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No tempo da delicadeza, sob o sol do Sertão
Crítica de No meu terreiro tem arte

Bandeira monta seu circo no quintal de casa, no Pajeú. Foto: Reprodução de tela

Odília Nunes, a boneca Ester e o teatro dos afetos. Foto: reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Quando pensamos na arte do Pajeú, no Sertão pernambucano, logo lembramos da poesia, dos violeiros e repentistas, dos cordelistas. Dos encontros e festivais que perpetuam a oralidade da poesia, que traz junto a música, a rima, a performance desses artistas tanto nos palcos, quanto nas feiras, nos coretos das praças, nos terreiros, debaixo de alguma árvore frondosa. As narrativas, improvisadas ou não, muitas vezes bebem no imaginário popular e no cotidiano da própria região, nas vivências do povo do interior. “Quando é de manhãzinha/No tempo da trovoada/Canta alegre a passarada/Lá nas matas da serrinha/Vê se logo a andorinha/Voando sem direção/Quando vê preparação/Muito cedo se levanta/Toda passarada canta/Quando chove no Sertão” (Poesia de Efigênia Sampaio de Lima Barreto, publicada numa matéria da Revista Continente sobre as poetas do Pajeú, na edição de setembro de 2020).

A atriz, palhaça, dramaturga, cordelista, diretora e produtora Odília Nunes, nascida em São José do Egito, criada em Tuparetama, fez o caminho de muitos artistas que saem do interior para a capital e para outras regiões do país ou até para fora, que vão para longe dos seus quintais, em busca, geralmente, de aperfeiçoamento e crescimento profissional. Mas a jornada de volta é cada vez mais recorrente, ajudando a descontruir as narrativas de Nordeste às quais fomos habituados. O Nordeste da migração, o interior da dificuldade e da privação, o Sertão da terra esturricada.

Odília mora atualmente no Minadouro, comunidade rural da Ingazeira, justamente no Pajeú, e, há cinco anos, realiza o projeto “No meu terreiro tem arte”. A ideia é disseminar e promover a experiência do encontro com a arte para a população da própria região e, consequentemente, formar plateia, ampliar visões de mundo, oferecer um bocado de respiro, leveza, reflexão e boniteza.

Uma série de vídeos curtos tendo como protagonistas Odília e suas duas filhas, Violeta e Helena, foram exibidos em sequência no festival Reside Lab – Plataforma PE. Assim como os poetas e as poetas da região, Odília tem na contação de histórias, na oralidade e na presença alavancas do seu trabalho como artista.

Além disso, a pesquisa na palhaçaria se revela cada vez mais madura, pronta para despertar o sorriso e o encantamento no outro, a partir da simplicidade, da inocência e dos atos singelos da palhaça Bandeira. A última vez que me recordo de ter visto Bandeira já faz bastante tempo: foi em Divinas, talvez em 2011, espetáculo assinado pela Duas Companhias, ao lado das companheiras Uruba (Fabiana Pirro) e Zanoia (Lívia Falcão).

Muita água passou por debaixo dessa ponte. A pandemia, por exemplo, interrompeu, na medida da presença física, as atividades do projeto “No meu terreiro tem arte” no Minadouro. A última ação presencial foi em dezembro de 2020. 25 artistas de oito grupos chegaram à Ingazeira no dia 1º de dezembro. Ficaram todos em quarentena para que pudessem se apresentar, com o devido distanciamento, ao ar livre, no terreiro da igreja do sítio Minadouro, no terreiro de Dona Dia, no sítio Xique-Xique, e no terreiro de Aurinha, no sítio Caiçara. Todas as apresentações foram gravadas e depois exibidas no YouTube.

Mesmo neste período de quarentena, essas articulações com outros coletivos do interior continuaram, haja vista a organização da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco), e as criações artísticas, desta vez tendo a câmera como interface com o público.  

