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Clara e Conceição foram ver o mar
Crítica de Transbordando Marias

Clara e Conceição Camarotti (foto) trabalham juntas em Transbordando Marias. Foto: Reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No meu corpo, sou muitas. As que vieram antes, as que virão depois. Carrego comigo todas elas. Em Transbordando Marias, espetáculo que abriu a programação de encenações do festival Reside Lab – Plataforma PE, no corpo da atriz e bailarina Maria Clara Camarotti estão imbricadas as vivências da sua mãe e da sua avó, numa teia complexa que traça paralelos, coincidências e viradas de rumo entre histórias temporalmente distintas, mas ligadas pela ancestralidade.

Há algum tempo, ando absorvida pela leitura do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Mergulhada na história de Kehinde, nascida em Savalu, no reino de Daomé, na África, em 1810. É uma personagem forte, que sente a ancestralidade pulsando no corpo, nos sonhos, nas crenças compartilhadas com o seu povo. Transbordando Marias me levou de volta às primeiras páginas do livro.

Kehinde era uma ibêji, como são chamados os gêmeos entre os povos iorubás. Pela tradição, ibêjis eram símbolo de boa sorte e de riqueza. Com Kehinde e Taiwo atadas ao próprio corpo, uma na frente e outra atrás, a mãe das crianças dançava no mercado para ganhar dinheiro. A primeira lembrança de existência de Kehinde eram os olhos da Taiwo. “Éramos pequenas e apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro da minha mãe, dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber, porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou somente para mim”.

Clara Camarotti dança, não no mercado, mas no espaço de um casa, como se fosse a mãe de Kehinde. Com a mãe e a avó, que também podem significar casa. Assim como o corpo que habitamos, com todas as suas singularidades, casa. Sabe que não é apenas uma. Tem consciência de que são três. São várias, incontáveis, presentes ali naquela sala, através da sua dança.

O elo entre as três mulheres é o número 9, aquele que simboliza o encerramento de ciclos. Que rompe com as estruturas de violência reproduzidas a cada geração. A avó foge dos maus-tratos do marido depois de nove anos, deixando a filha de nove anos, levando consigo apenas a mais nova, de nove meses. A mãe foge de casa com o circo, aos nove anos, porque queria ser atriz. A rejeição sofrida pelo grupo de amigas aos nove anos com a justificativa de que era uma criança feia.

Clara Camarotti dança a história das mulheres da família. Foto: Reprodução de tela

A perspectiva documental, autobiográfica, é uma das potências do trabalho, que consegue estabelecer zonas fluidas entre ficção e realidade. Afinal, memória também é construção, (re)elaboração de sentidos e narrativas. Quando contamos, nos insurgimos contra o esquecimento. Damos uma oportunidade, traço de imensa generosidade, para que os outros também se apropriem da narrativa, carreguem consigo, passem adiante.

Ao trazer para a cena a mãe, a atriz Conceição Camarotti, 67 anos, Clara entrega um presente precioso ao espectador. Conceição é uma atriz gigante, que preenche a tela, que instaura um tipo estranho e raro de cumplicidade imediata. Está em cena sendo questionada pela filha se gostaria de interpretar um papel, se preferia improvisar ou simplesmente ser ela mesma. Consegue fazer as três coisas. Ora provando o figurino, ora contando histórias deliciosas de uma jovem destemida numa sociedade patriarcal, sentada numa mesa, na cozinha de um sítio, ora reproduzindo, livremente, as falas da velha Maria Josefa, louca, mãe de Bernarda Alba, personagem célebre de Federico Garcia Lorca.

Texto tem trechos inspirados na personagem Maria Josefa, de Lorca. Foto: Reprodução de tela

Nesta situação de pandemia, quando morremos literalmente sem fôlego, numa metáfora materializada, triste e cruel da nossa realidade, Conceição pede que a filha abra a porta, que a deixe ver o mar. Assim como ela, a filha e os filhos da filha também terão cabelos brancos, como a espuma da onda do mar, bubuia, que é doce, beija a praia, mas tem a força de levar tudo embora. O tema da velhice perpassa a dramaturgia como condição inerente, espelho-tela refletindo a imagem da velha atriz preta, potência de vida, encarando o soco no estômago das limitações trazidas pelos anos. Ao mesmo tempo, existência, resistência.

