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Alto da Boa Vista inspira cultura em Triunfo
Crítica dos experimentos cênicos
Da Laje-palco respeitável público e Dentra

Peça de Triunfo (PE) integra programação do Reside-LAB. Foto: Guilherme Andrade

Alto da Boa Vista, numa perspectiva de cima. Foto: captação de tela

Com a máscara da veinha em Da Laje-palco respeitável público o Alto. Foto: captação de tela

Com a máscara do careta. Foto: captação de tela

Depois de benzer o gato. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Triunfo fica em pleno Sertão pernambucano, distante 400km do Recife (quase sete horas de viagem de carro), na divisa dos estados de Pernambuco e Paraíba. Mas a cidade surpreende por algumas características incomuns da região do semiárido. Situada a 1.000 m acima do nível do mar, ostenta um clima ameno, com temperaturas que baixam a 6°C durante o inverno. Esse cenário peculiar guarda paisagens verdes, montanhas do vale do Pajeú e cachoeiras que contribuem para o município ser apelidado de oásis do Sertão. O ponto mais alto de todo estado de Pernambuco fica encravado lá, na zona rural: o Pico do Papagaio, com 1.260 metros de altitude. No centro ganham relevo o prédio do Cine Teatro Guarany, erguido em 1922, e as charmosas e coloridas edificações do século 19, fincadas nas ladeiras da cidade. As histórias e lendas do cangaço dizem que Lampião usou como esconderijo uma construção, de posição estratégica, conhecida hoje como Casa Grande das Almas. A cidade também abriga um Museu do Cangaço. Já a gruta denominada Furna dos Holandeses serviu de refúgio para remanescentes da tropa estrangeira depois da expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654.

Pensar em Triunfo é vislumbrar o folguedo dos caretas e sua variação, as veinhas. Os mascarados, que ganham protagonismo no carnaval, representam a cidade sertaneja. Essa brincadeira conta mais de um século e banca uma tradição transmitida de pais para filhos. As máscaras, com as bocas voltadas para baixo (da tragédia do teatro), adotam desenhos multiformes. Além das roupas coloridas, eles usam luvas e outros apetrechos – como chapéus enfeitados por fitas, tabuletas com mensagens irônicas ou picantes e chocalhos – para garantir o anonimato do brincante. E o mais importante: carregam os relhos, que são os chicotes que provocam um estalido fascinante e assustador ao mesmo tempo.

A atriz, diretora e produtora Bruna Florie fala desse lugar em Da laje-palco, respeitável público: o Alto, com a autoridade do pertencimento, de quem fez movimentos de saídas e retornos. Na real, ela elege um bairro para exaltar, um celeiro de artistas: o Alto da Boa Vista. “Eu cresci aqui”, começa narrando. Para reforçar “O Alto inspira cultura em Triunfo”. E mais na frente nos fazer cúmplices: “Conheço cada detalhe”.

Uma panorâmica, feita de cima com um drone, percorre os telhados das casas e Bruna passeia por ruas e memórias e cita pessoas marcantes do pedaço: família de músicos e artesãos de Seu Dão (que entrelaçava os cipós tão ligeiro quanto o olhar da menina); seus amigos Mazé e João Edson; Seu Zuza, “o careta mais exímio de Triunfo”; Seu João de Pastora, um dos criadores das cambindas; Maria de Zuza, que costura as peças dos artistas; seu primo Lúcio Fabio, que integrou o primeiro ateliê de arte do Alto; Neta, brincante e rezadeira, que deixa os meninos sambarem no terreiro; Nino Abraão e a Treca de Caretas Alto Astral.

O mundo visto do Alto é bordado, alimentado por poesia extraída do cotidiano, que celebra a vida e inventa outras razões para festejar. Da sua laje-palco, espaço que aloja caixas d’água, a atriz dança com o estandarte da Cambinda de Triunfo, de 2012. Ao portar a máscara do careta/veinha ela assume o silêncio enigmático desses brincantes e sai pelas ruas em sua performance com uma bengala e seu vestido vermelho: senta para descansar, para em um santuário, benze um gato.

Bruna Florie assume várias funções no trabalho Da laje-palco, respeitável público: o Alto, salientando sua inquietação. Ela colabora com vários coletivos de Triunfo: Pantim, Casa Espiral da Terra, Mangaio, RIPA (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco) e o grupo de samba de coco e poesia “A Cristaleira”. Ela reúne no currículo outras dramaturgias, como Um conto de Lôre, Giro Espiral, Andeja, Dentra.

