Édipo REC, do Grupo Magiluth, do Recife, é um acontecimento cênico vibrante e desafiador. Gestada no Teatro Lycio Neves, em Caruaru, local que acolheu seu retorno no Festival de Teatro do Agreste – Feteag 2025, a peça se apropria de uma narrativa trágica para questionar a sua perene relevância e a capacidade do teatro de provocar, desestabilizar e dialogar com as sensibilidades contemporâneas. A concepção do Magiluth, ligada ao conceito de “jogo” (escolha que valoriza a experimentação, a interação e a imprevisibilidade, convidando o espectador à coautoria da experiência), transforma o palco em um espaço de vivência contínua. Aqui, a plateia é ativamente convidada a participar de uma peça que desestrutura a cronologia linear e as expectativas tradicionais de fruição teatral.
O espetáculo começa antes mesmo da abertura formal dentro do teatro, com os atores circulando entre os espectadores no exterior do teatro, inaugurando um clima de cumplicidade e imersão imediata. Essa introdução festiva, pontuada pela distribuição de cervejas e a presença de personagens já em cena – como Kréonte, Tirésias, o Mensageiro e Corifeu que, munido de uma câmera, filma incessantemente – cria uma ponte fluida entre o cotidiano do espectador e o ritual cênico. O palco se transmuta em uma balada efervescente, com DJ Édipo (interpretado por Giordano Castro) mixando ritmos que vão de Rihanna e Pabllo Vittar a MC Poze do Rodo. Essa trilha sonora pop serve como uma lente para a atemporalidade dos dilemas humanos, justapondo o hedonismo contemporâneo à iminência da tragédia.
Nesse cenário de frenesi, o Coro, interpretado por Erivaldo Oliveira em um figurino provocativo e andrógino de Chris Garrido, assume o papel de anfitrião-provocador e de voz da consciência coletiva. Ele anuncia a festa, mas também alerta para a “vida decepcionante” que se esconde sob o verniz da celebração, encarnando a dualidade entre o júbilo e a premonição.
A plateia, especialmente na sessão em Caruaru, foi rapidamente arrastada para essa atmosfera de confluência entre o hedonismo e a premonição. A primeira hora do espetáculo, vivenciada em pé, em meio a uma balada caótica, permitiu experimentar o teatro como acontecimento, como uma troca mútua e palpável entre quem o faz e quem o assiste. A entrega do público de Caruaru, que se mostrou “animal” e “contagiante”, diz muito da estratégia do Magiluth em estabelecer uma conexão, utilizando a proximidade física e a quebra de protocolos para intensificar a experiência e desmantelar a barreira convencional entre palco e plateia.
Em um dos momentos de maior engajamento, o Coro estimula a “não-monogamia” e um “beijaço” geral. No entanto, apesar da efervescência desde o início da peça para a dança, a resposta do público ao estímulo do “beijaço” foi notavelmente discreta, até mesmo acanhada.
A atuação do elenco – dirigido com criatividade e irreverência por Luiz Fernando Marques, Lubi – assemelha-se a uma partida de basquete em que os jogadores, além de entrosados e estrategicamente alinhados através de um rigoroso trabalho de conjunto, têm espaço para o brilho individual, e todos contribuem para a “cesta” – um jogo perfeito de entrega e colaboração na sessão em Caruaru. Roberto Brandão, assumindo o papel de Tirésias, o cego vidente, com um cinismo elegante e um deboche quase felino, cumpre com dignidade a tarefa de suceder o impacto de Pedro Wagner, injetando uma nova camada de complexidade e impertinência ao profeta.
Enquanto isso, Gabriela Cicarello, substituindo Nash Laila como Jocasta, entrega uma figura altiva e permeada por lutos não verbalizados, transmitindo através de sua postura e olhar uma profundidade melancólica à sua personagem, capaz de transitar entre diferentes estados emocionais e funções narrativas, do desdém à desesperança.
A trilha sonora, festiva e dramática, serve como um motor potente da dramaturgia, carregada de ironia e pensamento. O karaokê de Toda forma de amor, de Lulu Santos, é uma instigação que ressoa com as tensões da peça, indagando sobre os limites e as complexidades do amor, que abarca inclusive os proibidos e os incestuosos, reverberando os dilemas intemporais da tragédia.
As referências a outras obras, como Beijo no Asfalto de Nelson Rodrigues, enriquecem o intertexto, conectando a tragédia grega a outras explorações da paixão, do destino e do julgamento social na dramaturgia brasileira, especialmente no contexto urbano e suas hipocrisias.
A linguagem audiovisual é um pilar fundamental na construção de Édipo REC. O espetáculo se inspira fortemente no cinema, transformando Tebas em um Recife fantasmagórico e presentificado, onde o Corifeu, munido de uma câmera em tempo real, atua como um olho onipresente e, por vezes, intrusivo. Ele registra e transmite imagens para telões estrategicamente posicionados, como também media a realidade, manipulando a percepção do público e posicionando-o como voyeur e cúmplice.
