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Peça “Quanto mais eu vou, eu fico” rejeita a caricatura do Nordeste único, atrasado e miserável

Quanto mais eu vou, eu fico faz uma live especial neste 29 de abril, às 20h, no canal do grupo no Youtube.

Preconceitos velados e explícitos serviram de disparadores para o trabalho

Elenco compõe um mosaico de personagens

Busca por trabalho, melhores condições de vida, reconhecimento são motivações para migrações do nordestino para a região Sudeste. A concentração dos conglomerados de televisão, produtoras de cinema e de publicidade, além de uma oferta substanciosa de cursos de formação tem sido um chamariz quase irresistível para muitos jovens. Às vezes dá certo. Quanto mais eu vou, eu fico, aborda esse desejo de duas atrizes pernambucanas, Endi Vasconcelos e Maria Laura Catão, (na temporada presencial eram três), que seguiram para o Rio de Janeiro para investir na carreira artística. Neste 29 de abril a peça é exibida no canal do grupo no youtube .

Relatos reais são misturados à ficção na peça que expõe os investimentos emocionais, obstáculos, expectativas das artistas numa jornada de ida e volta, com música, dança e humor. O trabalho busca acentuar a existência de um Nordeste contemporâneo, descolado da caricatura de terra rachada, seca, pobreza, fome, tons pastéis.

O Nordeste não é só isso, elas defendem no espetáculo, repercutindo os versos irônicos do cantor cearense Belchior (1946 – 2017): Nordeste é uma ficção! / Nordeste nunca houve! … Não sou do sertão dos ofendidos!”

As intérpretes foram em busca de sonho no Sudeste, mas não em paus de arara, como ocorreu com migrantes nordestinos pobres em décadas passadas, mas se deslocaram em aviões, nutrindo as redes sociais com suas experiências registradas em imagens de seus smartphones .

A direção geral do espetáculo é de Samuel Santos, a direção musical de Juliano Holanda, com músicas de Thiago Martins e Zé Barreto, canção inédita Cinemascópio, de Marcello Rangel, do disco Quanto mais eu vou, eu fico (que dá nome à peça), dramaturgia de Gleison Nascimento e direção de movimento de Hélder Vasconcelos.

Quando mais eu vou, eu fico é uma idealização do Grupo Bubuia, tem apoio da Lei Aldir Blanc, com gravação no Teatro Luiz Mendonça, em Boa Viagem, no Recife.

SERVIÇO
Espetáculo Quanto mais eu vou, eu fico
Quando: 29 de abril (quinta-feira), 20h
Onde: https://cutt.ly/kvpXgD8
Instagram: @bubuiacia

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No tempo da delicadeza, sob o sol do Sertão
Crítica de No meu terreiro tem arte

Bandeira monta seu circo no quintal de casa, no Pajeú. Foto: Reprodução de tela

Odília Nunes, a boneca Ester e o teatro dos afetos. Foto: reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Quando pensamos na arte do Pajeú, no Sertão pernambucano, logo lembramos da poesia, dos violeiros e repentistas, dos cordelistas. Dos encontros e festivais que perpetuam a oralidade da poesia, que traz junto a música, a rima, a performance desses artistas tanto nos palcos, quanto nas feiras, nos coretos das praças, nos terreiros, debaixo de alguma árvore frondosa. As narrativas, improvisadas ou não, muitas vezes bebem no imaginário popular e no cotidiano da própria região, nas vivências do povo do interior. “Quando é de manhãzinha/No tempo da trovoada/Canta alegre a passarada/Lá nas matas da serrinha/Vê se logo a andorinha/Voando sem direção/Quando vê preparação/Muito cedo se levanta/Toda passarada canta/Quando chove no Sertão” (Poesia de Efigênia Sampaio de Lima Barreto, publicada numa matéria da Revista Continente sobre as poetas do Pajeú, na edição de setembro de 2020).

A atriz, palhaça, dramaturga, cordelista, diretora e produtora Odília Nunes, nascida em São José do Egito, criada em Tuparetama, fez o caminho de muitos artistas que saem do interior para a capital e para outras regiões do país ou até para fora, que vão para longe dos seus quintais, em busca, geralmente, de aperfeiçoamento e crescimento profissional. Mas a jornada de volta é cada vez mais recorrente, ajudando a descontruir as narrativas de Nordeste às quais fomos habituados. O Nordeste da migração, o interior da dificuldade e da privação, o Sertão da terra esturricada.

