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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Lançamento de livros
Mais dois títulos do teatro pernambucano

grupo gente nossa 1938 foto Acervo Projeto Memórias da Cena Pernambucana

A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna – 1984 – Acervo Grupo de Teatro do SESC Caruaru

O teatro pernambucano já se vangloriou de ser o terceiro em produção no país, lá pela segunda metade do século 20. A historiografia teatral brasileira nunca prestou muito atenção em mais esse orgulho nordestino e sempre concentrou no Sudeste –Rio e São Paulo, principalmente – o mérito da trajetória do teatro brasileiro, suas conquistas, modernização, desconstrução. São campos de disputa constantes e os mais fortes (economicamente, politicamente, de articulação) deixaram suas marcas e seus livros. Esse cenário vem mudando nos últimos anos, graças a muitas mãos e muitas vontades.

Um lançamento duplo, que contempla o teatro na capital e no interior de Pernambuco coloca mais duas obras na prateleira dessa biblioteca, que ainda tem muito para contar. O Teatro no Recife da Década de 1930: outros significados à sua história, do jornalista, crítico e pesquisador teatral Leidson Ferraz e Grupo de Teatro do SESC Caruaru – Fazendo e Aprendendo, organizado pelos artistas Severino Florêncio, Moisés Gonçalves, Josinaldo Venâncio e Maylson Ricardo são dois livros que o Selo editorial do SESC Pernambuco, com apoio da CEPE, lança nesta segunda-feira (20 de dezembro de 2021), a partir das 19h, no hall do SESC Santo Amaro, no Recife, com show da cantora Andréia Luiza.

Leidson Ferraz, autor de vários títulos sobre a memória dessa arte em Pernambuco, é uma figura de destaque na recuperação desse caminho. Pesquisador incansável, organizou os quatro volumes da coleção Memórias da Cena Pernambucana. Atualmente é Doutorando em Artes Cênicas na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

A década de 1930, tão repleta de reviravoltas políticas e deslocamentos regionais de poder, sofreu no que se refere as artes cênicas uma desvalorização. O estudo do período foi sua dissertação de mestrado em história na UFPE. Ele mergulhou em arquivos esquecidos para resgatar alguns desses episódios. No livro, Leidson mapeia peças, e atuações de grupos e artistas independentes nos teatros do centro Recife e dos bairros de subúrbio, chamados “arrabaldes”. Explora as características da cena da época, ocupada principalmente por comédias, burletas e operetas.

Trajetórias do Grupo Gente Nossa e do Grêmio Familiar Madalenense (liderado pelos Irmãos Valença), ou de artistas como Samuel Campello, Elpídio Câmara, Barreto Júnior, Lenita Lopes e Valdemar de Oliveira, entre outros, estão no foco da pesquisa. Mas a obra “busca ir além do discurso que ocupa posição dominante no campo historiográfico nacional, sempre a abordar o ‘modo antigo’ de se fazer teatro em suas tão depreciadas contradições”.

Para isso, Ferraz trabalhou com as ideias de campo e capital simbólico do sociólogo Pierre Bourdieu, que iluminam os espaços ocupados, suas hierarquias e lutas internas.

O design do livro é assinado por Claudio Lira e traz imagens raras, de críticos, artistas nacionais e internacionais que estiveram no Recife, como Clara Weiss, Procópio Ferreira, Jayme Costa, Alda Garrido e Dulcina de Moraes, e técnicos daquele período, além de uma descrição pormenorizada do repertório e ficha apresentados por companhias locais e visitantes na década de 1930.

O teatro no interior

Severino Florêncio, Moisés Gonçalves, Josinaldo Venâncio e Maylson Ricardo, atuam na equipe de Cultura do SESC Caruaru e conhecem muito bem os meandros desse grupo, fundado em 1980, pelo ator, diretor e professor teatral Severino Florêncio, com o espetáculo de criação coletiva Fuga de Lampião.