A trilha sonora traz uma camada a mais da riqueza cultural de Triunfo. O eletrococo muderno de Jéssica Caitano manda muito bem na cena ao misturar repente, coco, rap e beats e sintéticos. São ideias sonoras muito potentes, com músicas autorais de Jéssica e Chico Correa, responsável pelo componente instrumental, com beats, samplers e programações. 

Nesse período pandêmico tive oportunidade de conhecer alguns grupos que geralmente estariam fora do meu raio. Fiquei satisfeita com o trabalho de Bruna Florie. Aliás, admiro muito os realizadores, os que enfrentam e superam as dificuldades e/ou, apesar delas, concretizam sonhos com orgulhosa alegria.

Mesmo sozinha na gravação, a artista carrega consigo meio mundo de gente que atravessou  seu caminho, e muitos outros da sua ancestralidade, que sempre souberam do prazer da brincadeira compartilhada entre parentes e amigos. Os artistas do Alto da Boa Vista, como ela diz, vem sendo visita, passagem, memória, resistência, engrenagem. Salve, salve a cultura brasileira.

Dentra

Dentra, com Bruna Florie. Foto Divulgação

O corpo está repassado de um ruidoso mundo externo. O corpo ocupa um espaço no universo. Nessa proposta, o corpo físico é distinguido, fragmentado e desconstruído para desligar-se do mundo, silenciar e ouvir a voz interior. Em Dentra ouvimos o sussurro não pronunciado de Bruna Florie “O corpo é a nossa casa, a mais pessoal, a mais primordial. Precisamos cuidar bem dele”.

O experimento cênico Dentra convoca outras texturas poéticas além das memórias coletivas de Da laje-palco, respeitável público: o Alto. Clama por intimidades, aconchegos, outros afetos. Temporada de escuta; respiração como renovação.

As máscaras nas paredes, as peças das roupas de baixo no varal, um tom melancólico de recolhimento com o quase cheiro de terra úmida.

Dia desses a Tristeza bateu. “Escutei-a. escutei-me”. Ela escutou, abriu as janelas.

O tempo pulsa em cada pequeno objeto.

Vivemos tempos voltados para dentro.

Com uma boneca de pano, ela mostra que é possível suturar as dores, embelezar-se com um vestido. Tudo é delicado.

A feitura do chá é a criação de uma pintura. Pés mergulhados.

Na casa de bonecas ela enfia a cabeça. Closes bonitos nos olhos. Eles falam muitas coisas. Você entendeu?

Aproveitar o tempo hoje. Abraçar as experiências. Encarar suas sombras interiores. Acolher-se, solidarizar-se, valorizar-se. A realidade já está cruel demais. Vibre de emoção. Cada amanhecer é uma nova possibilidade.

Da laje-palco: respeitável público, o Alto
Ficha técnica:

Direção, roteiro, atuação e produção: Bruna Florie
Assistente de produção e videomaker: Guilherme Andrade
Filmagens com drone: Maycon Jonathan
Maquiagem: Karol Virgulino
Participações especiais de artistas do Alto da Boa Vista: Joaneide Alencar, Carlinhos Artesão e Jéssica Caitano
Edição, fotografia e direção de arte: Bruna Florie
Trilha Sonora:  Beat the Burglar – Scott Holmes, Repente – Jéssica Caitano & Chico Correa, Música Lab II– Jéssica Caitano & Paulo Beto, Canarin – Jéssica Caitano & Chico Correa

DENTRA
Ficha técnica:

Direção geral e produção: Bruna Florie
Roteiro: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Assistente de produção I e videomaker: Guilherme Andrade
Assistente de produção II: Geibson Nanes
Trilha sonora: Sad walk with sad piano – komiku, Amaryllis Flower – Ivy Meadows, Dreaming of You – Komiku
Edição, montagem, fotografia: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Direção de arte, atuação e poema Dentra: Bruna Florie

 

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Paulo de Pontes flameja em experimento cênico
Crítica de Inflamável

O ator Paulo de Pontes, no camarim improvisado na sua casa. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

“Como se faz com o nervosismo?”, pergunta o ator Paulo de Pontes, de cara lavada, enquanto aguarda o público para a sessão virtual no Festival Reside Lab – Plataforma PE, de Inflamável, um experimento cênico, com poemas de Alexsandro Souto Maior e direção de Quiercles Santana. “Estou sentindo o mesmo friozinho na barriga que sinto no teatro, a mesma ansiedade, é incrível”.

