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Recife perde André Filho, um trabalhador do teatro

André Filho morreu no último sábado, aos 62 anos. Foto: reprodução blog Fiandeiros

O ano era 2016. Vento forte para água e sabão, oitavo espetáculo e o segundo infanto-juvenil da Companhia Fiandeiros de Teatro, estreava no Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife. Numa entrevista ao Satisfeita, Yolanda? o diretor André Filho dizia que o tema mais significativo da peça era a morte, um assunto ainda repleto de tabu nas peças voltadas à infância.

“Resolvi seguir o caminho dessa discussão justamente pela contramão, ou seja, falar sobre morte a partir da vida, o sopro da criação, a relação com o divino que vem de nosso pulmão. Procurei contrastar o macrocosmo e o microcosmo, aqui simbolizado pelo clássico e pelo popular, respectivamente, mas sem mensurar valores de importância. Vida e morte, luz e sombra, ausência e conteúdo, tudo se complementa, assim como tudo que existe no universo.”

O foco na atuação e na dramaturgia, a musicalidade, a delicadeza e a sensatez marcam o trabalho de André Filho, encenador, ator, músico, diretor musical e dramaturgo, um trabalhador do teatro, que faleceu no último domingo, 10 de setembro, aos 62 anos, vítima de complicações de uma pneumonia.

André deixa a esposa, Daniela Travassos, a filha Maya, de 1 ano, e o legado de um trabalho duradouro e consistente nas artes da cena de Pernambuco, que inclui a Companhia de Teatro Fiandeiros, que atua há 20 anos no Recife e foi criada em parceria com Daniela e Manuel Carlos, e a Escola de Teatro Fiandeiros, que existe há 13 anos, e ocupa um espaço significativo na iniciação e na formação artística na cidade.

Manuel Carlos, André Filho e Daniela Travassos, fundadores da Cia de Teatro Fiandeiros. Foto: Eduardo Travassos

Formado em Matemática pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), André Filho fez o Curso de Extensão Musical, terminado em 1989; o curso básico de Formação do Ator oferecido pela Fundaj na década de 1990; e o curso de Formação do Ator da UFPE.

Na segunda metade da década de 1980, assinou muitas direções musicais ou composições de trilha para espetáculos que tinham a direção de José Manoel Sobrinho: Cantarim de Cantará (1985), O mágico de Oz (1986), Avoar (1986), O menino do dedo verde (1987), Com panos e lendas (1987) e Cantigas ao pequeno príncipe (1996). “Fico pensando como seria minha trajetória de encenador se ele não tivesse surgido como diretor musical, com quem eu dividi muitas construções de espetáculos. Ele aprendeu a lidar com o ator e a atriz nessa perspectiva do canto, nessa relação íntima do teatro com a música. André tinha um foco que era pensar a música no espetáculo cênico como dramaturgia e isso somava muito ao trabalho dos encenadores com quem ele trabalhou”, diz José Manoel.

A última experiência de trabalho de José Manoel Sobrinho com André foi no espetáculo Sistema 25, direção de Sobrinho, em que André Filho assinou duas composições. “No caso do Sistema 25, ele não era o diretor musical, era Samuel Lira, mas quando ele compôs,  estudou as cenas e veio discutir comigo os arranjos, porque ele pensava o arranjo como processo dramatúrgico”, complementa.

Nas experiências como ator, o diretor mais frequente foi Antonio Cadengue (1954-2018), na Companhia Teatro de Seraphim: André Filho atuou em peças como Em nome do desejo (1990), O jardim das cerejeiras (1990), Senhora dos Afogados (1993), Os biombos (1995), O alienista (1996), Menino minotauro (1997), Autos Cabralinos (Auto do Frade e Morte e vida severina), de 1997, Lima Barreto, ao terceiro dia (1998), Sobrados e Mocambos (1999) e Todos que caem (2000).

Em 2003, surge a Companhia de Teatro Fiandeiros. Numa entrevista para o Satisfeita, Yolanda? dez anos depois, André Filho relembra o início da companhia e os motivos pelos quais aqueles artistas permaneciam juntos.