O coletivo se tornou uma escola de formação de artistas e técnicos importante cena teatral em Caruaru e na região. O livro traça um paralelo entre o grupo e o Teatro caruaruense; aponta as montagens exibidas nos dois teatros da cidade (o Rui Limeira Rosal, do SESC, e o João Lyra Filho, da municipalidade); traz as participações em festivais pelo Brasil e reconhecimentos de premiação.

O livro Grupo de Teatro do SESC Caruaru – Fazendo e Aprendendo tem prefácio de José Manoel Sobrinho, diretor teatral e gestor cultural com experiências no SESC e em órgãos públicos da Cultura, que atesta que os autores “amplificam as experiências e vivências da trupe, disseminam parte relevante dos saberes construídos e dão amplitude para as novas gerações entenderem a força e o papel significativo que o teatro teve e tem para uma cidade da dimensão de Caruaru”. O design também é de Claudio Lira,

Cada livro custa R$ 40 (quarenta reais). A coordenação editorial do SESC Pernambuco é do Gerente de Cultural da instituição, Rudimar Constâncio. O selo á publicou 34 livros.
O SESC Santo Amaro fica na Rua Treze de Maio, 455, Santo Amaro.

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Peça “Quanto mais eu vou, eu fico” rejeita a caricatura do Nordeste único, atrasado e miserável

Quanto mais eu vou, eu fico faz uma live especial neste 29 de abril, às 20h, no canal do grupo no Youtube.

Preconceitos velados e explícitos serviram de disparadores para o trabalho

Elenco compõe um mosaico de personagens

Busca por trabalho, melhores condições de vida, reconhecimento são motivações para migrações do nordestino para a região Sudeste. A concentração dos conglomerados de televisão, produtoras de cinema e de publicidade, além de uma oferta substanciosa de cursos de formação tem sido um chamariz quase irresistível para muitos jovens. Às vezes dá certo. Quanto mais eu vou, eu fico, aborda esse desejo de duas atrizes pernambucanas, Endi Vasconcelos e Maria Laura Catão, (na temporada presencial eram três), que seguiram para o Rio de Janeiro para investir na carreira artística. Neste 29 de abril a peça é exibida no canal do grupo no youtube .

Relatos reais são misturados à ficção na peça que expõe os investimentos emocionais, obstáculos, expectativas das artistas numa jornada de ida e volta, com música, dança e humor. O trabalho busca acentuar a existência de um Nordeste contemporâneo, descolado da caricatura de terra rachada, seca, pobreza, fome, tons pastéis.

O Nordeste não é só isso, elas defendem no espetáculo, repercutindo os versos irônicos do cantor cearense Belchior (1946 – 2017): Nordeste é uma ficção! / Nordeste nunca houve! … Não sou do sertão dos ofendidos!”

As intérpretes foram em busca de sonho no Sudeste, mas não em paus de arara, como ocorreu com migrantes nordestinos pobres em décadas passadas, mas se deslocaram em aviões, nutrindo as redes sociais com suas experiências registradas em imagens de seus smartphones .

A direção geral do espetáculo é de Samuel Santos, a direção musical de Juliano Holanda, com músicas de Thiago Martins e Zé Barreto, canção inédita Cinemascópio, de Marcello Rangel, do disco Quanto mais eu vou, eu fico (que dá nome à peça), dramaturgia de Gleison Nascimento e direção de movimento de Hélder Vasconcelos.

Quando mais eu vou, eu fico é uma idealização do Grupo Bubuia, tem apoio da Lei Aldir Blanc, com gravação no Teatro Luiz Mendonça, em Boa Viagem, no Recife.

