Arquivo da tag: 23º FESTIVAL RECIFE DO TEATRO NACIONAL

Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,

Encontro de avaliação pública
Festival Recife do Teatro Nacional – parte 3
Reflexões e desafios

Momento de escuta e proposta no festival. Foto: Alexandre Sampaio

Exposição da avaliadora Giovana Soar. Foto: Alexandre Sampaio

Com este texto, concluímos esse pequeno retrato do que foi a reunião de avaliação do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, realizada no dia 2 de dezembro na sala da Banda Sinfônica no Teatro do Parque. Durante o encontro, diversos assuntos foram debatidos, refletindo sobre os desafios e as conquistas do evento. Um dos principais temas foi a organização e logística do festival, com destaque para a necessidade de ajustes nos horários e melhorias na divulgação, visando aumentar a participação do público, especialmente no OFF REC. A demanda de valorizar e apoiar grupos teatrais locais também foi indicada, com sugestões para fortalecer a cena cultural do Recife e promover maior inclusão e representatividade.

Outro ponto central das argumentações foi a infraestrutura e as condições de trabalho das equipes técnicas nos teatros, principalmente do Centro Apolo-Hermilo. Foram levantadas preocupações sobre a exaustão dos profissionais devido à sobrecarga de trabalho e à falta de recursos adequados, além da necessidade urgente de manutenção e atualização dos equipamentos. 

O encontro também explorou a relevância de criar espaços de diálogo e troca de ideias, inspirando-se em modelos de outros festivais, e a necessidade de uma comunicação mais eficaz para alcançar um público cada vez mais expressivo. Essas conversas refletem uma preocupação coletiva em aprimorar o festival e garantir sua sustentabilidade e relevância no cenário cultural local, regional e nacional.

Cena de ONÀ DÚDÚ Caminhos Negros na comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Artur Marinho expõe suas práticas na colaboração com Marconi Bispo no projeto ONÀ DÚDÚ Caminhos Negros. Este programa, que já ocorre nas ruas há dois anos, foi integrado ao FRTN pela primeira vez.

O percurso do ONÀ DÚDÚ começa na Praça do Arsenal e vai até a Cruz do Patrão, um trajeto que pode ser desafiador para pessoas idosas ou com mobilidade reduzida. Para facilitar, parte do caminho foi feita de ônibus, retornando ao Recife Antigo e envolvendo moradores locais e a comunidade do Pilar. A produção inclui integrantes do Pilar, criando um modelo de ocupação das ruas que dialoga com um público diversificado, principalmente composto por pessoas negras.

Apesar do sucesso na execução, Artur observa que o público foi o menor já registrado, o que ele atribui à logística de horário, uma terça-feira à tarde, durante um festival. Artur expressa preocupação com a dependência do virtual para divulgação, reconhecendo que nem todos têm acesso a essas plataformas. Ele sugere que o festival poderia se beneficiar de uma página centralizada para melhorar a divulgação e alcançar um público mais amplo.

Um adendo histórico relevante sobre o desenvolvimento do teatro no bairro do Pilar foi feito por Augusta Ferraz, que destacou a contribuição de Paula de Renor. Com o Teatro Armazém, Paula foi pioneira ao levar o teatro para aquela comunidade, promovendo desenvolvimento e dignidade no local. Augusta defende que ao se aventurar nesse espaço e desenvolver a arte, é essencial lembrar que Paula iniciou esse caminho há 20 anos.

Em resposta, Artur Marinho reconhece a importância do trabalho de Paula de Renor, afirmando que o projeto atual é uma continuação desse percurso. Porém ele assinala que a iniciativa atual com ONÀ DÚDÚ Caminhos Negros no bairro do Recife não está apenas levando algo para a comunidade do Pilar, mas sim se unindo a ela para a realização conjunta das atividades.

Augusta reforça que foi exatamente dessa maneira que Paula de Renor começou, através de uma iniciativa colaborativa, trabalhando lado a lado com a comunidade para criar algo significativo e inclusivo. E que é preciso dar crédito a quem iniciou essa parceria e envolvimento comunitário, que tem sido fundamental para o desenvolvimento cultural e social do bairro do Pilar.

A partir de sua experiência em Cara do Pai, Tatto reflete sobre o público. Foto: Divulgação

Ao discutir a dinâmica do público nos festivais de teatro, Tatto Medinni traz sua reflexão sobre a valorização e visibilidade dos espetáculos locais em contraste com produções de maior apelo midiático. Ele destaca sua experiência pessoal ao tentar divulgar sua peça Cara do Pai, a partir de publicações em veículos de comunicação como o JC e o G1. E observa que essas divulgações tendem a ser homogêneas, enfatizando principalmente estreias com figuras renomadas, como Marco Nanini, e grupos como o Magiluth. Essa prática, segundo ele, acaba direcionando o público para esses eventos, criando uma percepção de que são os principais destaques do festival.

Medinni deixa claro que sua crítica não é motivada por inveja, mas sim por uma preocupação genuína com a forma como a supervalorização de determinados espetáculos influencia a escolha do público. Ele conta que seu trabalho teve pouca audiência em várias ocasiões, inclusive no festival, enquanto outros, com maior apelo midiático, estavam lotados. Essa situação, segundo ele, não é culpa do festival, mas sim um reflexo do hábito do público recifense de priorizar espetáculos com artistas famosos, muitas vezes em detrimento de produções locais de igual qualidade.

No entanto, ele também reconhece que houve ocasiões em que espetáculos locais conseguiram atrair grande público e “bombaram”, demonstrando que há um potencial latente na cena teatral de Recife. Medinni menciona trabalhos passados com o Coletivo Angu e a montagem O Amor de Clotilde por um Certo Leandro Dantas, que conseguiram atrair uma plateia significativa.

Para enfrentar esse desafio, Tatto sugere que a assessoria de comunicação que divulgue todos os espetáculos da programação, mas valorize especialmente os locais. Ele acredita que uma comunicação mais abrangente poderia ajudar a equilibrar a atenção do público entre os diferentes eventos, promovendo um maior reconhecimento da cena teatral local.

Mulheres de Nínive teve um atraso de uma hora e meia devido a problemas técnicos. Foto: Divulgação

Ao relatar suas vivências e preocupações, Nathalie Revoredo fornece um panorama dos desafios enfrentados pelas equipes técnicas nos teatros do Recife. Ela expressa satisfação em ter participado ativamente do festival, tanto como oficineira quanto como iluminadora, destacando que é vital integrar novas pessoas ao processo. A inclusão de novos talentos em áreas técnicas como iluminação, cenário e figurino é vista como essencial para trazer a energia e o entusiasmo necessários à continuidade e renovação do festival.

As oficinas pré-festival poderão desempenhar papel crucial na formação de novas gerações de profissionais técnicos. Na sua perspectiva, essa possível mão de obra poderá contribuir com o evento. Além de ajudar a cultivar uma nova perspectiva sobre a produção teatral, incentivando a inovação e a criatividade.

