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Representatividade e resistência LGBTQIA+
Entrevista || Coletivo de Dança-Teatro Agridoce

Coletivo Agridoce (da direita para a esquerda): Sophia, Nilo (camisa preta), Flávio (camisa branca), Igor e Aurora. Foto: Zito Junior/ Studio Z Fotografia

No intervalo de menos de seis meses, o espetáculo O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho foi censurado duas vezes em Pernambuco: no Festival de Inverno de Garanhuns, em julho de 2018, e no Janeiro de Grandes Espetáculos, na época do anúncio da programação, em dezembro do mesmo ano.

Como os acontecimentos muitas vezes trazem consequências e conexões que vão se desdobrando, esses episódios de censura marcaram significativamente a trajetória de um grupo pernambucano, o Coletivo de Dança-Teatro Agridoce. Foi assim: pouco tempo depois daquele FIG, a atriz e bailarina trans Sophia Williams entendeu que havia chegado o momento de montar o próprio coletivo para produzir projetos autorais. E, como movimento de resposta à censura no JGE, partiu desse coletivo a iniciativa de criar o festival Janeiro sem censura, que já teve três edições.

Com duas atrizes trans no elenco: Sophia William e Aurora Jamelo, o Agridoce fez sua estreia com a primeira temporada do espetáculo Trans(Passar), em março de 2019, no Teatro Hermilo Borba Filho. Em agosto do mesmo ano, estreou Mar Fechado. Tanto as questões de gênero quanto de raça permeiam os trabalhos do coletivo formado, além de Aurora e Sophia, por Flávio Moraes, Igor Cavalcanti e Nilo Pedrosa.

No último mês de abril, o grupo participou do projeto Cena Agora, do Itaú Cultural, com Rhizophora – Estudo nº1, primeiro experimento do novo trabalho, baseado em Homens e Caranguejos, de Josué de Castro. A nossa conversa com o Agridoce tratou da trajetória do grupo, as lutas, os preconceitos e o teatro como ferramenta para transformação política e social.

* Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || COLETIVO DE DANÇA-TEATRO AGRIDOCE

Por que a escolha pelo teatro?

Flávio Moraes: Acho que a escolha foi natural, não sei nem se podemos chamar de escolha. Nosso coletivo se intitula Coletivo de Dança-Teatro Agridoce. A dança está presente e foi, de certa forma, o ponto de início. Nunca foi só teatro, mas ele acabava vindo na frente ou tomando o lugar de foco. Somos amantes e adeptos de várias linguagens. Nós nos permitimos escrever, interpretar, levar o silêncio ao palco e, muitas vezes, a palavra não dita, o movimento.

Nosso próximo espetáculo tem a dança como alimento e tem sido muito louco entender esse corpo dançante em mim, entender que meu corpo, mesmo que eu não perceba, está carregado de marcas invisíveis, de imposições de posturas. Carregamos conosco um acumulado de “nãos”. Em mim, alguns deles estão na cintura que não quebra, nos ombros travados, na mão que apanhava quando “desmunhecava”, na voz que tinha que ser grave, no “não pode chorar”, “não poder ser frágil”, “não poder ser leve”. Minha vivência como ser humano, como homem, branco, gay, privilegiado e, principalmente, o reconhecimento desses privilégios, associado à minha vivência junto a meus colegues do Agridoce, têm quebrado muitos nãos em mim.

Igor Cavalcanti: Acho que nunca houve mesmo esse momento de escolha ou de ruptura com outras linguagens. O Agridoce se apresenta como coletivo de teatro e dança, mas não seria exagero colocar o audiovisual, porque todos os nossos projetos de teatro possuem um derivado audiovisual. Estamos sempre fluindo entre as linguagens.

Como vocês se reuniram?

Flávio Moraes: Sophia já conhecia Aurora e eu morava com Nilo, em 2017. Nilo, Sophia e Aurora se encontraram no processo de um espetáculo e eu entrei para executar a luz. Criamos intimidade e afinidade, o que resultou num grupo de Whatsapp. Certo dia, em uma conversa mais calorosa, uma troca de shades (indiretas) entre Sophia e Nilo, Sophia mandou um risinho e Nilo respondeu com “adoro o teu humor Agridoce”. Virou o nome do grupo do Whatsapp e, dias depois, Aurora fez uma identidade visual com o nome e nossos rostos e colocou no perfil. Então a gente já tinha nome e identidade visual, antes mesmo de se reconhecer de fato como grupo de teatro. Um tempo depois, após voltar de uma vivência com o Coletivo Lugar Comum, como ato de protesto à censura sofrida por Renata Carvalho no Festival de Inverno de Garanhuns, Sophia marcou uma reunião. Ela propôs que nos juntássemos para produzir nossos próprios trabalhos como grupo. Aí veio um edital de ocupação do Teatro Hermilo Borba Filho. Inscrevemos Trans(Passar), uma performance de Sophia, um solo fruto do TCC dela. Para essa versão, foi feita a adaptação da performance com inserção de Aurora e alguns outros textos dela, o que levou a um formato e entendimento mais definido de espetáculo. A gente nem tinha ainda uma dinâmica de grupo, uma estrutura, inclusive financeira, para dar suporte, mas fizemos acontecer. Nesse processo, pedimos uma ajuda a Igor, que era nosso amigo já de outros processos, na bilheteria. Foi um mês de temporada e daí Igor já não saiu mais e nem tinha como, já era um Agridoce.

Quais fatos são mais marcantes na trajetória enquanto companhia?

Flávio Moraes: Acho cada passo uma grande conquista. Conseguir levar Trans(Passar) para um espaço “tradicional” de teatro, com dois corpos trans em cena, suas histórias individuais e trazendo a de tantas outras meninas para o palco. Corpos marginalizados, agredidos de tantas e de todas as formas possíveis, de pé, em foco, em pauta durante um mês, foi um grande feito. Eu via o encerramento de Trans(Passar) da cabine de luz junto com Nilo e a cada semana tinha mais gente, e eu tinha um orgulho delas, um orgulho da gente. Eu sou bem suspeito para falar, sou o chorão do grupo, choro para falar, choro vendo a gente em cena, choro vendo o apoio e o acolhimento que a gente vem recebendo durante nossa jornada, choro de raiva, às vezes, porque faz parte também, né? Choro por tudo.

O Janeiro Sem Censura é outro feito que considero bem importante, pelo movimento, pelos temas, pela mensagem de resistência e pela forma como acontece e vem acontecendo com tanta gente querida e talentosa somando junto.

Nosso segundo espetáculo, Mar Fechado, também foi nos levando a outros lugares, conseguimos um edital no Teatro Hermilo Borba Filho; conseguimos também no Teatro Barreto Júnior, em março do ano passado, mas foi cancelado devido à pandemia.

Na pandemia, nesses tempos de distância, silêncios, ausências, saber se entender e permanecer, juntos e produzindo, também foi um grande feito. E mais recentemente nossa participação no Projeto Encruzilhada Nordeste, do Itaú Cultural, que foi uma surpresa muito feliz e nos deu um ânimo que estávamos precisando.

Uma cidade, um estado que censura uma atriz (Renata Carvalho) sucessivas vezes. (…) a gente se sentiu na obrigação de fazer algo no momento em que isso aconteceu, foi quando o Agridoce se uniu a outros grupos e teve a primeira edição do Janeiro sem Censura.

De que forma os lugares físicos, a cidade, o estado, de onde vocês criam influenciam na trajetória/pesquisa do grupo?

Nilo Pedrosa: Fiquei refletindo sobre essa pergunta e pensando sobre a nossa trajetória. Em Trans(Passar), a motivação é muito interior, a princípio de Sofia e posteriormente de Aurora, que se soma na construção desse roteiro e na produção. E uma coisa interessante é que só estão as duas em cena, mas elas trazem várias outras mulheres recifenses para contar essa história, que se materializam através das vozes dentro do espetáculo. Isso é trazer o espaço físico, através dessas pessoas que transitam e vivem nessa cidade. Depois vem Mar Fechado. Grande parte da criação foi na praia, ensaiávamos em Boa Viagem, na areia. E talvez se a gente não morasse aqui, se a gente existisse como grupo noutro lugar, o nome da peça nem fosse Mar Fechado e nem falasse sobre o mar.

Em 2019, fizemos uma ação num protesto do Ocupe Estelita, umas torres que estão sendo construídas no Cais José Estelita, e o movimento Ocupe Estelita é contra essa construção. Fizemos uma intervenção artística, colamos uns lambe-lambes e performamos. O nome da performance era Tubarão, uma semente do que viria a ser Rhizophora hoje, esse trabalho mais recente, que surge da minha inquietação, dentro do meu mestrado, sou formado em engenharia civil, em sustentabilidade dentro das construções. Da minha inquietação de ver como o espaço físico desta cidade, do Recife, é uma luta eterna de classes e de interesses. As cidades são idealizadas por pessoas de formas diferentes e como essas cidades se colocam de forma física e também de uma forma virtual, não-física, a cidade que existe na cabeça de cada pessoa. Rhizophora fala sobre isso, é o trabalho em que esse espaço físico da cidade do Recife está mais presente, a gente fala sobre o mangue, lembra que essa cidade foi construída em cima do manguezal e que nós somos esse mangue. E tudo vira matéria de trabalho porque a gente vive a cidade e esse trabalho é sobre viver a cidade.

E tem o Janeiro sem censura, que surgiu depois da censura sofrida por Renata Carvalho no festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Uma cidade, um estado que censura uma atriz sucessivas vezes. Ela foi censurada também em Garanhuns e a gente se sentiu na obrigação de fazer algo no momento em que isso aconteceu, foi quando o Agridoce se uniu a outros grupos e teve a primeira edição do Janeiro sem Censura.

Mar Fechado, segundo trabalho do Coletivo Agridoce, teve temporada cancelada no Barreto Júnior por conta da pandemia. Foto: Anny Stone

Como vocês viveram a pandemia enquanto grupo?

Flávio Moraes: Acho que tivemos dois momentos bem nítidos. Um distanciamento, um silêncio, um estranhamento carregado de incertezas a cada mês que a pandemia permanecia e as possibilidades pareciam cada vez mais distantes. Num segundo momento, voltamos a produzir, a entender possibilidades dentro do novo cenário das artes e desse mundo online. Até por questões práticas mesmo, como monetizar o grupo e repor os prejuízos da temporada cancelada no Barreto Júnior devido a pandemia, por exemplo. Desse levante, veio o edital do Sesc, Cultura em Rede, que passamos com o Conversando Pitangas, um circuíto de 10 lives, em que tivemos oportunidade de conversar com grupos, artistas independentes e performers. Logo depois lançamos um projeto de audioperformance, o Racontos, com 3 episódios inspirados na época de ouro das radionovelas. Começamos a viabilizar nossos processos de criação e ensaios remotamente. Chegamos a ensaiar coreografias de forma remota. Sophia, nossa coreógrafa, teve essa missão de conduzir esses corpos dentro da realidade possível, de um quarto, uma sala, uma varanda. Conseguimos, junto a todes que nos apoiam e estão firmes acreditando no nosso trabalho, fazer por mais um ano, sem incentivo algum, o Janeiro Sem Censura, todo online. Recebemos convites para festivais online, como o Luz Negra, do O Poste Soluções Luminosas, e mais recentemente o projeto do Itaú, Encruzilhada Nordeste.

Qual é o espaço social, cultural e político de atuação de um grupo de teatro?

Nilo Pedrosa: Para nós do Agridoce, no âmbito social, tem muito a ver com representatividade, com estar presente, ser visto e servir de exemplo para outras pessoas como nós. É sobre criar nossas próprias oportunidades. Além disso, a questão da educação. Os nossos trabalhos de uma certa forma educam nosso público, trazendo realidades que talvez eles não conheçam. No âmbito cultural, acho que é muito sobre nossas verdades, representar o que a gente vive, vê, pensa e trazer tudo isso para o nosso fazer artístico. No espaço político, nossa atuação está presente na militância LGBT, sempre será uma bandeira, porque somos LGBTs, todos os integrantes. E tem as questões de censura, que combatemos com veemência, não só com discurso, mas com ações. Essa tentativa de combater a censura a todo custo e de não deixar que nos silenciem e não deixar que as pessoas à nossa volta sejam silenciadas. Tudo isso resume o que é o Agridoce.

Vivemos momentos de ódio e intolerância. Como reverter esses sentimentos tão egoístas e covardes? Ódio se combate com ódio?

Sophia William: As pessoas estão deixando suas máscaras caírem com mais frequência, não estão fazendo questão de esconder seus ódios e intolerâncias, talvez por termos um presidente que não faz questão de esconder e acha que seu ódio e intolerância são opiniões, o que não é. Ódio e intolerância são completamente diferentes de opinião. Enquanto fazedores de arte, nós do Agridoce tentamos transformar nossas dores, angústias e anseios em arte. Entendendo que, às vezes, estar com uma flor na frente de um campo de batalha é muito mais forte do que apontar uma arma para quem está apontando uma arma para você. Porque você não vai estar ensinando nada, só se desgastando para tentar fazer aquela pessoa te entender. Você vai estar gritando, a pessoa vai estar gritando e ninguém vai se entender.

No contexto de violências que os corpos trans sofrem, como foi a criação de Trans(Passar)?

Sophia William: Eu, Sophia, enquanto corpo preto e trans, sofro violência diariamente. Essa violência me fez criar Trans(Passar), por ter sofrido violência dentro da própria arte, por não ser um corpo aceito, por ter tido professores de dança, diretores de dança e de teatro abusivos com o meu corpo, que não me aceitavam, que queriam que eu modificasse o meu corpo. Transmutei essa dor em estudo. Sou licenciada em Dança e não queria que os meus alunos sofressem o que sofri. Passei a estudar questões como a história do corpo, o que o corpo carrega, e a entender que cada pessoa tem a sua peculiaridade, sua vivência, seu poder, sua força e seu corpo. O meu corpo dizia uma coisa e os meus professores e diretores queriam que o meu corpo dissesse outra coisa. Isso não ajudou em nada a me construir, só fez com que eu me retraísse e me afastasse, até que entendi o poder que o meu corpo poderia ter na arte.

Comecei a me autoproduzir porque sabia que nenhum grupo de dança ou nenhum grupo da cidade iria abraçar os meus trabalhos. Eu ainda fazia parte do DIG, D’Improvizzo Gang, que foi um grupo que me acolheu na minha transição. Além do DIG, eu fazia parte do Balé Popular do Recife, e entendendo que eu iria começar a minha transição, entendendo a história do meu corpo, entendendo quem eu era, comecei a sair dos grupos. Porque eu sabia que eu não seria aceita em determinados grupos. Quando eu disse para o DIG que sairia porque começaria uma transição, que eu era uma mulher trans e que eu não me sentia mais confortável representando papéis masculinos, o grupo me abraçou: “não, você não vai sair, você vai continuar fazendo a sua arte e a gente vai entender isso juntos, a gente vai fazer a transição com você”. E foi isso que aconteceu, o DIG acabou transicionando comigo e foi isso que me fez continuar na arte.

Se eu não tivesse sido abraçada pelo DIG no início da minha transição, não teria tido o timing de convidar o pessoal do Agridoce para formar o grupo tempos depois, após a minha transição. E Trans(Passar) surge no momento em que eu queria colocar isso para fora, essas dores, essa violência, só que de outra forma. Queria provocar a sociedade a pensar e não simplesmente gritar, queria fazer com que a sociedade sentisse a minha dor através da minha arte. E é isso que acontece, todas as vezes em que apresento Trans(Passar), a gente sai sempre muito emocionado, todo mundo do grupo.

No início de Trans(Passar), quando entro em cena, vou diretamente ao público, perguntando às pessoas se elas querem um pedaço de mim, porque é isso que a sociedade espera e quer de uma pessoa trans ou travesti. Sempre quer um pedaço nosso. Querem nossos corpos nas esquinas, na prostituição, na marginalidade, mas não querem ver os nossos corpos na arte. As reações são diversas. Muitas se assustam, muitas dizem não, outras dizem sim. Quando elas dizem sim, tiro do meu corpo partes de um poema escrito por Aurora. Como artistas, sempre tentamos transmutar esse ódio que nos arrebata diariamente. E fazer com que a arte seja também um mote educador. Eu como licenciada, como professora, vejo que a arte também é um lugar para ensinar, um lugar completamente político. Não tem como dissociar. A arte sempre foi política.