Dá o primeiro sinal!

“Uma loucura que está o mundo!”, exclama. “Mas continuamos resistindo, experimentando, provando que a gente está vivo”.

No camarim improvisado em sua casa, Paulinho ressalta suas crenças. “O que é mais importante é a vida. E o amor. A gente perdeu muita gente, família, amigos, colegas, conhecidos”.

Começa a se trocar.

“Tem muita gente resistindo, experimentando, continuando a fazer arte. Precisamos valorizar essas iniciativas. Eu parabenizo (nós também) Paula de Renor (diretora geral e curadora do Reside Festival BR – edição especial Reside LAB Plataforma PE)”.

Coloca a lente de contato. Anuncia os patrocinadores. E oferenda a experiência às pessoas que partiram por complicações da Covid-19. Fala que precisamos aprender com essa pandemia a compreender a voz do outro, “Viva a vida! E viva o teatro!”

inflamável junta três poemas de Alexsandro Souto Maior. Foto: Captação de tela

Estamos enclausurados. Estamos enclausurados. Estamos enclausurados reverbera esse experimento cênico, onde a luz é pouca, o espaço é ínfimo e o efeito de claustrofobia nos atinge. Convivemos com o insuportável testemunho de perdas de milhões de vida e no Brasil essa sensação é agravada pela mão genocida que ocupa o  mais alto cargo do Executivo.

A Sonata para Piano nº14 em Dó sustenido menor, Op. 27, nº 2, de Ludwig van Beethoven, – mais conhecida como Moonlight Sonata (Mondscheinsonate em alemão), a Sonata ao Luar, que ostenta características introspectivas, quase de uma marcha fúnebre, – dá o tom grave na peça logo no início.

Os três poemas escolhidos, do livro Inflamável, de Alexandre Souto Maior, lançado em 2019, elaboram profundas conexões com o mundo contemporâneo, como também conectam nossas feridas, do patriarcado, da exploração, da colonização.

O Homem do Pau Brasil, A Margem e Descolonizado trançam a dramaturgia que acessa o passado e tensiona o presente. “Esses homens que não são de folhas / que não são do pau-brasil / Gritam palavras de ordem / Ao som de coturnos e fuzis na mão / Querem mesmo me plantar enterrar”. Plantar no original do poema, enterrar na peça.

A Margem propõe um diálogo com um ausente que reivindica ser “… a palafita enlameada / De dejetos / Da casa grande” e “o porão de um navio / Cheio de gritos e gemidos”. Essas lamentações são entrecortadas por frases do Nero brasileiro, que alardeou: “Não sou coveiro”; “É muito mimimi”; “Eu prefiro filho morto…”; “Vocês reclamam demais”.

A presença incendiada de Paulo Pontes oscila entre a suavidade e a revolta com Descolonizado. Cochicha com doçura “Canto o que me sussurra um guanumbi / O que me conta uma cabocla / O que me confessa um rouxinol”, para insurgir feroz “Quando pisar nesta terra / Peça licença…”

Imagens projetam um Recife, cidade tão bela cortada por rios, mas que sangra. Seus artistas inquietos fazem o melhor para honrar a tradição aguerrida dessas terras. Encaram ainda a incompreensão política do papel da arte e da cultura no contexto de uma cidade, de um estado, de um país.

E, neste março, em que fez três anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, a pergunta ecoa na peça. Quem mandou matar Marielle e por quê? Só poderemos pensar que a justiça está atuando como justiça quando essas respostas forem respondidas. O Brasil insurgente das periferias, que desafia o “apartheid racial não oficial” e que enfrenta de peito aberto o patriarcado, exige respostas.

Por que matar uma vereadora eleita em exercício do mandato foi um anúncio de que esse país  ficou mais covarde ao se tornar mais conivente com genocídios de negros, de indígenas, de mulheres. Por que um pouco do Brasil morreu em 17 de abril de 2016 com a abertura do impeachment de Dilma Rousseff, mais um pouco em 14 de março de 2018 com o assassinato de Marielle e Anderson, e mais um pouco com a administração do ódio de Bolsonero, que vem provocando uma tragédia sem precedentes. É muito eloquente o silêncio sobre quem ordenou o crime e por quais razões.

A direção da peça é assinada por Quiercles Santana

Inflamável

Paulo de Pontes é um ator militante. Desde que voltou ao Recife para fazer um trabalho pontual – isso já faz três anos – foi ficando e atuou em uma dezena de espetáculos – com grandes elencos, em dupla, em solo. Se envolveu com a política cultural da cidade do Recife e de Pernambuco, nas lutas com outros artistas e agentes culturais, desde a campanha pelo Teatro do Parque a articulações por editais e outras frentes. Um trabalho nem sempre visível.

