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Corpo e poesia: Magiluth e Miró no teatro

Miró: Estudo Nº2 estreia em curta temporada no Itaú Cultural. Foto: Ashlley Melo

“A minha poesia, ela não é só a minha poesia, ela é o meu corpo.”
Miró da Muribeca em entrevista para a Trip TV

Giordano Castro, ator e dramaturgo do grupo Magiluth, do Recife, disse que já viu acontecer: “As pessoas pegarem o livro e alguém dizer, ah, mas tu tem que ver, bota o vídeo dele na internet. Caralho! Não, porra. Lê, caceta. Ele é foda e tal, mas a gente é finito. Ele morreu, a gente vai morrer, todo mundo vai. E o que vai ficar é o que o cara produziu. E obviamente era incrível ver a performance dele, mas isso era ele. E o que cabe ao Magiluth? O que vai caber a outra pessoa fazer?”, questiona.

Nesta quinta-feira, 20 de abril, o encontro entre o grupo de teatro pernambucano e Miró da Muribeca, poeta que andava pelas ruas do Recife vendendo os próprios livros e fazendo poesia do que via, vai estrear no Itaú Cultural. Miró: Estudo nº2 segue a trilha aberta por Estudo nº1: Morte e Vida, inspirada em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que também estreou em São Paulo, em janeiro de 2022, no Sesc Ipiranga.

Mas, antes desses dois, tiveram também os trabalhos da sobrevivência, quando só dava para criar de dentro de casa e o corpo era materializado na imaginação de quem ouvia a voz dos atores em Tudo que coube numa VHS, Todas as histórias possíveis e Virá. E, se a gente puxar, o novelo vai longe, porque as coisas estão entrelaçadas e vão se desdobrando na trajetória de um grupo que permanece junto desde os tempos dos corredores do Centro de Arte e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, em 2004, quando o grupo foi formado.

Se a principal pergunta de Estudo nº1 é “como montar uma peça de teatro?”, a pergunta evocada em Estudo nº2 é “como fazer um personagem?”, a partir da obra e da figura de Miró, que morreu em julho de 2022, aos 61 anos. “A gente tem uma perspectiva muito particular sobre personagem, sobre se colocar em cena. Não há uma investigação muito stanislavskiana ou aprofundada mesmo. É algo muito mais perto do jogo, do estado de presença, do que da ideia da própria figura”, conta Castro.

Miró escrevia poesia sobre a cidade, o amor, a violência e tudo que via. Foto: Ashlley Melo

O grupo pensou em montar uma peça a partir da obra de Miró em 2015, quando ocupava uma sala no Edifício Texas, no bairro da Boa Vista, região central do Recife, e passou a encontrar e conviver com Miró mais de perto. Em parceria com o diretor Pedro Escobar, chegaram a gravar alguns vídeos com poesias e mostraram ao cronista lírico do cotidiano, como se definia João Flávio Cordeiro da Silva, nome de registro de Miró.

O poeta, que sim, performava suas poesias de maneira única, disse algo que marcou os atores. “Nossa, eu gosto muito de ver os vídeos de vocês porque eu vejo a minha poesia e isso é muito forte. Sempre quando me dizem poeta, dizem que minha poesia é minha performance, como se uma coisa estivesse sempre ligada a outra e quando eu vejo vocês fazendo, eu não vejo a minha performance, eu vejo o meu texto, a minha poesia”, relembra Giordano Castro.

E ainda que palavra seja corpo, principalmente depois da morte de Miró, vincular sua poesia à sua performance não seria matar ou deixar morrer também a poesia? E o quanto a pecha de performático, que nesse caso carrega muitos julgamentos, como àqueles relacionados ao consumo de álcool, uma questão com a qual Miró teve que lidar principalmente depois da morte da mãe, pode reduzir ou restringir a obra em tantos âmbitos?

Se as coisas não mudaram (já que essa conversa com Giordano Castro foi no fim de março), você, espectador, pode esperar uma cena de 20 minutos, só com textos de Miró. “E vai ser uma cena de teatro”, avisa. “E a gente diz, velho, vê como é possível a poesia desse cara se transformar e ir para lugares além dele! Não, nós não vamos reduzir a poesia de Miró a ele mesmo”.