Transbordando Marias foi criado em conjunto por uma equipe de artistas: além de Maria Clara Camarotti, Naná Sodré, do grupo O Poste Soluções Luminosas, Maria Agrelli, Silvinha Góes e Conrado Falbo, esses últimos parceiros de Clara no Coletivo Lugar Comum. O trabalho foi possível graças ao edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco. Gestado durante a pandemia, as questões técnicas, desde a captação das imagens e do som até a edição, são o ponto mais frágil do trabalho. A sensação é de que, embora tenha uma dramaturgia e uma atuação consistentes, com muitas possibilidades, trata-se ainda de uma semente, de um experimento que pode virar árvore frondosa.

Dá esperança pensar que podemos ter, em algum momento de um futuro que quiçá nos seja próximo, um espetáculo documental, Clara e Conceição Camarotti pisando o palco de um teatro. Ou um filme, já que as telas amam o talento de Conceição. Vou puxar a sardinha para o nosso lado, que venham logo, sem demora, as três batidas de estaca do Teatro de Santa Isabel, anunciando que a sessão já vai começar.

Clara Camarotti. Foto: Reprodução de tela

Ficha Técnica:
Concepção e direção geral: Maria Clara Camarotti
Elenco: Conceição Camarotti e Maria Clara Camarotti
Texto livremente inspirado na personagem Maria Josefa, da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca
Equipe de criação: Maria Clara Camarotti, Nana Sodré, Maria Agrelli, Silvinha Góes, Conrado Falbo
Trabalho contemplado pelo edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco.

 

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Violetas da Aurora estão de olho no seu voto

Coletivo de palhaças do Recife estreia série Zona Eleitoral, uma campanha em 4 episódios. Foto: Ricardo Maciel

Fabiana Pirro é Uruba, Mayara Waquim é Maroca. Foto: Li Buarque

Ana Nogueira  é Dona Pequena. Silvinha Góes é Sema Roza Madalena . Reprodução do Facebook

Terra plana. Negação da ciência. Incêndios no Pantanal, devastação na Amazônia. “Milagres” da Cloroquina… Mentiras, mentiras, mentiras!!! País-gigante humilhado na ONU. Mais de 140 mil óbitos por Covid-19 desde o começo da pandemia (dados de 25/09). Ataques à integridade da cultura. Aumento do desemprego, descida ao mapa da fome.

– Oxe! E o que o meu voto tem a ver com isso?

– Tudo!!! Tudinho… tudão.
Foi com o golpe de 2016 e o confisco do mandato de uma presidenta mulher sufragada democraticamente que esse traçado anunciou o pior que estava por vir. E veio na eleição de 2018. E piorou e piora com o Nojento.

Por essas e outras, elas, as super-meninas, as Violetas da Aurora, estão de olho no seu voto! Ana Nogueira (Dona Pequena), Fabiana Pirro (Uruba), Mayara Waquim (Maroca) e Silvinha Góes (Sema Roza Madalena) estreiam neste sábado (26/09), às 21h, a série Zona Eleitoral, uma campanha em 4 episódios. O primeiro deles Sem Convenção marca também a volta de Dona Pequena ao picadeiro.

Meu voto será feminista – Violetas no Poder !!! Estão ouvindo a multidão gritar? É isso aí meu povo, o coletivo de palhaças se joga de corpo, alma e graça na campanha política 2020. No primeiro encontro, dos quatro episódios, elas vão fazer a prévia para a escolha da candidata oficial, “aquela que irá representar os desejos e anseios de violetas das mais variadas matizes e lutas desta cidade que é o mundo todo”.