Querem nossos corpos nas esquinas, na prostituição,
na marginalidade, mas não querem ver
os nossos corpos nas artes.

Vocês dizem que a arte é um espaço para ensinar as pessoas. Como lidar com isso?

Sophia William: Não precisamos gritar. A subjetividade às vezes é muito mais forte do que a objetividade. Precisamos fazer as pessoas pensarem sobre as informações. Se entregamos as coisas de mão beijada, as pessoas se tornam burras, ignorantes, porque elas não vão mais atrás. Vão estar sempre perguntando o que é aquilo e nós, como corpos dissidentes, não temos a obrigação de explicar o tempo todo quem somos. Precisamos cutucar a ferida, mostrando o que acontece com os corpos, a violência que a gente sofre, mas de outra forma, fazendo as pessoas pensarem, sentirem o que a gente sente e verem o que a sociedade faz e não simplesmente entregar de mão beijada um assunto, sublinhando cada texto, cada fala, cada movimento, porque isso torna a sociedade burra. Nós entendemos esse lugar de formação de público não só como querer atrair público, levar cada vez mais as pessoas aos espetáculos, mas fazer com que elas saiam do nosso espetáculo formadas, entendendo. Semear nelas uma coisa que elas vão pesquisar depois, que vão sair do espetáculo com aquele negócio na cabeça e vão querer ou não pesquisar, mas a semente foi deixada.

Como não cair na cilada do maniqueísmo, na arte, no teatro, na vida?

Sophia William: Acho que é uma resposta muito simples: é compreender que nada é absoluto, nem na arte, nem no teatro, nem na vida. O que a gente sempre fala dos nossos espetáculos é que eles nunca estão finalizados. Trans(Passar) já teve quatro versões, por exemplo, exatamente porque nada é só uma coisa. Nada é só bem ou só mal, só isso ou aquilo. A gente vive e essa vivência nos traz mudança e essa mudança nós levamos para o nosso fazer artístico. Tudo é mutável. A arte, o teatro e a vida são mutáveis. Nenhuma opinião é absoluta, porque nós estamos mudando a todo instante e todos aqueles que acreditam que as suas opiniões são absolutas caem em suas próprias armadilhas, em armadilhas criadas pelo seu absolutismo. A gente não precisa viver nessa dualidade de bem e de mal. Tudo isso foi criado por uma sociedade cristã, hierárquica, branca, elitista e que colocou a vida toda os brancos como seres divinos, os negros como seres demoníacos e ainda continua a fazer isso.

Trans(Passar), espetáculo de estreia, foi resposta poética à violência contra corpos trans. Foto: Anny Stone

Na cena que vocês apresentaram no Itaú, vocês trouxeram o Recife que está erguido sob o mangue. Como foi esse processo?

Sophia William: Visitamos a história do Recife, nossa ancestralidade, a ancestralidade da nossa cidade e em cima do que o Recife foi construído. Precisamos voltar ao passado, revisitar coisas. Não construímos o presente baseado apenas em questões do agora. Estudamos as famílias que vinham do Sertão em busca de emprego e acabavam não encontrando e vivendo em periferias. Como somos uma cidade cercada de água, uma cidade formada por várias ilhas, a maioria dessas comunidades são alagadiças, vivem do que tiram do mangue, caranguejo, sururu, marisco. O quintal dessas pessoas é o mangue, onde as crianças brincam, as famílias se reúnem. E ali é a casa deles, a morada deles. A gente precisou entender questões de leis, como a lei das Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), que é uma lei criada para proteger essas zonas, e que hoje as grandes construtoras querem burlar, retirando as pessoas de suas comunidades para construir avenidas, construir prédios. Vão tirar essas pessoas e colocar elas onde? João, que é o personagem principal de Rhizophora, vive essa dualidade, ele compreende os dois lados, mas acaba escolhendo um lado. Porque é o lado em que a lei está, o da comunidade, que é algo para ser respeitado, que é a lei das Zeis, que fala sobre a conservação desses espaços que são ocupados pela comunidade.

Uma mulher não tem força? A gente carrega a sociedade há muito tempo, sempre carregamos os homens nas nossas costas. Por que ser questionada sobre
essa força feminina? Por que a mulher tem que ser leve,
a que é carregada, a que é levantada?

Como você se vê como coreógrafa?

Sophia William: Não sou uma coreógrafa que está dentro do pensamento da estrutura estética do belo. Gosto de provocar. Não sou uma coreógrafa virtuosa. O virtuosismo é algo que eu questiono automaticamente pelo meu corpo trans em cena. Na apresentação do trabalho no Itaú, carrego um dos meninos do elenco e fomos questionados por isso. Porque não? Uma mulher não tem força? A gente carrega a sociedade há muito tempo, sempre carregamos os homens nas nossas costas. Então por que ser questionada sobre essa força feminina? Por que a mulher tem que ser leve, a que é carregada, a que é levantada? Essa é uma das coisas que eu questiono muito o grupo com as minhas coreografias.

Já fui questionada ao sair de um espetáculo, na época do DIG, Cafe Müller, por minha estrutura óssea. Fui questionada muitas vezes por fazer papéis de mulheres cis. Por que eu, enquanto mulher trans, sou questionada por fazer o papel de uma mulher cis, mas um homem quando faz o papel de uma mulher, como Paulo Gustavo, que passou a vida fazendo o papel de uma mulher, como o Magiluth, que é um grupo formado por homens, e fazem papéis femininos, não são questionados? E eu sou questionada porque tenho a força para carregar um homem em cena, porque a minha estrutura óssea é de determinada forma? Os nossos corpos estão aí para quebrar esse maniqueísmo, esse virtuosismo, essa dualidade, de quem tem força, de quem não tem.

Rhizophora - Estudo nº1

Rhizophora – Estudo nº1, foi apresentado no Cena Agora. Foto: reprodução de vídeo

A autorrepresentação e visibilidade de pessoas trans e travestis, nos vários setores e especificamente no mundo das artes, como vocês enxergam?

Sophia William: Nós ainda sentimos uma grande escassez de pessoas trans e travestis no cenário artístico recifense. Infelizmente somos um dos poucos grupos com pessoas trans e travestis no elenco. E isso faz com que a gente perceba a falta de representatividade e visibilidade, porque artistas existem no Recife e nós temos como provar. Como o trabalho, por exemplo, de Catarina Almanova, que lançou recentemente o curta Tornar-se monstra ou humana?, que foi um trabalho que eu fiz a produção e tive a oportunidade de participar. Não tem como negar que existem artistas trans e travestis na cidade do Recife. O que falta é oportunidade. Na minha carreira, entendi que eu precisava abrir as portas para mim mesma. Porque além de eu ser uma pessoa trans, sou uma pessoa negra. Sou atriz, bailarina, coreógrafa do Agridoce, mas também sou produtora. E tenho oportunidade de ver outros trabalhos e ver a escassez de pessoas trans trabalhando, seja na frente ou atrás dos palcos, protagonizando ou na produção de um filme, e isso para nós é algo muito triste. Porque a gente perde cada vez mais a vontade de fazer arte.

Eu sempre digo que eu e Aurora entendemos a importância de estarmos em cena. Porque ao nos verem em cena, outras meninas e meninos trans conseguem se enxergar. Essa é a grande importância da autorrepresentatividade e da visibilidade. Quando a gente chega e questiona o transfake, não estamos impedindo os artistas de exercerem a sua liberdade artística e poética. Estamos pedindo apenas uma chance para que possamos pelo menos fazer e representar papéis que falam sobre nós. É claro que a gente não quer fazer papéis só de pessoas trans ou travestis, mas estamos pedindo o mínimo. E esse mínimo é negado. Porque a arte continua reforçando os estereótipos que a sociedade já tem da gente, de que nós somos homens travestidos de mulheres, ou mulheres travestidas de homens, e não é isso. É a nossa identidade, o que nós somos.

O que a gente vê por aí são vários trabalhos sendo feitos, falando de pessoas trans e travestis, escritos por homens, brancos, heteronormativos, cis e que têm privilégios de passar em todos os editais, de ter contatos. E nós, enquanto pessoas trans e travestis, não temos esses privilégios. Não temos essas oportunidades. Então a autorrepresentatividade e a visibilidade para nós pessoas trans e travestis, para nós pessoas sexo dissidentes, para nós raça-dissidentes é muito importante. É entender que nós podemos estar ali, que queremos e devemos. E que não somos uma piada.

O que é ser um corpo político numa sociedade heteronormativa, elitista e racista?

Sophia William: É ser um corpo resistente, cansado de lutar, porque a gente cansa, mas precisamos estar ali, resistir, não podemos fraquejar, precisamos fazer com que outras pessoas trans e travestis, outras pessoas negras, entendam que elas podem estar ali. Que elas podem ocupar lugares, espaços que são socialmente nossos.

Esses dias conversando com uma amiga, estávamos conversando sobre a questão da raça e entendendo que a sociedade não foi feita para acolher pessoas sexo-dissidentes, pessoas trans ou travestis, pessoas LGBTQIA+ ou pessoas negras, porque enquanto a sociedade estava sendo construída, estávamos vivendo em cativeiros, senzalas, hospícios, porque as pessoas acreditavam que pessoas LGBTQIA+ eram loucas. Então a sociedade não estava sendo construída para nós, para nos acolher, pelo contrário, estava sendo construída para nos rejeitar, nos deixar em guetos, nos colocar no lugar marginal. Entender esse corpo político hoje é entender um corpo resistente, entender um corpo que pode e deve estar ali, ocupando o seu espaço, que é seu por direito. É o espaço que nós contribuímos para a construção. É ser um corpo que não precisa gritar para ser ouvido.

Sempre falo que o fato de muitas vezes eu ir ao shopping e estar na praça de alimentação comendo com Aurora já é um ato político porque as pessoas não esperam ver um corpo trans e travesti transitando durante o dia. O que as pessoas querem é ver os nossos corpos nas esquinas. O que as pessoas esperam é ver os nossos corpos na prostituição e não sentadas na praça de alimentação comendo e conversando. É um lugar nosso por direito, um espaço social, que devemos ocupar.

Então ser um corpo político é ser um corpo resistente é ser um corpo que ocupa, é ser um corpo que fala por si só, que não precisa estar gritando aos sete cantos do mundo e dizendo quem é porque eu sou. Pelo contrário, eu apenas quero e preciso estar ao lado daqueles que vão lutar comigo, daquelas que vieram antes de mim, construíram uma sociedade, que lutaram na ditadura, para que hoje eu pudesse fazer arte, para que hoje eu pudesse ocupar espaços que antes elas não poderiam ocupar, pessoas trans e travestis, pessoas negras.

Coletivo Agridoce. Foto: Anny Stone

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

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“O Brasil precisa prestar contas com seu passado,
enfrentar seus mortos para desenterrar o futuro”
Entrevista || Márcio Marciano

Desertores, peça de 2019, do Coletivo Alfenim de Teatro, com direção de Márcio Marciano, que deve voltar aos palcos após a pandemia. Foto: Alessandro Potter / Divulgação

O Deus da Fortuna. Foto: Rafael Saes

Helenas. Foto Tarciana Gomes

Memórias de um cão. Foto: Karen Montija

Pensar, tocar, incendiar o mundo através da arte. É um jeito de existir. De expandir horizontes. De buscar sentidos. O paulistano Márcio Marciano, encenador e dramaturgo do Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa, na Paraíba, está implicado contra a opressão. “O teatro surgiu em minha vida como um apelo e uma arma”, conta ele nesta longa e importante entrevista, que é um dos frutos de uma colaboração do Satisfeita, Yolanda? para o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. A iniciativa incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?.

Com Pequeno Inventário das Afinidades Nordestinas, um experimento documental e lírico, em linguagem híbrida entre o teatro e o cinema, o Alfenim participou do programa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. A ação do Palco Virtual do Itaú Cultural reuniu trabalhos de 15 minutos de 28 grupos teatrais do Nordeste, do Norte e do Sudeste, que flexionaram sobre as construções estereotipadas ou colonizadas das identidades nordestinas, tendo como disparador a capa da revista Veja São Paulo, que publicou uma edição especial elegendo São Paulo como a capital do Nordeste.

A cena criada e dirigida por Márcio Marciano e Murilo Franco investiu na experiência de nordestinidade conectada a uma memória mais afetiva e com dobraduras sobre a atualidade de espaço e tempo no contexto da pandemia.

O grupo paraibano – formado por paulistanos, paraibanos, cariocas, mineiros, goianos e cearenses – buscou na leitura poética e crítica desse Pequeno Inventário alargar o arrolamento de ideias e sentidos para a questão. Participaram do quadro que explorou as contradições e afetos dessa composição múltipla do Nordeste as/os artistas Zezita Matos, Adriano Cabral, Edson Albuquerque, Lara Torrezan, Mayra Ferreira, Murilo Franco, Paula Coelho, Verônica Cavalcanti, Victor Dessô e Vítor Blam.

O diretor do Alfenim em um momento de ensaio. Foto: Bruno Vinelli / Divulgação

Marciano é um dos fundadores da Companhia do Latão, de São Paulo, onde atuou por 10 anos, antes de se mudar para a capital paraibana. É um pensador, dramaturgo e encenador “politicamente posicionado no contexto da luta de classes”. Para ele, fazer teatro também é um enfrentamento constante e incansável contra o capitalismo seus efeitos. Suas argutas reflexões amplificam as percepções sobre a política e a arte, abraçam o sentimento de estar junto, questionam de que teatro estamos falando, cobram as responsabilidades constitucionais do poder público de garantir apoio à arte e da cultura que vem sendo negadas, e ressaltam as necessárias e urgentes políticas de reparação deste país tão injusto.

O projeto “poético-político-pedagógico”, um termo brechtiano que distingue o percurso do Coletivo Alfenim, está refletido nos espetáculos do grupo. Num trajeto de 14 anos e na convivência com quatro gerações de artistas, o Alfenim montou, entre outros, Quebra-Quilos (2007), sobre uma revolta popular situada no sertão da Paraíba no final do século XIX; Milagre Brasileiro (2010), que investiga a figura do desaparecido político durante a ditadura militar, O Deus da Fortuna (2011), sobre o processo de financeirização do capital; o solo Brevidades (2013), com Zezita Matos; Memórias de um cão (2015) e Helenas (2018). Com o edital do RUMOS Itaú Cultural, a trupe deu início à pesquisa de Complexo Fatzer (2018), de Brecht, que derivou na encenação Desertores (2019), que volta à cena presencial após a pandemia.

A tarefa coletiva mais urgente para artistas e cidadãos, na visão de Márcio Marciano, “é confrontar e desbaratar o projeto miliciano de poder que está se imiscuindo em todas as instituições democráticas do país”. Essa luta é incontornável.

ENTREVISTA || MÁRCIO MARCIANO

Márcio Marciano. Foto: Lenise Pinheiro / Divulgação

Como o teatro entrou na sua vida?

Através de campanhas de popularização do teatro. Quando adolescente, na virada da década de 1970 para a década de 1980, eu era metalúrgico e morava num bairro operário de São Paulo, a Mooca. Lá existe um teatro da prefeitura, o Arthur Azevedo, que recebia espetáculos que haviam feito temporadas de sucesso e eram apresentados a preços populares. Tive a chance de ver montagens históricas como Na carreira do divino, O homem elefante, Pegue e não pague, Muro de arrimo, entre outros.

E ficou por quê?