Miró: Estudo N°2, do Grupo Magiluth

Quando: de 20 a 30 de abril, de quinta-feira a domingo
Horário: Quinta-feira a sábado, às 20h; domingos e feriados às 19h
Quanto: Gratuito.
Ingressos: Para retirar ingressos com antecedência, é preciso acessar o site do Itaú Cultural. Os ingressos reservados valem até 10 minutos antes do início da sessão. Após esse horário, os ingressos que não tiverem o check-in feito na entrada do auditório, perdem a validade e serão disponibilizados para a fila de espera organizada presencialmente. A bilheteria presencial abre uma hora antes do evento começar para retirada de uma senha, que posteriormente pode ser trocada pelos ingressos de pessoas que não compareceram.
Duração: 90 minutos

Ficha Técnica:
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

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Correspondência de artista, Brasil de hoje, teatro documental e urgente

Espetáculo Cartas foi montado com o apoio do Aprendiz em Cena. Foto: Coletivo Caverna

Intensos 11 anos, entre 1965 e 1976. O Brasil enfrentava os primeiros tempos de uma ditadura militar, enquanto os escritores, dramaturgos, homens de artes, Hermilo Borba Filho e Osman Lins se relacionaram por meio de cartas. Uma troca que não acontecia de maneira esporádica: às vezes, era só o tempo de chegar uma, que a devida resposta já era prontamente escrita e enviada. Desde que tomou conhecimento da existência dessas cartas, Luiz Manuel, que estreou como diretor justamente com A Rã, espetáculo baseado no conto homônimo de Hermilo Borba Filho, idealizou levá-las ao palco. Cartas estreia neste sábado (27), encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo Borba Filho, que este ano também homenageou Osman.

O projeto foi montado com o suporte de “O Aprendiz em Cena”, projeto que oportuniza o trabalho de um diretor iniciante com um elenco já mais experiente. Fabiana Pirro, Paulo de Pontes e Claudio Lira conduzem o espectador por uma dramaturgia construída como se fosse realmente uma carta. Além das conversas entre Hermilo e Osman, a obra Guerra sem Testemunhas, de Osman, também serve como base para o texto; “Lendo a correspondência, eu me fascinei sobre o quanto eles trocavam com relação à vida profissional. Editamos as cartas, escolhemos alguns trechos, mas são as palavras dos dois, além dessa adaptação de Guerra sem Testemunhas, que fala sobre a guerra que é escrever, o quanto ele escreve em guerra com si mesmo, com a sociedade, com o editor”, explica Luiz Manuel.

Osman foi aluno de Hermilo no Recife, mas pela correspondência profícua os dois realmente se tornariam amigos, testemunhas íntimas das trajetórias literárias um do outro. De acordo com Nelson Luís Barbosa, que estudou esses escritos, “(…) as cartas foram exclusivamente um espaço de discussão de questões relacionadas essencialmente aos projetos literários de cada um, seus embates com o mercado editorial e a dificuldade de conseguir editores conscienciosos que efetivamente respeitassem as obras e pagassem justamente por elas”, explica em artigo.

Apesar da centralidade das discussões sobre as próprias obras, há também menções à situação política do país e às vidas pessoais dos dois. Eles falam, por exemplo, sobre suas separações, os  novos casamentos, a relação com os filhos. “Cada carta que lia, eu me emocionava. Quanta intimidade. Eu tinha a sensação de estar invadindo a vida deles. Por mais que nas cartas eles falem muito do trabalho, das angústias, dos editores, o pouco que eles falam da intimidade é muito pesado, muito significativo”, conta Fabiana Pirro.

No elenco, Claudio Lira, Fabiana Pirro e Paulo de Pontes. A direção é de Luiz Manuel

Além disso, mesmo que as correspondências tenham se dado nas décadas de 1960 e 1970, as similaridades com o país de hoje são incontestáveis. “É o Brasil de agora, do fascismo, da censura, a falta de dinheiro, a falta de espaço para os artistas. Caminhamos ou estamos andando para trás? E por serem pessoas políticas no caráter, na forma de vida, de encarar o ofício, eles nos encantam. Eu sou muito apaixonada por Hermilo, já era. Ele diz que enquanto tiver máquina e papel, vai continuar protestando. E Cartas é nosso manifesto político para esse tempo”, complementa a atriz.

A encenação utiliza dispositivos do audiovisual e dialoga com montagens de grupos como Agrupación Señor Serrano (coletivo espanhol que apresentou Uma casa na Ásia no Janeiro de Grandes Espetáculos em 2016), o colombiano Mapa Teatro e o potiguar Carmin. “Na realidade, fui buscar referências do teatro ibero-americano desde os anos 2000. Chegamos a trocar e-mails com os integrantes do Agrupación”, revela Luiz. No espetáculo, os atores se filmam em cena, há projeção de imagens e vídeos pré-gravados. O grupo também enviou uma carta, escrita pelo próprio coletivo para algumas pessoas, e vai ler respostas escolhidas.

Cartas, que tem a assinatura do Coletivo Caverna, faz duas sessões encerrando a Semana Hermilo; e uma curtíssima temporada com mais duas sessões em dois domingos de agosto, 11 e 18.