Como ator, ele é intenso e totalmente entregue, daqueles artistas apaixonados e apaixonantes. Quando ocorre uma sinergia entre atuação, encenação e dramaturgia é um prazer vê-lo em cena; quando não, reconhecemos o seu esforço.

O experimento cênico junta muitos talentos, com a direção do sempre criativo Quiercles Santana, um dos encenadores mais febris de Pernambuco. O resultado causa uma suspensão reflexiva desse lugar em que pulsam vida e morte. Pelos discursos nômades, somos convocados a percorrer as entranhas do país com suas dores enraizadas nas injustiças sociais.

Feito com uma única câmera de celular, um projetor de imagens, uma janela antiga como cenário, um técnico para modular luz e som, e um ator altamente inspirado, que movendo-se em um exíguo espaço flameja em arte.

Inflamável é um breve poema de resistência. Ao expor os aspectos sombrios desses tempos em situação-limite, de abandono, do mundo paralisado por uma pandemia, atingido pela crise financeira e do Brasil em alta-tensão provocada pelos desmandos da política, a peça aponta para a carga de resistência, para a potência de combate. Não à toa a palavra adiconeg fecha a transmissão. Temos consciência, temos força e temos esperança de que esse jogo vai mudar.

Ficha Técnica:
Autor: Alexsandro Souto Maior
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Produção executiva: Márcia Cruz
Realização: Pontes Culturais

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Um flâneur da memória
Crítica do espetáculo Brabeza Nata


Alexandre Sampaio em Brabeza Nata. Fotos: Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

 

O título do experimento cênico Brabeza Nata lança uma ideia de homem forte, rude, possivelmente de baixa escolaridade, pouco afeito a etiquetas e outros salamaleques. É um estereótipo do sertanejo, do nordestino, de um Nordeste “parado” no tempo entre a pobreza e o cangaço, da criatura desacostumado a demonstrações de carinhos. Primeira queda do cavalo. O dramaturgo Luiz Felipe Botelho desafia nossa percepção já no título. E rechaça a moldura da preconcepção, que resvala na negação do sujeito. Ainda no século 20, em 1999, ele escreveu Coiteiros de Paixões, em que investigava, entre outras coisas, as masculinidades, seus desvios e reinvenções, no fictício esconderijo de cangaceiros.

Desse deslocamento inicial seguem-se outros, pequenas surpresas para desestabilizar os sentidos prévios. O ator Alexandre Sampaio assume o papel de José Mateus. E seu primeiro convite é para os olhos. Existe um costume, ainda, dos anfitriões das casas nordestinas, de apresentarem os cômodos à “visita” como demonstração de gentileza. O personagem passeia pela casa expondo um pouco da intimidade. São portas imaginárias de entrada.

O percurso da câmera revela um pouco desse personagem em palavras destacadas de cartas, cartões, bilhetes, em antigas fotografias. Um livro Vira-Lata de Raça – Memórias de Ney Matogrosso. São muitas pistas para insights do observador. Objetos ganham texturas, remédios gritam como salva-vidas para não enlouquecer. E a canção Na Hora do Almoço, do Belchior, conduzindo por lugares inimagináveis, pois como diz a música “Cada um guarda mais o seu segredo”.

Sentimos a mão do diretor Cláudio Lira no encadeamento das cenas, nos enquadramentos, na cumplicidade estabelecida do intérprete com o público virtual. Da aridez do título à amabilidade da narração, a peça passa para o espectador a tarefa de preencher o percurso de apreensão da experiência.

Confesso que a primeira frase do texto “Nasci na periferia do interior do interior” não me convenceu. Procurei o lugar e achei um efeito de linguagem que não me fisgou. Mas o personagem segue erguendo o cenário cravado no seu corpo, na sua mente,  quem sabe no seu coração. “Distante, pobre e sem nome”. Feito ele. 

Com um trabalho repleto de porosidades de sentidos, as reminiscências que habitam esse corpo-repertório são projetadas na casa inflada de acontecimentos. Camadas da personagem atravessadas pelas vivências do ator.