Até então, nunca havia entrado num teatro. Foi uma descoberta saber que era possível juntar num mesmo espaço e num mesmo tempo tanta gente interessada em pensar o mundo através da Arte. Vi no Teatro uma síntese viva de várias formas de expressão, com a vantagem de que tudo acontecia ao alcance das mãos, a poesia materializada em ato, mentes e corpos em convergência. Para quem já pensava que o mundo andava fora dos eixos e que era preciso denunciar todas as formas de opressão, o teatro surgiu em minha vida como um apelo e uma arma. Mas somente mais tarde, depois de cursar jornalismo, me pus o desafio de estudar e fazer teatro. Passei um tempo no curso de Artes Cênicas da ECA (USP), mas o teatro me convocou e fui trabalhar como cenotécnico e operador de luz no Teatro do Ornitorrinco, grupo que eu admirava por ter me posto em contato com a obra de Brecht. Pouco tempo depois, participei da fundação da Companhia do Latão (SP), na qual permaneci por 10 anos.

Na sua trajetória, quais os episódios que considera mais relevantes?

Penso que para a grande maioria de artistas engajados num teatro não hegemônico, politicamente posicionado no contexto da luta de classes, toda estreia é um marco relevante na luta, mais ainda sua permanência em repertório. No meu caso particular, destaco os primeiros experimentos da Companhia do Latão, quando ocupamos por quatro anos o histórico Teatro de Arena, em São Paulo, assim como as várias apresentações do grupo em assentamentos do MST Brasil afora, e nossa participação no Fórum Mundial Social, em Porto Alegre (2003). Já no Coletivo de Teatro Alfenim, ressalto nossa participação no Festival Latino-americano de Teatro de Grupo de São Paulo, em 2009, a inauguração de nossa sede em João Pessoa, a Casa Amarela, com a estreia de Memórias de um cão, em 2015, e o Festival Internacional da Utopia, em Maricá (RJ), em 2016.

Poderia contar um pouco da trajetória do grupo?

O Coletivo de Teatro Alfenim surgiu em 2007, quando eu e Paula Coelho, minha companheira, nos mudamos de São Paulo para João Pessoa. Ela acabara de ingressar como professora no Departamento de Teatro da UFPB. Minha intenção era dar continuidade ao projeto de desenvolvimento de uma dramaturgia autoral a partir de temas brasileiros, iniciada na Companhia do Latão. O grupo foi formado por atrizes e atores convidados e estudantes de teatro que conheci em oficinas que ministrei na cidade. Esse encontro de gerações é uma das marcas do Coletivo. Da fundação participaram atrizes de carreira consolidada como Zezita Matos, Verônica Cavalcanti e Soia Lira, que permanecem atuando no grupo, juntamente com jovens atores e atrizes que conhecemos em oficinas oferecidas regularmente nesses 14 anos de atividade.

O Coletivo Alfenim estreou oficialmente no Festival Recife de Teatro Nacional, em 2007, com a leitura encenada de Quebra-Quilos, seu primeiro espetáculo. Em 2009, o grupo participou da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo de São Paulo. A peça trata de uma revolta popular que ocorreu no sertão da Paraíba no final do século XIX contra a implantação do sistema métrico decimal. A segunda montagem, Milagre Brasileiro, de 2011, aborda o período mais sombrio da Ditadura Militar, após a decretação do AI-5, tendo seu foco na figura do “desaparecido político”. O espetáculo foi indicado ao Prêmio Shell na categoria Música. Em 2012, o Coletivo montou O Deus da Fortuna, uma parábola em chave cômica sobre o processo de financeirização do capital. A peça se passa numa China mítica, pré-capitalista. O espetáculo circulou pelo país com o projeto SESC- Palco Giratório, em 2014. Também em 2012 estreou Brevidades, um solo de Zezita Matos, que narra a trajetória de uma atriz acometida pelo Mal de Alzheimer. Recolhida a uma clínica, ela relembra em meio aos constantes lapsos de memória, os papéis marcantes de sua carreira.

Em 2013, o Alfenim foi contemplado pelo Programa de Patrocínio da Petrobras com o projeto Figurações Brasileiras. Além de circular com seu repertório por várias capitais do país, o grupo montou em 2015 Memórias de um cão. Em 2017, o espetáculo foi selecionado pelo programa de circulação da BR Distribuidora. Em 2018, o Coletivo estreou Helenas, que permanece em repertório. A peça foi escrita a partir da obra Minha vida de menina, de Helena Morley, que viveu em Diamantina, no final do século XIX. Retrata o processo de descoberta e de formação da personalidade por que passa a autora ao entrar na adolescência. Apesar da distância de mais de um século, as observações agudas de Helena revelam as contradições da sociabilidade brasileira dos dias atuais.

Em 2018, o Alfenim foi contemplado pelo RUMOS Itaú Cultural para iniciar o processo de estudos do Complexo Fatzer, a monumental obra inacabada de Bertolt Brecht. Esse estudo resultou na montagem do espetáculo Desertores, que estreou em 2019 na Casa Amarela, sede do grupo em João Pessoa, e permanece em cartaz à espera de retomar as apresentações presenciais após a pandemia. Ao longo de 14 anos de atividades ininterruptas, o Alfenim participou dos principais Festivais e Mostras de Teatro do país, além de ocupações em espaços da Funarte em São Paulo e Rio de Janeiro e dos Espaços da Caixa Cultural de Brasília, Rio e Curitiba. Em 2018, lançou seu primeiro CD Canções de Cena, com composições musicais de seus três primeiros espetáculos. Atualmente, prepara o lançamento de um novo CD com as canções de cena de Desertores.

Pode soar meio anacrônico,
mas temos a convicção de que
o Teatro deve ser uma arte pública,
coletiva e popular.

 

A força de nosso trabalho
vem justamente dessa formação
que reúne quatro gerações de artistas.

 

Uma marca do Alfenim
é a pluralidade que se reflete
no modo colaborativo de produção da cena

Coletivo Alfenim de Teatro. Foto: Alessandro_Potter

Como sobreviver enquanto coletivo?

Nomear o Alfenim como “coletivo” foi uma decisão programática, num momento em que a tendência era a de esfacelamento dos grupos em direção a produções solo, muito em função da falta de alternativas para a manutenção de projetos de pesquisa continuada. Ainda hoje, o termo incômodo é quase uma profissão de fé na busca de modos coletivos de produção da cena, contra a prevalência da especialização e da divisão social do trabalho em moldes capitalistas. Pode soar meio anacrônico, mas temos a convicção de que o Teatro deve ser uma arte pública, coletiva e popular. Essa escolha acarreta um custo, sobretudo no que se refere à circulação do grupo, uma vez que se torna cada vez mais inviável viajar com uma equipe de 14 ou 15 pessoas. Contudo, apesar das dificuldades, não temos dúvida de que a força de nosso trabalho vem justamente dessa formação que reúne quatro gerações de artistas.

Uma das peculiaridades do Alfenim, para o bem e para o mal, é que a grande maioria dos integrantes tem uma atividade profissional paralela. São professores universitários, professores de cursos técnicos de teatro, professores de artes, enfim, atividades complementares ao fazer teatral. Se, por um lado, essa condição limita o período de dedicação às atividades do grupo, por outro, proporciona uma alternativa de sobrevivência nos momentos de ausência de cobertura financeira, seja através da venda de espetáculos, seja com base nas verbas de editais.

Porém, o que mantém a unidade do Coletivo (afora os fundadores, a maioria de seus integrantes está no grupo há mais de 10 anos) é a apropriação de seu projeto “poético-político-pedagógico”, tomando emprestado um termo de Brecht. Com o tempo, estamos aprendendo a assimilar e pôr em prática os desejos de pesquisa e experimentação de cada artista em particular. Essa pluralidade se reflete no modo colaborativo de produção da cena, outra marca do Alfenim. Do ponto de vista material, o grupo deve sua existência às políticas públicas de fomento à pesquisa em artes. A fundação e a trajetória do Alfenim coincidem com o período mais efetivo dessas políticas, tanto no que se refere a editais em nível municipal, estadual e regional, como aos editais federais de manutenção e circulação de grupos. Apesar da excelência técnica e artística reconhecidas que o Alfenim vem desenvolvendo ao longo de 14 anos de atividades continuadas, ainda não conseguimos nenhum tipo de patrocínio ou apoio da iniciativa privada, com exceção do Itaú Cultural.

O que é necessário para fazer arte no Brasil?

No Brasil de hoje, é necessário, antes de tudo, confrontar e desbaratar o projeto miliciano de poder que está se imiscuindo em todas as instituições democráticas do país. Essa é a tarefa coletiva mais urgente. Contudo, dialeticamente, sabemos que a arte se alimenta da matéria negativa, de tudo o que é adverso. Sendo assim, apesar dos atuais “tempos de fezes”, como diz Drummond, a arte se fortalece na luta. Porém, a arte, como toda atividade humana que requer esforço e trabalho, precisa de condições minimamente favoráveis para se desenvolver em sua plenitude. Num mundo pautado pela forma mercadoria, essas condições não podem ficar dependentes das “leis do mercado”, como prega a liturgia neoliberal. Está previsto na Constituição do Brasil, que a arte e a cultura são direitos fundamentais do povo brasileiro, portanto, cabe ao poder público criar mecanismos de apoio e de desenvolvimento da arte e da cultura em todos os níveis de expressão, com ênfase para políticas de reparação dedicadas exclusivamente aos segmentos que historicamente vêm sofrendo as mais bárbaras formas de alijamento e discriminação. Nesse sentido, é necessário que a arte no Brasil de hoje se engaje na luta por transformações estruturais com vista à construção de um mundo mais igualitário e habitável por todas e todos.

O que você pode nos dizer do seu xará, Marcio Meirelles, do Teatro dos Novos, da Bahia?

Evoé, Marcio Meirelles! Tive o prazer de conhecer Marcio, pessoalmente, em 2001, se a memória não me trai, quando a Companhia do Latão esteve no Teatro Vila Velha apresentando A Comédia do Trabalho. Naquela ocasião, pudemos conversar sobre teatro e, principalmente sobre Brecht e a vinda de Peter Palitzsch, seu assistente no Berliner Ensemble. O diretor alemão viria ao Brasil para dar uma oficina à Companhia do Latão, em São Paulo, e para acompanhar a montagem de Material Fatzer, por Marcio, com o elenco do Teatro Vila Velha, em Salvador, a convite do Instituto Goethe. Os descaminhos do teatro não me levaram a assistir à montagem, mas em 2002, quando o texto com tradução de Christine Röhrig e colaboração de Marcio foi publicado, pude entender seu entusiasmo ao falar da obra inacabada de Brecht. Quase 20 anos após esse encontro com Fatzer, através de Marcio Meirelles, pude revisitar a obra de Brecht, agora com a tradução na íntegra de Pedro Mantovani, o que resultou na montagem de Desertores, que o Alfenim estreou em 2019, na Casa Amarela, em João Pessoa.

Quebra-Quilos. Foto: Rafael Passos

Quais as motivações para erguer um espetáculo?

Um espetáculo acaba por ser sempre a síntese de uma experiência em processo, um feixe de desejos e urgências, um modo de confrontação da realidade, uma imposição do engajamento na luta de classes e o testemunho de nossa capacidade de imaginar um mundo mais habitável. O que motiva um espetáculo do Alfenim é a necessidade de prestarmos, enquanto artistas e sujeitos históricos, um depoimento crítico, lúcido e poético em face das contradições de nossa vida em sociedade. Ainda que, às vezes, sob pena de falar para um número restrito de espectadores.

A qualidade primordial do teatro é o encontro presencial, sua capacidade de gerar um acontecimento social irreproduzível. A virtualidade desloca esse fenômeno para uma nova modalidade de experiência.

Vivemos um momento em que o Teatro foi obrigado a se adaptar ao mundo virtual. No início houve uma discussão se isso seria ou não teatro. Essa questão foi superada?

Penso que a questão está posta e ainda levará um bom tempo para ser superada. Não considero que o teatro tenha sido obrigado a se adaptar ao mundo virtual. Quem foi obrigado fomos nós, os fazedores de teatro, os trabalhadores que se viram de repente instados a utilizar novas ferramentas. E o resultado desse embate ainda está em processo de desdobramento e consolidação. A qualidade primordial do teatro é o encontro presencial, sua capacidade de gerar um acontecimento social irreproduzível. A virtualidade desloca esse fenômeno para uma nova modalidade de experiência. Não há nisso um juízo de valor, mas a constatação de um fato. A virtualidade suprime do teatro seu poder de celebração e engajamento coletivo, o que a meu ver reduz seu potencial de mobilização social. Num momento histórico de individuação radical, de limitação de nossas faculdades gregárias, a impossibilidade do encontro presencial nos confina ao simulacro da experiência social, o que num certo sentido nos desumaniza.

O Deus da Fortuna, Foto: Rafael Saes

O teatro que é transmitido pelas redes derrubou barreiras geográficas, permitiu que pessoas de várias partes do mundo pudessem compartilhar o trabalho virtual. Como você percebe essa experiência, dos artistas e da recepção?

De fato, o teatro, enquanto capital simbólico, ganhou uma volatilidade semelhante ao capital financeiro. Parece não haver barreiras para sua circulação. Contudo, essa modalidade de acesso virtual, está longe da experiência de fruição que o teatro presencial promove. Para usar a distinção marxiana clássica entre valor de uso e valor de troca, me parece que nessa virtualização o teatro sai perdendo enquanto experiência de convívio social, apesar de preservar algo de sua natureza estética. Tanto para os artistas quanto para o público, me parece que há uma exageração falsificadora de sua capacidade de circulação em detrimento de sua potência de transformação. Se pensarmos o teatro somente enquanto linguagem, acredito que esse novo suporte acabará por proporcionar o surgimento de formas híbridas e inovadoras, com alta complexidade estética, baseadas em avanços tecnológicos. Mas algo se perde nessa privatização do fenômeno artístico, que, a meu ver, só se realiza enquanto intercâmbio social irreproduzível. Está acontecendo com o teatro hoje algo que de modo semelhante já acontece com as formas de reprodução da música. Uma coisa é ouvir uma ópera ou um show de rock num teatro ou num estádio, outra muito diferente, é ouvir essa mesma música na sala de sua casa, ainda que a qualidade do som seja impecável.

Memórias de um cão. Foto: Karen Montija

Qual é o espaço social, cultural e político de atuação de um grupo de teatro?

Desde sua mais remota origem, é da natureza do teatro ocupar um espaço social, cultural e político. Nesse sentido, um grupo de teatro sempre pode se tornar um elo importante na constituição de nossa sociabilidade. Onde houver vida humana, haverá pessoas se unindo em torno do desafio de figurar sua própria experiência e entendimento do mundo através do teatro. Naturalmente, ao longo da história, o teatro teve momentos de maior ou menor relevância social, cultural ou política. Às vezes, pode predominar um aspecto sobre os demais, e o teatro atender a demandas específicas, contudo, o social, o cultural e o político são elementos que não se dissociam. Ressalte-se que o teatro tem sua capacidade de intervenção potencializada quando um grupo teatral assume programaticamente, para si mesmo e para seu público, a tarefa de colocar sua arte a serviço da transformação social. Essa escolha implica o compromisso de ultrapassar a fronteira da investigação puramente estética em busca de formas mais efetivas de comunicação e mobilização social. Esse me parece ser o grande desafio de um grupo de teatro: alcançar o mais alto padrão técnico sem descuidar do caráter pedagógico de sua arte, no sentido de contribuir no plano simbólico para uma verdadeira ação política com vista à transformação social.

Quais motores de ordem artística, profissional, ideológica e política determinam ou influenciam o trajeto de um grupo teatral?

Num país como o Brasil, cuja tradição teatral é feita de descontinuidades, a primeira impressão é que todo grupo de teatro que surge tem alguma coisa de pioneiro ou inaugural. O diálogo produtivo com a tradição fica relegado ao plano da curiosidade histórica ou, o que é pior, ao plano das peculiaridades e exotismos. Talvez isso seja um reflexo tardio do gosto modernista pela inovação ou certa aversão por tudo o que represente o passado. E não podemos esquecer que, do ponto de vista da forma mercadoria, o apelo à novidade é a marca do sucesso. Nesse contexto, me parece que a despeito do esforço de um grupo em desenvolver um projeto artístico consequente e criar uma identidade própria, o que determina seu trajeto são fatores fortuitos, muito mais identificados com o apelo “mercadológico” de suas produções. Não raro, espetáculos com novidades formais, ou que abordam temas polêmicos que estão na ordem do dia fazem sucesso meteórico e adquirem chancela de qualidade e legitimidade, desde que não afrontem o “bom-gostismo” burguês. E isso influencia ou determina a trajetória desses grupos. Não há mal nenhum em fazer sucesso, ao contrário, a questão é quando a energia produtiva do grupo acaba se adequando aos apelos da circulação. Quando o grupo passa a fazer concessões à forma mercadoria.

