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Um flâneur da memória
Crítica do espetáculo Brabeza Nata


Alexandre Sampaio em Brabeza Nata. Fotos: Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

 

O título do experimento cênico Brabeza Nata lança uma ideia de homem forte, rude, possivelmente de baixa escolaridade, pouco afeito a etiquetas e outros salamaleques. É um estereótipo do sertanejo, do nordestino, de um Nordeste “parado” no tempo entre a pobreza e o cangaço, da criatura desacostumado a demonstrações de carinhos. Primeira queda do cavalo. O dramaturgo Luiz Felipe Botelho desafia nossa percepção já no título. E rechaça a moldura da preconcepção, que resvala na negação do sujeito. Ainda no século 20, em 1999, ele escreveu Coiteiros de Paixões, em que investigava, entre outras coisas, as masculinidades, seus desvios e reinvenções, no fictício esconderijo de cangaceiros.

Desse deslocamento inicial seguem-se outros, pequenas surpresas para desestabilizar os sentidos prévios. O ator Alexandre Sampaio assume o papel de José Mateus. E seu primeiro convite é para os olhos. Existe um costume, ainda, dos anfitriões das casas nordestinas, de apresentarem os cômodos à “visita” como demonstração de gentileza. O personagem passeia pela casa expondo um pouco da intimidade. São portas imaginárias de entrada.

O percurso da câmera revela um pouco desse personagem em palavras destacadas de cartas, cartões, bilhetes, em antigas fotografias. Um livro Vira-Lata de Raça – Memórias de Ney Matogrosso. São muitas pistas para insights do observador. Objetos ganham texturas, remédios gritam como salva-vidas para não enlouquecer. E a canção Na Hora do Almoço, do Belchior, conduzindo por lugares inimagináveis, pois como diz a música “Cada um guarda mais o seu segredo”.

Sentimos a mão do diretor Cláudio Lira no encadeamento das cenas, nos enquadramentos, na cumplicidade estabelecida do intérprete com o público virtual. Da aridez do título à amabilidade da narração, a peça passa para o espectador a tarefa de preencher o percurso de apreensão da experiência.

Confesso que a primeira frase do texto “Nasci na periferia do interior do interior” não me convenceu. Procurei o lugar e achei um efeito de linguagem que não me fisgou. Mas o personagem segue erguendo o cenário cravado no seu corpo, na sua mente,  quem sabe no seu coração. “Distante, pobre e sem nome”. Feito ele. 

Com um trabalho repleto de porosidades de sentidos, as reminiscências que habitam esse corpo-repertório são projetadas na casa inflada de acontecimentos. Camadas da personagem atravessadas pelas vivências do ator.

Esse flâneur enclausurado pela pandemia busca uma libertação através dos relatos do confinamento afetivo, de uma mãe que o rejeitou desde o parto e da pulsação de Eros, alimentada pela avó desde sempre. Como arqueólogo de sua própria história, ele perscruta lembranças permeáveis de sua infância e adolescência. Diante do espelho, projeta o duplo de si no passado, com a capacidade de enxergar as escolhas da mãe, os mimos da avó. Seu corpo acervo rechaça rótulos.  

Além de tensionar o papel do macho, o experimento cênico testa questionar o papel convencional de mãe, como figura dedicada aos filhos, capaz de fazer qualquer tipo de sacrifício por eles; quer dizer, aquela caixinha quase sagrada da maternidade. Não, a mãe de José Mateus parece centrada em si mesma.

Penso na capacidade do olhar, de infiltrar-se no espaço-tempo. Imagino uma rede de pontos de vista exercendo uma supercognição da visão. Uma ponte entre o interior do personagem, que dá gás à imaginação do espectador. Nós avistamos as contradições e num jogo consciente fazemos as composições a partir dos dados de José Mateus, no modo como ele narra sua solidão, resquícios de sua infância e suas fantasias lacunares da ausência da mãe “muito braba e muito bonita”, o exercício da sexualidade e do afeto.