“Bora juntes bulir com as estruturas podres”, convocam. Reprodução do Facebook

A série Zona Eleitoral chega repleta de fatos e fotos da vida real na visão peculiar das Violetas.

“E se o mundo ficar pesado???… Se o mundo emburrecer???… Se o mundo andar pra trás???…
Ops! Ficou!!!! Emburreceu!!!! Andou!!!!
Pois vamos abrir com alegria as palavras sabedoria, poesia, rebeldia, teimosia, utopia em todo canto, fresta, chão ou janela, a plantar, chover, escrever, gritar, abraçar o milagre da transformação…
É tudo nosso e a luta também!!!!!
Estamos juntes…
Mais do que nunca…
Sem convenção que seja, mas juntes pra valer!!!!!”

Como de costume, o trabalho junta os investimentos de atuação e afeto: palhaçaria feminina, piadas, contação de histórias, poesia, dança, canto, teatro. Dessa vez elas vão disputar seu coração e principalmente o seu voto. Cada uma na singularidade de sua figura. É para rir, mas também refletir, que vivemos num tempo político. Como lembra a poeta polonesa Wislawa Szymborska, no mais que belo Filhos da época: “Somos filhos da época / e a época é política…”

Essa maravilha de coletivo feminista de palhaças, o único só de mulheres palhaças em atuação no Recife, vai lembrar – porque a memória está curta, né minha filha???!!! – o que se passa nos bastidores da escolha de candidaturas majoritárias, os lances e os interesses que estão em jogo, Dona Pequena, Uruba, Maroca e Sema Roza Madalena reforçam a urgência do empoderamento da mulher na sociedade. Todo voto é decisivo. “Bora juntes bulir com as estruturas podres”, convocam.

As palhaças Violetas da Aurora nasceram juntas para o picadeiro e para a vida. Dona Pequena, Maroca, Sema Roza Madalena e Uruba foram gestadas em 2010 durante o Curso de Formação de Mulheres Palhaças, efetivado pela Duas Companhias e sustentado pelo edital do Fundo Estadual de Cultura (Funcultura) do Governo de Pernambuco. A atriz-palhaça Adelvane Neia, a palhaça Margarida, pioneira na área da comicidade feminina e perita parteira de palhaças e palhaços Brasil a dentro, foi a responsável pela façanha de trazer ao mundo esse quarteto de palhaças.

Ana Nogueira passou um susto com o joelho, mas já está de pé. Foto: Li Buarque

Em meados de agosto, as Violetas da Aurora estavam com agenda marcada para ocupação na Casa Maravilhas. Ensaio geral, com cenário, figurino, maquiagem, tudo de cima e a alegria do reencontro para fazer a festa no picadeiro… Mas a vida apronta suas ciladas. E de repente, Dona Pequena caiu do banquinho e machucou o joelho. Um acidente de trabalho. A ocupação foi adiada por tempo indeterminado.
Teve muita reza, cirurgia, solidariedade, vaquinha para o joelho novo de Dona Peq, ela sempre astuta e aperaltada, cheia de anedotas e leseiras cativantes.
No Facebook, ela escreveu:

Há três semanas lancei aqui um pedido de ajuda. Hoje, venho agradecer. O retorno foi o melhor possível, pois tive por parte de todes palavras e gestos que me deram força e segurança para os primeiros passos no primeiro mês da recuperação. Ontem, 20.09, fez um mês da cirurgia. Avancei, avançamos, um pouquinho a cada dia. Superar o medo de dar o passo seguinte foi o ganho maior dessa etapa. O mergulho na dor física é algo novo para mim. E se não for assim, não tem avanço.
Saí da cadeira de rodas, passei pro andador e agora estou de muletas, liberada para colocar 30% de carga na perna.
Essa semana teremos mais um desafio: retomar o trabalho com as Violetas da Aurora

Salve salve as Violetas da Aurora!