Ficha técnica
Dramaturgia: Dramaturgia coletiva, a partir das correspondências entre Hermilo Borba Filho e Osman Lins e do livro Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins
Direção: Luiz Manuel
Elenco: Fabiana Pirro, Claudio Lira e Paulo de Pontes
Assistente de direção: Gabriel de Godoy
Iluminação: João Guilherme e Alexandre Salomão
Trilha Sonora/Desenho de som: Lara Bione
Figurinos: Giselle Cribari
Assistente de figurino: Fabiana Pirro
Identidade visual: Aurora Jamelo
Assessoria de imprensa: Tatiana Diniz
Direção de Produção: Naruna Freitas

Serviço
Cartas
Quando: 27 e 28 de julho, sábado e domingo, às 20h (encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo), e nos dias 11 e 18 de agosto, às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, 142, Recife)
Quanto: As sessões dos dias 27 e 28 têm ingressos gratuitos; as senhas serão distribuídas com uma hora de antecedência. Para as sessões dos dias 11 e 18 de agosto, os ingressos custam R$ 30 e R$ 15
Informações: (81) 3355-3321

 

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Magiluth vasculha política nos laços afetivos

Apenas o Fim do Mundo, com o Grupo Magiluth, estreou no Sesc Avenida Paulista e celebra os 15 anos da trupe. Fotos: Cacá Bernardes / Divulgação

A ação se passa num domingo

Dormi, e sonhei, envolta nas pulsações de Apenas o Fim do Mundo, espetáculo do Grupo Magiluth, a partir do texto Juste la Fin du Monde, do francês Jean-Luc Lagarce. Esses sonhos atravessados por pesadelos sinistros ocorreram ontem, semana passada ou durante todo o ano. As irrupções temporais embaralham essa narrativa complexa e propõe uma experiência rica de sensações no espaço, na memória, na ficção.

O amor em sua plenitude, o que inclui camadas feias, deterioradas, todas as vulnerabilidades desse sentimento – que não cabe em si e por isso mesmo precisa do outro para circular – ronda a temática dessa peça. É uma montagem dura e terna, libertadora, mas dolorida. E nos empurra a um mergulho profundo para enxergar os rastros, os reflexos, os sinais que imprimimos nos mais chegados. É assustador o que as palavras e os silêncios podem causar.

Apenas o Fim do Mundo, em cartaz no 13º andar do Sesc Avenida Paulista até 5 de maio, maximiza o risco, essa ousadia que a trupe recifense se impõe paulatinamente nos 15 anos de trajetória. O Magiluth iniciou as comemorações dos 15 anos com uma “ocupação” no Sesc Avenida Paulista. Foram apresentadas as montagens do repertório Aquilo Que Meu Olhar Guardou para Você (2012) e Dinamarca (2017). Além de oficinas e uma roda de conversa sobre o teatro nordestino (com Fernando Yamamoto e eu, Ivana Moura) .

Com o texto de Lagarce, a palavra comanda o desafio. O dito e o não-dito com sua dor acumulada ao longo dos anos na teia de uma família. De uma escrita delicada e sofrida, de uma economia lírica e avassaladora.

Eu entendi que esta ausência de amor de que me queixo e que foi para mim sempre a única razão das minhas covardias,
sem que nunca até então a tivesse percebido,
que esta ausência de amor fez sofrer sempre mais os outros do que eu. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

Entendo que o Magiluth não renuncia ao aspecto político de suas investigações anteriores. Vislumbro um deslocamento de rota, uma escavação rumo à formação do núcleo duro do poder, o treinamento dessa atuação política – a estrutura familiar. Longe de ser o paraíso na Terra, a família é uma coisa assombrosa, prodigiosa, impregnada de sentimentos que vão dos mais sublimes aos mais sórdidos.

É na essência da família onde tudo começa e prossegue em movimentos sem trégua. A peça convoca para investigações do que é família. De que laços emotivos e de compromisso estão repletas essas ideias. A concepção psicanalítica de família concebida por Freud postula-a como uma instituição humana duplamente universal. Lacan atribui à família a responsabilidade de agenciar o procedimento de humanização do indivíduo, pela invenção da subjetividade.

É evidente que os novos contextos fazem composições de famílias bastante diferentes em questões de estrutura e dinâmica – homoparentais; transparentais, monoparentais, famílias instituídas pela ciência.

Cena simultânea em dois planos

“… diante de um perigo extremo, imperceptivelmente, sem
querer fazer barulho ou cometer um gesto muito violento que acordaria o inimigo e que te destruiria imediatamente,

assumindo o risco e sem nunca ter esperança de sobreviver,
apesar de tudo,
no ano seguinte,
eu decidia voltar a vê-los, voltar atrás,
voltar sobre os meus passos e fazer a viagem,
para anunciar, lentamente, com cuidado, com cuidado e precisão

a minha morte próxima e irremediável…”  Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo                                                                                                                            

Enquanto outras produções do grupo estão impregnadas de preocupações políticas explícitas, da militância ou de referências a movimentos espalhados pelo mundo, em Apenas o Fim do Mundo esse caráter escorre pelas brechas de uma possível política que atinge corpos individuais nas guerras executadas contra alguns.