“Nós nos reunimos em 2003. Nosso começo não foi muito diferente de outros coletivos: artistas que se juntam querendo se expressar coletivamente através de sua arte. Tínhamos origens distintas – éramos músicos, palhaços, professores, arte educadores, alguns já com experiência em trabalho de grupo, outros não. Eu havia sido convidado pelo Sesc para dirigir uma leitura dramatizada da peça A tempestade, de William Shakespeare. Convidei alguns atores para participar e o resultado é que, depois da leitura, o grupo quis continuar se encontrando para ler outros textos e conversar sobre teatro. Então decidimos seguir em frente com o processo de estudo e, daí, surgiu a Fiandeiros”, relembrava.

Na Fiandeiros, os campos de trabalho muitas vezes se misturavam: produção, gestão, atuação, direção, dramaturgia, direção musical e ensino de teatro.

Entre as produções mais marcantes do grupo estão Outra vez, era uma vez… (2003), texto de Filho, que assinava também a direção e direção musical, e ganhou o Prêmio Funarte de Dramaturgia na região nordeste em 2004; Noturnos, de 2011, texto e direção de André; e Histórias por um fio (2017), peça em que o artista assinava o texto e também estava em cena como ator, sob a direção de João Denys. Denys lembra com carinho dessa experiência. “Ele ficou muito satisfeito, porque não se achava lá um bom ator, mas foi muito reconhecido, até ganhou um prêmio no Janeiro de Grandes Espetáculos”, comenta o diretor. Naquela edição do festival, em 2018, a peça levou no total sete prêmios: Melhor Espetáculo, Diretor, Ator, Ator Coadjuvante, Cenário, Iluminação e Sonoplastia/Trilha Sonora.

“André era um sonhador, generosíssimo, sereno, aquela pessoa que fazia do teatro a vida dele. É uma criatura que vai nos deixar um vácuo, mas esse vácuo será preenchido com as sementes que ele deixou nos seus alunos, naqueles que o acompanhavam”, finaliza Denys.

Como artista que desde cedo acreditou no teatro como uma arte coletiva, André Filho era um defensor das políticas públicas para a cultura e o teatro. Articulado, tinha sempre uma opinião sensata, mas enfática, sobre as questões da cidade e do estado. Foi ouvido em praticamente todas as matérias sobre política cultural publicadas no Satisfeita, Yolanda? desde a criação do nosso site em 2011.

Neste ano, por exemplo, comentou as deficiências do Sistema de Incentivo á Cultura (SIC) e o valor irrisório do então Prêmio de Fomento às Artes Cênicas, que destinava uma verba de R$ 100 mil para ser dividida entre cinco produções. “Quando falamos nos festivais pelo país afora que o nosso fomento tem esse valor, as pessoas não acreditam! Destinar R$ 20 mil para realizar uma montagem é um desrespeito com a classe”, pontuou.

André Filho construiu uma trajetória que não se deixou marcar por egos e afetações. Quando questionado o que era preciso para ser um bom encenador, em 2016, disse que não se considerava e nunca havia pretendido ser um encenador. “Apenas procuro fazer um teatro que busca dialogar com a plateia, ser compreendido e me sintonizar com o mundo à minha volta. Uma vez vi uma entrevista com Abujamra que ele dizia que ‘ser encenador é a arte de ser dispensável’. Acho que é por aí. O que é mais bacana é que nosso trabalho é completamente invisível, quem brilha no palco é o ator. O trabalho do diretor é escrever no palco uma dramaturgia, escrita ou não, de maneira poética. Eu acho que para ser um bom encenador a primeira coisa que se tem a fazer é compreender que seu trabalho é invisível e que a cada novo processo se volta à estaca zero, do aprendizado. Quando isso não acontece corremos o risco de ficarmos repetitivos e presos ao passado. O tempo do teatro passa e não volta. Não adianta. Quanto mais tentarmos voltar ao que nos deu brilho um dia, mais nossa luz se apagará. Toda vez que penso nisso sinto quanto estou distante de ser um bom encenador”.

 

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Difícil realidade brasileira
Crítica de Contos em Dor Maior

Totonha, com Karla Pimentel, um dos quadros de Contos em Dor Maior, da Escola de Teatro Fiandeiros . Foto: fotojanela

Timidez ou solidão, egoísmo, medo do futuro ou fantasmas do passado. Teatro serve para tudo. Para quem quer ser artista ou para quem vai abraçar outra carreira, estudar teatro é um bom passo, seja qual o for o caminho a seguir. É um treinamento muito especial do que há de mais humano em nós.