Brevidades, com Zezita Matos. Foto Bruno Vinelli / Divulgação

Marciano, você havia falado que “é preciso reconquistar para a arte e, através dela própria, seu valor de uso, seu caráter formativo e pedagógico”. Como isso pode ser feito na prática?

A arte sempre se valeu do recurso da metalinguagem para refletir sobre sua própria razão de existir. Trata-se não apenas de um poderoso instrumento de análise das contradições do processo de composição da obra, como também de um convite à recepção crítica do que é apresentado ao público. Autores modernos e contemporâneos vêm desenvolvendo formas cada vez mais incisivas de utilização desse mecanismo de modo a revelar não apenas a estrutura interna que sustenta a obra de arte, como também as intenções que presidem sua composição. Essa prática, apesar do risco de resultar em puro exibicionismo narcisista, o que ocorre com frequência, pode ser um importante meio de aprendizagem da ação política. Nos “comentários” que acompanham o Complexo Fatzer, obra monumental de Brecht sobre o travamento da revolução e a ascensão do fascismo, o dramaturgo alemão observa que é preciso almejar o “mais alto padrão técnico”. Ele se refere à busca de uma cena dialética capaz de propiciar o acesso à grande pedagogia, ou seja, ao aprendizado da ação política. Para seus detratores isso equivale a proselitismo maniqueísta, quando, na verdade, Brecht propõe a utilização de procedimentos dramatúrgicos que permitam aos artistas envolvidos no processo de montagem refletir acerca de seu posicionamento de classe na cena narrada. Esse objetivo vai além do desvelamento da estrutura interna da cena, das intenções que a presidem ou de suas limitações técnicas. O que esse mecanismo metalinguístico proporciona ultrapassa a verificação da atuação do artista na cena em direção à atuação do artista enquanto sujeito político no contexto da luta de classes. É nessa perspectiva que a arte pode reconquistar seu valor de uso, como elemento constitutivo de uma “Pedagogia da Autonomia”, para usar os termos de Paulo Freire e, assim, recuperar seu caráter formativo.

O teatro tem, ou deveria ter, um papel de conscientização social?

Certamente tem e, mais do que nunca, deve ter na atual conjuntura social e política brasileira. Mas não basta a “consciência de classe” se essa consciência se fetichiza e se limita a seu valor de troca, quando não ultrapassa o circuito frequentado pela classe média bem pensante. Nós, os fazedores de teatro, precisamos encarar o desafio de levar nossa arte para a periferia do sistema, levar o teatro ao encontro daqueles que detêm o que Eric Hobsbawm denomina como o “conhecimento de classe”. Ou seja, é preciso pensar um projeto verdadeiramente amplo de circulação das obras teatrais para que estas atinjam as populações que estão alijadas do processo usual de circulação de bens culturais. Como diz Lênin, o movimento vem da margem, lá se encontra a vanguarda de toda verdadeira transformação.

Tentar ganhar a vida dignamente
fazendo Teatro no Brasil
é um projeto de alto risco.

 

Há um tipo de Teatro que sobe no trapézio sem rede de proteção. Para os artistas dessa estirpe, não há tempo de pensar no risco, já que o salto é a única coisa que importa.

O que é o risco no teatro? O que é um teatro sem risco?

Toda empreitada teatral comporta um certo grau de risco. Mas há espécies diferentes de risco no teatro. Antes de tudo, é preciso distinguir o tipo de teatro a que nos referimos. Se for ao teatro voltado para o entretenimento, o risco maior está no fracasso da bilheteria, ou na ausência da circulação patrocinada, quando seu valor de troca não se realiza conforme o planejado. Em todo o caso, não é um risco de ordem artística, mas empresarial. Há no Brasil inúmeros profissionais de altíssima competência tentando exercer bravamente seu ofício em circunstâncias pouco favoráveis. Tentar ganhar a vida dignamente fazendo Teatro no Brasil é um projeto de alto risco. Para se viabilizarem financeiramente, essas produções optam por caminhos já trilhados, dentro de uma margem maior de segurança, de modo a conquistar a adesão das plateias. Não tratam de temas polêmicos e não se aventuram em experimentalismos formais. Isso não as torna a priori atrações vulgares ou “caça-níqueis”, resultando muitas vezes em produtos de alta competência técnica. Porém, em que pese a dedicação e o profissionalismo dos artistas envolvidos, em grande parte acabam por ser montagens politicamente equivocadas, quando não francamente reacionárias. Já as empreitadas teatrais que priorizam a experimentação artística, quando superam o risco de sucumbir antes da estreia, têm que se haver com outra espécie de risco, o risco da incompreensão. Não falo da incompreensão do público, já que esse obstáculo pode ser artisticamente uma conquista e não um fracasso. Muitas vezes, essa incompreensão é na verdade puro preconceito, e é necessário que o teatro confronte toda espécie de atraso. Mas me refiro à incompreensão dos próprios artistas quanto ao que seja de fato uma experimentação artística genuína e não uma reprodução acrítica de um modelo em evidência. Muitas vezes, essas produções têm a convicção de que estão alargando os limites da arte, quando na verdade estão apenas “perfumando a rosa”, como diz João Cabral de Melo Neto, já que esse refinamento estético não vislumbra nenhuma transformação social. Mas há um tipo de teatro que sobe no trapézio sem rede de proteção. Para os artistas dessa estirpe, não há tempo de pensar no risco, já que o salto é a única coisa que importa.

Nossos representantes são horríveis, cafonas, ignorantes, um atraso de vida. Como a arte pode mudar esse quadro de homens brancos heteronormativos, preconceituosos, no comando?

Estamos vivendo um momento de retrocesso sem tamanho, os abutres do atraso aproveitaram uma oportunidade histórica de abrir a caixa de Pandora da miséria nacional, mas eles se esqueceram de vasculhar o fundo e não perceberam que lá restou a esperança. Quando vejo as muitas candidaturas coletivas que surgiram nas últimas eleições, penso que o modelo caduco da representação política eleitoral pode se renovar com iniciativas dessa natureza. É muito pouco, mas é um indício de que é possível fazer algo de fora para dentro, que a sociedade possa ela própria pautar reformas que o parlamento jamais faria sem pressão popular. Não à toa, essas candidaturas têm uma relação umbilical com algum movimento social ou artístico. Essa aproximação entre artistas e movimentos sociais pode se tornar relevante no enfrentamento do atraso.

O Brasil será sempre o país do futuro?

A noção de país, ou de Estado-Nação está em crise. Portanto, pensar o Brasil nessa perspectiva necessariamente implica pensar a crise global, sendo essa crise associada à crise maior do sistema capitalista. Desde sua origem, o território a que chamamos Brasil vem exercendo funções específicas no sistema de reprodução global do capital. Nesse sentido, o Brasil será sempre o futuro do capitalismo, enquanto esse sistema não for destruído.

É preciso destacar o caráter democrático,
popular e de inclusão do período Lula/Dilma,
apesar de suas contradições estruturais.

 

A parcela endinheirada aproveitou a crise
da representação política para eleger
a canalha miliciana e terraplanista como
quem vende um produto no comércio on-line

De quem é a culpa desse retrocesso que vivemos?

“Culpa” é um termo cristão que não alcança a complexidade da situação atual. Em primeiro lugar, não podemos perder de vista que o mundo globalizado sofre as consequências de uma severa crise na reprodução do capital, sendo que as novas estratégias de representação política buscam se adequar a essa conjuntura. A volatilidade do capital, bem como a volatilidade das interações sociais, via internet, afetam a prática política como a conhecemos, uma vez que as relações materiais de produção parecem pulverizadas e desimportantes. Nesse contexto, o retrocesso político e suas derivações comportamentais retrógradas e fascistas vêm ganhando espaço mundo afora. No Brasil, a situação parece ainda mais grave. A República surgiu de um golpe militar. De lá até hoje, passando pelos frequentes períodos ditatoriais, o país vem tentando construir o que não passa de um simulacro de democracia, cujas instituições estão a serviço de uma elite econômica boçal por definição. A crise da representação política que acontece mundo afora ganha aqui traços de cruel caricatura. Nos raros períodos de estabilidade democrática, o Brasil não deixou de avançar, ainda que timidamente, no que se refere às políticas de inclusão social. Nesse sentido, é preciso destacar o caráter democrático, popular e de inclusão do período Lula/Dilma, apesar de suas contradições estruturais. Os avanços inquestionáveis desse período, marcado pela inclusão das minorias, geraram o ressentimento ignorante de parcela expressiva da população. A parcela endinheirada, receosa de perder seu espaço de Poder, espertamente aproveitou a crise da representação política para eleger a canalha miliciana e terraplanista como quem vende um produto no comércio on-line. Fez isso de modo tão ágil que só nos restou a perplexidade melancólica de quem acreditava que a democracia estava consolidada.

Até que ponto nossa realidade é uma obra-prima da TV Globo?

A Globo pode ser considerada a face mais visível e brilhante de um monstro de muitos tentáculos. Ela tem uma capacidade incrível de se adaptar à conjuntura sem perder o verniz de civilidade. O projeto de poder atual não está de bem com a Globo, mas a Globo já demonstrou em outras ocasiões que os governos passam e ela fica. Para manter seu lugar de proeminência na produção do imaginário, a Globo tem investido maciçamente em outras plataformas virtuais. Ela sabe que está perdendo terreno para as rádios e TVs pentecostais e precisa reagir. Mas por trás dessa disputa pelo imaginário, todas essas emissoras se irmanam na preservação de seus privilégios no que toca ao marco regulador das comunicações no país. Pensar a democracia no Brasil implica necessariamente pensar a quebra desse monopólio.

O que o teatro pode provocar ainda hoje?

Hoje há uma tendência de positivação do termo “provocar”, mas provocar não é necessariamente uma virtude. O teatro tem incontáveis recursos de provocação que podem redundar em reacionarismo. Muito do teatro atual opera nesse nível de estímulo a respostas emocionais, reatualizando a velha e boa noção de “catarse”. Penso que o teatro tem o dever de provocar o pensamento crítico, mas não numa perspectiva iluminista, linear, mecanicista. O teatro precisa aguçar o sentido da contradição, desenvolver no público o gosto de pensar dialeticamente. Precisa encontrar formas de transformar a provocação em mobilização efetiva. Parafraseando Paulo Freire, o teatro não faz a Revolução, mas não há Revolução possível sem o Teatro.

Ficamos indignados com os gestos explícitos
de sordidez e frieza da milícia
que cada vez mais se apodera
das instâncias do poder

Vivemos momentos de ódio, intolerância… Como reverter esses sentimentos tão egoístas e covardes? Ódio se combate com ódio?

Num país como o Brasil, onde o passado escravocrata perdura até o presente, sentimentos como o ódio e a intolerância constituem nossa sociabilidade. Acontece que para a grande maioria de párias que compõe a sociedade brasileira, entre os quais me incluo, a impunidade que acoberta os atos pusilânimes parecia ser um privilégio dos endinheirados. Porém, a vitória eleitoral das elites mais retrógradas parece que deu a senha para que também os miseráveis se sentissem à vontade para praticar toda espécie de violência e covardia. Aos desavisados como nós, que tínhamos a precária ilusão de que vivíamos numa democracia consolidada, com instituições sólidas, e que caminhávamos com passos firmes rumo à civilização e ao processo irreversível de distribuição de direitos, resta o choque e a inação. Estamos perplexos diante da barbárie e incapacitados de uma reação organizada. Hoje, ficamos indignados com os gestos explícitos de sordidez e frieza da milícia que cada vez mais se apodera das instâncias do Poder. Nestes momentos em que parece não haver saída, tendo a pensar numa das leis da dialética, aquela que diz que a quantidade se torna qualidade. A História é cíclica, após um momento de regressão virá outro de superação. Em nosso espetáculo Desertores, há uma fala do coro que diz: “E o que fazer? Sentar à margem das cidades e ficar à espera do novo animal que surgirá para substituir o homem?” Esse novo animal não surgirá, nós mesmos é que teremos que encarar o problema de frente. Lênin dizia que a violência é a parteira da História. O Brasil precisa prestar contas com seu passado, enfrentar seus mortos para desenterrar o futuro. Esse enfrentamento do passado urge acontecer agora, sob pena de adiarmos o futuro indefinidamente.

Como não cair na cilada do maniqueísmo, na arte, no teatro, na vida?

Em momentos históricos de acirramento das contradições, temos a impressão de que se acabam as sutilezas, as nuances e ambiguidades, que tudo se divide em dois campos de luta cerrada. Porém, essa é uma visão reducionista e paralisante. É preciso pensar dialeticamente e agir, ainda que sem esperança. Por mais que as sutilezas sejam temporariamente deixadas de lado, o momento exige um posicionamento claro, sem temor de suas consequências. Brecht lamenta num poema dirigido “aos que virão” que “em tempos sombrios, falar de árvores chega a ser quase um crime, pois isso implica silenciar sobre tantas outras barbaridades”. Talvez nossa tarefa histórica seja não silenciar, ainda que nossos gritos encubram todas as nuances.

Daqui a 500 anos, haverá teatro? No exercício de esticar os sentidos para o futuro, como será?

O teatro pode ser privado de tudo, menos da capacidade intrínseca ao ser humano de fabular sua experiência. Enquanto houver seres humanos, e acredito firmemente que haverá daqui a 500 anos, sentiremos a necessidade vital de narrar nossa história uns aos outros. Quando se referia à vitória da Revolução e à chegada da “era científica”, Brecht dizia que talvez o Teatro como o conhecemos se tornasse desnecessário e se transmutasse em outra coisa a que poderíamos chamar “Taetro”. Talvez seja esse o nome que a humanidade dará à nossa arte daqui a 500 anos, mas certamente continuará como uma crônica de seu tempo.

Qual a pergunta urgente neste momento?

Tomo emprestadas as palavras de Brecht: “E o que fazer? Sentar à margem das cidades e ficar à espera do novo animal que surgirá para substituir o homem?”

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

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As motivações para a criação artística

Lançamos para alguns artistas que trabalham em grupos a provocação sobre o que os inspira a fazer arte e se há diferença que essa labuta artística seja gestada no Nordeste do Brasil. Essas reflexões nos ajudaram a escrever o texto Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar, a segunda coluna do Satisfeita, Yolanda? no site do Itaú Cultural.

Confira aqui a coluna Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar

Conversamos com artistas do O Poste Soluções Luminosas (PE), Casa de Zoé (RN), Coletivo de Teatro Alfenim (PB), Grupo Ninho de Teatro (CE), Cia Biruta de Teatro (PE) e Magiluth (PE).
Reunimos aqui todas as respostas desses criadores na íntegra. Foram conversas por mensagens de áudio e de texto, que revelam minúcias do entendimento sobre arte, Nordeste e posicionamento no mundo que vivemos.