No entanto, Nathalie expressa uma preocupação significativa com a exaustão das equipes técnicas dos teatros, como o Centro Apolo-Hermilo, frisando que ali são dois teatros distintos. Após 11 anos de trabalho nesse contexto, ela observa que os colegas de iluminação estão visivelmente exaustos, o que impacta tanto a qualidade das tarefas quanto no bem-estar dos profissionais. Essa situação é agravada pela estrutura reduzida das equipes, que frequentemente lidam com múltiplas atividades sem o suporte adequado.

No contexto do festival, ela participou de produções No Controle, Antígona – A Retomada e Mulheres de Nínive. Infelizmente, em Nínive, ela e a técnica de som enfrentaram o contratempo de entregar o palco com uma hora e meia de atraso. “Não foi intencional; estávamos ali, sofrendo com a situação, mas também muito conscientes das nossas escolhas. Chegou ao ponto de eu não poder sequer sair para ir ao banheiro, pois não havia tempo ou espaço para isso, e não podia me estressar com ninguém”, lembra Revoredo.

“Estávamos todos respirando fundo, inclusive os dois profissionais incríveis, Savio Uchoa e Ivo Barreto. Juntos, passamos por momentos de choro, risos, sofrimento, correria e vontade de desaparecer, enquanto tentávamos fazer tudo funcionar”, disse a artista iluminadora. Enfim, ela afirma que temos espaços exaustos e um corpo exausto não consegue realizar muito. Isso se aplica a todos os equipamentos, incluindo o próprio material da casa. 

Nathalie Revoredo entende a necessidade de um planejamento antecipado e de contar com uma equipe técnica bem preparada e descansada para lidar com as exigências artísticas e técnicas das montagens. Para produções que requerem maior delicadeza técnica, como no caso de Nínive, seria ideal montar o palco com um dia de antecedência, permitindo um tempo mais dilatado para ajustes e ensaios.

Além disso, Revoredo sublinha a urgência de aumentar o número de técnicos e técnicas nas casas de espetáculo do Recife, especialmente no Apolo e no Hermilo, onde a equipe atual está sobrecarregada. A exaustão não afeta apenas os profissionais, mas também o equipamento, que pode falhar devido ao uso excessivo e à falta de manutenção adequada. A iluminadora registra também que é crucial tratar essas situações com cuidado e empatia, buscando soluções que garantam a sustentabilidade e a qualidade dos festivais, com práticas que respeitem os limites humanos e materiais.

Savio Uchoa, diretor técnico do festival, corrobora com visão de Revoredo e reforça o quadro sobre os desafios enfrentados na administração dos teatros Apolo e Hermilo. Ele aponta que a responsabilidade de uma única equipe por dois teatros resulta em uma carga de trabalho significativa. Além disso, descreve o equipamento como ultrapassado e menciona que a programação do festival foi particularmente extenuante, com até sete teatros funcionando simultaneamente em certos dias.

Historicamente, aponta, o festival seguia uma prática de ter um dia de montagem seguido por um dia de espetáculo, o que ajudava a gerenciar a carga de trabalho. No entanto, a atual estrutura de turnos, com uma equipe trabalhando entre manhã e outra tarde/noite, não é ideal. Savio sugere que seria mais produtivo se os técnicos pudessem acompanhar todo o processo, desde a montagem até a apresentação, assegurando continuidade e familiaridade com o trabalho.

Ele relata que o equipamento frequentemente apresenta falhas e necessita de manutenção urgente, o que aumenta ainda mais a pressão sobre os técnicos. Savio menciona que alguns técnicos enfrentaram problemas pessoais que afetaram sua disponibilidade, como a necessidade de cuidar de familiares, o que ilustra a falta de flexibilidade e suporte dentro de uma programação tão extensa.

Além do atraso do espetáculo Nínive, Savio menciona problemas logísticos e burocráticos, como dificuldades com fornecedores e especificidades de licitação, que complicam ainda mais a organização do festival. Ele, com mais de 25 anos de experiência como iluminador, reconhece a frustração de lidar com equipamentos prometidos que não chegam ou não funcionam adequadamente.

O diretor técnico observa que o festival cresceu rapidamente, mas as empresas fornecedoras não acompanharam esse crescimento, resultando em desafios adicionais. Para atender à demanda, Savio trouxe ajuda extra, incluindo seu irmão, Saulo, também artista iluminador, na tentativa de suprir as necessidades do festival.

Apesar dos desafios, Savio acredita que a equipe conseguiu atender bem a maioria das demandas e que o processo foi um aprendizado valioso. Ele enfatiza a importância do diálogo e da colaboração entre todos os envolvidos, reconhecendo que cada membro da equipe tem responsabilidade em suas funções. No final, ele expressa um sentimento de realização, apesar de ter atravessador o caos, destacando o esforço coletivo para superar as dificuldades.

Monga fez a abertura do OFF REC no Teatro Hermilo Borba Filho. Foto: Ivana Moura

Rodrigo Dourado, idealizador e curador do OFF REC ao lado de Edjalma Freitas, inicia sua fala expressando gratidão a diversas pessoas e equipes, como André Brasileiro, Alexandre Sampaio, Pascoal Filizola, Ivo Barreto, Savio Uchoa e a equipe da Prefeitura, pelo apoio e acolhimento no festival. Ele destaca especialmente a contribuição de Giovana à Mostra, e o apoio recebido, principalmente da classe artística, mesmo que a recepção do público em geral tenha sido modesta.

Ao refletir sobre a essência do OFF REC, Dourado enfatiza que o festival serve como uma vitrine de processos em andamento, o que demanda uma reavaliação constante de abordagens e soluções para os desafios técnicos e logísticos. As dificuldades enfrentadas com as arquibancadas, que se tornaram caóticas durante a madrugada devido à sobrecarga das equipes técnicas, ilustram bem essa necessidade de adaptação. Muitas vezes, essas equipes precisaram gerenciar múltiplos espaços simultaneamente, o que complicou ainda mais a logística do evento.

Inspirando-se em modelos de outros festivais, como o Mirada com o Boteco Crítico do projeto Arquipélago, Dourado sugere a criação de espaços de encontro e diálogo, onde debates e conversas informais possam ocorrer após os eventos. A questão da participação universitária também foi tocada, com Dourado lamentando a falta de envolvimento mais ativo das universidades e conselhos acadêmicos nos eventos culturais. Ele lembra que, como coordenador da Semana de Artes Cênicas, enfrentou dificuldades em atrair público para debates e discussões, apesar do interesse pelos espetáculos. Como solução, propõe a filmagem e publicação dos debates futuros, transformando-os em registros permanentes que possam ser acessados e estudados.

Reconhecendo a complexidade da dinâmica cultural da cidade, especialmente em um mês movimentado como novembro, Dourado observa que múltiplos eventos culturais ocorrem simultaneamente, o que exige uma adaptação das estratégias de comunicação e engajamento do público. Ele enfatiza a necessidade de compreender essas novas dinâmicas para continuar atraindo e envolvendo a população nos eventos culturais da cidade.