A Escola de Teatro Fiandeiros, do Recife, é tocada por artistas-pesquisadores vocacionados. Os diretores André Filho e Daniela Travassos estão nessa labuta há mais de uma década, tecendo aprendizado /experimentação dos alunos-atores com cuidado e delicadeza.

No ano passado, devido à pandemia do Coronavírus, as aulas ocorreram de forma virtual. O trabalho de conclusão da Turma de Iniciação Teatral, nível 1, da Escola de Teatro Fiandeiros, ministrada pela professora Daniela Travassos, rendeu o espetáculo Contos em Dor Maior. Trata-se de uma composição dos contos do escritor Marcelino Freire, em monólogos sequenciados, de temática variada.

Os aprendizes dão os primeiros passos. E que bom que seja com Marcelino Freire, que carrega uma prosa poética, com muitas castas de reflexões. A gravação da peça foi exibida na programação do Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano. 

A obra de Marcelino Freire aparenta ser fácil de levar à cena. Por uma teatralidade que pulsa na composição dos textos. Pelo tom coloquial. Mas ela exige uma dedicação maior ao se apropriar das feridas sociais e imprimir algum sentido no palco. Há complexidade ao tratar de opressão em vários campos: sexualidade, racismo, discriminação, machismo, patriarcado, militância, experiências e perspectivas sobre si e o outro. E mesmo que pareça colar em algum clichê, traça um deslocamento para provocar uma fissura profunda, um pequeno abalo sísmico, que infla a potência da fala, do corpo, do pensamento.  

As rimas dentro da prosa de Marcelino Freire se mostram um desafio. Em alguns casos de Contos em Dor Maior há uma dificuldade de se apropriar do universo da cena, as ações psicofísicas clamam por um treinamento exaustivo do ator. E a articulação das palavras precisam ser saboreadas, mastigadas, introjetadas.

A linguagem contemporânea de Freire aponta a complexidade da vida destes tempos, com os dramas do cotidiano, os protestos, o acordar para uma consciência crítica nas contradições. A tensão da linguagem no espaço de opressão social nos mostra coisas muito mais diretas que as teorias.

Quando Marcelino Freire investe, por exemplo, nos traumas de personagens homossexuais / bissexuais / transexuais não é para salientar os estereótipos, usados como entretenimento raso nos programas televisivos humorísticos. Mas para falar da humanidade daquela personagem e de quem a julga. Ou quando o autor salienta os efeitos do passado colonial e escravocrata refletidos no discurso das figuras, ele expõe as frustrações movidas pela discriminação contra as pessoas negras, pobres, periféricas. É preciso sutileza nessas falas diretas.

Nação Zumbi, com o ator Ariel Sobral. Foto Divulgação

Ao todo, 14 cenas formam Contos em Dor Maior. Seis de Contos Negreiros (2005): Nação Zumbi, Vanicléia, Totonha, Polícia e Ladrão, Curso Superior e Coração. Uma de Angu de Sangue (2002): Moça de Família. Três de Amar é Crime (2011): Vestido Longo, Ir Embora e Irmãos. Quatro de Rassif – Mar que arrebenta (2006): O Amigo do Rei, Maracabul, Roupa Suja e Ponto.Com.Ponto.

Começa com o conto Nação Zumbi, com o ator Ariel Sobral. Nele, um homem preto e pobre acertou vender um rim. Como o tráfico de órgãos no país é ilegal, algo dá errado e a operação não se realiza. A personagem problematiza a miséria, a fome, a falta de oportunidades, a saúde pública no Brasil, e os limites de pertencimento do próprio corpo. “E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar.”, pergunta. “Se fosse para livrar minha barriga da miséria até cego eu ficaria”. A caracterização (roupas rasgadas e sujas, e um saco de tecido às costas) sugere o papel de um mendigo ou morador de rua. A pensar! O intérprete faz modulações interessantes do episódio que vai render ao personagem muita pancada nos rins.

“Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso”, se posiciona Totonha, personagem do conto homônimo. E desafia a mocinha que tenta convencê-la a ser alfabetizada. “O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-linguiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo?”. Karla Pimentel valoriza a revolta, ironia e reflexões da personagem no quadro bem composto.