A peça estreou em junho durante a temporada do Teatro de Quinta da Casa Maravilhas em tempos de pandemia Covid-19. Além de Brabeza Nata, integraram a mostra Inflamável, de Alexsandro Souto Maior, com direção de Quiercles Santana e atuação de Paulo de Pontes; e Vulvas de Quem?, com direção de Cira Ramos atuação de Márcia Cruz, a partir de contos da escritora pernambucana Ezter Liu.

Essas sessões do ano passado foram gravadas e ficaram disponibilizadas no perfil da Casa Maravilhas. Na sessão apresentada no Reside há uma visível maturidade da proposta, domínio técnico dos planos e enquadramento. E não é fácil fazer todos esses ajustes ao vivo. O resultado é cativante. Ficamos verdadeiramente interessados pela história de José Mateus.

As apresentações ao vivo carregam esse fluxo de eletricidade maior, o tempo síncrono, o risco. O trabalho se insurge com esse ar transitório, tão próprio do teatro, tão único a cada nova sessão.  

O desempenho de Alexandre Sampaio é potente, e cheio de sutilezas interpretativas. O confronto entre luz e sombra se opera inclusive por meio de espelhos. O espelho maior tipo camarim, os menores que amplificam bocas e desejos.  

Ele fábula o que foi, imaginou, projetou. E nessa fabulação cabe mais intensidade dessas figuras lembradas, mãe e avó. Mais tintas nos retratos. Penso que ampliando e verticalizando as histórias das duas na voz do protagonista podem render um espetáculo robusto, com cargas emocionais fortes. 

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Espero que eles se expandam.

Como cápsulas para o futuro.

Brabeza Nata encerra com uma música da Cris Braun, Cuidado com pessoas como eu: “Dizem que se deve ter cuidado / Com pessoas como eu, Vão logo dando presentes / Dizendo te amo / No primeiro adeus”. Há esperanças.

Ficha Técnica:
Texto: Luiz Felipe Botelho
Direção: Cláudio Lira
Elenco: Alexandre Sampaio
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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Questão de sobrevivência emocional

Atores Samuel Lira e Jorge de Paula. Fotos: Zé Barbosa

Atores Samuel Lira e Jorge de Paula. Fotos: Zé Barbosa

A estreia da atriz Cira Ramos na função de encenadora merece ser aplaudida. Seu olhar sensível e delicado se faz presente nos pequenos detalhes do espetáculo Em Nome do Pai. A peça iniciou temporada no último sábado (25) para o público; na noite anterior(24), fez uma pré-estreia para convidados, no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Shopping RioMar, Zona Sul do Recife, onde fica em cartaz até o dia 31 de maio. A diretora trabalha como uma maestrina a harmonizar os instrumentos de que dispõe. Do elenco, mantém vivo o embate entre os personagens. E afina os talentos da equipe técnica, priorizando o jogo teatral.

O texto é do mineiro Alcione Araújo, uma referência do teatro brasileiro, autor de, entre outras peças, Há Vagas para Moças de Fino Trato, Doce Deleite, A Prima-Dona, Muitos Anos de Vida, Sob Neblina Use Luz Baixa e A Caravana da Ilusão, essa última montada no Recife anos atrás. Seus trabalhos se fincam em três eixos principais: as relações familiares, as questões sociais e políticas e a metalinguagem. Na peça Em nome do pai o confronto de gerações, os conflitos familiares e a sexualidade são explorados em cruzamento com a metalinguagem como um conduto de resolução dos problemas.

Escrita há mais de 20 anos, a peça aposta no bem querer como canal para superar as dificuldades de uma relação. O autor não escamoteia as fraturas do modelo familiar e mergulha no mar tempestuoso de emoções baratas e caras. Vai meio que na contramão dos padrões comportamentais que ficam na superfície e tem medo de pegar no nervo do sentimento.

O começo do texto, no entanto, é difícil de engrenar. Dois personagens que nunca tinham conversado de verdade: pai e filho. Após o enterro da mãe, elo de ligação entre eles, há uma necessidade de superar diferenças. Mas nesse início da peça, as falas clichês predominam, os devaneios com elucubrações mais rasas jorram de forma bastante infantil. A certa altura isso passa e aí sim o texto ganha um rumo poético no embate entre as duas figuras, suas revelações e lembranças.