Jean-Luc Lagarce morreu jovem, aos 38 anos, em 1995, vítima da Aids. Há, possivelmente, qualquer coisa de autobiografia em Apenas o Fim do Mundo. O protagonista da peça – Luiz – está doente, com uma perspectiva de morte próxima, mas que nunca é nomeada no texto.

Luiz (Pedro Wagner) volta à casa materna, depois de uma dúzia de anos fora, para contar que tem uma doença terminal. Ele nos conta – a nós espectadores – mas não fala para a família. Dá pra conjecturar sobre a parábola do filho pródigo.

A Mãe (Erivaldo Oliveira) utiliza todas as estratégias para que Luiz se sinta bem-vindo. O irmão Antônio, guarda mágoa pelo que considera abandono, e reage com pequenas explosões de violência. A irmã Suzana, uma quase desconhecida para Luiz, oscila entre a mágoa e a excitação. Para completar o quadro, Catarina, a atenta mulher de Antônio, que também não conhecia o cunhado.

Erivaldo Oliveira faz A Mãe

Pedro Wagner faz Luiz

Em Necropolítica (N-1 Edições), o filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe segue o pressuposto de “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.”

Então “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.” Nessa visada “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”

Mas o que isso tem a ver com Apenas o Fim do Mundo, uma peça escrita por um francês em 1990, traduzida para o português por Giovana Soar, em 2005, sobre um filho que retorna à casa materna para anunciar sua morte próxima? O que uma reunião familiar que fala sobre o amor diz sobre quem importa e que não importa?

Projeção no começo da peça

No início das apresentações são projetadas poucas frases. Uma diz respeito à Aids e aos riscos atuais.

Na página da Fiocruz, do Ministério da Saúde, está exposta uma linha do tempo sobre a epidemia da Aids.

Alguns tópicos:
1977/78 – Estados Unidos, Haiti e África Central apresentam os primeiros casos da infecção, definida em 1982;
1982 – Confirmação do primeiro caso de Aids no Brasil e identificação da transmissão por transfusão sanguínea. Adoção temporária do termo Doença dos 5 H – Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável), Hookers (profissionais do sexo em inglês).
1983 – Uma reportagem publicada no jornal Notícias Populares traz como manchete: Peste-Gay já apavora São Paulo. É a pior e a mais terrível doença do século – dois brasileiros mortos.
1986 – Criação do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde.
1989 – Pressionada por ativistas, a indústria farmacêutica Burroughs Wellcome reduz em 20% o preço do AZT no Brasil.
1990 – Cazuza morre aos 32 anos. Mais de 6 mil casos de Aids são registrados no país.
1991 – O Ministério da Saúde dá início à distribuição gratuita de antirretrovirais. A OMS anuncia que 10 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV no mundo. No Brasil, 11.805 casos são notificados
1997 – Morre o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
1999 – O Governo Federal divulga redução em 50% de mortes e em 80% de infecções oportunistas, em função do uso do coquetel anti-Aids. O Ministério da Saúde disponibiliza 15 medicamentos antirretrovirais.
2003 – O Programa Brasileiro de DST/Aids recebe prêmio de US$ 1 milhão da Fundação Bill & Melinda Gates em reconhecimento às ações de prevenção e assistência no país, que abriga 150 mil pacientes em tratamento.
2004 – Recife reúne quatro mil participantes em três congressos simultâneos: o V Congresso Brasileiro de Prevenção em DST/Aids, o V Congresso da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids e o I Congresso Brasileiro de Aids. Mais de 360 mil casos de Aids são registrados no país.

O Programa Nacional de HIV/Aids do Brasil é reconhecido, até o ano passado, como exemplo no mundo inteiro. Entidades do setor receiam retrocessos nos direitos conquistados e na prevenção à doença no governo de Jair Bolsonaro. Acendeu o sinal vermelho sobre o futuro das políticas de saúde no país.

Parece-me que o Magiluth também fala sobre isso. Dos corpos ameaçados, do que estão na mira para serem destruídos, apagados. E as políticas públicas definem muitos desses caminhos. Para os alvos preferencias, as lutas são incessantes. E suponho que tudo começa na família.

Numa das conversas da família de Apenas o Fim do Mundo, Catarina, a cunhada, conta sobre os filhos. O menino carrega o nome de Luiz.

CATARINA – Ele tem o nome do pai de vocês,
eu acho, nós achamos, nós achávamos, eu acho que é bom,
isso era do gosto do Antônio, era uma coisa, uma coisa que ele, que ele fazia questão,

Na minha família há o mesmo tipo de tradição, …
o nome dos pais ou do pai do pai do filho macho, o primeiro rapaz, essas histórias todas.
E depois,
e já que você não tinha filhos,

o Antônio diz que você não vai ter
já que você não tem nenhum filho,
é sobretudo por isso,
já que você não vai ter nenhum filho,

parecia lógico,
foi o que nos dissemos, que nós o chamássemos Luiz,
como o seu pai, e, portanto, como você.