Odília mora atualmente no Minadouro, comunidade rural da Ingazeira, justamente no Pajeú, e, há cinco anos, realiza o projeto “No meu terreiro tem arte”. A ideia é disseminar e promover a experiência do encontro com a arte para a população da própria região e, consequentemente, formar plateia, ampliar visões de mundo, oferecer um bocado de respiro, leveza, reflexão e boniteza.

Uma série de vídeos curtos tendo como protagonistas Odília e suas duas filhas, Violeta e Helena, foram exibidos em sequência no festival Reside Lab – Plataforma PE. Assim como os poetas e as poetas da região, Odília tem na contação de histórias, na oralidade e na presença alavancas do seu trabalho como artista.

Além disso, a pesquisa na palhaçaria se revela cada vez mais madura, pronta para despertar o sorriso e o encantamento no outro, a partir da simplicidade, da inocência e dos atos singelos da palhaça Bandeira. A última vez que me recordo de ter visto Bandeira já faz bastante tempo: foi em Divinas, talvez em 2011, espetáculo assinado pela Duas Companhias, ao lado das companheiras Uruba (Fabiana Pirro) e Zanoia (Lívia Falcão).

Muita água passou por debaixo dessa ponte. A pandemia, por exemplo, interrompeu, na medida da presença física, as atividades do projeto “No meu terreiro tem arte” no Minadouro. A última ação presencial foi em dezembro de 2020. 25 artistas de oito grupos chegaram à Ingazeira no dia 1º de dezembro. Ficaram todos em quarentena para que pudessem se apresentar, com o devido distanciamento, ao ar livre, no terreiro da igreja do sítio Minadouro, no terreiro de Dona Dia, no sítio Xique-Xique, e no terreiro de Aurinha, no sítio Caiçara. Todas as apresentações foram gravadas e depois exibidas no YouTube.

Mesmo neste período de quarentena, essas articulações com outros coletivos do interior continuaram, haja vista a organização da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco), e as criações artísticas, desta vez tendo a câmera como interface com o público.  

Ao longo deste último ano de tragédia no Brasil, temos visto uma experimentação vertiginosa das possibilidades de aproximação com a linguagem do audiovisual, neste teatro que necessita da mediação da tela para acontecer, para encontrar com o espectador. Alguns desses trabalhos se apropriam de recursos – digamos assim, mais incisivos. Talvez o principal deles seja uma edição menos linear, recortada, que vai dar direcionamento ao olhar do espectador a cada corte. Não existe uma categorização com conceitos delineados do que, neste momento de ainda mais fluidez de linguagens, seja ou não teatro. Também não há hierarquias, um manual de técnicas que você vá consultar para saber como fazer teatro online. Mas, muitas vezes, nem é preciso muita invenção: o simples bem-feito funciona em muitas situações. Como uma câmera aberta na paisagem do Sertão.

Bandeira usa brinquedo de madeira para contar história. Foto: reprodução de tela

Bandeira entra em cena: “Vixe, Nossa Senhora, que veio foi todo mundo. Opa, seu Mandacaru, como é que o senhor está?”. Apresenta a sua cena integrada à natureza e o desenrolar é tão natural àquela paisagem, como se uma roda de gente sentada em seus tamboretes estivesse acompanhando ali de pertinho. Ela monta o circo dela.

O traca-traca, um brinquedo artesanal, formado por umas plaquinhas de madeiras, se transforma em menino, cachorro, casa, peixe, cavalo e por aí vai, numa história de um menino que ama os animais, vê um disco-voador e fica amigo de um extraterrestre que sabe tocar sanfona. Tudo isso numa coisa só. “Tu não consegue ver um menino aqui? Tu tem que usar a tua imaginação, criatura, tu tá no teatro!”, passa a receita. Para quem está assistindo, a mesma coisa: precisa embarcar na história, se permitir imaginar e brincar também, porque as coisas podem ser tudo que a gente quer que elas sejam, diz Bandeira noutras palavras.