Espetáculo Senhora. Foto de João Pedro Pinheiro

Larissa Pinheiro, assistente do espetáculo Senhora, reflete sobre sua participação anterior com Yerma Atemporal, mas confessa que esta edição do festival foi especialmente marcante. Ela aprecia a fusão entre teoria e prática, especialmente nas rodas de diálogo, onde encontrou um público diversificado e curioso. Um exemplo disso foi uma participante que, após uma oficina no Teatro São Isabel, decidiu espontaneamente assistir ao debate e ao espetáculo Senhora, demonstrando o impacto positivo do evento.

Valorizar os novos talentos da cena local é uma prioridade para Larissa, que destaca o papel crucial de estudantes e formandos de instituições como o SESC na formação cultural da cidade. Ela também enfatiza que a contribuição artística vai além da juventude, mencionando a inspiradora presença de Maria José, uma atriz de 84 anos, que continua a expressar sua paixão pelo teatro na terceira idade.

A recepção calorosa do espetáculo Senhora em cidades do interior, como Caruaru e Surubim, foi comparada à recepção no Recife, onde o público do FRTN se mostrou mais entusiasta do que o esperado. Larissa vê o festival de forma positiva, encontrando vigor e animação tanto dos participantes quanto do público presente.

Participar deste evento proporciona uma sensação única para Janaína Lima, jornalista da assessoria de imprensa da Secretaria de Cultura e do FRTN. Com uma longa trajetória ligada ao festival, que remonta aos seus tempos de curadoria local e à elaboração de uma monografia sobre o tema, Janaína agora vivencia uma nova fase profissional na Prefeitura, o que lhe oferece uma visão interna do festival.

Observando com satisfação, ela nota as novas ideias e os rostos que estão injetando vitalidade no evento, renovando a cena cultural. Contudo, Janaína também expressa certa frustração ao perceber que muitos problemas antigos ainda persistem. Ela relembra desafios passados, como a busca por espaço e apoio, e reconhece que algumas dificuldades continuam presentes. Ela está na secretaria há pouco tempo, auxiliando a assessora oficial Bruna Cabral.

Janaína Lima explica que, devido à legislação eleitoral, as redes sociais da Prefeitura foram suspensas, o que criou um desafio significativo na articulação dessas plataformas para o festival de teatro. As atividades online só foram retomadas pouco antes do início do festival, o que exigiu uma rápida reorganização e adaptação para garantir uma comunicação eficaz.

Com a retomada, a Secretaria de Cultura assumiu a responsabilidade de gerenciar essas redes, iniciando um processo de reestruturação e planejamento estratégico para maximizar o alcance e o impacto das comunicações digitais. Janaína reconhece as críticas feitas e a necessidade de melhorar a interação com o público.

Refletindo sobre os desafios enfrentados, Janaína comenta da necessidade de lidar com imprevistos, como atrasos na entrega de fichas técnicas e releases. Ela menciona a complexidade de coordenar todos os aspectos do festival e a importância de aprender a gerenciar essas situações.

O momento de avaliação é visto por Janaína como um componente central do festival, onde todos podem se reunir para discutir e debater após as apresentações. Ela considera esse espaço essencial para o crescimento e a melhoria contínua do evento, permitindo que diferentes perspectivas sejam ouvidas e consideradas.

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, ruína acesa e Tudo menos uma crítica

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Encontro de avaliação pública
Festival Recife do Teatro Nacional – parte 2
Reflexões e desafios

Pessoas que participaram da reunião. foto: self de Saulo Uchoa

Na segunda parte do encontro, que teve três horas de duração num clima respeitoso e propositivo, os participantes se dedicaram à escuta ativa, compartilhando suas percepções sobre a 23ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional. Nessa reunião compareceram diversas figuras do cenário cultural de Recife, além da avaliadora contratada Giovana Soar. Entre os presentes estavam a atriz, produtora e diretora Augusta Ferraz, o coordenador do festival André Brasileiro, o coordenador de produção Alexandre Sampaio, o assistente de produção Pascoal Filizola, o diretor técnico do festival e seu assistente Sávio Uchôa e Ivo Barreto, Léo Davino e Marcela Torres, da SECULT, a jornalista Janaína Lima, o ator, bailarino e coreógrafo Raimundo Branco, a jornalista, atriz e produtora cultural Edivane Bactista, o professor e multiartista Marcondes Lima, o conselheiro do Conselho Municipal de Cultura Oséas Borba, a pesquisadora e crítica Ivana Moura, a artista iluminadora Nathalie Revoredo, o diretor e dramaturgo curador do OFF REC Rodrigo Dourado,  a atriz Larissa Pinheiro, o artista e técnico Artur Marinho,  a artista Inês Franco Maia e o ator Tatto Medinni.

Foram apresentadas propostas e debatidas questões cruciais relacionadas ao festival e à cultura local, com foco em como atrair e ampliar o público do evento e, consequentemente, do teatro. Uma das principais preocupações levantadas foi a precarização das casas de espetáculos na cidade, que impacta diretamente a qualidade das produções e a experiência do público.

Durante as discussões sobre a organização e o acesso do público ao FRTN, destacou-se a quesito das plateias reduzidas principalmente no OFF REC e algumas peças locais da mostra principal. Foram sugeridas alterações nos horários da programação do OFF REC para evitar conflitos com outros espetáculos da mostra principal. Além disso, abordou-se a importância da valorização cultural e a necessidade de apoiar grupos teatrais locais que estão comprometidos com a formação de público, enfatizando a relevância de fortalecer a cena teatral local.

Os interlocutores, com suas diversas perspectivas e experiências, enriqueceram o debate sobre os desafios e oportunidades do festival. A reunião foi um espaço de troca de ideias e colaboração, buscando soluções para fortalecer o teatro e a cultura na cidade.

Após os apontamentos da avaliadora do festival, Giovana Soar, a atriz, produtora e diretora Augusta Ferraz iniciou suas considerações agradecendo pela perspectiva da analista contratada, que destacou a importância de integrar o respeito ao público como um ato de cidadania. Para Augusta, o teatro deve ir além da construção cultural, servindo como um meio de transmitir saberes, ensinar a pensar, observar e sensibilizar-se. Ela acredita que essas qualidades são essenciais não apenas para o festival, mas para a vida comunitária de quem trabalha com teatro no Recife e para os públicos que frequentam esses espaços.

A precarização das casas de espetáculos no Recife é uma preocupação constante para Augusta. Ela menciona que, apesar de existirem estruturas prontas, como o Teatro do Derby (Cine Teatro do Quartel do Comando Geral da Polícia Militar de Pernambuco, sem funcionar há pelo menos 20 anos) e o Barreto Júnior, que precisam de melhorias significativas. O Barreto Júnior, por exemplo, é visto como um “subteatro” na vida cotidiana dos profissionais do teatro, não oferecendo as qualidades necessárias para apresentações dignas. Augusta lamenta que a luta política para reivindicar melhorias seja tão árdua, levando à aceitação do que é precário e ruim.