ANTÔNIO: Mas você continua sendo o mais velho, não há dúvida nenhuma em relação a isso.

Não há luta política confessada no texto de Lagarce. As conspirações, boicotes e desejos inconfessáveis de vingança vêm pela via do afeto, dessa ligação mais íntima com os parentes, nutridos por um cromatismo de amor.

A cidade de São Paulo entra pelas vidraças

(o que eu quero dizer)
«no fim das contas»
como que por desencorajamento, como que por cansaço de mim,
que eles me abandonaram sempre porque eu peço o abandono
Eu acordava com a ideia estranha e desesperada e indestrutível também
de que me amavam vivo como gostariam de me amar morto
sem nunca poder nem saber me dizer nada. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

A direção compartilhada entre Giovana Soar – que traduziu o texto para uma montagem da Companhia Brasileira de Teatro em 2005, e Luiz Fernando Marques, Lubi, do grupo XIX maximiza competências. Giovana traz um olhar denso para o texto, uma atenção sutil aos detalhes periféricos, o cuidado com a fala e as inflexões, ampliando as possibilidades de leitura desse peça complexa e profunda. Lubi tratou da encenação, da ocupação do espaço cênico, inventou ambientes da cena naquela sala multiuso com uma criatividade impressionante. As cenas – nascem e desaparecem – em cada canto, com os solilóquios das personagens. Eles desenvolvem uma direção envolvente, compõem com seus atores cenas admiráveis.

A disposição das situações nos cômodos fechados de uma casa e as dinâmicas entre as cenas são bem solucionados na apropriação da sala multiuso do Sesc Avenida Paulista. A varanda iluminada se abre para a cidade, remetendo ao confronto Metrópole/província e de suas articulações e projeções de desejos das personagens. É uma das paisagens mais icônicas de São Paulo e isso remete a muitas reflexões sobre poder, capitalismo, máquinas desejantes. O espetáculo foi erguido a partir da ideia de site specific, segundo o grupo.

Site specific é um termo utilizado há décadas para designar obras traçadas de acordo com o espaço na sua concepção e execução, transformando ou incorporando o espaço ao trabalho. Atualmente pode ser qualquer trabalho cênico que ocorra fora de um teatro tradicional.

No fundo, a solidão de tudo

A trajetória do Magiluth está pontuada por criações de dramaturgias próprias, montagens irreverentes de textos consagrados, com direito ao improviso, aos exageros, a expansões de teatralidades. Em Apenas o Fim do Mundo o risco passa pela contenção. É na moderação que reside o desafio. “A dramaturgia de Lagarce é poderosa, preponderante, quase insuportável”, escreve Giovana Soar no programa.

A palavra é um olho d’água que o elenco trata com sensibilidade para facilitar o rio caudaloso. Os atores fazem o jogo da presença com sutileza nas minúcias, nas ondulações. A violência interna das personagens garante uma dimensão profunda e dolorosa.

Espaço mínimo cria sensação de sufocamento

Após muitos anos longe da casa materna, sem contato com seus parentes, o escritor Luiz volta a sua cidade natal, para um almoço em família. Ele iria falar sobre morte iminente. É um domingo, mas poderia ser a vida inteira, porque os procedimentos são os mesmos. Ao encarar o peso da figura materna, sua – praticamente desconhecida – irmã mais nova Suzana, seu ciumento irmão Antônio, e sua cunhada Catarina, ressentimentos vem à tona.

Todos os artistas brilham: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner. Todos usam roupas do cotidiano, inclusive os que defendem personagens femininas. As palavras reverberam no corpo e no espaça. Esse texto não realista, inspirado em analogias realistas permite que os artistas potencializem a presença.

Pedro Wagner carrega um Luiz contido, que emana ondas de sentimentos em seus silêncios, em sua concentração. O motor do seu “ganhar o mundo” não fica claro – o abandono de que os parentes falam. Talvez o fato de ser homossexual tenha sido decisivo para a partida. Enquanto o prestígio do dramaturgo crescia, lá fora, a família acompanhava suas vitórias através do noticiário. O escritor só enviava cartões postais nos aniversários com duas ou três frases.

o que a gente espera,
é que o resto do mundo desapareça com a gente,
que o resto do mundo poderia desaparecer com a gente,
se apagar, se devorar e não mais sobreviver à mim.

Na cena 10, Luiz quase silente abre as comportas das palavras:

Que vão fazer de mim quando eu não estiver mais aqui?
A gente gostaria de mandar, de reger, de aproveitar mediocremente da perturbação deles e conduzi-los um pouco mais.
A gente gostaria de ouvi-los, eu não os ouço,
obrigá-los a dizer besteiras definitivas
e saber enfim o que eles pensam.

A figura materna suporta um peso, do conflito do amor / ódio dessa família. Erivaldo Oliveira trabalha as contradições dessa Mãe, que tenta controlar as relações humanas nessa casa, vislumbrar os segredos, entender os silêncios, as meias-verdades, as omissões.