Violeta e Helena participam da brincadeira com a boneca de luva Ester, que ganha vida com os dedos da mãe-artista Odília, ao som da caixinha de música. O quadro é de uma delicadeza que extrapola as tentativas de explicação. A boneca de poucos centímetros, uma senhorinha preta esculpida em cada detalhe, de vestido florido, desperta e se coloca disponível para um jogo que é muito íntimo, que é do teatro feito em escala mínima, um para um, para dois ou três.

A boneca anda nas palmas das mãos, escala cabeças de crianças, se deixa acariciar, também alisa e beija os rostos das meninas, nos lembrando da potência que tem esse gesto que nos era tão corriqueiro. Que muitas vezes era automático, até para cumprir o protocolo social. Beijar uma avó, beijar a boneca Ester, neste momento mais do que nunca, é construção de teia de afetos, é mostrar que a gente precisa se concentrar no que importa.

Boneca Ester desperta para brincar com as crianças. Foto: reprodução de tela

Se a escala da Ester é de pouco centímetros, noutro quadro Cordelina é boneca gigante com cabeça feita de cabaça. O ritual inclui que o público acompanhe Odília se vestir de Cordelina. Emprestar seu corpo que já é relativamente alto para uma boneca de grandes dimensões que  dança entre as juremas pretas.

Noutro quadro, Nós sem nossa mãe, Viola (Violeta) e Gerimum (Helena), “Gerimum com g pois é gerimum gente e não Jerimum de comer”, explica Odília, também assumem o protagonismo e brincam como palhaças que estão se formando, aprendendo a existir no mundo. As duas encaram o jogo, se permitindo serem artistas e crianças, tendo liberdade para exercer a criatividade. Daqui a pouco a mãe chama, que o almoço está quase pronto.

Neste cenário de Sertão tem verde, céu azul, o fusca estacionado na frente de casa, o quintal com árvore que dá sombra. Mãe artista e suas filhas. Delicadeza para lembrar que a arte deixa a vida muito melhor. Dá até uma esperança, um quentinho no coração. A visita a esse terreiro está agendada, assim que o mundo girar e a vacina finalmente chegar.

Ficha técnica:
Brincantes/palhaças/atrizes: Odília Nunes, Violeta Nunes e Helena Nunes
Criação geral: Odília Nunes

A boneca Cordelina. Foto: reprodução de tela

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Alto da Boa Vista inspira cultura em Triunfo
Crítica dos experimentos cênicos
Da Laje-palco respeitável público e Dentra

Peça de Triunfo (PE) integra programação do Reside-LAB. Foto: Guilherme Andrade

Alto da Boa Vista, numa perspectiva de cima. Foto: captação de tela

Com a máscara da veinha em Da Laje-palco respeitável público o Alto. Foto: captação de tela

Com a máscara do careta. Foto: captação de tela

Depois de benzer o gato. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Triunfo fica em pleno Sertão pernambucano, distante 400km do Recife (quase sete horas de viagem de carro), na divisa dos estados de Pernambuco e Paraíba. Mas a cidade surpreende por algumas características incomuns da região do semiárido. Situada a 1.000 m acima do nível do mar, ostenta um clima ameno, com temperaturas que baixam a 6°C durante o inverno. Esse cenário peculiar guarda paisagens verdes, montanhas do vale do Pajeú e cachoeiras que contribuem para o município ser apelidado de oásis do Sertão. O ponto mais alto de todo estado de Pernambuco fica encravado lá, na zona rural: o Pico do Papagaio, com 1.260 metros de altitude. No centro ganham relevo o prédio do Cine Teatro Guarany, erguido em 1922, e as charmosas e coloridas edificações do século 19, fincadas nas ladeiras da cidade. As histórias e lendas do cangaço dizem que Lampião usou como esconderijo uma construção, de posição estratégica, conhecida hoje como Casa Grande das Almas. A cidade também abriga um Museu do Cangaço. Já a gruta denominada Furna dos Holandeses serviu de refúgio para remanescentes da tropa estrangeira depois da expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654.

Pensar em Triunfo é vislumbrar o folguedo dos caretas e sua variação, as veinhas. Os mascarados, que ganham protagonismo no carnaval, representam a cidade sertaneja. Essa brincadeira conta mais de um século e banca uma tradição transmitida de pais para filhos. As máscaras, com as bocas voltadas para baixo (da tragédia do teatro), adotam desenhos multiformes. Além das roupas coloridas, eles usam luvas e outros apetrechos – como chapéus enfeitados por fitas, tabuletas com mensagens irônicas ou picantes e chocalhos – para garantir o anonimato do brincante. E o mais importante: carregam os relhos, que são os chicotes que provocam um estalido fascinante e assustador ao mesmo tempo.