Ao longo deste último ano de tragédia no Brasil, temos visto uma experimentação vertiginosa das possibilidades de aproximação com a linguagem do audiovisual, neste teatro que necessita da mediação da tela para acontecer, para encontrar com o espectador. Alguns desses trabalhos se apropriam de recursos – digamos assim, mais incisivos. Talvez o principal deles seja uma edição menos linear, recortada, que vai dar direcionamento ao olhar do espectador a cada corte. Não existe uma categorização com conceitos delineados do que, neste momento de ainda mais fluidez de linguagens, seja ou não teatro. Também não há hierarquias, um manual de técnicas que você vá consultar para saber como fazer teatro online. Mas, muitas vezes, nem é preciso muita invenção: o simples bem-feito funciona em muitas situações. Como uma câmera aberta na paisagem do Sertão.

Bandeira usa brinquedo de madeira para contar história. Foto: reprodução de tela

Bandeira entra em cena: “Vixe, Nossa Senhora, que veio foi todo mundo. Opa, seu Mandacaru, como é que o senhor está?”. Apresenta a sua cena integrada à natureza e o desenrolar é tão natural àquela paisagem, como se uma roda de gente sentada em seus tamboretes estivesse acompanhando ali de pertinho. Ela monta o circo dela.

O traca-traca, um brinquedo artesanal, formado por umas plaquinhas de madeiras, se transforma em menino, cachorro, casa, peixe, cavalo e por aí vai, numa história de um menino que ama os animais, vê um disco-voador e fica amigo de um extraterrestre que sabe tocar sanfona. Tudo isso numa coisa só. “Tu não consegue ver um menino aqui? Tu tem que usar a tua imaginação, criatura, tu tá no teatro!”, passa a receita. Para quem está assistindo, a mesma coisa: precisa embarcar na história, se permitir imaginar e brincar também, porque as coisas podem ser tudo que a gente quer que elas sejam, diz Bandeira noutras palavras.

Violeta e Helena participam da brincadeira com a boneca de luva Ester, que ganha vida com os dedos da mãe-artista Odília, ao som da caixinha de música. O quadro é de uma delicadeza que extrapola as tentativas de explicação. A boneca de poucos centímetros, uma senhorinha preta esculpida em cada detalhe, de vestido florido, desperta e se coloca disponível para um jogo que é muito íntimo, que é do teatro feito em escala mínima, um para um, para dois ou três.

A boneca anda nas palmas das mãos, escala cabeças de crianças, se deixa acariciar, também alisa e beija os rostos das meninas, nos lembrando da potência que tem esse gesto que nos era tão corriqueiro. Que muitas vezes era automático, até para cumprir o protocolo social. Beijar uma avó, beijar a boneca Ester, neste momento mais do que nunca, é construção de teia de afetos, é mostrar que a gente precisa se concentrar no que importa.

Boneca Ester desperta para brincar com as crianças. Foto: reprodução de tela

Se a escala da Ester é de pouco centímetros, noutro quadro Cordelina é boneca gigante com cabeça feita de cabaça. O ritual inclui que o público acompanhe Odília se vestir de Cordelina. Emprestar seu corpo que já é relativamente alto para uma boneca de grandes dimensões que  dança entre as juremas pretas.

Noutro quadro, Nós sem nossa mãe, Viola (Violeta) e Gerimum (Helena), “Gerimum com g pois é gerimum gente e não Jerimum de comer”, explica Odília, também assumem o protagonismo e brincam como palhaças que estão se formando, aprendendo a existir no mundo. As duas encaram o jogo, se permitindo serem artistas e crianças, tendo liberdade para exercer a criatividade. Daqui a pouco a mãe chama, que o almoço está quase pronto.

Neste cenário de Sertão tem verde, céu azul, o fusca estacionado na frente de casa, o quintal com árvore que dá sombra. Mãe artista e suas filhas. Delicadeza para lembrar que a arte deixa a vida muito melhor. Dá até uma esperança, um quentinho no coração. A visita a esse terreiro está agendada, assim que o mundo girar e a vacina finalmente chegar.

Ficha técnica:
Brincantes/palhaças/atrizes: Odília Nunes, Violeta Nunes e Helena Nunes
Criação geral: Odília Nunes

A boneca Cordelina. Foto: reprodução de tela

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