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As duras linhas do diário de um ator na pandemia
Crítica de 72 dias

Paulo de Pontes registra cotidiano de um artista em isolamento em 72 dias. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A matéria da Folha de S. Paulo, publicada neste domingo, 28 de março de 2021, registra: “O Brasil voltou a bater recorde na média móvel de mortes por Covid neste domingo: 2.598. É o maior número desde o início da pandemia e um crescimento de 42% se comparado com a última semana, o que indica tendência de alta nos óbitos pela doença (…)”.

Nós não esperávamos tamanha tragédia. Nenhum pesadelo poderia ter previsto essa realidade. Para uma pessoa comum, não os estudiosos ou os infectologistas, ou gente da área, isso nunca passaria pela cabeça, que estaríamos vivendo uma pandemia nessas dimensões. E, mais ainda, que duraria tanto tempo.

Em março do ano passado, quando do dia para a noite tudo fechou e pairava uma sensação de incerteza e de insegurança diante de um risco que não conhecíamos, fizemos projeções. Boa parte delas a partir da gravidade da situação que acompanhávamos pela televisão na Europa e na Ásia. Mesmo assim, irreais. No solo 72 dias, exibido na programação do Reside Lab – Plataforma PE, o ator Paulo de Pontes conta que imaginou que o isolamento social duraria 15 dias. Um ano depois, o acachapante saldo de mais de 300 mil mortos no Brasil, ilusões desfeitas, cenário devastador de guerra. No experimento, como diz o título, foram 72 dias.

O solo se estrutura como um diário de criação gravado por um ator durante este período pandêmico. Na conversa com um amigo do outro lado da tela, ele insiste que não precisa de companhia, que ficaria bem sozinho nas duas semanas que durariam aquela situação mais grave. Como muitos de nós privilegiados, nos agarramos às possibilidades de encontrar coisas boas no meio de tudo aquilo: seria uma chance de parar um pouco, descansar, dedicar-se a atividades que não tínhamos tempo no cotidiano. Finalmente fazer yoga. Levanta a mão quem se identifica! No caso do personagem, montar um espetáculo solo depois de tantos anos de carreira, de ter se empenhado sem intervalos aos projetos de outras pessoas. A metalinguagem se coloca como recurso de maneira muito fluida, quase intuitiva. Somos nós, os espectadores, que estamos ali, aceitando o convite para acompanhar a peça sendo criada em tempo real, quando o pedido por companhia beira o desespero.

O material dramatúrgico se apoia praticamente por completo no real e no autobiográfico. Paulo de Pontes é um ator com uma carreira longeva e profícua, com muitos personagens e projetos em seu repertório. De fato, quando começou a pandemia, ele estava morando no teatro, o espaço da Casa Maravilhas, que serviu como cenário para a gravação. A dramaturgia foi criada em parceria com Quiercles Santana, que também assina a direção. Virou um mergulho nos sentimentos e nas emoções cotidianas que foram se modificando ao longo dos dias arrastados do isolamento. Veio o cansaço, a solidão, o medo, a exaustão.

Diante do acirramento da crise, com o material da vida real pulsando, também surge a preocupação com a situação dos artistas, a necessidade batendo à porta, a sobrevivência que se instaura como pressão diariamente. A campanha de demonização dos artistas como uma política que vem sendo colocada em prática há alguns anos, mas que agora sobe alguns degraus, fazendo jus e coro à necropolítica implantada por este desgoverno, enfrentada por gente como Paulinho. Gente como os artistas que participaram do Reside. Que continuam se articulando, criando, conversando, resistindo, questionando “Quem mandou matar Marielle Franco?”, cansando, mas levantando a cabeça no momento seguinte. E não por romantização, ato de bravura ou qualquer coisa que o valha, mas porque não há outra possibilidade. Porque o teatro é a vocação, faz falta ao corpo, ao espírito.