Além disso, Augusta destaca a necessidade de revitalizar espaços como o Teatro José Carlos Cavalcante Borges (durante os anos 1980 e 1990, o espaço dividia suas pautas entre o teatro, cinema e música; em 1998 assumiu definitivamente sua identidade como Cinema da Fundação) e o Teatro Valdemar de Oliveira (do Teatro de Amadores de Pernambuco, está fechado desde 2020, foi alvo nos últimos anos de arrombamentos, roubos e depredações; e sofreu um incêndio no dia 7 de fevereiro deste ano), que, apesar de ter sido destruído por um incêndio, ainda possui potencial para outras atividades culturais. Para ela, sem o desenvolvimento desses espaços, não se contribui para a vida cultural da cidade nem para o próprio festival, que deveria ser uma plataforma de expansão e diálogo.

Com 51 anos de dedicação ao teatro recifense, pernambucano e brasileiro, Augusta se sente inquieta com essas questões, pois também é uma apaixonada pelo teatro, tanto no palco quanto na plateia. A falta de divulgação do festival no Conecta Recife foi criticada por Augusta, que o destaca como um aplicativo excelente, que oferece informações sobre a vida civil e os direitos dos cidadãos, além de permitir o agendamento de trocas e procedimentos junto à prefeitura. Ela menciona que, embora tenha visto um vídeo de Rodrigo Dourado apresentando a programação do OFF REC, a divulgação foi insuficiente. 

Augusta relembra momentos em que o festival conseguiu atrair pessoas que não eram tradicionalmente parte do público de teatro, por meio de parcerias estratégicas com as secretarias de Saúde, Educação e Cidadania. Esses esforços colaborativos resultaram em teatros lotados, demonstrando o potencial de inclusão e alcance do festival. Augusta acredita que retomar essas iniciativas seria fundamental para preencher os espaços vazios observados nesta edição. 

Desde os 15 anos, Giovana Soar tem acompanhado o Festival de Curitiba, que já alcançou sua 33ª edição. Mesmo quando esteve fora, ela encontrou maneiras de se manter conectada ao evento. Com essa expertise, ela aponta a impressionante quantidade de teatros que o festival fez surgir, observando que, durante o evento, há apresentações teatrais em todos os cantos da cidade. Giovana brinca que, se alguém deixar a casa aberta, um grupo de teatro pode entrar e começar uma apresentação. Nesse sentido, ela acredita que a retomada do festival do Recife pode gerar uma demanda semelhante, impulsionando o crescimento do evento.

Raimundo Branco, ator, bailarino e coreógrafo, parabenizou o festival, mas expressou sua insatisfação com a falta de público. Ele destacou que o OFF REC, embora superbem-vindo, foi mal divulgado. Ele comentou que muitas pessoas não compareceram por falta de conhecimento e considerou isso um desperdício. No entanto, mostrou-se otimista por se tratar do primeiro ano do evento, que tem potencial para crescer e precisa de apoio.

Giovana interrompeu para acrescentar que o público do OFF REC foi majoritariamente composto pelos próprios artistas que participaram do evento. Ela ressaltou que as redes desses artistas não são suficientes para expandir a discussão para além da mesma bolha.

Branco levantou uma questão delicada sobre a democracia no tratamento dos artistas, questionando se o camarim oferecido aos artistas desconhecidos era o mesmo que o dos artistas mais renomados.  André Brasileiro, coordenador do festival, respondeu que o tratamento era o mesmo, mas que algumas adaptações eram feitas para atender restrições alimentares específicas, como no caso de Nanini, que é vegetariano.

Sinapse Darwin, da CAsa de Zoé, fez duas apresentações no palco montado na Rua da Aurora. Foto Divulgação

O “Palco da Aurora” foi citado como uma iniciativa bem-sucedida e Branco expressou seu desejo de que essa ação se expanda para outras áreas da cidade do Recife. André respondeu mencionando que, neste ano do festival, os bairros da Tamarineira e Macaxeira também receberam seus palcos, nos parques.

A ação do Palco Giratório, que realizou uma sessão nos jardins do Teatro do Parque antes da abertura oficial, foi destacada como uma iniciativa bacana por Raimundo Branco, que sugeriu que o Festival Recife do Teatro Nacional poderia adotar uma abordagem semelhante, organizando uma apresentação preliminar antes do início oficial. No Palco Giratório, o grupo Mamulengo Novo Milênio, liderado pelo Mestre Miro, desempenhou esse papel na ocasião.

Oséas Borba, conselheiro do Conselho Municipal de Cultura, retomou a ideia da democratização dos espaços, lembrando que é preciso pensar no Teatro do Sítio da Trindade. “É importante considerar, até mesmo para a Prefeitura, uma forma de revitalizar aquele anfiteatro ali, que está praticamente fechado.” André respondeu de imediato que “está prevista uma obra para ele, assim, para o ano.”

A questão do público-alvo também foi mencionada pelo professor e multiartista Marcondes Lima que salientou a necessidade de alcançar diferentes segmentos de público. Ele mencionou que, durante o experimento do OFF REC realizado no sábado às 10 horas da manhã, – a abertura do processo de Senhora dos Nossos Sonhos (baseado na trajetória de vida da Dra. Nise da Silveira), uma parte significativa da plateia era composta por usuários de serviços de saúde psicológica. E aventou como o festival poderia considerar esse aspecto. Além de indagar se seria realista esperar que todas as pessoas do Recife se deslocassem até o Sítio da Trindade, por exemplo, ou se seria necessário agenciar o público para garantir sua presença. E problematizou sobre qual seria o público-alvo do OFF REC, se seria o mesmo que frequenta o Teatro do Parque para assistir a espetáculos como o de NaninI.

Ao tratar do know-how do Festival de Curitiba em relação às ferramentas de comunicação, Giovana Soar sublinhou a importância de entender onde e como essa comunicação é disseminada. Ela explicou que organizar um festival envolve o desafio de lidar com uma variedade de espaços e públicos. Isso inclui desde espetáculos que atraem até duas mil pessoas no Teatro Guaíra, geralmente um público mais burguês interessado em comédia ou dança, até apresentações mais alternativas e cabeçudas, destinadas a outros segmentos. Giovana reconheceu a complexidade desse processo e apontou a necessidade de contar com profissionais competentes que possam desenvolver estratégias eficazes para alcançar e engajar esses diversos públicos de maneira adequada.