Esse flâneur enclausurado pela pandemia busca uma libertação através dos relatos do confinamento afetivo, de uma mãe que o rejeitou desde o parto e da pulsação de Eros, alimentada pela avó desde sempre. Como arqueólogo de sua própria história, ele perscruta lembranças permeáveis de sua infância e adolescência. Diante do espelho, projeta o duplo de si no passado, com a capacidade de enxergar as escolhas da mãe, os mimos da avó. Seu corpo acervo rechaça rótulos.  

Além de tensionar o papel do macho, o experimento cênico testa questionar o papel convencional de mãe, como figura dedicada aos filhos, capaz de fazer qualquer tipo de sacrifício por eles; quer dizer, aquela caixinha quase sagrada da maternidade. Não, a mãe de José Mateus parece centrada em si mesma.

Penso na capacidade do olhar, de infiltrar-se no espaço-tempo. Imagino uma rede de pontos de vista exercendo uma supercognição da visão. Uma ponte entre o interior do personagem, que dá gás à imaginação do espectador. Nós avistamos as contradições e num jogo consciente fazemos as composições a partir dos dados de José Mateus, no modo como ele narra sua solidão, resquícios de sua infância e suas fantasias lacunares da ausência da mãe “muito braba e muito bonita”, o exercício da sexualidade e do afeto.

A peça estreou em junho durante a temporada do Teatro de Quinta da Casa Maravilhas em tempos de pandemia Covid-19. Além de Brabeza Nata, integraram a mostra Inflamável, de Alexsandro Souto Maior, com direção de Quiercles Santana e atuação de Paulo de Pontes; e Vulvas de Quem?, com direção de Cira Ramos atuação de Márcia Cruz, a partir de contos da escritora pernambucana Ezter Liu.

Essas sessões do ano passado foram gravadas e ficaram disponibilizadas no perfil da Casa Maravilhas. Na sessão apresentada no Reside há uma visível maturidade da proposta, domínio técnico dos planos e enquadramento. E não é fácil fazer todos esses ajustes ao vivo. O resultado é cativante. Ficamos verdadeiramente interessados pela história de José Mateus.

As apresentações ao vivo carregam esse fluxo de eletricidade maior, o tempo síncrono, o risco. O trabalho se insurge com esse ar transitório, tão próprio do teatro, tão único a cada nova sessão.  

O desempenho de Alexandre Sampaio é potente, e cheio de sutilezas interpretativas. O confronto entre luz e sombra se opera inclusive por meio de espelhos. O espelho maior tipo camarim, os menores que amplificam bocas e desejos.  

Ele fábula o que foi, imaginou, projetou. E nessa fabulação cabe mais intensidade dessas figuras lembradas, mãe e avó. Mais tintas nos retratos. Penso que ampliando e verticalizando as histórias das duas na voz do protagonista podem render um espetáculo robusto, com cargas emocionais fortes. 

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Espero que eles se expandam.

Como cápsulas para o futuro.

Brabeza Nata encerra com uma música da Cris Braun, Cuidado com pessoas como eu: “Dizem que se deve ter cuidado / Com pessoas como eu, Vão logo dando presentes / Dizendo te amo / No primeiro adeus”. Há esperanças.

Ficha Técnica:
Texto: Luiz Felipe Botelho
Direção: Cláudio Lira
Elenco: Alexandre Sampaio
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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Clara e Conceição foram ver o mar
Crítica de Transbordando Marias

Clara e Conceição Camarotti (foto) trabalham juntas em Transbordando Marias. Foto: Reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No meu corpo, sou muitas. As que vieram antes, as que virão depois. Carrego comigo todas elas. Em Transbordando Marias, espetáculo que abriu a programação de encenações do festival Reside Lab – Plataforma PE, no corpo da atriz e bailarina Maria Clara Camarotti estão imbricadas as vivências da sua mãe e da sua avó, numa teia complexa que traça paralelos, coincidências e viradas de rumo entre histórias temporalmente distintas, mas ligadas pela ancestralidade.

Há algum tempo, ando absorvida pela leitura do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Mergulhada na história de Kehinde, nascida em Savalu, no reino de Daomé, na África, em 1810. É uma personagem forte, que sente a ancestralidade pulsando no corpo, nos sonhos, nas crenças compartilhadas com o seu povo. Transbordando Marias me levou de volta às primeiras páginas do livro.

Kehinde era uma ibêji, como são chamados os gêmeos entre os povos iorubás. Pela tradição, ibêjis eram símbolo de boa sorte e de riqueza. Com Kehinde e Taiwo atadas ao próprio corpo, uma na frente e outra atrás, a mãe das crianças dançava no mercado para ganhar dinheiro. A primeira lembrança de existência de Kehinde eram os olhos da Taiwo. “Éramos pequenas e apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro da minha mãe, dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber, porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou somente para mim”.