Silvia Raquel corporifica a funcionária da lavanderia que arma plano mirabolante para conquistar um cliente em Roupa suja. Ela imprime sensualidade ao relato dessa aventura amorosa e preenche com graça suas reticências. “Maria, nem sei por onde começar. A contar. A minha história de amor. Quando ele, Meu Deus, entrou na lavanderia. Parecia propaganda de sabão. Tudo à minha volta ficou limpo, límpido, esse mundo cão.”

Ponto.Com.Ponto segue a epígrafe e toca um trecho da música Carinhoso de Pixinguinha e João de Barro. Anúncio de um encontro amoroso no parque. O quadro, com Yuri Campelo expõe a expectativa de um jovem apaixonado. O ator traz uma leveza cativante, traduzida em gestos infantilizados. E deixa entrever os ardis de sentidos proposto pelo texto.

Um pai, fissurado em futebol, fica intrigado porque o filho não tem habilidade com a bola. E gosta de poesia. Em Amigo do Rei, Gerson Alves consegue extrair humor da ignorância do personagem que deduz que o filho está apaixonado por um tal de Manuel Bandeira, que ele não sabe se mora nas vizinhanças.

O machismo da sociedade brasileira atravessa todas as classes, com suas armações de superioridade/ inferiorização. A mulher da cena Vanicléia é pobre e negra, casada com um marido agressor. Sem perspectiva de vida, ela sonha para sua filha uma vida que já teve, como prostituta e o tratamento “mais humano” dos estrangeiros em rota de turismo sexual no Brasil. Bárbara Lavínia passeia por lembranças e indignações da personagem.

Há uma musicalidade na cena Ir embora, com Paloma Aires. Há extratos de beleza sobre despedida, sobre dúvidas da mudança da Chapada das Mangabeiras para uma cidade mais “desenvolvida”.

O espetáculo Contos em Dor Maior distingue potencialidades dos alunos, alguns com mais desenvoltura no trabalho. E o cuidado da diretora Daniela Travassos ao respeitar as circunstâncias de cada um deles. Que sigam, que o teatro faz bem.

Ficha Técnica
Contos em Dor Maior
Direção: Daniela Travassos.
Dramaturgia: Marcelino Freire.
Iluminação: Charly Jadson.
Elenco: Ana Gouveia, Ariel Sobral, Bárbara Lavínia, Edu Leandro, Gerson Alves, Karla Pimentel, Marcos Júnior, Matheus Travassos, Melquizedeque Lagos, Paloma Aires, Rafael Neves, Silvia Raquel, Tony Macedo, Yuri Campelo.

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Funcultura ignora pandemia soterrado em burocracias*

Inscrição para edital foi feita presencialmente na capital ou por Sedex. Foto: PH Reinaux Secult PE

Artista fez protesto com cartazes. Nas redes sociais, muitos se manifestaram

Visualize o cenário: Pernambuco, 2020, pandemia da Covid-19, crise em muitos âmbitos, inclusive na cultura. A continuidade de um edital público para o setor – mesmo que o resultado seja prometido apenas para o mês de dezembro -, além de obrigação do poder público, é bem-vinda. Mas, para concorrer ao Funcultura Geral 2019-2020, Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, produtores culturais precisaram imprimir uma via de seus projetos, encaderná-la, rubricar todas as páginas, salvar duas vias em pen drive ou DVD e enviar por Sedex para a Fundarpe (ou, no caso de produtores da Região Metropolitana do Recife, se deslocar até a Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista).

“Percebemos a dificuldade dos produtores no estado inteiro, mas no interior isso se agrava pelas distâncias. Por aqui, fizemos a conta: um produtor gasta, em média, R$ 100 para conseguir enviar um só projeto. Para algumas pessoas, isso é muito dispendioso. O que ouvimos na reunião da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco) é que falta empatia por parte da Fundarpe, principalmente neste momento de pandemia”, entende Caroline Arcoverde, atriz e produtora do grupo Teatro de Retalhos, de Arcoverde, cidade do Sertão pernambucano.

“Falta empatia por parte da Fundarpe, principalmente neste momento de pandemia”
Caroline Arcoverde, atriz e produtora do Teatro de Retalhos e integrante da Ripa (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco)

“Este ano, em especial, o Funcultura foi extremamente burocrático. Gastamos algo em torno de R$ 100, R$ 120 para cada projeto, sendo que estamos numa pandemia. Os artistas não têm esse dinheiro para investir. Já vi isso aqui na realidade da cidade – muitos dos produtores não enviaram projeto este ano porque não tiveram condições, não tinham dinheiro para fazer um projeto”, reforça André Vitor Brandão, produtor e bailarino de Petrolina, também no Sertão.

