos em algum lugar.

Acordo, procuro saber notícias sobre a saúde de meu amigo e recebo informações de que tudo está melhor, ele está bem, tinha sido só um susto. Fico aliviado.

Horas depois, o telefone toca. Newton Moreno me convida, sem rodeios, para uma tarefa. Na verdade, uma missão: substituir Paulo de Pontes. Não era um convite para encenar os mesmos personagens de Paulinho, o que seria impossível, mas para fazer uma leitura encenada.

Moreno me deixa muito à vontade para dizer não. Mas como dizer não para amigos tão queridos? Como não aceitar esse desafio? Como não homenagear Paulinho e tranquilizá-lo em saber que o espetáculo, de alguma forma, irá acontecer? Respondo que sim. E que essa decisão, na verdade, tinha que ser mais do grupo do que minha.

Newton fica feliz, agradece e já me manda o texto on-line. Domingo, 19 de novembro, 11h30, começo a ler a dramaturgia de Sueño.

Pouco tempo depois, decido parar. Vou à praia, mergulho no mar e volto. Tomo banho, almoço e sigo para o teatro.

Chegando lá, fui recebido com tanto amor, tanta atenção, que o mínimo que eu poderia fazer era tentar responder à altura. Tanta gente que admiro nesse elenco, nessa equipe.

Tay Lopez, José Roberto Jardim e Sandra Corveloni. Foto: arquivo pessoal

O espetáculo que seria às 16h foi transferido para às 20h.  Ensaiamos as cenas. Alguma ideia de marcação, de intenção, mas de liberdade e improviso.

Newton, como maestro, conduzindo tudo. Sandra Corveloni e José Roberto Jardim me ajudando nas cenas em que estaríamos juntos. Leopoldo Pacheco assessorando com os figurinos. Erica Rodrigues nos movimentos, Gregory Slivar nas intervenções musicais, Simone Evaristo na força puckiana. Almir Martines no olhar amoroso. Michele Boesche com palavras de encorajamento. Todos me passando confiança e acreditando que tudo daria certo.

Fui com serenidade, amor e espírito aberto para que a magia do teatro acontecesse naquela noite. “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia”, frase de Shakespeare, primeiro personagem de Paulo de Pontes.

Findado o ensaio, vou ao camarim. Léo Pacheco faz a minha maquiagem. Separamos os figurinos.

Paulinho me manda mensagem. Já está em casa e se recuperando bem. Eu tenho que dizer que ainda nutria esperanças de que ele poderia fazer a peça, mas não.

Fazemos a famosa roda de teatro. Dedicamos a apresentação a Paulinho e jogamos ao etéreo a força que nos guiaria naquela sessão.

Eis que a sala é aberta, o público se acomoda. Terceiro sinal e lá vamos nós. O público é avisado da minha entrada em substituição e do fato de eu estar com o texto na mão.

Primeira entrada. O público, muito generoso, embarca na experiência de ver uma sessão única. Teatro já é único, mas nesse dia, mais do que nunca, seria único para os outros atores que estavam em cena também. Um elemento novo estava ali. Um novo corpo, uma nova voz, um novo ritmo. Sobretudo, a memória da contracena com um jogador tão pleno que é Paulo de Pontes.

Paulinho é gênio! E sei de perto a importância que essas apresentações em Recife tinham para ele. Puxei meu amigo em meus pensamentos e tentei trazê-lo para perto. Sim, estávamos juntos. E assim aconteceu. Primeiro ato, segundo ato, público disponível.

Foi emoção à flor da pele. Que texto belo o de Newton! Tantas camadas.

Foi divertido, na medida do possível. Foi de verdade, com olhos e ouvidos presentes. Foi o que pude fazer. Foi teatro, jogo, “to play or not to play?”. Entre o “ser ou não ser”, escolhemos o ser e fomos. Um só corpo. Como o teatro tem que ser.

Sinto que só agora estou acordando desse grande Sueño. Torço muito para que o espetáculo volte ao Recife, com Paulo de Pontes no lugar que lhe cabe, mas preciso dizer o quanto foi uma experiência inesperada, louca e incrível. Teatro! Evoé!