Há diálogos incríveis e solilóquios arrebatadores para todos os papéis.

Acerto de contas entre os irmãos Antônio (Mário Sergio, em pé) e Luiz (Pedro Wagner, de costas)

Bruno Parmera faz a irmã Suzana

Mário Sergio Cabral é irmão de Pedro Wagner e são também manos na ficção. Na pele de Antônio, Mário Sérgio eleva o grau da emoção nas cenas de desabafos, que jorram de uma fonte profunda.

Suzana, a irmã, é feita por Bruno Parmera, que idealiza e deseja a vida do mais velho da prole. Giordano Castro aproveita bem o nervosismo e a submissão da cunhada, Catarina, com nuances interessantes. Giordano também investe no contraponto mais humorado em algumas cenas, para dar um respiro a tanta tensão. Lucas Torres não dispõe de nenhum papel, mas cuida das mudanças de cenas, deslocando objetos, respondendo pela contrarregragem e tocando bateria na banda.

Mesmo o fato do elenco tocar mal os instrumentos da banda parece uma camada a mais. Enquanto a trilha sonora gravada assume a função de criar ambientes, a música tocada bate em outro lugar. Esse som causa ruído… desconforto… como os insuportáveis incômodos que famílias de LGBTS provocam nos encontros que deveriam ser festivos. Aqueles vigilantes mais próximos do desejo alheio… esses seres que trafegam freneticamente entre a intimidade e a estranheza.

Na peça experimentamos estados de desconforto, nervosismo, sensação de sufocamento. Claustrofobia que vem deles e atinge o público. Os monólogos na tentativa de diálogos são fulminantes. O estranho familiar, de que fala Freud, produz esse sentimento de ultrapassagem, como o atropelamento de um estranho nem tão desconhecido assim.

Carregando o desassossego desse corajoso e implacável espetáculo intuo que a melhor opção ainda seja o amor, mesmo em segredo, mesmo que não pareça justo, mesmo que machuque.

Ficha técnica

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Apenas o fim do mundo
Quando: de 11 de abril a 5 de maio, de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 18h. Sessões extras: 1º/05 (quarta-feira), às 18h; 2/5 (quinta), 3/5 (sexta) e 4/5 (sábado), às 17h. Até 05/05
Onde: Sesc Avenida Paulista– Arte II (13º andar)
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h40 min

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Magiluth: uma nova peça para falar de amor

Magiluth comemora 15 anos com a estreia de Apenas o fim do mundo. Foto: Estúdio Orra

Grupo pernambucano comemora 15 anos com a estreia de Apenas o fim do mundo. Foto: Estúdio Orra

Desde os últimos dias do mês de março, o 13º andar do Sesc Avenida Paulista, inaugurado em abril do ano passado em São Paulo, é ocupado pelos atores do Magiluth. Através das paredes envidraçadas, a cidade se exibe, apressada e urgente, como sempre, a partir de uma das paisagens mais icônicas da capital. Do lado de dentro, apesar da aparente proteção em meio ao caos, também há urgências e a rotina está exaustiva. Prazerosa, desafiadora, mas exaustiva. Além de apresentar os espetáculos Aquilo que o meu olhar guardou para você e Dinamarca em semanas consecutivas e sessões sempre cheias, o grupo recebeu oficineiros que se inscreveram, interessados em acompanhar o processo de montagem do novo espetáculo, Apenas o fim do mundo, que estreia nesta quinta-feira (11), na mesma sala em que foi criado.  

A ação se passa em um domingo, ou ainda, ao longo de quase um ano inteiro, somos avisados logo no início do texto do francês Jean Luc-Lagarce. Talvez tenha sido mais ou menos assim a gestação de Apenas o fim do mundo. Em julho do ano passado, já tendo se aproximado da dramaturgia, o grupo fez uma residência artística no mesmo Sesc Paulista, aberta a interessados, com Giovana Soar, que traduziu o texto para uma montagem da Companhia Brasileira de Teatro em 2005, e Luiz Fernando Marques, Lubi, do grupo XIX. Em outubro, numa parceria com o Feteag, uma nova residência artística, desta vez no Centro Cultural Benfica, no Recife. Nos dois momentos, o processo contou com a apresentação de ensaios abertos ao público. Os atores passaram ainda duas semanas no sítio Valado, em Chã Grande, a 80 km da capital pernambucana, ao redor de uma mesa, dedicados ao texto.

Apesar de muito coerente com a trajetória do grupo, a escolha de montar essa dramaturgia é uma tarefa de grandes proporções para o Magiluth. “Como atores, eles nunca tinham encarado um texto com essa complexidade, tanto em tamanho quanto em profundidade e formalismo”, explica Giovana, que assume a direção ao lado de Lubi. A atriz, diretora e tradutora conheceu o grupo no Rumos Teatro, em 2011. Antes da estreia de Viúva, porém honesta, assistiu aos ensaios, mas trabalhou mais diretamente com os atores durante o processo de Dinamarca. Já com Lubi, a parceria vem desde a direção de Aquilo que o meu olhar guardou para você (2012).