No estado que se orgulha de ter um dos maiores parques tecnológicos do país, os artistas e produtores de cultura precisam lidar com um formulário burocrático e as implicações financeiras da inscrição no edital, quando tudo poderia ser feito pela internet, como um cadastro. “Este é um momento em que todo mundo está sem perspectivas e a gente está precisando do que é direito nosso; esse edital é uma conquista, dinheiro público que precisa ser empregado na cultura, especialmente agora, com tanta gente desempregada, tantos espaços em vias de fechar”, pontua Daniela Travassos, atriz e produtora da Companhia Fiandeiros de Teatro, do Recife.

“Esse edital é uma conquista, dinheiro público que precisa ser empregado na cultura, especialmente agora, com tanta gente desempregada, tantos espaços em vias de fechar”
Daniela Travassos, atriz e produtora da Companhia Fiandeiros de Teatro

O edital publicado no fim de 2019, antes da pandemia, não foi alterado. Mas, diante da situação de crise e de isolamento social, as imposições burocráticas se tornaram insustentáveis e geraram muitos posts de protestos nas redes sociais, de artistas de várias linguagens.

“Há uns dois anos, tínhamos decidido dar um tempo na concorrência ao Funcultura, porque tem sido muito sofrido lidar com tamanhas exigências e limitar as ideias a tantas questões que não tem nada a ver com mérito artístico. E isso se agrava agora. Então, por exemplo, tentaram diminuir o papel, mas aumentaram outras exigências, como o pen drive ou DVD e o tamanho do arquivo. Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, meu projeto cada currículo do meu projeto é limitado a ter 2MB e, se ultrapassar isso, simplesmente o projeto é eliminado”, explica a produtora da Fiandeiros.

Para quem nunca precisou preencher um formulário do Funcultura, as reclamações dos artistas podem parecer até prosaicas. Mas a burocracia do edital é uma questão real, que se arrasta há anos, sem avanços, ignorando a realidade para além dos muros da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco). “A gente perde um tempo absurdo formatando formulário, tipo de letra, parágrafo, alinhamento, inserção de linhas, tamanho de arquivo. Mas, para mim, o mais grave neste quesito é querer que a gente faça uma planilha de orçamento em Word. Deveria ser, no mínimo, em Excel. Isso facilitaria os cálculos, a incidência dos impostos. Se a gente modifica o valor de uma pequena rubrica, isso interfere no valor total. Então, você tem que ficar o tempo inteiro monitorando esses valores, porque o Word não é uma ferramenta de cálculo”, explica André Filho, diretor e produtor da Fiandeiros.

Leidson Ferraz, jornalista, ator e pesquisador de teatro, fez um protesto presencial, no momento da entrega do formulário na Fundarpe, com cartazes que carregavam dizeres como “Evolua, Funcultura! Cadê a prometida informatização?” ou “BuRRocracia excessiva! Exclusão de muitos”. “Um edital cultural tem que ser o mais simples, o mais fácil possível, para abarcar democraticamente todo mundo. Como imaginar artistas populares, do circo, de tantas manifestações, sendo obrigados a lidar com essa burocracia toda? Isso impõe que as pessoas tenham que contratar produtores que vão ganhar uma parcela do valor, já tão defasado. São imposições injustificáveis, que só fazem excluir uma grande maioria. O que deveria estar sendo julgado era o valor artístico de cada proposta”, avalia Ferraz.

“Um edital cultural tem que ser o mais simples, o mais fácil possível, para abarcar democraticamente todo mundo”
Leidson Ferraz, jornalista, ator e pesquisador de teatro

Os valores do Funcultura também são questionados pelo artista. “O primeiro projeto que eu aprovei, em 2004, na área de publicações em teatro, tinha uma rubrica de R$ 50 mil. Hoje, o valor disponibilizado é R$ 40 mil. Desisti de colocar um projeto em livro, porque com esse valor é impossível fazer uma publicação com a qualidade que eu sempre fiz. O orçamento mais barato que encontrei, com uma gráfica boa, foi R$ 31 mil. Como vou pagar os outros profissionais envolvidos na produção de um livro?”, questiona.