A atriz, diretora e produtora Bruna Florie fala desse lugar em Da laje-palco, respeitável público: o Alto, com a autoridade do pertencimento, de quem fez movimentos de saídas e retornos. Na real, ela elege um bairro para exaltar, um celeiro de artistas: o Alto da Boa Vista. “Eu cresci aqui”, começa narrando. Para reforçar “O Alto inspira cultura em Triunfo”. E mais na frente nos fazer cúmplices: “Conheço cada detalhe”.

Uma panorâmica, feita de cima com um drone, percorre os telhados das casas e Bruna passeia por ruas e memórias e cita pessoas marcantes do pedaço: família de músicos e artesãos de Seu Dão (que entrelaçava os cipós tão ligeiro quanto o olhar da menina); seus amigos Mazé e João Edson; Seu Zuza, “o careta mais exímio de Triunfo”; Seu João de Pastora, um dos criadores das cambindas; Maria de Zuza, que costura as peças dos artistas; seu primo Lúcio Fabio, que integrou o primeiro ateliê de arte do Alto; Neta, brincante e rezadeira, que deixa os meninos sambarem no terreiro; Nino Abraão e a Treca de Caretas Alto Astral.

O mundo visto do Alto é bordado, alimentado por poesia extraída do cotidiano, que celebra a vida e inventa outras razões para festejar. Da sua laje-palco, espaço que aloja caixas d’água, a atriz dança com o estandarte da Cambinda de Triunfo, de 2012. Ao portar a máscara do careta/veinha ela assume o silêncio enigmático desses brincantes e sai pelas ruas em sua performance com uma bengala e seu vestido vermelho: senta para descansar, para em um santuário, benze um gato.

Bruna Florie assume várias funções no trabalho Da laje-palco, respeitável público: o Alto, salientando sua inquietação. Ela colabora com vários coletivos de Triunfo: Pantim, Casa Espiral da Terra, Mangaio, RIPA (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco) e o grupo de samba de coco e poesia “A Cristaleira”. Ela reúne no currículo outras dramaturgias, como Um conto de Lôre, Giro Espiral, Andeja, Dentra.

A trilha sonora traz uma camada a mais da riqueza cultural de Triunfo. O eletrococo muderno de Jéssica Caitano manda muito bem na cena ao misturar repente, coco, rap e beats e sintéticos. São ideias sonoras muito potentes, com músicas autorais de Jéssica e Chico Correa, responsável pelo componente instrumental, com beats, samplers e programações. 

Nesse período pandêmico tive oportunidade de conhecer alguns grupos que geralmente estariam fora do meu raio. Fiquei satisfeita com o trabalho de Bruna Florie. Aliás, admiro muito os realizadores, os que enfrentam e superam as dificuldades e/ou, apesar delas, concretizam sonhos com orgulhosa alegria.

Mesmo sozinha na gravação, a artista carrega consigo meio mundo de gente que atravessou  seu caminho, e muitos outros da sua ancestralidade, que sempre souberam do prazer da brincadeira compartilhada entre parentes e amigos. Os artistas do Alto da Boa Vista, como ela diz, vem sendo visita, passagem, memória, resistência, engrenagem. Salve, salve a cultura brasileira.

Dentra

Dentra, com Bruna Florie. Foto Divulgação

O corpo está repassado de um ruidoso mundo externo. O corpo ocupa um espaço no universo. Nessa proposta, o corpo físico é distinguido, fragmentado e desconstruído para desligar-se do mundo, silenciar e ouvir a voz interior. Em Dentra ouvimos o sussurro não pronunciado de Bruna Florie “O corpo é a nossa casa, a mais pessoal, a mais primordial. Precisamos cuidar bem dele”.

O experimento cênico Dentra convoca outras texturas poéticas além das memórias coletivas de Da laje-palco, respeitável público: o Alto. Clama por intimidades, aconchegos, outros afetos. Temporada de escuta; respiração como renovação.

As máscaras nas paredes, as peças das roupas de baixo no varal, um tom melancólico de recolhimento com o quase cheiro de terra úmida.