Confira aqui a primeira coluna do Satisfeita, Yolanda? no site do Itaú Cultural

ENTREVISTAS

Naná Sodré, Samuel Santos e Agrinez Melo, criadores do O Poste Soluções Luminosas. Foto: Arlison Vilas Bôas

SAMUEL SANTOS, diretor do grupo O Poste Soluções Luminosas, do Recife, Pernambuco

O que me inspira é a vida. A possibilidade de construir na arte, no teatro, aquele momento de condensação entre a realidade, o sonho, a poesia, para gerar reflexão. Criar, conceber, estar no teatro, é um processo de evolução e de cura. Quando penso nessas inspirações vem as transpirações, o respirar e o fazer respirar com trabalho feito com a arte, pela arte, para o público. O teatro é por natureza concebido para o outro, pede a participação, a fruição do outro e os outros estarem em nós. Acredito que o teatro me salvou, me transformou e é com esses princípios que sigo em inspiração. Se não acreditar que a arte que faço pode salvar ou transformar alguém, como fez comigo, não há motivo para continuar. E continuo…

Faz toda diferença criar no Nordeste. Todas as minhas raízes são daqui. Toda a minha construção social, política, filosófica e ancestral vem desses Nordestes. Vem das matrizes africanas e indígena. Sou filho de uma descendente de indígena da Paraíba, sou recifense, sou da periferia da Zona Norte, sou filho de um homem do interior de Pernambuco. Todas as minhas raízes estão fincadas aqui. Claro que o meu filtro maior é dessa região, é da minha nação. Mas o trabalho que faço com o meu grupo, O Poste Soluções Luminosas, tem como poética a antropologia teatral, a transculturalidade, tendo como base a pesquisa de um corpo dentro das matrizes de religião africana, como o candomblé e a umbanda. Criamos aqui a primeira escola de Antropologia Teatral, a Escola O Poste de Antropologia Teatral, onde temos disciplinas como: Capoeira no jogo do ator, Tradições da Mata: Cavalo Marinho e Maracatu de Baque Solto na construção do ator, Dramaturgia dos orixás – Práticas de Treinamento Ancestral para o Ator, disciplina essa que surgiu dentro da pesquisa “O corpo ancestral dentro da Cena Contemporânea”, desenvolvida pelo Grupo O Poste Soluções Luminosas dentro dos terreiros de matriz africana. Toda essa relação das disciplinas com a cultura preta, nordestina, tem um propósito de ser: o de decolonizar, colocar também o nosso olhar como construtores para a formação do ator.

Temos aqui um espaço cultural, o Espaço O Poste, onde fazemos as nossas formações, apresentamos os nossos espetáculos e oferecemos o espaço para que outros grupos se apresentem. É um espaço de fruição, formação e intercâmbio. Pelo Espaço O Poste já passaram artistas da Argentina, Portugal, Colômbia, França, Angola. E por aqui esteve Eugenio Barba e Julia Varley, do Odin Teatret, da Dinamarca.

Fora isso, os espetáculos do nosso repertório já viajaram pelo Brasil e pelos principais festivais internacionais. Os nossos espetáculos já se apresentaram na Dinamarca, no Uruguai. Cordel do Amor sem Fim foi apresentado em 22 cidades ribeirinhas banhadas pelo Rio São Francisco. Apresentamos por todo o Nordeste. Fomos pouco para o Sudeste.

É uma lacuna que não preenchemos ainda e claro que isso conta no quesito visibilidade, projeção. Mas a nossa projeção está naquilo que objetivamos: levar o teatro a comunidades que raramente são pensadas ou cogitadas nos projetos de circulação ou formação. Fomos! Projetamos e visibilizamos o teatro na sua forma mais plena e democrática. Isso nos orgulha. Talvez se não fôssemos da região Nordeste, não teríamos essa preocupação ou objetivo. Sou grato, sou gratidão e axé.

Titina Medeiros, da Casa de Zoé. Foto: Brunno Martins

TITINA MEDEIROS, atriz do grupo Casa de Zoé, de Natal, Rio Grande do Norte

O que me inspira a criar e fazer arte é a nossa própria existência, nossas conexões com outros seres, com o mistério e com as incertezas. A arte, além de me dar oportunidade de ter voz, também me permite o delírio.

A verdade é que sempre fiz teatro no Nordeste, em um estado que não tem tradição de boas políticas para a cultura, e penso que essa realidade nos faz ter ainda mais consciência da importância de permanecermos no Rio Grande do Norte.

Sou de uma geração de artistas de teatro que resolveu ficar. Que se negou a ir para o Sudeste tentar a vida. Nossa lógica era: precisamos fomentar o teatro no nosso estado para que nossos conterrâneos nos conheçam e conheçam nossas obras. Era importante para nós essa representatividade. Daquele tempo para cá já se passaram quase trinta anos, e acredito que nossa estratégia foi e continua valiosa. Agora tudo isso só foi possível devido ao teatro de grupo, que nos uniu por uma causa comum.

Coletivo de Teatro Alfenim. Foto: Alessandro Potter

MÁRCIO MARCIANO, diretor e dramaturgo do Coletivo Alfenim, de João Pessoa, Paraíba

Como artista, sinto necessidade de dar um testemunho crítico sobre as contradições de meu tempo. O que me inspira é a convicção de que o ser humano, apesar de seus temores, misérias, baixezas e vilanias, é capaz de ser solidário na luta por um mundo mais habitável para todas e todos. Fazer arte é imaginar, no campo simbólico, o ensaio dessa transformação.

Da perspectiva dos vencidos, todo campo é um campo de luta possível. Não se trata de idealismo ou de uma noção romantizada do fazer artístico. Mas da constatação de que é necessário travar a guerra em todas as frentes. Nesse sentido, apesar das diferenças de ordem econômica e de circulação da forma mercadoria – e não podemos esquecer que a arte é também uma mercadoria –, todo lugar tem seu espaço possível de interlocução.

MONIQUE CARDOSO, atriz do Grupo Ninho de Teatro, do Crato, Ceará

Eu parto desse termo teatro nordestino, que já me inquieta bastante, porque eu não escuto por exemplo, teatro sulista ou teatro sudestino. Existe um termo forjado, e não por nós, nordestines, mas por outres, que tem a ver com todo o processo histórico desse país, de nos colocar numa posição de inferioridade na maioria das vezes. Para mim, o teatro nordestino é o teatro do mundo, que pode ser feito aqui ou em qualquer outro lugar. Que sim, carrega muito dos nossos corpos, das nossas memórias, dos nossos territórios, das nossas experiências, como qualquer outro teatro, como qualquer outro processo criativo feito por sujeitos. Isso não nos difere dos demais.

Independente das escolhas estéticas, éticas, políticas que são feitas no processo criativo, num trabalho montado por artistes nordestines sempre vai haver esse rótulo, essa chancela do teatro nordestino. Aliás, espero que não haja sempre, mas sempre há essa tendência a rotular. Espero que os debates, os trânsitos, os diálogos, façam com que a gente vá desmistificando, descontruindo uma série de estereótipos que foram criados, de ideias do que é uma arte produzida no Nordeste, que tem sempre como referência a ideia de seca, de fome, de miséria, de retrocesso. E essa é uma visão muito limitada do que é o Nordeste, do que seria o Nordeste, uma visão construída pela mídia e reforçada por tantos, desde políticos a empresas, a grandes veículos de comunicação.

Percebo um movimento para que a gente possa criar narrativas, ampliar essa percepção. Acho que essa coisa, de não ouvirmos teatro sudestino, teatro sulista, acho que existe um lugar, no próprio segmento da arte, no próprio nicho de mercado, de colocar o teatro produzido no Nordeste num outro lugar, um lugar inferior, um lugar quase unificado, no sentido de que haveria uma unidade, uma uniformidade no que é produzido aqui. E não é isso, a gente fala de um Nordeste que é imenso, que tem vários Nordestes, vários sotaques, várias experiências, vários territórios, corpos, ideias distintas. Então é muito pequeno limitar a um termo, teatro nordestino. Acho que o teatro nordestino é o teatro do mundo, o teatro que é produzido aqui ou em qualquer lugar do mundo, que parte da relação de um corpo com o espaço, mas que ganha dimensões muitas, camadas muitas. Que ganha uma dimensão a partir do encontro com o outro, da experiência do outro, como qualquer processo artístico, como qualquer encontro com uma obra de arte, independentemente de onde ela é produzida.

Edceu Barboza, ator do grupo Ninho de Teatro, no processo de criação do espetáculo Cabral. Foto: Elizieldon Dantas

EDCEU BARBOZA, diretor e ator no Grupo Ninho de Teatro, do Crato, Ceará

O que me inspira a criar e fazer arte é a possibilidade de dialogar por meio das artes da presença, das artes da cena com o público. E esse público, para mim, é uma microesfera da sociedade. Toda vez que eu, como artista, grupo, me encontro com os espectadores – como coletivo de espectadores e espectadoras – numa audiência teatral, entendo que ali tem uma microesfera da sociedade e que aquela troca pode, em alguma medida, mover, movimentar os sentidos das coisas todas que estão postas. Penso que a gente tem na arte esse campo de provocação. De provocar possíveis deslocamentos. E um olhar de curiosidade para aquilo que está ou estava naturalizado, até então. Um espetáculo ou qualquer obra de outra linguagem, pode ser esse despertador. E, portanto, vai impulsionando as pessoas e a sociedade a desnaturalizar as coisas todas que estão aí, desde as relações de poder ou mesmo questões mais íntimas, do público para o privado, do privado para o público. Isso é o que me inspira a fazer arte.

E quando eu me penso nesse lugar de fazer arte no Nordeste do Brasil, não encontro diferenças no sentido do estar e do ser artista. Não é ser nordestino ou estar na geografia Nordeste que me dá algo de menos ou algo de mais. Apenas sou. Tudo que produzi, sim, é afetado por isso, tudo diverso, por isso tudo múltiplo, por isso tudo contraditório, por isso tudo de tradição, por isso tudo de contemporâneo, de moderno, que é o Nordeste, que sou eu.
Óbvio que, por conta de um projeto que foi pensado para o Nordeste, dentro de uma perspectiva do poder geopolítico, orquestrado pelo Sudeste, pelo Sul/Sudeste do país, a gente encontra algumas dificuldades do ponto de vista de políticas públicas. Mas, para além disso, não vejo diferença.

Quando se pensa o interior do Nordeste entramos nessa mesma questão. Acho que a grande diferença é uma dificuldade ainda maior – e quando eu digo ainda maior é porque entendo que um país como o Brasil, onde a política pública de Cultura é ineficiente para o tamanho do país, quando se está nos interiores do Nordeste, ou outros interiores do Brasil, a dificuldade se amplia, esse abismo fica ainda maior, comparado, por exemplo, às grandes metrópoles. Não que as grandes metrópoles não tenham as suas dificuldades. Acredito que elas acabam sendo diferentes, sobretudo no acesso.

Esse Nordeste que se espera, ou esse Nordeste inventado, como diz o Durval (Muniz de Albuquerque Júnior), não é o Nordeste que nós operamos cotidianamente. Por exemplo, a região do Cariri cearense, onde o Grupo Ninho de Teatro atua, é um território verde, que pulsa água de nascente, cachoeiras, rios, com uma chapada imensa, com a reserva paleontológica importante pro mundo inteiro, com a diversidade, com a pluralidade de tradição popular, com mestres e mestras, com uma produção contemporânea riquíssima. Nesse sentido, estamos pulsando numa mesma ambiência, digamos, de muitos outros espaços do restante do Brasil. Mas que se diferencia disso que inventaram para a gente, que é essa imagem estática, amarelada, seca, rachada, com bichos e gente morrendo. Essa é a invenção. Esse é o projeto inventado, e querem nos encaixotar, mas a gente sabe que, estando aqui, existe um Nordeste diferente a cada cidade, a cada bairro de uma cidade. É um pouco por aí.

Cristiane Crispim, da Cia Biruta de Teatro. Foto: Rayra

CRISTIANE CRISPIM, atriz Cia Biruta de Teatro, de Petrolina, Pernambuco

Penso que o que me inspira a criar e a fazer arte, a mim e ao meu grupo, nesse processo coletivo, colaborativo, é uma coincidência com o que afeta todo e qualquer artista em qualquer lugar do mundo. A gente cria, somos motivados a criar, a partir do que nos afeta, das coisas que atravessam a nossa vida, as coisas com as quais a gente se relaciona, para entender a nossa existência. E isso tudo existe dentro de um contexto. Nossa existência no mundo se relaciona com um contexto. É uma vivência atravessada muito pelo sentido de comunidade, de coletividade, no nosso caso. Nunca foi individual, nunca foi um processo só pessoal. Muito por minha formação tanto na igreja, pela Pastoral da Juventude, Teologia da Libertação, quanto passando a ter contato com os estudos culturais, com as ciências sociais, com a militância política, isso tudo vai nos afetando, me afetando, e a gente cria muito motivado por isso, porque isso é o que atravessa a nossa existência, nossa caminhada no mundo. Parte desse lugar de se perceber quem é, se entender nessa existência e entender que essa existência faz parte de um processo histórico e cultural.

Sobre as diferenças desse fazer no Nordeste, além de pensarmos esse lugar histórico e social que a gente ocupa, na prática, sabemos que tem semelhanças com diversos outros lugares, mas também diferenças, que partem desse contexto. Porque esse contexto é marcado por uma construção política, social, que centraliza recursos, orçamento público, no Sul e Sudeste, e isso afeta obviamente a nossa produção, as dificuldades que a gente enfrenta para criar, para produzir, além das questões de identidade que a gente problematiza. Mas a dificuldade é a falta de recursos, de condições. É a ideia de que se relegou à região Nordeste menos recursos, mais precariedade em tudo. A forma como se entendeu, inclusive na produção cultural, o Nordeste como um lugar de exploração de mão de obra barata, nega a gente a ideia de um lugar de desenvolvimento de cidadanias diversas, múltiplas. Além disso temos uma construção interna mesmo, de uma lógica colonialista, de negação das presenças indígenas, dos movimentos sociais, dos quilombolas, e tudo isso afeta a criação, porque como eu te disse, se pensamos esse nosso lugar, essa nossa existência, vamos acabar fazendo todas essas relações, não só enquanto temática, mas enquanto produção de existência, enquanto grupo teatral. E, ao mesmo tempo que isso nos afeta gerando dificuldades, gerando restrições, também nos motiva a criar formas de resistência, que motivam essa produção. Acaba sendo muito em torno disso, da luta por existir.

E aí quando pensamos interior do Nordeste, vamos para outras camadas dessa lógica colonialista e centralizadora. Temos a situação de marginalização da região Nordeste diante de um “centro” do país, que seria o Sul e o Sudeste, e dentro do Nordeste existem também as capitais, que acabam ocupando esse lugar do centro, e o interior. Essas coisas acabam se multiplicando, essas negações acabam se acumulando no processo, porque vai tendo um afunilamento. E é a periferia da periferia da periferia, a margem da margem da margem. Você tem uma reiteração o tempo todo desse processo, exigindo ainda mais mobilização, ainda mais articulação, ainda mais projeto de resistência, porque é uma tendência em reproduzir a lógica internamente.

Quando falo que há essa relação com a coletividade, com a comunidade, não é nunca em oposição à pessoa, ao sujeito. Mas é saber que essa pessoa, com as suas subjetividades, que não devem ser negadas, pelo contrário, também devem ser estimuladas, para compor essa multiplicidade, essa diversidade. Essas subjetividades devem ser o tempo todo convocadas. Elas são atravessadas por relações, por ser nosso, do ser humano mesmo e não é uma briga, o individual e o comunitário. Não é pra ser. É só uma consciência desse corpo, que se coloca no palco e na vida, e que está sempre em relação. Nunca é só uma dor individual. Mesmo que seja individual, é sempre resultado de um processo maior e negar isso é a gente ceder a uma lógica de pensamento individualista, neoliberal.

Vamos no sentido de não descolar esse subjetivo do coletivo, do comunitário. Mas de forma alguma desconsiderando, inclusive produzindo as tensões que a gente precisa produzir o tempo todo nesse entendimento, nessa caminhada no mundo, de ser, estar e criar.

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

GIORDANO CASTRO, ator do Grupo Magiluth, do Recife, Pernambuco

O que inspira a gente a criar e fazer arte é observar a vida. E aí quando falo de observar a vida não é nesse sentido poético. É observar o que acontece, as coisas que nos afetam. E aí começamos a entender que, de fato, a gente está completamente conectado. Pensamentos revolucionários, progressistas e emancipatórios, por exemplo, são pensamentos que atingem uma Primavera Árabe e um movimento como o Ocupe Estelita. As coisas estão conectadas. E aí temos que ver como é que essas coisas nos afetam, como é que a gente se coloca perante essas coisas e entender que problemas que são universais, são problemas também dentro do nosso quintal. É estar atento à vida, às coisas que estão acontecendo, estar atento ao movimento natural das coisas. Isso é o que nos motiva a estar criando, dialogar com o nosso tempo, que é universal.