Novo mundo caótico, velho formulário de papel

Como ignorar a realidade de pandemia que se instalou no país a partir de março? Em meio a tudo que tem acontecido no Brasil, os produtores que propuseram projetos de criação, circulação, festivais, mostras, precisaram pedir carta de anuência aos teatros e espaços culturais – ainda que eles estivessem (estejam) fechados. Como pensar a circulação internacional de um espetáculo quando muitos teatros no mundo não estão funcionando e fronteiras de vários países estão fechadas para os brasileiros?

As inscrições para o Funcultura Geral estavam previstas para acontecer de 14 a 30 de abril. Por conta da Covid-19, o prazo foi prorrogado – ficou valendo o período de 20 de julho a 3 de agosto. O edital, no entanto, não abarcou mudanças, mesmo que artistas de linguagens diversas, através das suas comissões setoriais (que formam o Conselho Estadual de Política Cultural) tenham proposto sugestões.

Paula de Renor diz que era preciso vontade política para mudar edital

No dia 8 de junho, a Comissão Setorial de Teatro reuniu cerca de 70 artistas para uma reunião virtual que durou quase quatro horas. A proposta é que o edital focasse em projetos menores. As verbas destinadas à itinerância nacional e internacional de espetáculos seriam remanejadas para outras ações. A rubrica de manutenção de espetáculos, por exemplo, subiria de R$ 60 para R$ 100 mil e a de programação de espaços de R$ 90 para R$ 180 mil, sendo que, nessa última, seriam contemplados até quatro projetos no valor máximo de R$ 45 mil.

O edital não teria exigências como carta de intenção ou anuência para atividades em equipamentos públicos e atividades formativas poderiam ser propostas em formato virtual. “A pandemia aconteceu, não podemos ter um olhar de normalidade para as coisas. Não dá para prever ações como se nada tivesse acontecido”, opina Paula de Renor, atriz, produtora e representante de Teatro e Ópera na Conselho Estadual de Política Cultural.

“A pandemia aconteceu, não podemos ter um olhar de normalidade para as coisas. Não dá para prever ações como se nada tivesse acontecido”,
Paula de Renor, atriz, produtora e representante de Teatro e Ópera na Conselho Estadual de Cultura

A burocracia, no entanto, impediu que o edital fosse alterado. “Para que isso acontecesse, era preciso vontade política, agilidade jurídica, para que encontrássemos uma adequação. Porque o problema é que o governador precisaria cancelar esse editar e fazer um decreto normatizando o outro. E não tínhamos certeza dessa agilidade, não houve empenho para encontrar uma solução jurídica”, explica Paula de Renor.

Na prática, o que pode acontecer é que as execuções dos projetos tenham que ser postergadas, como uma itinerância de espetáculo, por exemplo. O edital já prevê esse adiamento. “O que a gente queria era que esse dinheiro entrasse logo na cadeia da economia criativa, que ajudasse o maior número de artistas e impulsionasse a produção no estado”, finaliza a conselheira.

Promessa de informatização

De acordo com Aline Oliveira, superintendente do Funcultura, o próximo edital, que deve ser lançado em dezembro, deve contar com inscrições pela internet. “Conforme já foi anunciado no Conselho Estadual de Política Cultural, a gestão assumiu um compromisso de implementar as inscrições virtuais até o exercício de 2021 e fará todo o esforço possível para antecipar as inscrições virtuais já para os novos editais do Funcultura”, explica.

A superintendente admite que “estamos atrasados nesse processo”. “Mesmo com um sistema pronto, seria necessária uma estrutura de equipe e de tecnologias que infelizmente o Funcultura não teria condições de manter no momento. Desde 2019, a atual gestão da Fundarpe e do Funcultura têm estudado as ferramentas disponíveis no mercado para resolução do problema. Antes de decretar-se o estado de emergência em Pernambuco, em função da Pandemia da Covid-19, estavam sendo realizadas tratativas para contratação de serviços com o objetivo de modernizar o Funcultura. Entretanto, os decretos de contingenciamento e a próprio isolamento social dificultaram o avanço dos debates”, complementa.