Experimento utiliza material biográfico. Foto: Keity Carvalho

O experimento é cru em sua natureza dramatúrgica. Escancara o cotidiano de muitos artistas durante a pandemia, que provavelmente passaram por situações semelhantes. Mas essa dureza também nos afasta em certa medida, porque é uma realidade que já nos é muito próxima, que está em nossas próprias casas. Criado no calor do momento, o experimento ainda carrega uma carência de elaboração poética, talvez semântica, talvez em sua capacidade de abstração. Faz falta transcender o cotidiano ou ser capaz de promover conexões que não se atenham só aos fatos mais óbvios, mas se desprendam, possam ir além.

Neste jogo, Paulo de Pontes é um ator com estofo, que agarra a nossa atenção em 72 dias sem nos permitir dispersar. As precariedades nessa experimentação da linguagem do audiovisual, no isolamento imposto por uma pandemia, são incorporadas à dimensão processual do trabalho e fazem sentido, inclusive na condução da dramaturgia. Afinal, trata-se de um ator que está se virando sozinho, como a grande maioria, para continuar criando, para não perder os laços com alguma dimensão de realidade. Para não perder a oportunidade da dimensão da cura que o teatro nos proporciona a cada novo mergulho. Em 72 dias, o teatro pulsa como necessidade, como linguagem que corre nas veias, que escorre pela câmera. Corte seco e direto.

Ficha técnica:
Dramaturgia: Paulo de Pontes e Quiercles Santana
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Streamer: Márcio Fecher
Produção executiva: Márcia Cruz
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Pontes Culturais e Cia Maravilhas de Teatro

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Da culpa à libertação
Crítica de Vulvas de quem?

 

Márcia Cruz em cena no experimento Vulvas de quem?. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No último domingo, 21 de março, morreu Nawal El Saadawi, escritora egípcia feminista, autora de mais de 50 livros, entre ensaios, romances e peças. Em A face oculta de Eva, Saadawi conta que, aos seis anos de idade, teve o clitóris cortado. A mãe sorria. O cenário era o chão de um banheiro. Ao longo de sua trajetória como ativista, o combate à circuncisão feminina foi uma das suas principais causas. Numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 2016, a autora salientou a diversidade das mulheres e das suas lutas: “Vivemos em um mundo dominado por um sistema religioso, patriarcal e racista. Mas o nível de opressão varia de acordo com o tempo e de um lugar ao outro, segundo o grau de consciência da maioria e os poderes políticos das mulheres e homens lutando por liberdade, justiça e dignidade”.

Esse grau de consciência de que fala Saadawi tem se ampliado nas últimas décadas, num movimento que é complexo, porque as pautas feministas, assim como outras pautas sociais, são cooptadas pelo sistema capitalista, alienante por princípio. De toda maneira, a discussão sobre feminismo explodiu fronteiras, ganhou dimensão de debate público, embora ainda enfrente muitas distorções. Por exemplo: ontem à noite, 23 de março, o Brasil votou para que uma mulher que estava vivendo um relacionamento tóxico fosse eliminada do Big Brother Brasil. O principal oponente dela era um homem que fez piadas homofóbicas. O comportamento da mulher, taxada de trouxa aos quatro ventos do país, foi julgado, porque além de não perceber as armadilhas da relação, ela ainda se ajoelhou e fez uma declaração de amor em rede nacional.

Carla Diaz é uma atriz que cresceu sob os holofotes da televisão. Branca, loira, cabelão liso, magra, menininha, cumpre os pré-requisitos do estereótipo de beleza padrão. Ainda assim, não está a salvo do relacionamento abusivo. Nenhuma de nós está. Em qualquer idade, classe social, cumprindo ou não os padrões, mais um degrau na escala da opressão. A ressaca moral que, provavelmente, vai assombrá-la por um tempo, é parecida com àquela da personagem de Márcia Cruz em Vulvas de quem?, experimento cênico com direção de Cira Ramos e texto de Ezter Liu, uma realização da Cia Maravilhas de Teatro.

Aliás, talvez seja mais apropriado dizer “das personagens”. Sem seguir uma cronologia linear, Márcia Cruz vai dos 7 aos 93 anos, explorando os mecanismos da relação que se transforma em abuso, físico, psicológico, moral. “Quem vendou teus olhos com esse trapo sujo e depois te chamou de cega?”. “Quem queimou teu passaporte na pia do hotel e disse que ir não era uma opção?”. “Quem passou tua autoestima no liquidificador?”.