Oséas levantou que o programa do evento só chegou na segunda semana do festival, um dificultado da divulgação do festival. Outro problema citado por ele foi o calor no local dos debates, nas salas não climatizadas do Centro Apolo-Hermilo. Por sua vez, Giovana comentou que, apesar de não ter incluído isso em seu relato, ela sentiu muito frio em todos os teatros. E reconheceu que, nesse aspecto, faz parte da minoria. André respondeu que é ainda pior quando o ar-condicionado quebra ou não funciona.

A falta de uma cafeteria ou lanchonete no Centro Apolo-Hermilo foi sublinhada por Giovana. Ela expressou seu amor por comida, afirmando que onde há comida, há felicidade e alegria. Giovana elogiou o bar do Teatro do Parque deste ano, mencionando a comida ótima, mas sentiu falta de um espaço semelhante no Hermilo, sugerindo que implementar algo assim seria benéfico.

A jornalista, atriz e produtora cultural Edivane Bactista, da Métron Produções, realizadora do Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco, parabenizou a equipe do festival, afirmando que o evento foi digno. Mas, apesar dos elogios, reforçou a preocupação em relação ao público. Como conquistar as pessoas que preferem ir à praia ou ao litoral em vez de frequentar o teatro. Como uma pessoa de produção, sugeriu que o planejamento financeiro do festival comece no início do ano. 

A programação do OFF REC, na sua opinião, precisa ser ajustada com relação aos horários, para não conflitar com outros espetáculos da mostra principal. André Brasileiro mencionou que havia conversado com Rodrigo Dourado sobre a possibilidade de realizar eventos durante o dia, mas reconheceu que é um dilema. Mas a intenção é experimentar horários alternativos no próximo ano. Outra preocupação de Edivane é que os artistas da cidade não tenham comparecido em grande número ao festival, que era gratuito. Ela também propôs que o festival disponibilizasse transporte entre os teatros do centro, o que poderia facilitar o acesso. André reconheceu a complexidade dessa ideia.

Diante dessa inquietação com o público, a avaliadora confessou que ficou muito impressionada com a presença de duas mil pessoas na festa do Magiluth, promovida por um grupo de teatro Recife. “Nunca vi algo assim acontecer em nenhum outro lugar do Brasil, talvez apenas com o Grupo Galpão ou Zé Celso”. No entanto, ela percebeu que essas pessoas, que estavam presentes na celebração dos 20 anos do Magiluth, que ocorreu durante o festival, não estavam nos teatros. E reforçou a pergunta: Como podemos trazer essas pessoas para o teatro?

Alguém comentou que, no máximo, essas pessoas tenham ido ao Édipo REC, espetáculo do Magiluth. Outro mencionou que elas também estavam na fila do Bar Bucurau. Giovana retomou a discussão, afirmando que esse é o dilema que enfrentamos: colocar as pessoas dentro do teatro não é fácil. Essa é a nossa missão, e é por isso que ela busca garantir que em Curitiba não haja lugares vazios. Giovana explicou que distribuem 1.500 ingressos no Festival de Curitiba para estudantes de teatro. No caso do festival do Recife, os ingressos já são gratuitos, então não há nem mesmo a opção de distribuir ingressos como incentivo. 

Augusta Ferraz tocou na dificuldade dos artistas em utilizar os espaços destinados ao teatro, que, segundo ela, foram ocupados pela prefeitura para reuniões políticas. E a alternativa que ela encontrou, não a ideal, foi ensaiar em uma sala cedida pela síndica de seu prédio. Ela reforça que apesar de terem recebido recursos dos editais, – Paulo Gustavo e Aldir Blanc – os artistas enfrentam dificuldades para trabalhar devido à falta de espaços adequados.

A jovem artista de Recife, Inês Franco Maia, inicia sua fala concordando com a avaliação de Giovana sobre o uso de totens humanos na divulgação, considerando essa prática desrespeitosa. Em seguida, ela avança para a questão da valorização cultural, questionando se a cadeia produtiva do teatro em Recife realmente respeita e valoriza a cultura local. Inês critica a tendência de valorizar mais os trabalhos que vêm de fora, pois acredita que isso contribui para o afastamento do público recifense do teatro. Ele menciona o Magiluth dizendo que o grupo só conseguiu reconhecimento local após ser legitimado fora de Recife, e salienta a importância de apoiar grupos teatrais comprometidos com a formação de público.

Inês vê o festival como um grande potencial, mas ressalta a necessidade de aprofundar o processo democrático de escuta e posicionamento para entender diferentes perspectivas e enfrentar os desafios coletivos do teatro em Recife. Ela expressa confiança no potencial cultural de cidade, acreditando na capacidade de alcançar novamente uma qualidade técnica, artística e conceitual no cenário nacional.

Mas a predominância de monólogos entre os espetáculos pernambucanos selecionados é vista com ceticismo por Inês, que sugere que isso pode não refletir a diversidade e a riqueza da produção teatral local. Para Inês, condições adequadas para a produção teatral, como ensaios com luz e som, são essenciais para alcançar a excelência artística. 

Giovana esclarece que as inscrições eram majoritariamente de monólogos e que o festival é um retrato da produção teatral do momento, refletindo as tendências e escolhas atuais da cena local. E sublinha que a inclusão dos espetáculos no OFF REC não deve ser visto como um desmerecimento. E atesta que suas melhores experiências no festival recifense, especialmente em termos de representatividade, ocorreram no OFF REC. E reforça que a abertura do OFF REC o impactante espetáculo Monga, de Jéssica Teixeira teve a intenção deliberada de destacar a importância e o valor que o OFF REC traz para a cena teatral recifense.

O espetáculo O Problema é a Cerca enfrentou dificuldades durante a apresentação. Segundo relato de Inês, houve um grave transtorno de comunicação devido a uma falha técnica de som. Ela diz que isso criou uma situação embaraçosa, onde o público presente na plateia pôde ouvir o técnico discutindo com a produção do espetáculo sobre um cabo de som que não estava funcionando corretamente. 

Peça As Charlatonas, do Tocantins, fez sessões nos Parques da Macaxeira e da Tamarineira. Foto: Divulgação

Marcondes Lima sustenta a relevância de se discutir o festival em sua totalidade, ao invés de focar exclusivamente na avaliação dos espetáculos apresentados. Ele acredita que é nesse espaço de diálogo que se pode realmente progredir e implementar melhorias significativas. Mesmo sendo apenas o segundo ano da retomada do festival, ele já percebe alguns avanços notáveis. 

Ao explorar a complexidade de atrair público para o teatro, Lima identifica o receio que as pessoas no Recife têm de se deslocar pela cidade, seja para sair de casa ou para ir de um teatro a outro, como do Teatro Apolo ao Teatro do Parque.  No entanto, Marcondes enfatiza que o verdadeiro desafio está em criar um encantamento que motive o público a superar essas barreiras e vivenciar essas experiências artísticas.

Para Marcondes é essencial que o artista crie uma conexão emocional e intelectual com o público,  produzam um fascínio. Despertem o interesse e o desejo no público de assistir aos espetáculos. Que, ao ver imagens ou cenas de uma peça, as pessoas possam se sentir inspiradas a atravessar a cidade para assisti-la. Esse encantamento é um elemento crucial dentro do projeto de comunicação e divulgação do teatro.