Registro no palco do Teatro de Santa Isabel. Foto: arquivo pessoal

 

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Recife perde André Filho, um trabalhador do teatro

André Filho morreu no último sábado, aos 62 anos. Foto: reprodução blog Fiandeiros

O ano era 2016. Vento forte para água e sabão, oitavo espetáculo e o segundo infanto-juvenil da Companhia Fiandeiros de Teatro, estreava no Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife. Numa entrevista ao Satisfeita, Yolanda? o diretor André Filho dizia que o tema mais significativo da peça era a morte, um assunto ainda repleto de tabu nas peças voltadas à infância.

“Resolvi seguir o caminho dessa discussão justamente pela contramão, ou seja, falar sobre morte a partir da vida, o sopro da criação, a relação com o divino que vem de nosso pulmão. Procurei contrastar o macrocosmo e o microcosmo, aqui simbolizado pelo clássico e pelo popular, respectivamente, mas sem mensurar valores de importância. Vida e morte, luz e sombra, ausência e conteúdo, tudo se complementa, assim como tudo que existe no universo.”

O foco na atuação e na dramaturgia, a musicalidade, a delicadeza e a sensatez marcam o trabalho de André Filho, encenador, ator, músico, diretor musical e dramaturgo, um trabalhador do teatro, que faleceu no último domingo, 10 de setembro, aos 62 anos, vítima de complicações de uma pneumonia.

André deixa a esposa, Daniela Travassos, a filha Maya, de 1 ano, e o legado de um trabalho duradouro e consistente nas artes da cena de Pernambuco, que inclui a Companhia de Teatro Fiandeiros, que atua há 20 anos no Recife e foi criada em parceria com Daniela e Manuel Carlos, e a Escola de Teatro Fiandeiros, que existe há 13 anos, e ocupa um espaço significativo na iniciação e na formação artística na cidade.

Manuel Carlos, André Filho e Daniela Travassos, fundadores da Cia de Teatro Fiandeiros. Foto: Eduardo Travassos

Formado em Matemática pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), André Filho fez o Curso de Extensão Musical, terminado em 1989; o curso básico de Formação do Ator oferecido pela Fundaj na década de 1990; e o curso de Formação do Ator da UFPE.

Na segunda metade da década de 1980, assinou muitas direções musicais ou composições de trilha para espetáculos que tinham a direção de José Manoel Sobrinho: Cantarim de Cantará (1985), O mágico de Oz (1986), Avoar (1986), O menino do dedo verde (1987), Com panos e lendas (1987) e Cantigas ao pequeno príncipe (1996). “Fico pensando como seria minha trajetória de encenador se ele não tivesse surgido como diretor musical, com quem eu dividi muitas construções de espetáculos. Ele aprendeu a lidar com o ator e a atriz nessa perspectiva do canto, nessa relação íntima do teatro com a música. André tinha um foco que era pensar a música no espetáculo cênico como dramaturgia e isso somava muito ao trabalho dos encenadores com quem ele trabalhou”, diz José Manoel.

A última experiência de trabalho de José Manoel Sobrinho com André foi no espetáculo Sistema 25, direção de Sobrinho, em que André Filho assinou duas composições. “No caso do Sistema 25, ele não era o diretor musical, era Samuel Lira, mas quando ele compôs,  estudou as cenas e veio discutir comigo os arranjos, porque ele pensava o arranjo como processo dramatúrgico”, complementa.

Nas experiências como ator, o diretor mais frequente foi Antonio Cadengue (1954-2018), na Companhia Teatro de Seraphim: André Filho atuou em peças como Em nome do desejo (1990), O jardim das cerejeiras (1990), Senhora dos Afogados (1993), Os biombos (1995), O alienista (1996), Menino minotauro (1997), Autos Cabralinos (Auto do Frade e Morte e vida severina), de 1997, Lima Barreto, ao terceiro dia (1998), Sobrados e Mocambos (1999) e Todos que caem (2000).

Em 2003, surge a Companhia de Teatro Fiandeiros. Numa entrevista para o Satisfeita, Yolanda? dez anos depois, André Filho relembra o início da companhia e os motivos pelos quais aqueles artistas permaneciam juntos.