Não faz diferença nenhuma criar em São Paulo, criar em Recife, criar num sítio no interior. A diferença, eu acho, é o depois de criar. É fazer com que esse trabalho se mantenha e, de alguma forma, seja bem remunerado por isso. E aí a gente não tem como negar que São Paulo, principalmente, existe muito mais investimento, injeta muito mais dinheiro nisso, do que outros lugares, até pelo tamanho da cidade, pelo próprio movimento. Mas enquanto criar não faz muita diferença. Não é somente uma diferença geográfica, estar criando em São Paulo. É onde está minha cabeça criadora quando eu estou em São Paulo. E a minha cabeça criadora está sempre em Recife, de alguma forma.

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Festival Reside abraça programação pernambucana

Paul Davies conduz Residência Artística, com apresentação de resultado do processo e workshop

Da Laje-palco respeitável público o Alto, espetáculo de Triunfo, no Sertão pernambucano
Foto Guilherme Andrade

O mundo é grande e há tantas possibilidades de sintonias afetivas e cênicas, deve ter pensado a atriz e produtora Paula de Renor quando idealizou Reside Lab – Plataforma PE – Festival Internacional de Teatro, chamado de Câmbio, festival de teatro lá em 2018. Nestes tempos marcados pelo distanciamento físico e pela interdição de aglomerações, o programa ocorre na digital de 15 a 31 de março de 2021. A programação contempla 11 apresentações de 10 espetáculos, dois Encontros Reside, uma Residência Artística e um workshop com o britânico Paul Davies.

A residência artística reforça que o cérebro e o coração deste festival pernambucaníssimo são as trocas, os compartilhamentos, a cooperação, a coautoria com criadores do planeta Terra. O escritor, intérprete, desenhista e diretor britânico, com doutorado em Política, Paul Davies conduz a Residência (de 15 a 27 de março, com os inscritos selecionados) e envia aos participantes a provocação: “Em tempos de morte e de negação, ainda é possível termos apetite para a realização de sonhos ou a nossa imaginação sofreu um golpe mortal?

Depois de 13 dias de estímulos criativos e do convite que Davies fez aos integrantes da residência de darem um “salto no escuro”, no dia 31 de março será exibido o resultado do processo de investigação, que trabalha com o tema “Qual o Caminho para os Jardins?”, Diretor do Volcano Theatre (País de Gales/UK), Paul Davies apresenta seus métodos de criação e trabalhos realizados no Reino Unido, no workshop com estudantes, professores, artistas e público, no dia 29 de março, das 15h às 17h. É preciso fazer inscrição no site do Reside (www.residefestival.com.br)

CONFLUÊNCIAS

O 1º Encontro: Dramaturgia Ibero-americana na pós-pandemia vai discutir, no dia 20 de março, sobre o reflexo das novas concepções de teatro no campo da dramaturgia teatral. Os pesquisadores vão refletir sobre transformações, expansões e giros da escrita dessa cena para o período. Dessa saraivada de ideias participam o dramaturgo e encenador Diego Aramburo (Bolívia); o ator, encenador e dramaturgo Damián Cervanates (México) e a atriz, diretora e dramaturga Lorena Veja (Argentina), como palestrantes, e o professor, encenador e dramaturgo Rodrigo Dourado (PE/Brasil) na mediação. Inscrições no site do Reside (www.residefestival.com.br)

Há aproximadamente um ano, os terráqueos foram surpreendidos com um vírus desconhecido e de enorme poder letal. As atividades produtivas foram obrigadas a parar. A cultura foi um setor afetado pela pandemia. Apresentações artísticas e festivais foram cancelados em 2020. O 2º Encontro: Adaptações e Modelos de Festivais de Artes Cênicas trata das respostas e adaptações para o setor, no dia 27 de março, das 17h às 19h. Algumas perguntas são perscrutadas a exemplo de: Como um setor pode se reinventar em meio a uma pandemia? Qual é o futuro da programação inovadora para festivais internacionais em 2021? O formato híbrido seguirá existindo? Participam dessas visadas para o futuro o diretor artístico do Festival Cielos del Infinito Antonio Altamirano (Chile); o diretor Artístico do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica Gonçalo Amorim (Portugal); a curadora, produtora e performer Elizabeth Doud (Estados Unidos). E como mediador o diretor artístico do FIAC-Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, Felipe Assis. Inscrições: site do Reside (www.residefestival.com.br)

ESPETÁCULOS

A programação de espetáculos abre no dia 16 de março com Transbordando Marias, uma homenagem do Reside à família Camarotti. Inspirado na personagem Maria Josefa da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, as atrizes Maria Conceição e Maria Clara, mãe e filha, enveredam por suas liberdades em estado de isolamento.

Os afetos, suas belezas e feridas, pulsam nas lembranças do protagonista de Brabeza Nata, um rapaz criado pela avó materna. O experimento virtual é baseado no conto homônimo de Luiz Felipe Botelho, tem direção de Cláudio Lira e interpretação do ator Alexandre Sampaio.

A construção do feminino, as lutas, as contradições, as estratégias de sobrevivências, apaziguamento de si e as contendas com o outro são potencializados pela atriz Márcia Cruz no espetáculo Vulvas de Quem? Direção de Cira Ramos e textos de Ezter Liu.

Um Brasil incendiado com sua história é uma reflexão que propõe o espetáculo Inflamável, a partir da atuação de um homem-espectro que tenta expurgar os males causados aos seus ancestrais brasileiros. É inspirado em três poemas do livro homônimo, de Alexsandro Souto Maior (O homem do Pau-Brasil; A margem; Descolonizado). Direção de Quiercles Santana e atuação de Paulo de Pontes.

Bruna Florie faz um convite para que enxerguem como olhar poético a comunidade Alto da Boa Vista, que é berço da cultura popular de Triunfo, no interior de Pernambuco, no trabalho Da laje-palco: respeitável público: o Alto. Já Dentra é para escutar o silêncio e atentar para os cuidados.

No meu terreiro tem Arte – Nós Sem Nossa Mãe, com Helena Nunes e Violeta Nunes. Foto: Rayra Martins

No seu teatro de memória, a brincante sertaneja, atriz, palhaça, cordelista e mãe Odília Nunes mistura de teatro, poesia, circo e tradição popular, em cenas construídas no seu território, o quintal de casa, na comunidade rural em Ingazeira, no sertão do Pajeú. Suas filhas, Violeta Nunes e Helena Nunes atuam com desenvoltura em No Meu Terreiro tem Arte.

O sentido de existir, resistir, persistir e a realidade de mortos por Covid-19, pela polícia, por feminicídio, pela fome são disparadores para Yorick e Os Coveiros Do Campo Santo De Elsinor (Parte 1). É inspirado a Cena I, Ato V, do Hamlet, de Shakespeare. Nessa primeira parte, a peça trata das possibilidades de contato em isolamento. A segunda se volta sobre a solidão desses tempos. Depois da apresentação está marcada uma conversa com a mediação de Elias Mouret.

Práticas Desejantes. Foto Guto Muniz / Divulgação

A abertura de Processo Práticas Desejantes – 1º Movimento mergulha na possibilidade de descolonização do fazer teatral. Quatro artistas pesquisador_s buscam, cada qual no seu quadrado, discutir estéticas e poéticas teatrais que contemplam questões de gênero, memória, narrativas de si, identidades étnicas, visibilidades. Participam Ana Paula Sá, Andrezza Alves, Daniele Ávila Small e Geraldo Monteiro.

Se em Próxima, monólogo de Cira Ramos apresentado em tempos pré-pandêmicos, a atriz, diretora e dramaturga investia no tema da expectativa para a cena, para o próximo filme, o próximo trabalho e os desafios que o tempo apresenta, em Sala de Espera, o mundo se ergue em suspeição e suspensão. Quando a vida volta à vida normal? Será que volta? O que é normal? Essa pandemia está fazendo a gente ficar mais pensativa.

ENTREVISTA // Paula de Renor

Atriz, diretora e produtora Paula de Renor, idealizadora do Reside. Foto Divulgação

Qual suas ideias para o Reside LAB para esse período pandêmico?
O edital de premiação da Lei Aldir Blanc possibilitou a realização desta edição especial, com realização totalmente virtual e em março. O Reside desloca seu olhar para cena teatral local, exibindo 10 espetáculos (11 apresentações) criados para plataforma digital. A primeira apresentação será o Transbordando Marias, de Clara Camarotti, com participação de Conceição Camarotti, e fiz questão de que este trabalho fosse o primeiro a ser exibido na programação, como uma homenagem do Reside à família Camarotti, todos tão importantes para o teatro pernambucano e particularmente para mim! Este trabalho revela também o que podemos esperar de todos os outros: a busca da reciprocidade de um outro olhar, uma nova dinâmica, uma conexão. Os olhares que se movem e encontram essa cumplicidade nas intimidades expostas, percorrendo frustações, medos, forças, dores, desejos, territórios. Uma nova forma de olhar… e através desta busca de uma aproximação via a intimidade escancarada do ator, eu defino meu olhar curatorial. O meu olhar, o seu olhar, no outro.

“Acho que só consigo ter coragem
e força para lutar tanto porque
sou mulher e as mulheres
têm esse poder de superação
quase sobrenatural, né?”

Além das medidas de distanciamento adotadas para evitar a propagação do vírus Covid-19, quais as outras dificuldades encontradas para realizar o festival neste ano?
A maior dificuldade é a falta de verbas para a cultura. Não contamos durante o ano de 2020 com nenhum edital federal, municipal ou estadual, exceto o Funcultura. Já no final do ano emplacamos a Lei Aldir Blanc, uma mobilização da classe artística e dos políticos a contragosto do Governo Federal. As empresas se retraíram nos patrocínios sem entender o alcance da divulgação de suas marcas nos eventos agora totalmente virtuais e os produtores também começaram aos poucos a entender todo esse processo. Eu não pensei em nenhum momento em fazer parte da programação presencial. Acho que até o final desta pandemia, quero que as pessoas fiquem em suas casas e esperem um pouco mais para irem aos teatros. Temos uma responsabilidade não só com o público, mas também com os artistas e por mais cuidado que se tenha, há sempre uma grande tensão e risco, assim eu prefiro restabelecer esse contato do público com o teatro através da tela.

Mas tudo tem um ponto positivo, quais você aponta.
A aproximação das pessoas, dos países, dos idiomas. O mundo ficou mais próximo e parece que menor. Claro que já existiam encontros e ações virtuais, mas nunca se pensou em se realizar por exemplo, mercados de artes cênicas totalmente virtuais. A pandemia apontou para esta possibilidade. Este ano participei da semana dos programadores do Santiago A Mil, no Chile, e do mercado do Festival Internacional de Buenos Aires e foi muito bom! Triplicou a quantidade de programadores do mundo inteiro assistindo aos trabalhos produzidos nestes países. As possibilidades de visibilidade se ampliaram! No Reside, realizaremos 2 Encontros com profissionais do Chile, Bolívia, Argentina, Portugal, Estados Unidos e México. Se fossem presenciais, os custos talvez não permitissem a realização. Esses encontros, trocas, diálogos estão fazendo parte de nosso dia a dia e este formato veio pra ficar! Conseguimos nos encontrar num mesmo momento, num planeta comum chamado “virtual”. Acho formidável!

“Estou cansada de só recebermos
produções e artistas de fora sem
nada que nos garanta nossa
participação lá fora. Não ter
perspectiva de retorno,
não me interessa”.

Adotar uma programação que não estratifica os espetáculos locais dos internacionais, por exemplo, me parece uma posição política de exercício de descolonização do olhar. Fale das suas ideias da programação que amalgama as micropolíticas de democratização.
Quando deixei o Janeiro de Grandes Espetáculos e lancei o CAMBIO em 2017, que em 2018 se transformou no Reside, o meu pensamento era complementar o que já existia na cidade e não repetir formatos. Senti que existia a necessidade do investimento maior nos intercâmbios e programações internacionais e optei em não programar espetáculos locais ou nacionais, para que os recursos, sempre muito poucos, se concentrassem nos intercâmbios e abertura de mercado internacional. A contribuição do Reside passa a ser então, a de preparação da produção local para o mercado internacional ( com perspectiva de 5 anos) e da possibilidade de compartilhar experiências e saberes, dos dois lados, uma via de mão dupla, um aprendizado mútuo! Todos os instrutores e artistas de fora do país que participaram das Residências e espetáculos em 2018 e 2019, deixaram ideias e várias perspectivas de parcerias futuras e isso é muito bom! Também já estou cansada de só recebermos produções e artistas de fora sem nada que nos garanta nossa participação lá fora. Isso acontece no Brasil inteiro! Estou atenta a isso, e essa postura de não se ter perspectiva de retorno, não me interessa. Essa edição do Reside é bem especial e totalmente diferente desse formato idealizado. Todas as apresentações são de trabalhos de Pernambuco e não poderia ser diferente. Temos que seguir a essência e ser fiel aos objetivos da Lei Aldir Blanc ( LAB), de apoio aos nossos artistas, de parcerias para circulação e visibilidade de nossa produção teatral nesse momento tão difícil para a cultura neste país. Respeitamos políticas sociais, de regionalização e de democratização e estamos satisfeitos com os resultados. Acho que todos os festivais tiveram esta postura e isso me orgulha muito!

Como você está se virando para dar conta do festival, da direção do Dona Linda, cuidar da família e da beleza?
Esta é lera né? Beleza já era há muito tempo!!! Já cortei até o cabelo pra nem ele me dar mais trabalho!!!Todo dia um desafio e uma gincana nas tarefas de casa e do trabalho num turno de quase 18 horas por dia! Todo dia uma corrida para execução das tarefas determinadas no cronograma de pendências que nunca se consegue por em dia! Acho que só consigo ter coragem e força para lutar tanto porque sou mulher e as mulheres têm esse poder de superação quase sobrenatural, né?

Paulo de Pontes em 72 DIAS_Foto Keity Carvalho / Divulgação

Cira Ramos em Sala de Espera. Foto: Divulgação

Bruna Florie em Dentra. Foto Divulgação

PROGRAMAÇÃO

16/03/21 – 20h – Transbordando Marias (YouTube do Reside)
Ficha Técnica
Concepção e Direção Geral: Maria Clara Camarotti
Elenco: Conceição Camarotti e Maria Clara Camarotti
Texto livremente inspirado na personagem Maria Josefa, da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca
Equipe de criação: Maria Clara Camarotti, Nana Sodré, Maria Agrelli, Silvinha Góes, Conrado Falbo
Duração: 40 minutos
Classificação indicativa: Livre
Trabalho contemplando pelo edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco.