Dia desses a Tristeza bateu. “Escutei-a. escutei-me”. Ela escutou, abriu as janelas.

O tempo pulsa em cada pequeno objeto.

Vivemos tempos voltados para dentro.

Com uma boneca de pano, ela mostra que é possível suturar as dores, embelezar-se com um vestido. Tudo é delicado.

A feitura do chá é a criação de uma pintura. Pés mergulhados.

Na casa de bonecas ela enfia a cabeça. Closes bonitos nos olhos. Eles falam muitas coisas. Você entendeu?

Aproveitar o tempo hoje. Abraçar as experiências. Encarar suas sombras interiores. Acolher-se, solidarizar-se, valorizar-se. A realidade já está cruel demais. Vibre de emoção. Cada amanhecer é uma nova possibilidade.

Da laje-palco: respeitável público, o Alto
Ficha técnica:

Direção, roteiro, atuação e produção: Bruna Florie
Assistente de produção e videomaker: Guilherme Andrade
Filmagens com drone: Maycon Jonathan
Maquiagem: Karol Virgulino
Participações especiais de artistas do Alto da Boa Vista: Joaneide Alencar, Carlinhos Artesão e Jéssica Caitano
Edição, fotografia e direção de arte: Bruna Florie
Trilha Sonora:  Beat the Burglar – Scott Holmes, Repente – Jéssica Caitano & Chico Correa, Música Lab II– Jéssica Caitano & Paulo Beto, Canarin – Jéssica Caitano & Chico Correa

DENTRA
Ficha técnica:

Direção geral e produção: Bruna Florie
Roteiro: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Assistente de produção I e videomaker: Guilherme Andrade
Assistente de produção II: Geibson Nanes
Trilha sonora: Sad walk with sad piano – komiku, Amaryllis Flower – Ivy Meadows, Dreaming of You – Komiku
Edição, montagem, fotografia: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Direção de arte, atuação e poema Dentra: Bruna Florie

 

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Da culpa à libertação
Crítica de Vulvas de quem?

 

Márcia Cruz em cena no experimento Vulvas de quem?. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No último domingo, 21 de março, morreu Nawal El Saadawi, escritora egípcia feminista, autora de mais de 50 livros, entre ensaios, romances e peças. Em A face oculta de Eva, Saadawi conta que, aos seis anos de idade, teve o clitóris cortado. A mãe sorria. O cenário era o chão de um banheiro. Ao longo de sua trajetória como ativista, o combate à circuncisão feminina foi uma das suas principais causas. Numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 2016, a autora salientou a diversidade das mulheres e das suas lutas: “Vivemos em um mundo dominado por um sistema religioso, patriarcal e racista. Mas o nível de opressão varia de acordo com o tempo e de um lugar ao outro, segundo o grau de consciência da maioria e os poderes políticos das mulheres e homens lutando por liberdade, justiça e dignidade”.

Esse grau de consciência de que fala Saadawi tem se ampliado nas últimas décadas, num movimento que é complexo, porque as pautas feministas, assim como outras pautas sociais, são cooptadas pelo sistema capitalista, alienante por princípio. De toda maneira, a discussão sobre feminismo explodiu fronteiras, ganhou dimensão de debate público, embora ainda enfrente muitas distorções. Por exemplo: ontem à noite, 23 de março, o Brasil votou para que uma mulher que estava vivendo um relacionamento tóxico fosse eliminada do Big Brother Brasil. O principal oponente dela era um homem que fez piadas homofóbicas. O comportamento da mulher, taxada de trouxa aos quatro ventos do país, foi julgado, porque além de não perceber as armadilhas da relação, ela ainda se ajoelhou e fez uma declaração de amor em rede nacional.

Carla Diaz é uma atriz que cresceu sob os holofotes da televisão. Branca, loira, cabelão liso, magra, menininha, cumpre os pré-requisitos do estereótipo de beleza padrão. Ainda assim, não está a salvo do relacionamento abusivo. Nenhuma de nós está. Em qualquer idade, classe social, cumprindo ou não os padrões, mais um degrau na escala da opressão. A ressaca moral que, provavelmente, vai assombrá-la por um tempo, é parecida com àquela da personagem de Márcia Cruz em Vulvas de quem?, experimento cênico com direção de Cira Ramos e texto de Ezter Liu, uma realização da Cia Maravilhas de Teatro.