“Nós nos reunimos em 2003. Nosso começo não foi muito diferente de outros coletivos: artistas que se juntam querendo se expressar coletivamente através de sua arte. Tínhamos origens distintas – éramos músicos, palhaços, professores, arte educadores, alguns já com experiência em trabalho de grupo, outros não. Eu havia sido convidado pelo Sesc para dirigir uma leitura dramatizada da peça A tempestade, de William Shakespeare. Convidei alguns atores para participar e o resultado é que, depois da leitura, o grupo quis continuar se encontrando para ler outros textos e conversar sobre teatro. Então decidimos seguir em frente com o processo de estudo e, daí, surgiu a Fiandeiros”, relembrava.

Na Fiandeiros, os campos de trabalho muitas vezes se misturavam: produção, gestão, atuação, direção, dramaturgia, direção musical e ensino de teatro.

Entre as produções mais marcantes do grupo estão Outra vez, era uma vez… (2003), texto de Filho, que assinava também a direção e direção musical, e ganhou o Prêmio Funarte de Dramaturgia na região nordeste em 2004; Noturnos, de 2011, texto e direção de André; e Histórias por um fio (2017), peça em que o artista assinava o texto e também estava em cena como ator, sob a direção de João Denys. Denys lembra com carinho dessa experiência. “Ele ficou muito satisfeito, porque não se achava lá um bom ator, mas foi muito reconhecido, até ganhou um prêmio no Janeiro de Grandes Espetáculos”, comenta o diretor. Naquela edição do festival, em 2018, a peça levou no total sete prêmios: Melhor Espetáculo, Diretor, Ator, Ator Coadjuvante, Cenário, Iluminação e Sonoplastia/Trilha Sonora.

“André era um sonhador, generosíssimo, sereno, aquela pessoa que fazia do teatro a vida dele. É uma criatura que vai nos deixar um vácuo, mas esse vácuo será preenchido com as sementes que ele deixou nos seus alunos, naqueles que o acompanhavam”, finaliza Denys.

Como artista que desde cedo acreditou no teatro como uma arte coletiva, André Filho era um defensor das políticas públicas para a cultura e o teatro. Articulado, tinha sempre uma opinião sensata, mas enfática, sobre as questões da cidade e do estado. Foi ouvido em praticamente todas as matérias sobre política cultural publicadas no Satisfeita, Yolanda? desde a criação do nosso site em 2011.

Neste ano, por exemplo, comentou as deficiências do Sistema de Incentivo á Cultura (SIC) e o valor irrisório do então Prêmio de Fomento às Artes Cênicas, que destinava uma verba de R$ 100 mil para ser dividida entre cinco produções. “Quando falamos nos festivais pelo país afora que o nosso fomento tem esse valor, as pessoas não acreditam! Destinar R$ 20 mil para realizar uma montagem é um desrespeito com a classe”, pontuou.

André Filho construiu uma trajetória que não se deixou marcar por egos e afetações. Quando questionado o que era preciso para ser um bom encenador, em 2016, disse que não se considerava e nunca havia pretendido ser um encenador. “Apenas procuro fazer um teatro que busca dialogar com a plateia, ser compreendido e me sintonizar com o mundo à minha volta. Uma vez vi uma entrevista com Abujamra que ele dizia que ‘ser encenador é a arte de ser dispensável’. Acho que é por aí. O que é mais bacana é que nosso trabalho é completamente invisível, quem brilha no palco é o ator. O trabalho do diretor é escrever no palco uma dramaturgia, escrita ou não, de maneira poética. Eu acho que para ser um bom encenador a primeira coisa que se tem a fazer é compreender que seu trabalho é invisível e que a cada novo processo se volta à estaca zero, do aprendizado. Quando isso não acontece corremos o risco de ficarmos repetitivos e presos ao passado. O tempo do teatro passa e não volta. Não adianta. Quanto mais tentarmos voltar ao que nos deu brilho um dia, mais nossa luz se apagará. Toda vez que penso nisso sinto quanto estou distante de ser um bom encenador”.