Acostumados a trabalhar com dramaturgias próprias ou mesmo com adaptações, mas em processos mais livres, que permitiam, por exemplo, o improviso, os atores agora encaram palavras que precisam ser ditas com cuidado, para que não corram o risco de se perderem ou de não alcançarem a devida dimensão. “Eles estão acostumados a uma dramaturgia muito mais coloquial, a falar a palavra que querem, a colocar um caco, fazer piada com o cotidiano, e isso está proibido! Eu tenho sempre um chicote na mão!”, brinca Giovana.

Dramaturgia é do francês Jean Luc-Lagarce

Dramaturgia é do francês Jean Luc-Lagarce

Apenas o fim do mundo é um texto vertical, que esmiúça sentimentos a partir de uma relação familiar. Luiz decide reencontrar a mãe, o irmão e a irmã ao se deparar com a iminência da morte. Basicamente, é uma peça sobre o amor. Uma observação interessante é que Pedro Wagner e Mário Sérgio Cabral, irmãos na vida real, serão irmãos também na ficção. Pedro faz Luiz; Mário é Antônio; Erivaldo Oliveira é a mãe; Suzana, a irmã, é feita por Giordano; e a cunhada, Catarina, ficou com Bruno Parmera. Lucas Torres não está com nenhum personagem, mas é fundamental para o espetáculo, avisa Giovana. “Eles têm uma coisa louca de fazerem tudo! Não tem técnico de luz, de som, eles montam tudo, operam tudo! Por isso Lucas é uma peça primordial”.

Diante da iminência da morte, Luiz (Pedro Wagner) reencontra a família

Diante da iminência da morte, Luiz (Pedro Wagner) reencontra a família

Mesmo com o rigor no trabalho com a palavra, o jogo que é a base da performatividade do grupo se revela na construção das cenas. O espetáculo foi erguido a partir da ideia de site specific, da apropriação do espaço, explica o ator Giordano Castro. “Essa estreia será de muitas descobertas. Nunca vamos ter um espetáculo fechado: ele vai acontecer aqui em São Paulo, mas não necessariamente vai acontecer do mesmo jeito no Recife. Estamos usando o espaço, com o que ele nos proporciona. Em cada lugar que a gente chegar, vamos ter que repensar o trabalho novamente. Isso é muito doido!”, comenta.

A expectativa é que o Recife só veja a peça no segundo semestre. “Estamos terminando uma pesquisa sobre o bairro de São José, vamos fazer a criação de parte do roteiro de uma série em parceria com Hilton Lacerda, e ainda queremos fazer um novo espetáculo de rua. No meio disso tudo, tem a comemoração dos 15 anos do grupo. Pretendemos apresentar algumas peças do repertório e o trabalho novo”, adianta.

A temporada em São Paulo vai até 5 de maio. Antes disso, entre os dias 17 e 20 de abril, os atores ministram uma oficina intitulada “Jogo Total”. As inscrições já estão encerradas. No dia 17, às 20h30, haverá um bate-papo com Ivana Moura, uma das editoras do Satisfeita, Yolanda?, e o diretor do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal, Fernando Yamamoto, sobre “Os últimos 15 anos de teatro no Nordeste”. A entrada é gratuita.

Ficha técnica

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Apenas o fim do mundo
Quando: de 11 de abril a 5 de maio, de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 18h
Onde: Sesc Avenida Paulista
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h40 min

 

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Teatro de Fronteira encena Ligações Perigosas para falar da sociedade de hoje

Rodrigo Dourado (à esq.) e Rafael Almeida voltam a trabalhar como atores após anos afastados a partir do texto clássico de Choderlos de Laclos, com direção de João Denys. Foto: Ricardo Maciel

Rodrigo Dourado (à esq.) e Rafael Almeida voltam a trabalhar como atores após anos afastados a partir do texto clássico de Choderlos de Laclos, com direção de João Denys. Foto: Ricardo Maciel

O livro As ligações perigosas, clássico de Choderlos de Laclos, já seduziu muitos artistas no cinema e no teatro. Basta lembrar da versão levada ao cinema por Stephen Frears em 1988, que tomou um lugar cativo na cultura pop. A marquesa de Mertreuil e o conde de Valmont são mais do que personagens, mas arquétipos de uma elite insensível e libertina, que destrói vidas por pura diversão. O Teatro de Fronteira, que sempre apostou em uma linguagem mais documental, baseada no biodrama, usa o mesmo material para dar um ponto de inflexão em sua trajetória.