Ao refletir sobre a trajetória do festival, André Brasileiro reconhece que esse evento cênico já atingiu um ápice significativo em termos de público em determinado momento. Ele expressa confiança de que o FRTN tem o potencial de se reconstruir e alcançar novamente esse nível de sucesso. No auge, o festival atraiu um público de 12.800 pessoas, um marco alcançado em um ano em que o grupo Galpão apresentou a peça Till, a saga de um herói torto ao ar livre, na rua. Essa abertura ao público em um espaço aberto foi um fator crucial para o sucesso daquele ano.

Com o desejo de retornar a esse ponto de grande envolvimento e participação do público, André sugere que eventos ao ar livre e acessíveis podem ser uma estratégia eficaz para atrair mais espectadores e revitalizar o festival. Ele acredita que, com planejamento e inovação, é possível recriar essa experiência de sucesso e engajamento comunitário.

O festival, que já conta com 23 anos de história, passou por edições complicadas, mas houve uma retomada no ano passado. Ainda há muito a ser reconstruído e revitalizado, e o festival está em um processo de recuperação, aproximando-se novamente de seu potencial. 

Giovana Soar entende que encher salas grandes como o Teatro Luiz Mendonça e o Teatro do Parque, com capacidade para acomodar até 800 pessoas, não é uma tarefa simples. E traz uma perspectiva interessante à discussão ao mencionar uma prática positiva que acontece em Curitiba, onde o público tem o hábito de ir à bilheteria e perguntar quais ingressos estão disponíveis, confiantes de que qualquer espetáculo proporcionará uma boa experiência.

No Festival de Curitiba, o preço do ingresso é de 80 reais, com a meia-entrada custando 40 reais, tornando-se acessível para a maioria da população. Giovana destaca que praticamente todos em Curitiba pagam meia-entrada, graças a políticas que facilitam esse acesso, como descontos para quem paga contas de serviços públicos. Além disso, artistas profissionais com DRT podem adquirir ingressos por apenas 25 reais, permitindo que, com 100 reais, seja possível assistir a quatro espetáculos.

A demanda por ingressos em Curitiba é tão alta que, atualmente, quando alguém vai à bilheteria e pergunta “o que ainda tem?”, isso reflete o sucesso e a popularidade do festival, com ingressos se esgotando rapidamente. Essa dinâmica demonstra a eficácia das estratégias de acessibilidade e a forte cultura teatral presente na cidade.

Durante o debate, André socializa algumas observações que ouviu de pelo menos cinco pessoas, destacando relatos que merecem atenção. Algumas dessas pessoas expressaram descontentamento com o sistema de troca de alimentos por ingressos, preferindo a opção de comprar ingressos e reservar seus assentos. Elas mencionaram que não gostam de ir ao teatro sem ter um lugar marcado, o que levanta uma questão sobre as preferências do público em relação à organização dos eventos.

Apesar dessas preocupações, André pondera que não houve impedimentos para a entrada de ninguém nos teatros durante o festival. Ele destaca que, ao chegar uma hora antes, todos conseguiram entrar, o que sugere que o sistema atual, embora não perfeito, tem funcionado para garantir o acesso ao público.

Reconhecendo que há uma parte da população que prefere a comodidade de ter um assento reservado, André admite que o atual momento do festival busca democratizar o acesso ao teatro. O único teatro onde os lugares são marcados é o Teatro Santa Isabel, que tem essa característica específica. E destaca que no Teatro do Parque, o festival conseguiu atrair pessoas que normalmente não frequentavam o teatro. Para André, isso é um ponto positivo, pois se a experiência foi boa, há potencial para aumentar esse público no futuro.

Por outro lado, Branco propõe uma estratégia para melhorar a divulgação dos festivais culturais em Recife: a criação de um calendário de eventos divulgado com antecedência pela prefeitura. Ele acredita que essa prática educaria a população sobre as ofertas culturais e permitiria que as informações se espalhassem de maneira mais eficaz.

Refletindo sobre suas experiências pessoais, Branco lembra que, em eventos passados, como o festival de teatro, as oficinas eram realizadas antes do início oficial do festival. Para ele, essa prática é vantajosa, pois já engaja o público e evita conflitos de agenda com a programação de espetáculos, por exemplo. Alexandre Sampaio acrescenta que, embora sejam realizadas escutas prévias para planejar os eventos, a participação é frequentemente baixa. O coordenador de produção aponta que a ideia da doação de alimentos surgiu em uma dessas escutas.

Branco também lamenta a ausência de residências artísticas em Recife, considerando isso uma perda significativa para a cena cultural local. Ele reconhece os desafios em termos de tempo e recursos financeiros, mas acredita que o retorno dessas grandes residências seria extremamente benéfico para o enriquecimento cultural e artístico da cidade.

Continua no próximo post

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, ruína acesa e Tudo menos uma crítica

 
Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Excesso ofusca análise do mundo
Crítica de Kalash – Ensaio sobre a extinção do outro

Kalash integrou programação do 23º Festival Recife do Teatro Nacional. Foto: Ivana Moura

Peça do Coletivo Resiste! tem dramaturgia e direção de Quiercles Santana. Foto: Danilo Galvão / Divulgação

Kalash – Ensaio sobre a extinção do outro, dirigida e escrita por Quiercles Santana, apresenta-se como uma ambiciosa e provocativa incursão teatral nas questões mais urgentes da sociedade contemporânea. O título, que faz referência direta a Mikhail T. Kalashnikov, inventor do infame rifle AK-47, estabelece imediatamente o tom de confronto e crítica social que permeia a obra.

Produzida pelo Coletivo Resiste!, a peça conta com os atores-pesquisadores Bruna Luiza Barros, Sandra Rino e Tatto Medinni. Essa designação sugere um envolvimento profundo do elenco no processo criativo, possivelmente contribuindo para a dramaturgia e incorporando documentos e arquivos de suas próprias investigações. Quiercles Santana, figura proeminente no teatro pernambucano, assina a direção de quatro trabalhos de grupos diferentes no Festival Recife do Teatro Nacional.

O espetáculo Kalash propõe-se a ser um ensaio crítico e iconográfico sobre os dias caóticos em que vivemos, considerando um leque amplo de assuntos complexos e interconectados como autoritarismo, negacionismo, extremismo religioso, cultura do ódio e silenciamento de vozes dissidentes. A demanda central que o trabalho almeja é espinhosa e difícil, refletindo a complexidade dos assuntos abordados.

A iluminação desempenha um papel crucial, funcionando quase como um personagem adicional. Há momentos de impacto visual significativo, como na cena da queda da mulher de branco após um disparo. No entanto, algumas escolhas cênicas são questionáveis, como a cena do estupro com a garota dormindo ou morta, que expõe violência de forma previsível abominável.