ERRATA*
Matéria atualizada no dia 31 de agosto, às 11h24. Na fala de Daniela Travassos, onde constava “Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, meu projeto é limitado a ter 2MB (…)”, a sentença correta é “Mesmo que eu entregue um pen drive com um tamanho enorme, cada currículo do meu projeto é limitado a ter 2MB (…)”. Pelo erro, o Satisfeita, Yolanda? pede desculpas aos leitores.

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Grupos que mantêm sedes e atividades de formação sem perspectiva de apoio

Fiandeiros possui Escola há dez anos

Enquanto os trabalhadores da cultura de todo o país aguardam a votação da Lei de Emergência Cultural, os dias vão passando. Para os grupos e coletivos de artes cênicas pernambucanos, as incertezas e inseguranças são potencializadas pela falta de ação também nos âmbitos estadual e municipal. O cenário é de preocupação – com a subsistência desses trabalhadores e com a manutenção dos espaços físicos.

O Poste Soluções Luminosas, grupo de teatro negro, possui um espaço cultural desde 2014, no térreo do prédio na Rua da Aurora, esquina com a rua Princesa Isabel, no bairro da Boa Vista. Neste primeiro semestre, finalizaríamos a segunda fase do projeto Música no Espaço O Poste e começaríamos a terceira edição do projeto Escola O Poste de Antropologia Teatral.  Tivemos que suspender toda a agenda de shows, assim como a continuidade dos processos que envolvem a produção da Escola”, explica Naná Sodré, atriz, diretora e produtora do grupo. “Sim, há risco de fechamento, pois quando ocorre a interrupção dessas atividades que são fundamentais para a manutenção, não temos como prosseguir”, avalia.

A Cênicas Companhia de Repertório inaugurou o Espaço Cênicas em 2010, no segundo andar de um prédio na Rua Vigário Tenório, no Recife Antigo. “Quem possui um espaço cultural sem patrocínio público ou privado neste país convive permanentemente com o risco de fechamento. Agora, com o agravamento desta pandemia, esse risco se torna ainda mais iminente. A nossa receita caiu praticamente mais de 80%. Só temos uma turma de alunos ativa e as despesas mensais continuam. Nossa receita vem dos cursos e atividades artísticas do espaço e a nossa reserva financeira já está no limite”, explica Antônio Rodrigues, diretor do grupo.

Diante da fragilidade das políticas públicas – o que nunca foi novidade para a classe artística, mas se acentuou com a pandemia -, os enredos são bem parecidos. O grupo Fiandeiros se preparava para comemorar os 10 anos da Escola Fiandeiros, que funciona no prédio na Rua da Matriz, na Boa Vista, e serve também como sede e espaço cultural. “Os impactos já são enormes. O Espaço é nossa principal fonte de arrecadação e, ao mesmo tempo, a nossa principal fonte de despesas. Interrompemos abruptamente a arrecadação, mas as despesas continuaram as mesmas mesmo com ele fechado. Nosso sustento enquanto grupo e, principalmente, enquanto Espaço, depende da renda que vem dos cursos, dos espetáculos e das atividades que geramos nele. A outra fonte de receitas, que viria da venda de espetáculos, temporadas, e tudo mais, está completamente parada. Estamos, ao final desses dois meses, tentando administrar um cronograma financeiro com muito esforço, vindo das ações remotas, que possa ao menos permitir a subsistência do Espaço pelo tempo que der”, avalia Daniela Travassos, atriz e diretora do grupo Fiandeiros.

Os Espaços O Poste Soluções Luminosas, Cênicas e Fiandeiros possuem uma característica significativa em comum: os três também são locais para formação e atividades pedagógicas. No caso da Cênicas e da Fiandeiros, algumas turmas prosseguiram no formato online. “A Turma do Curso de Teatro Cênicas Cia 2020 estava praticamente fechada, deveria ter iniciado no final de março, porém com a quarentena instalada, as aulas foram adiadas por tempo indeterminado, juntamente com o Curso Dramaturgia do Ator. Atualmente, estamos com uma única turma de teatro ativa, que já tinha iniciado as aulas em 2019. O Curso de Iniciação Musical para o Teatro está acontecendo com aulas online, duas vezes por semana, com duração de três horas diárias”, conta Rodrigues.