Em Ligações perigosas, que estreia nesta sexta (18) e fica em temporada até o próximo dia 29, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife, o vazio barroco da aristocracia pré-Revolução Francesa é mostrado em uma encenação mais próxima das origens do livro, um romance epistolar, focado na troca de cartas entre os aristocratas. Para quem não leu o livro nem viu as várias adaptações para o cinema, os ex-amantes competem entre si para ver quem corrompe garotas ou jovens mulheres, fazendo-as trair suas convicções de castidade e fidelidade.

Mais do que falar sobre intrigas amorosas, o texto é uma crítica social afiada de uma sociedade à beira do colapso, nada muito diferente de hoje, segundo o Teatro de Fronteira. Além de apontar o dedo para uma elite cuja insensibilidade parece ser eterna, o grupo também coloca em xeque um certo tipo de fazer teatral por meio da paródia. A decadência da elite francesa da época, alheia ao sofrimento do povo e entretida em seus jogos de sedução é posta em cena a partir da contracena dos dois atores ao redor de uma mesa, como se estivessem em um banquete.

A dissonância desse grupo social com a realidade, segundo Rodrigo, é sublinhada pelos elementos visuais do espetáculo. “A mesa é acionada como um local do encontro e também do enfrentamento. Ao mesmo tempo, o figurino e a maquiagem nos deixam com aspecto de usados, gastos, em referência a uma elite que insiste em permanecer fazendo um teatro enquanto o resto do mundo está se explodindo. Alguém pode pensar que estamos fazendo um ‘teatrão’ de fato, mas esse é o risco de fazermos uma paródia”.

A peça também traz de volta ao palco dois artistas que não pisavam nele havia alguns anos: Rodrigo Dourado, há dez anos sem atuar, e Rafael Almeida, há seis anos fora de cena. A dupla convidou, então, o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) João Denys Araújo Leite para dirigi-los em um processo que leva a teatralidade às últimas consequências. “Queríamos esse exagero. Acho que um bom texto é atemporal. Ele sempre vai falar a quem quiser ouvi-lo. Choderlos de Laclos põe as vísceras de uma sociedade sobre a mesa. Ligações perigosas fala muito das relações sociais e podemos usar a obra como metáfora para entender também o Brasil”, reflete Rafael.

O processo da montagem foi iniciado com a vontade de Rodrigo, também professor da Universidade Federal de Pernambuco, de voltar a trabalhar como ator, após consolidar uma carreira no Recife como diretor. Rafael, por sua vez, faz doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), já foi da Trupe do Barulho e trabalhou no teatro em várias frentes, seja como diretor ou como cenógrafo. O que liga ambos a João Denys é a ligação dos três com a palavra. “Sempre me interessei pelos clássicos e começamos uma pesquisa para um texto para dois atores e nos deparamos com esse texto. Minha formação é a da dramaturgia e minha escola de atuação é ‘old school’. Eu, Rafael e Denys temos em comum essa conexão com a literatura e enxergamos em As ligações perigosas uma potência teatral muito grande. Mertreuil e Valmont encenam os jogos de conquista deles. Eles brincam de interpretar”, detalha Rodrigo.

Embora o Teatro de Fronteira tenha trabalhado, em seus espetáculos, um material dramatúrgico vindo diretamente da experiência de vida dos atores ou recorrido a uma dramaturgia costurada a partir de acontecimentos reais, Rodrigo não considera uma contradição montar Ligações perigosas. “Esta adaptação é bastante literária, metafórica e até um pouco barroca. Talvez o público estranhe essa opção por uma linguagem cheia de licenças poéticas em relação ao que ele tem visto como obra do nosso coletivo, mas, no fim das contas, acho isso bom. Teatro é conflito, e o grupo está vivendo esse paradoxo”, reflete Rodrigo.

Serviço:

Ligações Perigosas, do Teatro de Fronteira
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife)
Quando: 18 a 27 de maio de 2018 (sextas e sábados às 20h; domingos, às 19h)
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada)
Classificação Indicativa: 16 anos
Duração: 70 minutos
Informações: 3355-3320 / 3355-3321

Ficha Técnica:

Elenco: Rafael Almeida e Rodrigo Dourado
Direção: João Denys Araújo Leite
Adaptação dramatúrgica: Teatro de Fronteira
Direção de produção: Rodrigo Cavalcanti
Figurinos, adereços e maquiagem: Marcondes Lima
Confecção de adereços: Álcio Lins e Rafael Almeida
Cenografia: João Denys Araújo Leite
Assistentes de cenografia: Manuel Carlos e Rafael Almeida
Cenotecnia: Israel Marinho, Manuel Carlos e Rafael Almeida
Design e execução de luz: João Guilherme de Paula
Sonoplastia: João Denys Araújo Leite
Assistente de sonoplastia: Rafael Almeida
Execução de sonoplastia: Marconi Bispo
Identidade visual: Michel Souza
Fotos e vídeo: Ricardo Maciel
Assessoria de Imprensa: Cleyton Cabral
Realização: Teatro de Fronteira

 

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