Sandra Rino em cena do espetáculo. Foto: Danilo Galvão / Divulgação

Kalash adota uma perspectiva experimental, mesclando técnicas de distanciamento brechtianas, elementos de autoficção e uso intensivo de recursos multimídia. Essa combinação visa criar uma experiência teatral que desafia as convenções, buscando um diálogo direto entre realidade, arte e teoria social, incorporando ideias de pensadores como Roland Barthes e Achille Mbembe.

Contudo, é nessa mesma ambição que Kalash encontra seus maiores desafios. O excesso de temas leva a uma exploração por vezes superficial, criando uma “poética de revolta” que nem sempre se traduz efetivamente na cena ou na performance dos atores.

Algumas cenas apresentam um caráter excessivamente explicativo, – na tentativa de expor seus conceitos e garantir que seus pontos de vista sejam compreendidos – potencialmente subestimam a capacidade interpretativa do público. O didatismo, mesmo que seja um recurso de repetição e estilo, soa problemático no caso, resultando em explanações redundantes.

Tatto Medinni e Bruna Luiza Barros. Foto Danilo Galvão / Divulgação

A estrutura da peça apresentou inconsistências na sessão no Teatro Apolo, dentro da programação do 23º Festival Recife do Teatro Nacional. A proposta inicial de apresentar três cenas do “porão” não se concretizou integralmente, com apenas duas sendo efetivamente mostradas. A da relação de uma tia com seu sobrinho sitiados em uma zona de guerra. E a do avô e sua neta em um carroça quando o homem é baleado. A terceira não aparece. Ficamos sem saber se isso resultou de problemas técnicos ou decisões deliberadas da direção.

Certas escolhas cênicas parecem gratuitas ou mal justificadas. O uso repetido de cigarros acesos, fumados e jogados ao chão por duas vezes, por exemplo, chega mais como um acinte desnecessário do que como um elemento que adiciona valor significativo à peça. Penso que cigarros só deveriam ser utilizados no teatro em casos excepcionais. Não me convenceu.

Da mesma forma, a pregação irônica do pastor que combate a milícia neopentecostal em sua igreja, embora potencialmente intenso, se dilui entre a crítica ao estereótipo e a reprodução do clichê. Protagonizado por Tatto Medini, este momento é apresentado de forma excessivamente enfática (gritada, às vezes), comprometendo a sutileza necessária para que a ironia surta efeito. A dramaturgia busca realizar um sofisticado trabalho de articulação da ironia como mecanismo crítico, mas falha em sua execução. Como resultado, o impacto pretendido se perde, e a proposta cênica não consegue se materializar de maneira efetiva.

A utilização de imagens e vídeos de guerras, fome, miséria e autoritarismo levanta questões sobre a eficácia e o impacto emocional dessas representações. Considero o conceito de “fadiga da compaixão” de Susan Moeller e as ideias de Susan Sontag sobre a “exaustão das imagens” para pensar um pouco mais  em Kalash. A profusão de imagens perturbadoras pode, paradoxalmente, diminuir seu impacto emocional, transformando o sofrimento retratado em um espetáculo que perde sua capacidade de provocar empatia e ação.

Moeller argumenta que a exposição contínua a imagens e narrativas de sofrimento, especialmente através de uma cobertura midiática sensacionalista, pode levar a uma exaustão emocional e dessensibilização do público. No contexto de Kalash, a profusão de imagens corre o risco de provocar essa fadiga da compaixão nos espectadores ou uma apatia dilatada.

A recepção do público, apesar dos aplausos, percebi como fria, com comentários críticos na saída do teatro, sugerindo um desacordo entre a aspiração artística da peça e seu plano em engajar o público.

Cena do porão, do sobrinho com a tia. Foto: Ivana Moura

Cena do porão, do avô com a neta. Foto: Ivana Moura

 

Ficha técnica:

Dramaturgia e direção: Quiercles Santana @quiercles
Atores- pesquisadores:  Bruna Luiza Barros @brunaluizabarros__ , Sandra Rino @rinosandra e Tatto Medinni @tattomedinni
Produção executiva: Carla Navarro
Preparação corporal: Tatto Medinni
Direção musical: Kleber Santana @klebersantana_bill
Designer de luz: Luciana Raposo @lucianaraposoluz
Coreografias: Sandra Rino
Arte gráfica e social media: Bruna Luiza Barros
Direção de arte: Coletivo Resiste!
Cenotécnico: Flávio Freitas @defreitasmendesflavio
Fotografias: @morgananarjara e @arreparavisse
Costura: @georgetebarlavento
Adereços: @tianemsan e @laylabarlavento

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , ,

Resgate de vozes silenciadas
Crítica de As Mulheres de Nínive

Atriz Nínive Caldas no espetáculo Mulheres de Nínive. Foto: Felipe Souto Maior / Divulgação

No domingo, 24 de novembro, no Teatro Hermilo Borba Filho, no centro do Recife, uma situação inesperada transformou um contratempo técnico em uma experiência singular. O atraso em uma hora e meia do espetáculo Mulheres de Nínive, devido a problemas na mesa de luz, poderia ter sido motivo de frustração geral. Alguns espectadores partiram para outra atração do 23º Festival Recife do Teatro Nacional. No entanto, para quem ficou, a sessão  se tornou um momento de cumplicidade energética entre a artista, sua equipe criativa, os técnicos do teatro e o público. Essa conexão não planejada gerou uma atmosfera de solidariedade e expectativa compartilhada.

A permanência do público, que decidiu ficar, demonstrou uma disponibilidade e abertura, além da aceitação do imponderável de um evento ao vivo, marcado por uma magia rara. O erro, a falha e o imprevisível, às vezes, têm esse poder de transformar e unir, criando uma experiência e memorável para os envolvidos.

A atriz Nínive Caldas, ao concluir a sessão, expressou uma gratidão genuína que ressoou em cada canto do teatro lotado. Essa gratidão foi um reflexo da ligação afetiva que se formou naquele espaço, onde a arte foi além da cena, transformando-se em uma experiência coletiva de empatia, inspiração e beleza. 

Peça expõe e combate o apagamento sistemático do feminino. Foto: Morgana Narjara / Divulgação

O espetáculo Mulheres de Nínive,, concebido e protagonizado pela atriz, apresentadora e produtora cultural Nínive Caldas, sob a direção da atriz, psicóloga e diretora teatral Hilda Torres, desafia a narrativa histórica dominante ao destacar o apagamento sistemático do feminino. A obra entrelaça figuras históricas e mitológicas, como Maria Madalena, Semíramis e as Eufames, para questionar as estruturas de poder que determinam quais histórias são preservadas e quais são extintas. Esta perspectiva se alinha com teorias feministas contemporâneas, que argumentam que a história é um campo de batalha ideológico, como enfatizado por teóricas como Joan Scott, Gerda Lerner e Michelle Perrot.