Aliás, talvez seja mais apropriado dizer “das personagens”. Sem seguir uma cronologia linear, Márcia Cruz vai dos 7 aos 93 anos, explorando os mecanismos da relação que se transforma em abuso, físico, psicológico, moral. “Quem vendou teus olhos com esse trapo sujo e depois te chamou de cega?”. “Quem queimou teu passaporte na pia do hotel e disse que ir não era uma opção?”. “Quem passou tua autoestima no liquidificador?”.

A atriz trilha o caminho do reconhecimento, desse instante em que a mulher tem a coragem de se olhar, mergulhar em si, e admitir que caiu na esparrela do abusador. O cenário é um banheiro, com a personagem de frente para o espelho, o público, que a acompanha nesse exercício de dor profunda. Márcia é uma atriz que passeia pelas filigranas da atuação – vai do choro e do grito rasgado ao riso de libertação com desenvoltura de quem tem anos de experiência e talento.

Personagens se olham no espelho e percebem relacionamentos abusivos. Foto: Morgana Narjara

Como o cerne da questão é identificar o abuso, o sentimento inicial que escorre desse texto, dessa personagem, é o da culpa. Vulvas de quem? Culpa de quem? Como eu não percebi? Como não me dei conta? Só que, como num ciclo vicioso, que atravessa o tempo e as gerações, como explicita a dramaturgia, é muito difícil se libertar, tanto do relacionamento quanto da culpa, que não deveria nem nos pertencer. Há um limite tênue, tanto no experimento como na vida. Parem de nos culpabilizar. Paremos de nos culpabilizar.

O desafio é enorme: mostrar a realidade da violência e da opressão no teatro, num experimento cênico de poucos minutos, que envereda pela elaboração discursiva de um cenário fiel ao cotidiano. Não há muitas permissões para a abstração, além da poesia crua do texto. O fluxo da jornada dessas personagens é o da repetição, até que a música de Flaíra Ferro irrompe no ambiente. Como um mantra, uma oração que clama por cura. “Eu quero me curar de mim, quero me curar de mim”.

Há uma força, que se desprende do texto, da música e, principalmente da atuação, que é do campo da catarse – tanto que reforça a ideia da cura. Que nos alcança e nos fere diretamente pela identificação. O espelho está escancarado, refletindo os rostos de todas nós. Que, para além da consciência da opressão, venha a superação. Porque, como diria Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. Antes que seja tarde.

Ficha técnica:
Texto: Ezter Liu
Direção: Cira Ramos
Elenco e produção: Márcia Cruz
Sonoplastia: Fernando Lobo
Música: Flaíra Ferro
Iluminação: Luciana Raposo
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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Clara e Conceição foram ver o mar
Crítica de Transbordando Marias

Clara e Conceição Camarotti (foto) trabalham juntas em Transbordando Marias. Foto: Reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No meu corpo, sou muitas. As que vieram antes, as que virão depois. Carrego comigo todas elas. Em Transbordando Marias, espetáculo que abriu a programação de encenações do festival Reside Lab – Plataforma PE, no corpo da atriz e bailarina Maria Clara Camarotti estão imbricadas as vivências da sua mãe e da sua avó, numa teia complexa que traça paralelos, coincidências e viradas de rumo entre histórias temporalmente distintas, mas ligadas pela ancestralidade.

Há algum tempo, ando absorvida pela leitura do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Mergulhada na história de Kehinde, nascida em Savalu, no reino de Daomé, na África, em 1810. É uma personagem forte, que sente a ancestralidade pulsando no corpo, nos sonhos, nas crenças compartilhadas com o seu povo. Transbordando Marias me levou de volta às primeiras páginas do livro.

Kehinde era uma ibêji, como são chamados os gêmeos entre os povos iorubás. Pela tradição, ibêjis eram símbolo de boa sorte e de riqueza. Com Kehinde e Taiwo atadas ao próprio corpo, uma na frente e outra atrás, a mãe das crianças dançava no mercado para ganhar dinheiro. A primeira lembrança de existência de Kehinde eram os olhos da Taiwo. “Éramos pequenas e apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro da minha mãe, dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber, porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou somente para mim”.