SERVIÇO
Espetáculo Quanto mais eu vou, eu fico
Quando: 29 de abril (quinta-feira), 20h
Onde: https://cutt.ly/kvpXgD8
Instagram: @bubuiacia

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No tempo da delicadeza, sob o sol do Sertão
Crítica de No meu terreiro tem arte

Bandeira monta seu circo no quintal de casa, no Pajeú. Foto: Reprodução de tela

Odília Nunes, a boneca Ester e o teatro dos afetos. Foto: reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Quando pensamos na arte do Pajeú, no Sertão pernambucano, logo lembramos da poesia, dos violeiros e repentistas, dos cordelistas. Dos encontros e festivais que perpetuam a oralidade da poesia, que traz junto a música, a rima, a performance desses artistas tanto nos palcos, quanto nas feiras, nos coretos das praças, nos terreiros, debaixo de alguma árvore frondosa. As narrativas, improvisadas ou não, muitas vezes bebem no imaginário popular e no cotidiano da própria região, nas vivências do povo do interior. “Quando é de manhãzinha/No tempo da trovoada/Canta alegre a passarada/Lá nas matas da serrinha/Vê se logo a andorinha/Voando sem direção/Quando vê preparação/Muito cedo se levanta/Toda passarada canta/Quando chove no Sertão” (Poesia de Efigênia Sampaio de Lima Barreto, publicada numa matéria da Revista Continente sobre as poetas do Pajeú, na edição de setembro de 2020).

A atriz, palhaça, dramaturga, cordelista, diretora e produtora Odília Nunes, nascida em São José do Egito, criada em Tuparetama, fez o caminho de muitos artistas que saem do interior para a capital e para outras regiões do país ou até para fora, que vão para longe dos seus quintais, em busca, geralmente, de aperfeiçoamento e crescimento profissional. Mas a jornada de volta é cada vez mais recorrente, ajudando a descontruir as narrativas de Nordeste às quais fomos habituados. O Nordeste da migração, o interior da dificuldade e da privação, o Sertão da terra esturricada.

Odília mora atualmente no Minadouro, comunidade rural da Ingazeira, justamente no Pajeú, e, há cinco anos, realiza o projeto “No meu terreiro tem arte”. A ideia é disseminar e promover a experiência do encontro com a arte para a população da própria região e, consequentemente, formar plateia, ampliar visões de mundo, oferecer um bocado de respiro, leveza, reflexão e boniteza.

Uma série de vídeos curtos tendo como protagonistas Odília e suas duas filhas, Violeta e Helena, foram exibidos em sequência no festival Reside Lab – Plataforma PE. Assim como os poetas e as poetas da região, Odília tem na contação de histórias, na oralidade e na presença alavancas do seu trabalho como artista.

Além disso, a pesquisa na palhaçaria se revela cada vez mais madura, pronta para despertar o sorriso e o encantamento no outro, a partir da simplicidade, da inocência e dos atos singelos da palhaça Bandeira. A última vez que me recordo de ter visto Bandeira já faz bastante tempo: foi em Divinas, talvez em 2011, espetáculo assinado pela Duas Companhias, ao lado das companheiras Uruba (Fabiana Pirro) e Zanoia (Lívia Falcão).

Muita água passou por debaixo dessa ponte. A pandemia, por exemplo, interrompeu, na medida da presença física, as atividades do projeto “No meu terreiro tem arte” no Minadouro. A última ação presencial foi em dezembro de 2020. 25 artistas de oito grupos chegaram à Ingazeira no dia 1º de dezembro. Ficaram todos em quarentena para que pudessem se apresentar, com o devido distanciamento, ao ar livre, no terreiro da igreja do sítio Minadouro, no terreiro de Dona Dia, no sítio Xique-Xique, e no terreiro de Aurinha, no sítio Caiçara. Todas as apresentações foram gravadas e depois exibidas no YouTube.

Mesmo neste período de quarentena, essas articulações com outros coletivos do interior continuaram, haja vista a organização da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco), e as criações artísticas, desta vez tendo a câmera como interface com o público.  