17/03/21 – 20h – Brabeza Nata (Instagram)
Ficha Técnica:
Texto: Luiz Felipe Botelho
Direção: Cláudio Lira
Elenco: Alexandre Sampaio
Realização: Cia Maravilhas de Teatro
Duração: 20 minutos
Classificação indicativa: 16 Anos

18/03/21 – 20h – Vulvas de quem? (Instagram)
Ficha Técnica:
Texto: Ezter Liu
Direção: Cira Ramos
Elenco e produção: Márcia Cruz
Sonoplastia: Fernando Lobo
Música: Flaira Ferro
Iluminação: Luciana Raposo
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Cia Maravilhas de Teatro
Duração: 20 minutos
Classificação indicativa: 16 Anos

19/03/21 – 20h – Inflamável (Instagram)
Ficha Técnica:
Autor: Alexsandro Souto Maior
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e Produção geral: Paulo de Pontes
Direção de Arte: Célio Pontes
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Produção executiva: Márcia Cruz
Realização: Pontes Culturais
Duração: 25 minutos
Classificação indicativa: 16 Anos

20/03/21ENCONTRO Dramaturgia Ibero-americana na Pós-pandemia – Das 17h às 19h – YouTube do Reside
Participantes:
Diego Aramburo – Dramaturgo e encenador (Bolívia)
Damián Cervantes – Ator, encenador e dramaturgo (México)
Lorena Vega – Atriz, encenadora e dramaturga (Argentina)
Mediação: Rodrigo Dourado – Professor, encenador e dramaturgo (PE/Brasil)

21/03/21 – 20h – 72 dias (YouTube do Reside)
Ficha Técnica:
Dramaturgia: Paulo de Pontes e Quiercles Santana
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e Produção geral: Paulo de Pontes
Direção de Arte: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Streamer: Márcio Fecher
Produção executiva: Márcia Cruz
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Pontes Culturais & Cia Maravilhas de Teatro
Duração: 45 minutos
Classificação indicativa: 18 Anos

22/03/21 – 20h – Bruna Florie: da laje-palco: respeitável público, o Alto e DENTRA (YouTube do Reside)
Ficha Técnica:
Direção, roteiro, atuação e produção: Bruna Florie
Assistente de produção e videomaker: Guilherme Andrade
Filmagens com drone: Maycon Jonathan
Maquiagem: Karol Virgulino
Participações especiais de artistas do Alto da Boa Vista: Joaneide Alencar, Carlinhos Artesão e Jéssica Caitano
Edição, fotografia e direção de arte: Bruna Florie
Trilha Sonora: “Beat the Burglar” – Scott Holmes, “Repente” – Jéssica Caitano & Chico Correa, “Música Lab II”- Jéssica Caitano & Paulo Beto, “Canarin” – Jéssica Caitano & Chico Correa
Duração: 15 minutos e 35 segundos.
ESPETÁCULO: Dentra
Ficha Técnica:
Direção geral e produção: Bruna Florie
Roteiro: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Assistente de produção Ie videomaker: Guilherme Andrade
Assistente de produção II: Geibson Nanes
Trilha Sonora: “Sad walk with sad piano” – komiku, “Amaryllis Flower” – Ivy Meadows, “Dreaming of You” – Komiku
Edição, montagem, fotografia: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Direção de arte, atuação e poema Dentra: Bruna Florie
Duração: 5 minutos e 31 segundos.
Classificação: Livre

23/03/21 – 20h – Meu Terreiro tem Arte (YouTube do Reside)
Ficha Técnica:
Brincantes/palhaças/atrizes : Odília Nunes, Violeta Nunes e Helena Nunes
Criação Geral: Odília Nunes
Duração: 33 minutos
Classificação indicativa: Livre

24/03/21 – 19h – Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1) – (YouTube do Reside)
Ficha Técnica:
Criação Cênica e Dramaturgismo: Andrezza Alves, Enne Marx, Daniel Machado, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana
Dramaturgia: Quiercles Santana e William Shakespeare
Performance: Andrezza Alves, Enne Marx e Marcondes Lima
Direção de Arte: Marcondes Lima
Assistência de Direção, Foto, Vídeo e Edição: Daniel Machado e Geraldo Monteiro
Designer e Direção Musical: Daniel Machado
Criação em Arte-Tecnologia, Streaming e Plataformas Digitais: Geraldo Monteiro
Produção: Andrezza Alves
Direção Geral: Quiercles Santana
Duração: 45 minutos
Classificação Indicativa: 15 Anos

25/03/21 – 19h – Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1) – (YouTube do Reside)

26/03/21 – 20h – Práticas Desejantes – Primeiro Movimento (YouTube do Reside)
Ficha Técnica:
Idealização e performance: Andrezza Alves e Daniele Ávila Small
Pesquisa, levantamento do material, criação do repositório, dramaturgia e curadoria: Ana Paula Sá, Andrezza Alves, Daniele Ávila Small e Geraldo Monteiro
Mediação dos encontros e produção: Ana Paula Sá, Andrezza Alves e Daniele Ávila Small
Edição, plataforma digital, gerenciamento e compartilhamento de conteúdos: Geraldo Monteiro
Identidade Visual: Analice Croccia
Fotografia: Guto Muniz – Foco in Cena
Duração: 30 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos

27/03/21 – ENCONTRO: Adaptações e Modelos de Festivais de Artes Cênicas – das 17h às 19h – canal RESIDE no YouTube
Participantes:
Antonio Altamirano – Diretor artístico do Festival Cielos del Infinito (Chile);
Gonçalo Amorim – Diretor Artístico do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (Portugal)
Elizabeth Doud – Curadora, produtora e performer ( Estados Unidos)
Mediação: Felipe Assis – Diretor Artístico do FIAC-Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia

28/03/21 – 20h – Sala de Espera – (YouTube do Reside)
FICHA TÉCNICA:
Roteiro adaptado: Cira Ramos
Direção: Fernando Lobo
Supervisão Artística: Sandra Possani (Contatos remotos)
Assistência de direção: Cira Ramos
Atuação: Cira Ramos
Direção de fotografia: Fernando Lobo
Trilha sonora original: Fernando Lobo e Fábio Valois
Iluminação: Fernando Lobo
Sonoplastia: Fernando Lobo
Captação de áudio: Fernando Lobo
Assistente de captação de áudio: Alice Lobo
Assistência de Fotografia e iluminação: Julia Lobo e Alice Lobo
Animação: Julia Lobo e Alice Lobo
Edição e Montagem: Fernando Lobo
Imagens de Carnaval, cedidas do arquivo HIGH TECH Vídeos Profissionais.
Duração: 22 Minutos
Classificação Indicativa: 14 Anos

29/03/21WORKSHOP/Conversa – das 15 às 17h – Plataforma Zoom ( por meio de inscrição )
Com Paul Davies/Volcano Theatre (País de Gales/UK)

Dia 31/03/21Resultado da Residência Artística – às 19h YouTube do RESIDE
Qual o caminho para os Jardins?

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Episódio de censura com atriz trans Renata Carvalho inspira Evangelho Segundo Vera Cruz

Fotomontagem com Elke Falconiere em O Evangelho segundo Vera Cruz, peça pernambucana inspirada em  O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com Renata Carvalho

Elke Falconiere e Joe Andrade, artistas trans na peça O Evangelho Segundo Vera Cruz. Foto: Ricardo Maciel

Elke Falconiere, Jailton Jr., Dante Olivier, Rodrigo Cavalcanti (abaixado), Joe Andrade. Foto: Ricardo Maciel

Como Jesus Cristo seria recebido neste século 21, se retornasse no corpo de uma travesti? Esse é um dos questionamentos do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, escrito pela britânica Jo Clifford, e que ganhou uma adaptação no Brasil, traduzida e dirigida por Natalia Malo, com atuação de Renata Carvalho. Desde sua estreia, a peça sofreu uma série de retaliações, incompreensões (principalmente por quem nem assistiu à montagem), boicotes, censuras. Segundo a própria atriz, o episódio mais marcante em sentido negativo ocorreu em 2018, durante a 28ª edição do Festival de Inverno de Garanhuns, no Agreste pernambucano, que, ironicamente, tinha adotado para aquele ano o tema da liberdade.

Esses acontecimentos de censura ao espetáculo da atriz Renata Carvalho são retrabalhados em O Evangelho segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, grupo pernambucano que está completando 10 anos. De acordo com Rodrigo Dourado, dramaturgo e diretor do trabalho, a peça é um retrato desse momento político único e uma homenagem. “Como gesto artístico, é também uma ação para reverter essa condição de vulnerabilidade em que são lançadas as vidas LGBTs, mas também de negros, mulheres, e todos os que são alijados de seus direitos básicos”.

A peça é, especialmente, um manifesto pela representatividade, contando com forte presença da comunidade transgênera em seu elenco, com a estreia das atrizes Elke Falconiere, Joe Andrade e do ator Dante Olivier, acompanhados dos atores Rodrigo Cavalcanti e Jailton Jr.

A montagem O Evangelho segundo Vera Cruz está em temporada online por meio da plataforma Zoom, às quintas-feiras, 26/11, 03/12 e 10/12, às 20h. Ao final de cada apresentação, o grupo passa um chapéu virtual, no esquema Pague Quanto Puder, de contribuição livre, por meio de depósito bancário.

Rainha do Céu

Ao contrário de seus detratores, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu imprime um discurso de tolerância, exaltando a centelha divina de TODO ser humano. Defende que amar é uma ação revolucionária e que o perdão é basilar para uma convivência pacífica. Entre distribuição de pão e vinho, a protagonista faz uma reencenação, digamos, “pop” da Última Ceia. Predomina a serenidade no tom, com um linguajar jovial para levar à cena a proposição de que se Jesus regressasse como uma travesti seria novamente crucificado aos 33 anos. Ou menos.

A média de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, quando a média do brasileiro chega a 75. De acordo com o Boletim nº 4 de Assassinatos contra travestis e transexuais da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), em 2020, 129 pessoas trans foram assassinadas de janeiro a 31 de agosto no Brasil, o que registra um aumento de 70% em relação a 2019. Entre 2017 e 2020, 436 pessoas trans foram mortas. Em 2019 foram registrados no Brasil 124 assassinatos de pessoas transsexuais, o que dá uma média de um homicídio a cada três dias, segundo o levantamento. É um genocídio, com a mão ou conivência do Estado.

A peça já havia sido censurada em Jundiaí, no interior paulista, no Rio de Janeiro e em Salvador. E foi boicotada em muitos outros lugares. No interior de Pernambuco, o golpe foi duro. O espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi convidado pela curadoria do Festival de Inverno de Garanhuns, retirado do festival, reinserido, apresentado na garra e apartado da programação. Cenário de intransigência cultural, “trapalhadas” políticas, e demonstrações de reacionarismo.

A atriz Renata Carvalho enfrentou um calvário de intolerância, cujo ápice ocorreu em 27 de julho de 2018, o que ela considera o “episódio de censura mais violento” que já viveu, com ação de boicote do festival, oficiais de justiça e até a explosão de uma bomba caseira no local da apresentação, numa noite tensa e chuvosa.

Repúdio de líderes religiosos. Mandado de segurança. Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região. Tribunal de Justiça de Pernambuco cede à pressão da igreja. Liminar proíbe apresentação da peça. Desembargadores dão decisão favorável à (re)inclusão do espetáculo no FIG. Secretaria de Cultura e Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco sustentam exclusão.

Esse episódio todo foi de um desrespeito muito grande. Foi a transfobia institucionalizada. Claro, toda censura agride, como aconteceu em Salvador, em Jundiaí e até no Rio de Janeiro. Mas essa de Garanhuns foi sem dúvidas a mais violenta que nós já sofremos com a peça.
Renata Carvalho, ao The Intercept_Brasil

O dramaturgo e diretor Rodrigo Dourado acompanhou de perto toda essa movimentação. “A questão se converteu num problema político eleitoral, pois prefeito (Izaías Regis) e governador (Paulo Câmara) pertencem a polos opostos do espectro político”, pontua. Dourado integrou o grupo de agentes culturais que fez uma mobilização para que Rainha do Céu fosse apresentada, de forma independente da programação do FiG. “Após inúmeras ameaças e conflitos, Renata Carvalho decidiu realizar a performance mesmo desprovida de todos os aparatos técnicos, contando para isso com o apoio da plateia que desejava vê-la em cena”.

Rodrigo avalia que aquele episódio emoldurou duas energias morais e políticas muito fortes que têm se antagonizado no Brasil. “De um lado, um conservadorismo neofascista e censório, que deseja apagar formas de vida e de expressão não normativas. De outro, movimentos civis que resistem à onda reacionária e exigem seu direito à existência e à cidadania”.

A própria Renata Carvalho alertou à época que aquele não era um caso isolado direcionado contra uma artista trans, mas a demonstração de que a censura estava colocando suas garras para fora.

Dito e feito. Os discursos de ódio e intolerância foram contemplados nas urnas de 2018 e posições conservadoras, reacionárias mostram um orgulho de discriminar o outro – seu dessemelhante.

Entrevista // Rodrigo Dourado, dramaturgo e encenador

Rodrigo Dourado. Foto: Ricardo Maciel / Divulgação

Quais as motivações para erguer O Evangelho segundo Vera Cruz? E durante a pandemia não ficou mais difícil?
Nesse período de 2020, a gente tinha programada uma série de ações para comemorar os 10 anos do Teatro de Fronteira. Precisamos rever tudo. A partir de março, fizemos a primeira temporada de Luzir é Negro!, que era a primeira ação e a temporada já foi bastante prejudicada pela quarentena. O público já foi bem baixo. Então, a gente aprovou várias ações em editais emergenciais como o Arte como Respiro, do Itaú Cultural, Cultura em Rede, do SESC Pernambuco, e o ConVida, do SESC Nacional. O Evangelho Segundo Vera Cruz foi a ação apoiada pelo Cultura em Rede, do SESC de Pernambuco. Esse texto, que tinha sido escrito por mim em 2019, estava engavetado, não tinha sido montado nem publicado e decidimos submeter ao edital.  Quando foi aprovado, começamos o trabalho de montagem no formato online. No início, sim, foi muito difícil a adaptação às plataformas online. A gente não sabia muito bem lidar com tudo aquilo. Foi um aprendizado enorme, porque além da tecnologia em si, quer dizer, os recursos que a plataforma tem, a gente tinha situações de acesso à internet muito diversas, realidades sociais muito diversas dentro do elenco. Precisamos criar uma harmonia, uma unidade entre essas situações, para chegar a um ponto mínimo, ter um denominador comum que nos permitisse uma qualidade mínima de transmissão e a utilização dos recursos da plataforma.
Mas, eu não posso dizer que foi mais difícil do que montar um espetáculo presencialmente. Teve as suas especificidades, mas o processo em si, o tempo, a quantidade de ensaios, a pesquisa, o trabalho de ator, as descobertas da encenação, tudo isso é muito parecido com formato presencial. O que muda somente é o meio.

A peça recria os episódios de censura sofridos pela atriz Renata Carvalho com seu espetáculo, no ano de 2018, na cidade de Garanhuns/PE. Como é feita essa recriação? Quais aspectos são destacados na peça?
Eu participei daquele movimento que levou a peça a Garanhuns, junto com várias outras pessoas. Eu fui observador e, desde aquele momento, quando estávamos ainda inseridos nele, vivendo, eu já sentia essa teatralidade pulsante de tudo que estava acontecendo. O debate público que o teatro estava gerando, os conflitos sociais, no sentido dos estudos da performance um certo ‘Drama Social’ que o espetáculo estava ocasionando. Então, já me parecia tudo muito teatral: a sociedade garanhuense, pernambucana, discutindo nas ruas esse tema; o coro público, a voz das ruas, o teatro midiático que foi feito em cima disso nas redes sociais, na imprensa; os shows na Praça Guadalajara e as provocações nos shows; todos esses elementos foram trazidos de alguma forma para dentro da dramaturgia. É uma dramaturgia que transita bastante entre o épico, o narrativo, as formas mais populares de narrar, personagens-tipo, a gente tem também uma citação ao mamulengo numa determinada cena. E tem seus traços dramáticos, porque na peça existe um conflito paralelo ao conflito público que estava acontecendo, que é a história de um casal LGBT formado por um homem cis e um homem trans, da cidade de Garanhuns, e que estão na linha de frente do movimento que levou a peça à cidade. E também tentamos, de alguma forma, nos aproximar da história de vida da Renata, das questões da atriz. Então, tem uma questão da intimidade da Renata que é recriada. Agora tudo isso com alguma liberdade artística. Não temos um compromisso factual 100%. A gente recria algumas coisas, poetiza algumas coisas; dramaturgicamente eu posso dizer que o arranjo é esse.

Renata Carvalho participou de alguma das apresentações? Como ela recebeu a iniciativa da peça?
Nesta versão da peça, atual, que é a terceira, Renata participa fazendo uma voz em off, uma locução de um trecho da peça. Mas também há vários depoimentos dela que foram resgatados da Imprensa e utilizados na peça. Ela não assistiu à peça ainda, mas tem acompanhado o processo. Leu o texto, fez sugestões, críticas e junto com o elenco trans a gente foi debatendo, discutindo, confrontando aspectos da dramaturgia para que, de alguma forma, ficasse mais justa e mais fidedigna à experiência de vida trans, já que eu sou um homem cis escrevendo sobre essas experiências. Então Renata esteve sempre no suporte, no apoio a todo esse processo, mas ela não assistiu à peça ainda.