A atriz trilha o caminho do reconhecimento, desse instante em que a mulher tem a coragem de se olhar, mergulhar em si, e admitir que caiu na esparrela do abusador. O cenário é um banheiro, com a personagem de frente para o espelho, o público, que a acompanha nesse exercício de dor profunda. Márcia é uma atriz que passeia pelas filigranas da atuação – vai do choro e do grito rasgado ao riso de libertação com desenvoltura de quem tem anos de experiência e talento.

Personagens se olham no espelho e percebem relacionamentos abusivos. Foto: Morgana Narjara

Como o cerne da questão é identificar o abuso, o sentimento inicial que escorre desse texto, dessa personagem, é o da culpa. Vulvas de quem? Culpa de quem? Como eu não percebi? Como não me dei conta? Só que, como num ciclo vicioso, que atravessa o tempo e as gerações, como explicita a dramaturgia, é muito difícil se libertar, tanto do relacionamento quanto da culpa, que não deveria nem nos pertencer. Há um limite tênue, tanto no experimento como na vida. Parem de nos culpabilizar. Paremos de nos culpabilizar.

O desafio é enorme: mostrar a realidade da violência e da opressão no teatro, num experimento cênico de poucos minutos, que envereda pela elaboração discursiva de um cenário fiel ao cotidiano. Não há muitas permissões para a abstração, além da poesia crua do texto. O fluxo da jornada dessas personagens é o da repetição, até que a música de Flaíra Ferro irrompe no ambiente. Como um mantra, uma oração que clama por cura. “Eu quero me curar de mim, quero me curar de mim”.

Há uma força, que se desprende do texto, da música e, principalmente da atuação, que é do campo da catarse – tanto que reforça a ideia da cura. Que nos alcança e nos fere diretamente pela identificação. O espelho está escancarado, refletindo os rostos de todas nós. Que, para além da consciência da opressão, venha a superação. Porque, como diria Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. Antes que seja tarde.

Ficha técnica:
Texto: Ezter Liu
Direção: Cira Ramos
Elenco e produção: Márcia Cruz
Sonoplastia: Fernando Lobo
Música: Flaíra Ferro
Iluminação: Luciana Raposo
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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Um flâneur da memória
Crítica do espetáculo Brabeza Nata


Alexandre Sampaio em Brabeza Nata. Fotos: Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

 

O título do experimento cênico Brabeza Nata lança uma ideia de homem forte, rude, possivelmente de baixa escolaridade, pouco afeito a etiquetas e outros salamaleques. É um estereótipo do sertanejo, do nordestino, de um Nordeste “parado” no tempo entre a pobreza e o cangaço, da criatura desacostumado a demonstrações de carinhos. Primeira queda do cavalo. O dramaturgo Luiz Felipe Botelho desafia nossa percepção já no título. E rechaça a moldura da preconcepção, que resvala na negação do sujeito. Ainda no século 20, em 1999, ele escreveu Coiteiros de Paixões, em que investigava, entre outras coisas, as masculinidades, seus desvios e reinvenções, no fictício esconderijo de cangaceiros.

Desse deslocamento inicial seguem-se outros, pequenas surpresas para desestabilizar os sentidos prévios. O ator Alexandre Sampaio assume o papel de José Mateus. E seu primeiro convite é para os olhos. Existe um costume, ainda, dos anfitriões das casas nordestinas, de apresentarem os cômodos à “visita” como demonstração de gentileza. O personagem passeia pela casa expondo um pouco da intimidade. São portas imaginárias de entrada.

O percurso da câmera revela um pouco desse personagem em palavras destacadas de cartas, cartões, bilhetes, em antigas fotografias. Um livro Vira-Lata de Raça – Memórias de Ney Matogrosso. São muitas pistas para insights do observador. Objetos ganham texturas, remédios gritam como salva-vidas para não enlouquecer. E a canção Na Hora do Almoço, do Belchior, conduzindo por lugares inimagináveis, pois como diz a música “Cada um guarda mais o seu segredo”.