 

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Rumos Itaú Cultural quer compreender a produção artística pós-pandemia

Eduardo Saron e Valéria Tolon apresentaram novidades do Rumos 2023-2024

O edital Rumos Itaú Cultural mudou de perspectiva: o foco da edição 2023-2024, a 20ª do edital, será a criação artística. O anúncio foi feito durante uma coletiva de imprensa on-line realizada na manhã desta segunda-feira (31), com as presenças de Valéria Toloi, gerente do núcleo de Formação do Itaú Cultural, e Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú.

Desde 2013, o Rumos mantinha um formato aberto, recebendo propostas de todas as áreas artísticas e culturais e de modo bastante amplo, abarcando iniciativas de escopos  diversos, como catalogação, seminários, projetos de formação e criação, o que fomentava ainda a interseccionalidade entre as linguagens.

Já nesta edição, a ideia é priorizar a criação. O material de divulgação diz que não serão aceitos “Projetos que não tenham por finalidade ou resultado uma criação artística e/ou obra intelectual”, e explicita: “Na edição deste ano também não serão aceitos projetos ou propostas que tenham por finalidade a realização de cursos, oficinas, encontros, debates, palestras e seminários; programas, intercâmbios ou residências com o objetivo de estudo, aperfeiçoamento ou formação; mostras, exposições, festivais e feiras; rodas de leitura e saraus”.

Eduardo Saron explicou que há uma intenção da instituição de compreender a cena artística pós-pandemia: “Observando outros editais, a própria Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo, elas estão dando conta de um universo bastante amplo e que bom que isso esteja acontecendo na nossa cena artística e cultural brasileira. Então, quando o Itaú Cultural se debruça é: onde a gente pode de fato fazer diferença? A nossa decisão foi colocar um foco maior, verticalizar a compreensão e poder ter um mapa dessa produção e desse pensamento artístico (pós-pandemia)”, conta.

Valéria Toloi apontou que já havia uma demanda grande de projetos de criação no Rumos e que, focando na criação, o edital aposta no processo. “É uma escolha também de dizer para esse artista que a gente está apoiando que ele tenha um momento para olhar o processo. Isso é raro hoje em dia: você ter um tempo dentro do lugar em que você precisa circular, mostrar o seu projeto, finalizar o seu projeto”.

Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú

Valores – Os projetos selecionados pelo Rumos vão receber até R$ 100 mil bruto. Não há uma definição de quantos projetos receberão o apoio. Na última edição do Rumos, lançada em 2019, 11.246 projetos inscritos foram examinados e 90 projetos passaram na seleção.

Ao serem questionados pelo Satisfeita, Yolanda? sobre os valores líquidos que seriam recebidos pelos proponentes, pessoas físicas e jurídicas, Eduardo Saron e Valéria Toloi disseram que não havia como definir uma regra geral. “A gente não tem como saber ou como quantificar com certeza qual vai ser o imposto, depende de uma série de fatores, Imposto sobre o Município, Imposto de Renda Pessoa Física, o regime da pessoa jurídica. Mas o que a gente diz é: se cerque de informações para que você tenha garantias de uma planilha muito clara e objetiva; mas, para os selecionados, aí a gente entra auxiliando cada caso de uma maneira específica”, explicou Valéria Toloi.

As inscrições para o edital estarão abertas entre 1º de agosto e 22 de setembro de 2023. Na primeira fase da seleção, 46 pessoas de todas as regiões vão avaliar os projetos, o que garante até quatro leituras por profissionais diferentes; na segunda fase, 20 pessoas, entre gestores do Itaú Cultural e convidados externos farão a seleção, o que garante que cada projeto seja lido por até 10 pessoas. Os critérios de seleção são singularidade, relevância e pertinência.

A partir desta terça-feira (1º), os gestores do Itaú Cultural vão participar da Caminhada Rumos, encontros com a classe artística que vão acontecer em todas as capitais do país e no Distrito Federal.

O encontro desta terça-feira será na sede do Itaú Cultural em São Paulo, na sala Itaú Cultural, das 20h às 21h30. Não é necessário reservar ingressos e a entrada está sujeita à lotação do espaço. O encontro será gravado e disponibilizado posteriormente no site do Rumos.

No Recife, o encontro será realizado no dia 8 de agosto, no Teatro do Parque, das 19h às 21h.

Confira o site Rumos Itaú Cultural 2023-2024.

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