Clara Camarotti dança, não no mercado, mas no espaço de um casa, como se fosse a mãe de Kehinde. Com a mãe e a avó, que também podem significar casa. Assim como o corpo que habitamos, com todas as suas singularidades, casa. Sabe que não é apenas uma. Tem consciência de que são três. São várias, incontáveis, presentes ali naquela sala, através da sua dança.

O elo entre as três mulheres é o número 9, aquele que simboliza o encerramento de ciclos. Que rompe com as estruturas de violência reproduzidas a cada geração. A avó foge dos maus-tratos do marido depois de nove anos, deixando a filha de nove anos, levando consigo apenas a mais nova, de nove meses. A mãe foge de casa com o circo, aos nove anos, porque queria ser atriz. A rejeição sofrida pelo grupo de amigas aos nove anos com a justificativa de que era uma criança feia.

Clara Camarotti dança a história das mulheres da família. Foto: Reprodução de tela

A perspectiva documental, autobiográfica, é uma das potências do trabalho, que consegue estabelecer zonas fluidas entre ficção e realidade. Afinal, memória também é construção, (re)elaboração de sentidos e narrativas. Quando contamos, nos insurgimos contra o esquecimento. Damos uma oportunidade, traço de imensa generosidade, para que os outros também se apropriem da narrativa, carreguem consigo, passem adiante.

Ao trazer para a cena a mãe, a atriz Conceição Camarotti, 67 anos, Clara entrega um presente precioso ao espectador. Conceição é uma atriz gigante, que preenche a tela, que instaura um tipo estranho e raro de cumplicidade imediata. Está em cena sendo questionada pela filha se gostaria de interpretar um papel, se preferia improvisar ou simplesmente ser ela mesma. Consegue fazer as três coisas. Ora provando o figurino, ora contando histórias deliciosas de uma jovem destemida numa sociedade patriarcal, sentada numa mesa, na cozinha de um sítio, ora reproduzindo, livremente, as falas da velha Maria Josefa, louca, mãe de Bernarda Alba, personagem célebre de Federico Garcia Lorca.

Texto tem trechos inspirados na personagem Maria Josefa, de Lorca. Foto: Reprodução de tela

Nesta situação de pandemia, quando morremos literalmente sem fôlego, numa metáfora materializada, triste e cruel da nossa realidade, Conceição pede que a filha abra a porta, que a deixe ver o mar. Assim como ela, a filha e os filhos da filha também terão cabelos brancos, como a espuma da onda do mar, bubuia, que é doce, beija a praia, mas tem a força de levar tudo embora. O tema da velhice perpassa a dramaturgia como condição inerente, espelho-tela refletindo a imagem da velha atriz preta, potência de vida, encarando o soco no estômago das limitações trazidas pelos anos. Ao mesmo tempo, existência, resistência.

Transbordando Marias foi criado em conjunto por uma equipe de artistas: além de Maria Clara Camarotti, Naná Sodré, do grupo O Poste Soluções Luminosas, Maria Agrelli, Silvinha Góes e Conrado Falbo, esses últimos parceiros de Clara no Coletivo Lugar Comum. O trabalho foi possível graças ao edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco. Gestado durante a pandemia, as questões técnicas, desde a captação das imagens e do som até a edição, são o ponto mais frágil do trabalho. A sensação é de que, embora tenha uma dramaturgia e uma atuação consistentes, com muitas possibilidades, trata-se ainda de uma semente, de um experimento que pode virar árvore frondosa.

Dá esperança pensar que podemos ter, em algum momento de um futuro que quiçá nos seja próximo, um espetáculo documental, Clara e Conceição Camarotti pisando o palco de um teatro. Ou um filme, já que as telas amam o talento de Conceição. Vou puxar a sardinha para o nosso lado, que venham logo, sem demora, as três batidas de estaca do Teatro de Santa Isabel, anunciando que a sessão já vai começar.

Clara Camarotti. Foto: Reprodução de tela

Ficha Técnica:
Concepção e direção geral: Maria Clara Camarotti
Elenco: Conceição Camarotti e Maria Clara Camarotti
Texto livremente inspirado na personagem Maria Josefa, da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca
Equipe de criação: Maria Clara Camarotti, Nana Sodré, Maria Agrelli, Silvinha Góes, Conrado Falbo
Trabalho contemplado pelo edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco.

 

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