Sentimos a mão do diretor Cláudio Lira no encadeamento das cenas, nos enquadramentos, na cumplicidade estabelecida do intérprete com o público virtual. Da aridez do título à amabilidade da narração, a peça passa para o espectador a tarefa de preencher o percurso de apreensão da experiência.

Confesso que a primeira frase do texto “Nasci na periferia do interior do interior” não me convenceu. Procurei o lugar e achei um efeito de linguagem que não me fisgou. Mas o personagem segue erguendo o cenário cravado no seu corpo, na sua mente,  quem sabe no seu coração. “Distante, pobre e sem nome”. Feito ele. 

Com um trabalho repleto de porosidades de sentidos, as reminiscências que habitam esse corpo-repertório são projetadas na casa inflada de acontecimentos. Camadas da personagem atravessadas pelas vivências do ator.

Esse flâneur enclausurado pela pandemia busca uma libertação através dos relatos do confinamento afetivo, de uma mãe que o rejeitou desde o parto e da pulsação de Eros, alimentada pela avó desde sempre. Como arqueólogo de sua própria história, ele perscruta lembranças permeáveis de sua infância e adolescência. Diante do espelho, projeta o duplo de si no passado, com a capacidade de enxergar as escolhas da mãe, os mimos da avó. Seu corpo acervo rechaça rótulos.  

Além de tensionar o papel do macho, o experimento cênico testa questionar o papel convencional de mãe, como figura dedicada aos filhos, capaz de fazer qualquer tipo de sacrifício por eles; quer dizer, aquela caixinha quase sagrada da maternidade. Não, a mãe de José Mateus parece centrada em si mesma.

Penso na capacidade do olhar, de infiltrar-se no espaço-tempo. Imagino uma rede de pontos de vista exercendo uma supercognição da visão. Uma ponte entre o interior do personagem, que dá gás à imaginação do espectador. Nós avistamos as contradições e num jogo consciente fazemos as composições a partir dos dados de José Mateus, no modo como ele narra sua solidão, resquícios de sua infância e suas fantasias lacunares da ausência da mãe “muito braba e muito bonita”, o exercício da sexualidade e do afeto.

A peça estreou em junho durante a temporada do Teatro de Quinta da Casa Maravilhas em tempos de pandemia Covid-19. Além de Brabeza Nata, integraram a mostra Inflamável, de Alexsandro Souto Maior, com direção de Quiercles Santana e atuação de Paulo de Pontes; e Vulvas de Quem?, com direção de Cira Ramos atuação de Márcia Cruz, a partir de contos da escritora pernambucana Ezter Liu.

Essas sessões do ano passado foram gravadas e ficaram disponibilizadas no perfil da Casa Maravilhas. Na sessão apresentada no Reside há uma visível maturidade da proposta, domínio técnico dos planos e enquadramento. E não é fácil fazer todos esses ajustes ao vivo. O resultado é cativante. Ficamos verdadeiramente interessados pela história de José Mateus.

As apresentações ao vivo carregam esse fluxo de eletricidade maior, o tempo síncrono, o risco. O trabalho se insurge com esse ar transitório, tão próprio do teatro, tão único a cada nova sessão.  

O desempenho de Alexandre Sampaio é potente, e cheio de sutilezas interpretativas. O confronto entre luz e sombra se opera inclusive por meio de espelhos. O espelho maior tipo camarim, os menores que amplificam bocas e desejos.  

Ele fábula o que foi, imaginou, projetou. E nessa fabulação cabe mais intensidade dessas figuras lembradas, mãe e avó. Mais tintas nos retratos. Penso que ampliando e verticalizando as histórias das duas na voz do protagonista podem render um espetáculo robusto, com cargas emocionais fortes. 

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Aprecio os breves silêncios.

Espero que eles se expandam.

Como cápsulas para o futuro.

Brabeza Nata encerra com uma música da Cris Braun, Cuidado com pessoas como eu: “Dizem que se deve ter cuidado / Com pessoas como eu, Vão logo dando presentes / Dizendo te amo / No primeiro adeus”. Há esperanças.

Ficha Técnica:
Texto: Luiz Felipe Botelho
Direção: Cláudio Lira
Elenco: Alexandre Sampaio
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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