Para quem não acompanhou esse episódio, você poderia falar sucintamente do caso de censura à peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com Renata Carvalho, em Garanhuns, em 2018?
A peça foi escalada para a programação do Festival de Inverno de Garanhuns, em 2018, pela curadoria da Fundarpe/Secult/PE. Assim que a programação foi anunciada pela imprensa, o prefeito da cidade, Izaías Regis, foi aos meios de comunicação anunciar que não aceitaria receber a montagem, alegando que a cidade era cristã e que, supostamente, o trabalho feriria a comunidade local por trazer uma travesti na personagem de Jesus Cristo. Vários veículos de imprensa da cidade apoiaram o prefeito, que, na sequência, recebeu ainda apoio do bispo local e de representantes da comunidade evangélica. O Governador Paulo Câmara e a Fundarpe, a princípio, sustentaram que a peça se manteria na programação e que, uma vez proibido pelo prefeito o uso do teatro municipal (Luiz Souto Dourado), buscariam apoio de outras entidades para acolher a encenação. A questão se converteu num problema político eleitoral, pois prefeito e governador pertencem a polos opostos do espectro político e o governador buscava a reeleição. Logo, o prefeito passou a fazer uso eleitoral do episódio a fim de desgastar a imagem do governador. Com o apoio da bancada evangélica no Assembleia Legislativa, ameaçando mobilizar seu rebanho contra o governador, não demorou muito para que Paulo Câmara recuasse de sua decisão, anunciando que a peça tinha sido excluída da programação. Rapidamente, um grupo de agentes da sociedade civil mobilizou-se e empreendeu um movimento para arrecadar fundos e levar a peça à cidade de maneira independente. Houve inúmeras ameaças a esse movimento e à própria vida da atriz e a apresentação aconteceu sob forte sigilo. A justiça também foi invocada para impedir a realização da apresentação. Num último instante, a Fundarpe decidiu apoiar o espetáculo, oferecendo infraestrutura técnica de som, luz, etc. Mas uma decisão judicial de última hora foi emitida, após o transcorrer da primeira apresentação, proibindo que a peça se realizasse. Ao receber a notificação, a Fundarpe começou a desmontar toda a infraestrutura que havia disponibilizado, atrapalhando a realização da segunda récita. Após inúmeras ameaças e conflitos, Renata Carvalho decidiu realizar a performance mesmo desprovida de todos os aparatos técnicos, contando para isso com o apoio da plateia que desejava vê-la em cena.

Como observador privilegiado e um dos articuladores da desobediência à ordem esdrúxula dos governantes, quais os sentidos que foram despertados em você naquele momento, e quais sentimentos guarda até hoje?
Para mim, aquele episódio emoldurou duas energias morais e políticas muito fortes que têm se antagonizado no Brasil. De um lado, um conservadorismo neofascista e censório, que deseja apagar formas de vida e de expressão não normativas. De outro, movimentos civis que resistem à onda reacionária e exigem seu direito à existência e à cidadania. Trata-se de um momento histórico do teatro brasileiro do século XXI, porque a peça já havia sido censurada em diversas cidades, mas em nenhum lugar, como em Pernambuco, houve um movimento tão potente de resistência e desobediência ao poder institucionalizado. Em O Evangelho segundo Vera Cruz, eu tomo claramente lado, o lado desses sujeites que escapam aos padrões, dessas vidas dissidentes, já que sou um homem gay que sofreu e sofre na pele os horrores do preconceito e da perseguição aos desviantes. A peça é, portanto, um retrato desse momento político único e uma homenagem a essas vidas precárias. Como gesto artístico, é também uma ação para reverter essa condição de vulnerabilidade em que são lançadas as vidas LGBTs, mas também de negros, mulheres, e todos os que são alijados de seus direitos básicos.

O teatro que é transmitido pelas redes realmente derrubou barreiras geográficas, pois numa mesma apresentação podemos ver gente de várias partes do Brasil e do mundo. Como você (s) percebe (m) a recepção da peça? Dá para fazer um pequeno percurso desde a estreia?
Sobre a recepção à peça: a gente teve duas situações muito diferentes até agora. A gente fez um processo aberto pelo Sesc. Primeiro, realizamos um debate sobre a peça, depois fizemos um ensaio aberto com a exibição de pequenas cenas. Esses dois tiveram uma presença muito boa de público interessado em conhecer um processo teatral, de saber como se desenvolve um processo teatral. Esse aspecto de uma pedagogia mesmo do espectador. E no terceiro momento, no Sesc, a gente teve a apresentação em si da leitura, havia 150 pessoas na sala do Zoom nos assistindo, uma plateia gigante, muito participativa. Ao final, fizemos mais uma linda conversa. Foi muito bonito ver as contribuições, as colaborações, as intervenções, as indagações trazidas por esse público ao longo desse processo todo que a gente viveu no Sesc.
Num segundo momento, a gente apresentou a peça em Guaramiranga, no Festival Nordestino de Teatro. E aí sim, a gente não fez a peça para a plateia no Zoom, retransmitimos o que estávamos fazendo no Zoom pelo YouTube. Então a plateia pôde assistir à peça pelo YouTube e interagiu bastante com a peça via YouTube. Já era uma segunda versão com substituição de atores, com mudança na dramaturgia, com a chegada da Elke Falconieri, a saída de Marconi Bispo. Então, a gente tinha ampliado a representatividade trans do elenco. Foi muito bom fazer essa versão em Guaramiranga, porque no dia seguinte tivemos um debate em que pudemos ouvir os curadores e conhecer as impressões, os apontamentos deles, que também ajudaram a peça a chegar até essa terceira versão, que nós estamos apresentando agora. Agora, a gente tá enfrentando uma dificuldade maior de público, porque estamos fazendo uma temporada com ingressos pagos, com bilheteria. As outras ocasiões foram todas gratuitas, porque a peça já estava comprada, subsidiada – digamos assim – pelas instituições que nos convidaram. Agora é um momento nosso, de uma temporada independente. E aí sim, está sendo mais difícil a chegada desse público. Talvez por conta das dificuldades financeiras, pelo cansaço do formato online, já que a gente está se aproximando do final do ano, várias questões que a gente tem levantado para entender, para compreender essa dificuldade com o público. Mas é quase como se a gente estivesse na forma presencial, enfrentando aquela dificuldade de fazer teatro presencial na base da bilheteria, caçando público, fazendo um esforço gigante para chegar ao público. E só para fazer um complemento, nessas ocasiões todas a gente teve público do Brasil inteiro, Minas, Pará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, outros estados do Nordeste, Centro-Oeste. É muito bonito ver o movimento do Brasil podendo conferir essas obras nesse formato online.

Gostaria que você falasse do elenco. Houve alterações, ampliação participativa de artistas trans, como se deu isso? E mesmo que pareça óbvio tem coisas que precisam ser reditas, qual a razão das escolhas?
Desde o início, eu como homem cis escrevendo essa peça, tinha convicção de que, primeiro, o texto precisava ser submetido a uma crítica sistemática da comunidade trans. E que a gente precisava ter representatividade no elenco, porque toda a questão que atravessa o debate levantado por Renata diz respeito à representatividade, à presença de corpos e cidadãos/sujeites trans nas peças que trazem narrativas de vida trans. Essa era uma questão central para mim desde o início. A princípio foram convidados Joe Andrade e Dante Olivier, que foram alunos meus na UFPE; a Joe do curso de teatro e o Dante do curso de artes visuais, mas fez comigo uma disciplina que ofereço de “Teatro, Gênero e Sexualidades Dissidentes”. E a gente tinha o elenco do Fronteira, Marconi (Bispo), Rodrigo Cavalcanti e o Jailton Júnior, que também foi meu aluno da Federal e agora integra o Fronteira. Marconi precisou se afastar do grupo e eu imediatamente pensei em convidar a Elke Falconiere, que também foi minha aluna na UFPE, que é uma mulher trans, foi minha orientanda de TCC. E, para ampliar essa representatividade, inclusive, trazendo a Elke para interpretar personagens cis, não só personagens trans. O caminho foi por aí. Para a gente, é fundamental; não faz sentido essa peça existir sem essa presença. Hoje a gente tem maioria trans no elenco, temos três pessoas trans e duas  cis. A presença delas é fundamental. Não só do ponto de vista dessa crítica que elas podem fazer aos conteúdos e às formas da peça, mas sobretudo como uma forma de inserção no mercado artístico, de visibilização do trabalho delas. Está sendo muito importante para nós.

“A montagem é também um gesto criativo diante das dificuldades pandêmicas, uma forma de manter a chama do teatro acesa, explorando para isso os meios virtuais”. Já que o assunto é tocado… quando a pandemia se instalou houve uma discussão sobre se o que é apresentado via internet é teatro ou não. Sem julgamentos de posições, já que estamos num processo de desbravar territórios e rever paradigmas, qual sua avaliação desse momento teatral?
Sobre a questão do teatro online: lá atrás, quando começou a pandemia, mais ou menos em abril, eu escrevi um artigo chamado “Teatros da pandemia: o giro viral”, em que faço uma provocação e um prognóstico de que esse momento iria gerar uma virada de chave no teatro, no sentido de, ao invés do teatro parar e se deparar com uma encruzilhada sem solução – já que não há presença, não há teatro – que caminhos o teatro iria tomar. E de lá para cá, a gente viu que o formato online foi bastante ocupado, foi bastante explorado, está sendo explorado, dilatado. Para mim, já nem é mais uma discussão essa de se o teatro online é teatro ou não. É teatro online. É uma forma que fricciona as formas digitais, as formas audiovisuais, as formas teatrais, mas que claramente se distingue de outras formas audiovisuais e online; se distingue da novela, se distingue do cinema, se distingue da videoarte, se distingue dos canais do YouTube, se distingue das formas digitais como o videogame ou outras mídias digitais, do streaming. Então, acho que tem uma especificidade aí do teatro ocupando esse espaço, que para mim já está muito clara. Além disso, tem uma lida também com os arquivos de teatro. A gente tem muito arquivo de espetáculos gravados, filmados, sendo revisitados e pesquisados e vistos, servindo como material didático, também ocupando um certo espaço dessa experiência presencial do teatro. E um retorno que o público tem nos dado, frequentemente, é que estar no teatro online é como estar no teatro. As pessoas se encontram na plateia, na antessala, no hall. Saber que as pessoas estão ali cria uma noção de convívio, de convivialidade, aquilo que Jorge Dubatti tem chamado de tecnovívio. A gente saiu de um convívio para um tecnovívio. Tem essa precariedade também, do artesanato teatral feito online, então tem improviso, tem jogo, tem as possibilidades infinitas que a internet oferece, que estão sendo explorados, mas também tem a instabilidade da internet que nos obriga a jogar, a improvisar como no teatro.
Tem a sensação do ao vivo, tem o bastidor, que é a casa dos atores. É quase como se as formas tradicionais do teatro, elas tivessem encontrado outras maneiras de ser. Tá tudo lá. A sensação que eu tenho é que está tudo lá. Para mim é um ganho, uma dilatação, é uma expansão das possibilidades do teatro, que não apaga nem dissolve ou desfaz o teatro presencial – que já está retornando em alguns lugares e vai retornar – mas que cria outras outras veredas.

Bem, como anda o teatro pernambucano?
Eta nós! Acho que o teatro pernambucano está vivíssimo como sempre esteve. Acho que a gente tem um movimento na cidade, de teatro grupo, de grupos de jovens. Grupo Bote de Teatro, Grupo Resta 1, Grupo AmarÉ, o Teatro Bordô, Coletivo Despudorado, Grupo Afrocentradas. Acho que o teatro local irremediavelmente está dialogando com as questões raciais, étnicas, com as questões da mulher, com as questões LGBTs, com as questões trans, com as questões periféricas. Nosso teatro está nesse movimento. Acho que a gente tem aí grupos que já tão na maturidade, como Totem, Fiandeiros, Cênicas; o Teatro de Fronteira está chegando aos 10 anos, eu diria que é um adolescente ainda, mas que já tem uma estrada. Então é um teatro que sim, tá vivo, é um teatro que de alguma forma encontrou seus caminhos também pela internet. A gente tem visto experimentos, sejam da Casa Maravilhas, com as suas lives; seja o Grupo O Poste fazendo suas lives e seus experimentos também; a Criative-se Cultural realizou um pioneiro trabalho online por aqui; temos os grupos de teatro como a Fiandeiros e a Cênicas de Repertório mantendo as atividades de ensino. A gente tem o Fronteira aí também experimentando o formato online, não somente como o Evangelho, mas também com o Puro Teatro (Arte Como Respiro), disponibilizando ainda arquivos de suas peças. Hermínia Mendes performando para o Arte como o Respiro; o Coletivo Angu lançando um texto inédito de Marcelino Freire também no Arte como Respiro; a gente teve vários experimentos que foram feitos para o Sesc-PE, como os experimentos de Paulo de Pontes (dirigido por Quiercles Santana), o de Clara Camarotti; a força sertaneja de Odília Nunes vertendo para o online; as Violetas da Aurora clownando para as redes; outras produções de conteúdo pelo Coletivo Grão Comum, Grupo Cênico Calabouço, por meio de diálogos online; um coletivo de artistas pernambucanos, radicados no RJ, encenando Muribeca, de Marcelino Freire (criação de Wellington Jr. Breno Fittipaldi, Reinaldo Patrício); o Magiluth reproduzindo as experiências pioneiras de teatro não-presencial um-a-um que iniciaram sendo feitas na Europa, nos EUA. Cito uma delas em meu artigo, da Cia. La Colline, de Paris. Pode ter inspirado o grupo. Enfim…
Então acho que é um teatro que encontrou seus caminhos também nesse formato online. Eu penso que o nosso teatro é muito contemporâneo, ele está em diálogo com tudo que está acontecendo aí pelo mundo, apesar das dificuldades financeiras e econômicas, que são na verdade uma realidade do Brasil inteiro. Eu acho que a gente continua resistindo e persistindo em fazer teatro.

Qual o seu posicionamento sobres políticas públicas culturais, tanto do Governo do Estado de Pernambuco, quanto da prefeitura do Recife?
Acredito que as políticas públicas para a cultura em Pernambuco e no Recife são já precárias e vêm se precarizando cada vez mais. Ao longo dos oito anos da gestão do prefeito Geraldo Júlio (PSB), houve um desmonte absurdo de diversas políticas culturais, de equipes. Equipamentos culturais foram sucateados, como o Teatro Apolo-Hermilo. Não existe uma política de programação, de fomento à pesquisa de grupos, de formação de plateia. O Parque está sendo entregue agora, às vésperas da eleição. O importantíssimo Festival Recife do Teatro Nacional foi esvaziado. Não houve canal de diálogo com a classe teatral. O SIC foi retomado num formato estranho, priorizando eventos que contam com a participação de membros da prefeitura em suas equipes de criação. Por sua vez, a Fundarpe tem se mostrado incompetente na gestão do Funcultura, com atrasos sistemáticos de prazos, além dos atrasos nos pagamentos de cachês de artistas e a criação de instrumentos sem a escuta da sociedade civil, como no caso do Prêmio Pernalonga. É preciso que haja mais recursos, mais escuta, mais celeridade e que se desenhe, de fato, um Programa Cultural a ser cumprido durante as gestões e não apenas como promessas de campanha. Mais importante: é preciso separar o doméstico do público, entendendo o espectro cultural em sua amplitude, em sua diversidade, e não apenas atendendo às crenças e valores privados dos gestores.

FICHA TÉCNICA || O Evangelho Segundo Vera Cruz
Atuação: Dante Olivier, Elke Falconiere, Jailton Júnior, Joe Andrade y Rodrigo Cavalcanti
Direção e dramaturgia: Rodrigo Dourado
Produção: Rodrigo Cavalcanti
Designer de luz: Natalie Revorêdo (Farol Ateliê da Luz)
Efeitos sonoros: Jailton Júnior
Teasers: Dante Olivier
Registro Fotográfico e Identidade Visual: Ricardo Maciel
Realização: Teatro de Fronteira

Serviço:
O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira 
Exibição: Plataforma do Zoom
Quando: Quintas-feiras, às 20h, até 10 de dezembro
Classificação Indicativa: 16 anos
Duração: 70 minutos
Informações: teatrodefronteirape@gmail.com | @teatrodefronteira

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