Aula virtual da Cênicas Cia de Repertório

Na Escola Fiandeiros, quatro turmas estão com aulas pela internet. “Adaptamos todos os planejamentos, revimos conteúdos para serem repassados remotamente e estamos, aos poucos, inserindo a corporalidade, o treinamento vocal e o exercício da interpretação experimentado à distância. Estamos nos surpreendendo com o resultado e com o envolvimento dos alunos, embora saibamos que falta o essencial, que é a presença. Mas, talvez, a realidade imposta e a necessidade da troca estejam aquecendo essa relação que acreditamos que fosse ser fria a princípio. Perdas existem. Teatro é coletividade, é troca, é presença. Mas também é reinvenção. É adaptação aos momentos e às tecnologias existentes”, avalia Daniela Travassos.

No Poste, ainda estão abertas as inscrições para a Escola de Antropologia Teatral. As aulas desta terceira turma do programa, que tem como incentivadores Eugenio Barba e Julia Varley, deveriam ter começado no dia 2 de abril. O grupo aderiu às lives para a divulgação da campanha “Apoie o Espaço O Poste, não deixe fechar!”, que está com link no Catarse.

Eugenio Barba e Julia Varley, em visita ao Espaço O Poste

Cênicas e Fiandeiros ainda não fizeram campanhas de arrecadação, mas não excluem a ideia. Afinal, não há nenhuma expectativa para um suporte governamental, seja para artistas, grupos ou espaços. Para Daniela Travassos, “quando não há uma política estruturada para uma classe, fica difícil até atuar em cenários de urgência. Agora, o que tem são alguns artistas aguerridos lutando e falando por uma classe inteira, tentando achar uma maneira de dividir migalhas entre todos, porque o governo até agora acha que manter os editais já é o suficiente. Nós seguimos fazendo o que podemos: contribuindo para as discussões, inscrevendo em todos os editais possíveis, investindo grana pessoal, trabalhando em prol do nosso Espaço, que é da cidade e das pessoas, investindo na formação e tentando manter as ações que podemos”.

Para saber mais sobre as ações dos grupos, siga os espaços e companhias na rede:

@oposteoficial

@fiandeirosdeteatro

@espacocenicas | @cenicascia

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Mundo povoado de seres e narrativas

Manoel Carlos e Andre Filho no elenco de Histórias por um Fio. Foto: Rogério Alves

Manuel Carlos e Andre Filho no elenco de Histórias por um Fio. Foto: Rogério Alves / Divulgação

A concepção do mundo e a invenção dos universos subjetivos, trançados e narrativas conduzem o espetáculo Histórias por um fio, da Cia. Fiandeiros de Teatro. A dramaturgia da peça foi inspirada nos contos da tradição oral ibérica, indígena e africana.  A tarefa do personagem Mavutsinim, o deus indígena, é povoar a Terra de seres e histórias.

A montagem tem direção de João Denys, produção de Daniela Travassos, dramaturgia de André Filho e direção de arte de Manuel Carlos. Histórias por um fio faz apresentações nos dias 17 e 18 de junho, no Espaço Fiandeiros, na Boa Vista.

A peça faz parte do projeto Dramaturgia – Teatro Para Infância e Juventude e conta com incentivo do Funcultura. Histórias por um fio tem marcada uma exibição especial para escolas convidadas no dia 16, em sessão com tradução para Libras (Linguagem Brasileira de Sinais).

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: André Filho
Direção: João Denys
Direção de Arte: Manuel Carlos
Direção de Produção: Daniela Travassos
Direção Musical: Samuel Lira
Elenco: André Filho, Charly Jadson, Daniela Travassos, Manuel Carlos
Músicas: André Filho
Desenho de Luz: André Filho
Operação de Luz: Rodrigo Oliveira
Execução de Sonoplastia: Marcelo Dias
Percussão: Charly Jadson
Registros de imagens: Sobrado 423
Costureira: Irani Galdino
Equipe de Cenotécnica e pintura: Manuel Carlos, Jerônimo Barbosa, Charly Jadson, Robério Oliveira e Júlio Richardson
Produção Executiva: Renata Teles e Jefferson Figueirêdo
Realização: Companhia Fiandeiros de Teatro
Incentivo: Funcultura

SERVIÇO
Histórias por um fio
Quando: Dias 17 (sábado) e 18 (domingo) de junho, às 16h
Onde: Espaço Cultural Fiandeiros: Rua da Matriz, 46, 1º andar, Boa Vista, Recife
Ingressos: R$ 5, à venda na bilheteria do Espaço
Informações: (81) 4141.2431

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