Essa escolha tecnológica espelha a superprodução de imagens da era das redes sociais, a vigilância constante e a construção de narrativas digitais, onde a verdade é frequentemente moldada pela perspectiva da câmera e pela curadoria do conteúdo. A integração da tecnologia confere uma camada metalinguística à narrativa, explorando a relação intrínseca entre o real e o encenado, entre o que é filmado e o que é vivido.
O grupo Magiluth buscou referências no cinema experimental e underground, explorando como diferentes estéticas cinematográficas poderiam dialogar com a tragédia clássica e contemporânea. Desde o seminal Édipo Rex (1967) de Pier Paolo Pasolini, que explora a tragédia grega com uma estética brutalista, arcaica e quase documental, utilizando não-atores e locações desérticas para enfatizar os instintos primais e a inevitabilidade do destino de forma crua, Édipo REC absorve essa crueza na performance e na representação de um Recife desolado, onde a miséria e a beleza se entrelaçam sem filtros. O vanguardista Funeral das Rosas (1969) de Toshio Matsumoto, um mergulho no universo contracultural das drag queens de Tóquio, com sua subversão de gênero, fluidez da identidade e fragmentação narrativa, influenciou a estética não-linear e a desconstrução de papéis em Édipo REC, onde a identidade de Édipo é constantemente questionada e reconfigurada pela lente da câmera e pela interação com o Corifeu.
Outros filmes como Hiroshima, meu amor (1959) de Alain Resnais, com sua estrutura não linear e a forma como aborda a memória e o trauma, influenciaram a maneira como Édipo REC lida com o tempo e a persistência do passado no presente, utilizando montagens rápidas e justaposição de imagens para evocar a fragmentação da memória e o peso do trauma coletivo. Cinema Paradiso (1990) de Giuseppe Tornatore, que celebra o poder do cinema e da nostalgia, contribuiu para a reflexão sobre a capacidade das imagens de construir e preservar memórias, e como elas moldam nossa compreensão da realidade e do afeto; em Édipo REC, as imagens capturadas e projetadas tornam-se o registro “oficial” da tragédia, o que será lembrado e transmitido. E Cabaret” (1972) de Bob Fosse, que retrata a decadência social e política da Alemanha pré-Nazista através do microcosmo de um clube noturno, influenciou a estética de performance e a crítica social, mostrando como o entretenimento pode mascarar ou, inversamente, expor as tragédias iminentes, utilizando a teatralidade da encenação e a interação com a plateia para desnudar as tensões sociais latentes na Tebas-Recife.
A transição entre os atos é impactante, como quebra narrativa e também como dispositivo que força o público a uma reorientação. Os espectadores são solicitados a se retirar do espaço cênico por alguns minutos, um ato que simula uma interrupção técnica, como se a cena anterior precisasse ser ‘refilmada’ ou o set ‘reajustado’. Esta pausa deliberada para a interrupção da festividade e da ilusão, um reset forçado prepara o terreno para a iminente catástrofe que assola Tebas-Recife ou Caruaru-Tebas.
Se o primeiro ato foi a “festa” de uma grande celebração, onde Édipo ainda se agarrava à esperança de fugir de seu destino através do hedonismo e da negação, o segundo ato é o “velório”, o “enterro” simbólico da ilusão e da inocência. Os espectadores são arrastados para o olho do furacão da tragédia, acompanhando o protagonista em um mergulho implacável nas consequências devastadoras de suas ações e do destino.
A dramaturgia de Giordano Castro, com sua crueza, escancara as feridas da humanidade e as verdades dolorosas detectadas por Sófocles, revelando as consequências inevitáveis do destino e do conhecimento proibido. O amor, antes celebrado e idealizado, assume-se como “horror” para a família de Édipo
Adicionalmente, um evento que marcou o final do primeiro ato – uma “performance” inesperada onde alguém lançou lixo orgânico, com laranjas estragadas, no palco, exalando um cheiro forte e desagradável – adicionou uma camada de caos e crueldade à cena. Ficamos na dúvida sobre a espontaneidade do ato, parecendo até uma cena combinada. Mas não foi. De todo modo, esse gesto metateatral além de mimetizar a desordem e a decadência na cena, materializou a “praga” que assola Tebas, atacando os sentidos do público. A experiência olfativa e visual do lixo orgânico serviu como um presságio sensorial da putrefação moral e social que se revela no segundo ato.

Mário Sérgio e Giordano Castro. Foto: Jorge Farias e Giordano Castro, Kreonte e Édipo. Foto: Jorge Farias
No segundo ato denso, os personagens travam embates de acusação e defesa em um clima crescente do estado de desespero. No desenvolvimento do retorno da memória de Édipo, ganha destaque a projeção de uma gravação em que o protagonista, pilotando uma motocicleta, encontra e mata Laio.
A integração das tecnologias audiovisuais é central para a narrativa e a estética. A presença constante do Corifeu vertido em operador de câmera em cena, que registra e interfere ativamente nos acontecimentos, reflete a ubiquidade da mídia em nossa sociedade e questiona a natureza da verdade e da representação, transformando o público em voyeurs cúmplices da tragédia. A atmosfera torna-se inescapável, remetendo à reflexão de Sófocles sobre a verdadeira medida da vida e da felicidade de uma pessoa, que só pode ser avaliada quando chega ao seu desfecho.