 

SERVIÇO
Estreia da série Zona Eleitoral: primeiro episódio Sem Convenção com as Violetas da Aurora e participação especial da DJ Marte Rafaella Rafael
Quando: sábado (26), às 21h
Onde: Instagram da @casamaravilhas
Ingresso: no chapéu democrático (virtual)
NuBank – Banco 260
Agência 0001
Conta 43218962-0
CNPJ 27.677.055/0001-97
Ana Nogueira
*Se preferir transferir para Caixa, Banco do Brasil ou Itaú, elas tem também.
Mais informações: Ana Nogueira 81.99918.4817

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Partilhas de afeto

Silvinha Góes em Diário corporal . Foto de Daniela Nader

Silvinha Góes em Diário corporal . Foto: Daniela Nader

Estar vivo a cada dia é um novo milagre, constata Silvinha Góes, depois de muitas andanças em que pedaços seus ficaram pelos caminhos. Mas também o reencontro com seus antepassados, com as raízes indígenas da tribo Fulni-ô , abasteceu seu coração, fortificou as pernas para outras danças.

Seu corpo-história está marcado de fluxos de vida, entre dores profundas e necessárias, e alegrias abençoadas por toda a beleza concedida pelo universo.

Nesta segunda-feira a artista expõe sua esperança no encontro verdadeiro, humano, embalado por afetos de pessoas que insistem em acreditar que não é preciso ferir o outro para ser feliz.

A mostra Diário corporal – um caminho de retorno é encarado como uma possibilidade de troca, mais do que um espetáculo. É a pulsão Vital de Silvinha Goes que acolhemos, acalentamos, num movimento mútuo de alegria e gratidão pela existência.

Neste 12 de junho, às 19h, no Coletivo Lugar Comum (Rua Capitão Lima, 210 – Santo Amaro).

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Celebrando Hilda Hilst

O caderno rosa de Lory Lamby, leitura com Silvia Gos. Foto: Divulgação

O caderno rosa de Lori Lamby, leitura com Silvia Góes. Foto: Divulgação

A escritora Hilda Hilst, que morreu em 2004 aos 74 anos, sempre falava da necessidade da poesia em tempos de brutalidade. A barbárie se faz disfarçada sob uma capa da legalidade interpretada ao bel prazer da plutocracia no Brasil. E a poesia expandida é urgente e arma de algumas pessoas. Entre elas, as atrizes Fabiana Pirro, Nínive Caldas, Silvinha Góes e o ator Cláudio Ferrário que juntos fazem uma leitura dramatizada da Trilogia Obscena, no Coletivo S6xto Andar (sexto andar do Edifício Pernambuco, na Avenida Dantas Barreto).

O programa faz parte do projeto Ocupação Casa do Sol: um encontro com Hilda Hilst, realizado pela Corujas, com algumas ações. Nesta sexta-feira, às 20h, os intérpretes vão dramatizar os personagens dos livros O caderno rosa de Lori Lamby, Contos D’escárnios, Cartas de um sedutor, Textos grotescos e Bufólicas.

O Caderno Rosa de Lori Lamby, por exemplo, flagra uma menina de oito anos que comercializa seu corpo estimulada por seus pais proxenetas.

O nome do projeto remete para a Casa do Sol, no interior de São Paulo, onde Hilda viveu dos 35 anos até a morte, atualmente sede do Instituto Hilda Hilst. A ação inclui outras atividades.

No sábado (07/05), a partir das 16h, o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) abriga atrações de ‪‎Música‬ + Poesia + Pole Arte com Ana Carolina Mac Dowell; Audição da Rádio HH – 911 MHZ, com Poema aos Homens do Nosso Tempo, do artista Paulo Meira; Exposição da artista Ceci Silva inspirada na obra Contos de Escárnio/Textos Grotescos; Vídeoarte de Mariana de Matos estudo sobre a obra Do Desejo. E encerra com uma conversa aberta entre a artista plástica Olga Bilenky, do Instituto Hilda Hilst, o artista plástico Paulo Meira, a produtora Bruna Leite e o público.

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