O espetáculo ganha fôlego quando o filho resolve ir embora e o pai questiona a decisão. O humor refinado toma espaço na cena e o texto flui com elegância e força nas revelações corajosas e surpreendentes para ambos.

Peça mergulha nos contraditórios sentimentos de pai e filho

Peça mergulha nos contraditórios sentimentos de pai e filho

A encenação arquiteta a sombra da figura da mãe nos diálogos dos dois, que muitas vezes parece um fantasma a aterrorizar, mas também força a aproximação entre pai e filho. São caminhos sobre o viver e conviver com as diferenças, de onde brotam os afetos. Nessa comédia dramática, o enfoque existencial impõe momentos densos. Mas há espaço para o riso, como na cena em que o pai jornalista auxilia o filho a ensaiar uma peça.

O pai, interpretado por Jorge de Paula, é um escritor frustrado. O filho, defendido por Samuel Lira, é um estudante de teatro. As atuações ainda precisam ser equalizadas. O tom adotado por Jorge para demonstrar sofrimento pela perda da esposa soa falso e não convence. Sua interpretação desliza por várias gramaturas e cresce durante a encenação. Jorge de Paula é um ator potente e esses ajustes devem ser resolvidos durante a temporada.

Samuel Lira é uma grata surpresa para um papel tão denso. Ele está no elenco de alguns infantis e faz sua estreia em espetáculos adultos. O ator traz a revolta juvenil, um pouco da vingança contra o pai. Em torno da ausência da mãe, ele reflete o passado, trabalha bem as tensões do personagem e explora o dúbio o que nos oferece uma amostra da riqueza da convivência humana.

Os cenários de Marcondes Lima são especialmente criativos, com suas caixas que apontam para utilitários como sofás e malas, em designer arrebatador. Esses objetos-bagagens sugerem partidas (ou chegadas), com ou sem despedidas, e fazem uma conexão com a saída de cena da mulher da vida dos dois homens. A iluminação de Dado Soddi cria os climas, instala claustrofobias, promete libertações, controla o compasso, o ritmo da montagem, instala regiões de sombras e dá destaque até à monotonia de mútuas acusações do passado, que precisam ser superadas.

A trilha sonora, assinada por Fernando Lobo, funciona praticamente como um terceiro personagem. O saxofone provoca, acentua a teatralização das ações, marca os ciclos dessa DR, que vai da revolta, com discussões fervorosas, à reconciliação. O saxofone da trilha foi gravado pelo maestro Edson Rodrigues e o teclado por Fábio Valois.

E, nessa passagem ao tempo, entre picuinhas e ressentimentos a montagem aponta para algo mais luminoso, mesmo com as neuroses de cada um.

Serviço
Em nome do pai
Onde: Teatro Eva Herz (Livraria Cultura do Shopping RioMar)
Quando: De 25 de abril a 31 de maio, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h. ( Não haverá sessão do espetáculo no feriado do dia 1º de maio. Não haverá venda de ingressos para as sessões dos dias 10, 17, 24 e 31 de maio, pois a peça será destinada à rede pública de ensino, ONGs e instituições sócio-educativas).
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), à venda na bilheteria do teatro
Informações: (81) 3256-7500 / 9157-5555
Classificação: 14 anos

Ficha técnica
Texto: Alcione Araújo
Encenação: Cira Ramos
Elenco: Jorge de Paula e Samuel Lira
Preparação de atores e assistência de direção: Sandra Possani
Direção de arte: Marcondes Lima
Trilha sonora e direção musical: Fernando Lobo
Músicos: Edson Rodrigues (sax) e Fábio Valois (teclado)
Preparação vocal: Leila Freitas
Desenho de luz e execução: Dado Soddi
Assistente e produção de figurino: Natascha Lux
Cenotécnicos: Hemerson Cavalcante e Henrique Celibi
Programação visual e registro fotográfico: Zé Barbosa
Produção executiva: Karla Martins e Alexandre Sampaio
Produção geral: Cira Ramos, Fernando Lobo e Ofir Figueiredo
Direção de produção e elaboração de projeto: Cira Ramos e Karla Martins (Decanter Articulações Culturais)
Realização: REC Produtores Associados

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