Clara Camarotti dança, não no mercado, mas no espaço de um casa, como se fosse a mãe de Kehinde. Com a mãe e a avó, que também podem significar casa. Assim como o corpo que habitamos, com todas as suas singularidades, casa. Sabe que não é apenas uma. Tem consciência de que são três. São várias, incontáveis, presentes ali naquela sala, através da sua dança.

O elo entre as três mulheres é o número 9, aquele que simboliza o encerramento de ciclos. Que rompe com as estruturas de violência reproduzidas a cada geração. A avó foge dos maus-tratos do marido depois de nove anos, deixando a filha de nove anos, levando consigo apenas a mais nova, de nove meses. A mãe foge de casa com o circo, aos nove anos, porque queria ser atriz. A rejeição sofrida pelo grupo de amigas aos nove anos com a justificativa de que era uma criança feia.

Clara Camarotti dança a história das mulheres da família. Foto: Reprodução de tela

A perspectiva documental, autobiográfica, é uma das potências do trabalho, que consegue estabelecer zonas fluidas entre ficção e realidade. Afinal, memória também é construção, (re)elaboração de sentidos e narrativas. Quando contamos, nos insurgimos contra o esquecimento. Damos uma oportunidade, traço de imensa generosidade, para que os outros também se apropriem da narrativa, carreguem consigo, passem adiante.

Ao trazer para a cena a mãe, a atriz Conceição Camarotti, 67 anos, Clara entrega um presente precioso ao espectador. Conceição é uma atriz gigante, que preenche a tela, que instaura um tipo estranho e raro de cumplicidade imediata. Está em cena sendo questionada pela filha se gostaria de interpretar um papel, se preferia improvisar ou simplesmente ser ela mesma. Consegue fazer as três coisas. Ora provando o figurino, ora contando histórias deliciosas de uma jovem destemida numa sociedade patriarcal, sentada numa mesa, na cozinha de um sítio, ora reproduzindo, livremente, as falas da velha Maria Josefa, louca, mãe de Bernarda Alba, personagem célebre de Federico Garcia Lorca.

Texto tem trechos inspirados na personagem Maria Josefa, de Lorca. Foto: Reprodução de tela

Nesta situação de pandemia, quando morremos literalmente sem fôlego, numa metáfora materializada, triste e cruel da nossa realidade, Conceição pede que a filha abra a porta, que a deixe ver o mar. Assim como ela, a filha e os filhos da filha também terão cabelos brancos, como a espuma da onda do mar, bubuia, que é doce, beija a praia, mas tem a força de levar tudo embora. O tema da velhice perpassa a dramaturgia como condição inerente, espelho-tela refletindo a imagem da velha atriz preta, potência de vida, encarando o soco no estômago das limitações trazidas pelos anos. Ao mesmo tempo, existência, resistência.

Transbordando Marias foi criado em conjunto por uma equipe de artistas: além de Maria Clara Camarotti, Naná Sodré, do grupo O Poste Soluções Luminosas, Maria Agrelli, Silvinha Góes e Conrado Falbo, esses últimos parceiros de Clara no Coletivo Lugar Comum. O trabalho foi possível graças ao edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco. Gestado durante a pandemia, as questões técnicas, desde a captação das imagens e do som até a edição, são o ponto mais frágil do trabalho. A sensação é de que, embora tenha uma dramaturgia e uma atuação consistentes, com muitas possibilidades, trata-se ainda de uma semente, de um experimento que pode virar árvore frondosa.

Dá esperança pensar que podemos ter, em algum momento de um futuro que quiçá nos seja próximo, um espetáculo documental, Clara e Conceição Camarotti pisando o palco de um teatro. Ou um filme, já que as telas amam o talento de Conceição. Vou puxar a sardinha para o nosso lado, que venham logo, sem demora, as três batidas de estaca do Teatro de Santa Isabel, anunciando que a sessão já vai começar.

Clara Camarotti. Foto: Reprodução de tela

Ficha Técnica:
Concepção e direção geral: Maria Clara Camarotti
Elenco: Conceição Camarotti e Maria Clara Camarotti
Texto livremente inspirado na personagem Maria Josefa, da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca
Equipe de criação: Maria Clara Camarotti, Nana Sodré, Maria Agrelli, Silvinha Góes, Conrado Falbo
Trabalho contemplado pelo edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco.

 

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