Ao longo deste último ano de tragédia no Brasil, temos visto uma experimentação vertiginosa das possibilidades de aproximação com a linguagem do audiovisual, neste teatro que necessita da mediação da tela para acontecer, para encontrar com o espectador. Alguns desses trabalhos se apropriam de recursos – digamos assim, mais incisivos. Talvez o principal deles seja uma edição menos linear, recortada, que vai dar direcionamento ao olhar do espectador a cada corte. Não existe uma categorização com conceitos delineados do que, neste momento de ainda mais fluidez de linguagens, seja ou não teatro. Também não há hierarquias, um manual de técnicas que você vá consultar para saber como fazer teatro online. Mas, muitas vezes, nem é preciso muita invenção: o simples bem-feito funciona em muitas situações. Como uma câmera aberta na paisagem do Sertão.

Bandeira usa brinquedo de madeira para contar história. Foto: reprodução de tela

Bandeira entra em cena: “Vixe, Nossa Senhora, que veio foi todo mundo. Opa, seu Mandacaru, como é que o senhor está?”. Apresenta a sua cena integrada à natureza e o desenrolar é tão natural àquela paisagem, como se uma roda de gente sentada em seus tamboretes estivesse acompanhando ali de pertinho. Ela monta o circo dela.

O traca-traca, um brinquedo artesanal, formado por umas plaquinhas de madeiras, se transforma em menino, cachorro, casa, peixe, cavalo e por aí vai, numa história de um menino que ama os animais, vê um disco-voador e fica amigo de um extraterrestre que sabe tocar sanfona. Tudo isso numa coisa só. “Tu não consegue ver um menino aqui? Tu tem que usar a tua imaginação, criatura, tu tá no teatro!”, passa a receita. Para quem está assistindo, a mesma coisa: precisa embarcar na história, se permitir imaginar e brincar também, porque as coisas podem ser tudo que a gente quer que elas sejam, diz Bandeira noutras palavras.

Violeta e Helena participam da brincadeira com a boneca de luva Ester, que ganha vida com os dedos da mãe-artista Odília, ao som da caixinha de música. O quadro é de uma delicadeza que extrapola as tentativas de explicação. A boneca de poucos centímetros, uma senhorinha preta esculpida em cada detalhe, de vestido florido, desperta e se coloca disponível para um jogo que é muito íntimo, que é do teatro feito em escala mínima, um para um, para dois ou três.

A boneca anda nas palmas das mãos, escala cabeças de crianças, se deixa acariciar, também alisa e beija os rostos das meninas, nos lembrando da potência que tem esse gesto que nos era tão corriqueiro. Que muitas vezes era automático, até para cumprir o protocolo social. Beijar uma avó, beijar a boneca Ester, neste momento mais do que nunca, é construção de teia de afetos, é mostrar que a gente precisa se concentrar no que importa.

Boneca Ester desperta para brincar com as crianças. Foto: reprodução de tela

Se a escala da Ester é de pouco centímetros, noutro quadro Cordelina é boneca gigante com cabeça feita de cabaça. O ritual inclui que o público acompanhe Odília se vestir de Cordelina. Emprestar seu corpo que já é relativamente alto para uma boneca de grandes dimensões que  dança entre as juremas pretas.

Noutro quadro, Nós sem nossa mãe, Viola (Violeta) e Gerimum (Helena), “Gerimum com g pois é gerimum gente e não Jerimum de comer”, explica Odília, também assumem o protagonismo e brincam como palhaças que estão se formando, aprendendo a existir no mundo. As duas encaram o jogo, se permitindo serem artistas e crianças, tendo liberdade para exercer a criatividade. Daqui a pouco a mãe chama, que o almoço está quase pronto.

Neste cenário de Sertão tem verde, céu azul, o fusca estacionado na frente de casa, o quintal com árvore que dá sombra. Mãe artista e suas filhas. Delicadeza para lembrar que a arte deixa a vida muito melhor. Dá até uma esperança, um quentinho no coração. A visita a esse terreiro está agendada, assim que o mundo girar e a vacina finalmente chegar.

Ficha técnica:
Brincantes/palhaças/atrizes: Odília Nunes, Violeta Nunes e Helena Nunes
Criação geral: Odília Nunes

A boneca Cordelina. Foto: reprodução de tela

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