A peça utiliza uma estrutura não-linear para criar um diálogo entre passado, presente e futuro, sugerindo que as experiências de opressão e resistência das mulheres formam um continuum histórico de padrões de violência e silenciamento. Em essência, Mulheres de Nínive se apresenta como um ato de arqueologia feminina, desenterrando e reinterpretando a história das mulheres frequentemente ignorada pela historiografia tradicional.

Embora o título do espetáculo coincida com o nome da atriz, a peça vai além de experiências pessoais. A inspiração para a obra nasceu da conexão de Nínive com Maria Madalena, uma personagem que ela interpretou numa encenação da Paixão de Cristo em Fazenda Nova, no maior teatro ao ar livre do mundo, situado no interior de Pernambuco. Durante sua investigação, Nínive percebeu que Madalena era mais uma mulher cuja história havia sido destruída ou distorcida.

De batismo, a atriz carrega o nome de uma cidade histórica citada tanto nas narrativas bíblicas quanto nas tradições pagãs. Nínive, outrora capital da Assíria, estava situada na antiga Mesopotâmia, correspondendo hoje ao território do Iraque. Na tradição cabalística, Nínive é evocada como um símbolo de força primordial, remontando a tempos muito anteriores a Cristo.

Dentro desse contexto, destaca-se a figura lendária de Semíramis, uma das primeiras mulheres a ganhar notoriedade na história. Celebrada como uma guerreira e arqueira formidável, Semíramis lutava ao lado dos homens, se sobressaia nas caçadas, encarnando poder e liderança feminina em um cenário predominantemente masculino.

O espetáculo propõe que Semíramis perpetuou a herança da rainha de Sabá, assumindo o papel de guardiã dos segredos do sagrado feminino, transmitidos desde os tempos de Eva. As discípulas de Eva eram conhecidas como Eufames e detinham um profundo conhecimento das fases lunares, protegiam o fogo sagrado e eram versadas nos oráculo.

A peça insiste que as lacunas da ação feminina deve-se ao fato que a história foi escrita por homens

Como pano de fundo para discutir a violência contra as mulheres, a montagem comenta a destruição histórica de Nínive. A peça imagina um centro místico liderado pelas Eufames, que enfrentam perseguição e supressão. Embora não existam registros específicos sobre esse centro, a ausência de documentação é utilizada para destacar como a história foi predominantemente escrita por homens, frequentemente ignorando ou omitindo as contribuições e experiências das mulheres. Essa lacuna histórica serve como um poderoso lembrete da marginalização feminina ao longo dos séculos.

No Livro de Jonas, parte do Antigo Testamento da Bíblia, encontramos a narrativa desse profeta, que recebe a tarefa de levar uma mensagem de arrependimento à cidade de Nínive. Optando inicialmente por fugir, ele embarca em um navio para Társis. Durante a viagem, uma tempestade ameaça a embarcação, e Jonas, considerado responsável pela calamidade, é lançado ao mar, onde é engolido por um grande peixe. Após três dias e três noites de reflexão e oração, ele é libertado e decide cumprir sua missão em Nínive. A cidade, impactada pela mensagem, se arrepende, e a narrativa descreve que Deus poupa seus habitantes.

Até o Padre Antônio Vieira, no Sermão da Sexagésima, faz referência à cidade de Nínive, de uma perspectiva religiosa, como parte de sua argumentação sobre a eficácia da pregação e da conversão. Vieira utiliza a história de Nínive, que é mencionada na Bíblia, para ilustrar o poder transformador da palavra de Deus quando transmitida de forma eficaz.

O espetáculo tem direção de Hilda Torres e preparação corporal de Lilli Rocha. Foto: Felipe Souto Maior

A forte presença cênica de Nínive Caldas combina intensidade física e emocional, que se manifesta na forma como a atriz ocupa o espaço cênico, na modulação de sua voz e na precisão de seus gestos. Sua atuação confronta estereótipos, apresentando uma feminilidade que reivindica a beleza como parte integral da força feminina. A direção de Hilda Torres orquestra os elementos cênicos e a atuação de Caldas, criando um espetáculo coeso e envolvente. Sua direção parece focar em extrair o máximo da presença da atriz, criando momentos de intensidade dramática equilibrados com sutilezas na cena. O trabalho corporal de Lili Rocha é evidente na fluidez e precisão dos movimentos da intérprete.

Uma saia cenográfica monumental simboliza as águas da vida, o fluxo do tempo e a vastidão da experiência feminina ao longo da história. Sua versatilidade permite que Nínive Caldas a manipule de maneiras diversas, criando espaços cênicos variados ao apresentar múltiplas personagens e situações. A iluminação desempenha um papel crucial na criação da atmosfera e na condução da narrativa. Duas musicistas criam e amplificam efeitos sonoros e musicalidades. Elas contribuem no andamento e a atmosfera sonora de cada passagem.

O figurino evoca uma guerreira, com a atriz utilizando espadas (de São Jorge) para se proteger e avançar. A elegância no deslocamento de Nínive pelo palco é notável, combinando doçura e firmeza. Apesar de sua vasta experiência no teatro, ela mantém um frescor em sua interpretação, onde a determinação, o combate, as denúncias e os posicionamentos contra o patriarcado não reproduzem os códigos de violência masculina que são combatidos. 

Mulheres de Nínive é uma produção teatral de inegável força e impacto. No entanto, há espaço para refinamento, especialmente na apresentação dos nomes das mulheres retratadas. A riqueza e complexidade da narrativa podem, por vezes, obscurecer a identidade específica de cada personagem, limitando a compreensão plena do público. Uma ênfase mais pronunciada nos nomes e identidades das mulheres poderia permitir uma conexão mais evidente com cada história individual. Pois a obra convida à reflexão sobre gênero, poder e identidade, desde que essas vozes sejam ouvidas com nitidez e urgência.

Ficha técnica:
Idealização e atuação: Nínive Caldas;
Direção: Hilda Torres;
Preparação Corporal: Lilli Rocha;
Preparação vocal: Ceci Medeiros;
Músicas: Ana Paula Marinho
Trilha sonora e musicistas: Ana Paula Marinho e Nana Milet;
Núcleo de pesquisa/ figurino: Fabiana Pirro, Hilda Torres, Marcelo Mendx, Nínive Caldas e Xuruca Pacheco;
Núcleo de pesquisa de cenário: Hilda Torres, Marcelo Mendx, Nínive Caldas e Xuruca Pacheco;
Costureiras: Fátima Magalhães, Franci arte e costura, Expedita;
Iluminação: Natalie Revorêdo;
Técnica: Eduardo Autran (Dudu);
Textos: Nínive Caldas, Ezter Liu, Ana Paula Marinho, Khalil Gibran;
Dramaturgia: Hilda Torres e Nínive Caldas;
 VIsagismo:  Laércio Azevedo
Identidade visual: Maria Eduarda Caldas
Fotografia: Ravmes
Teaser: Morgana Narjara
Vídeo: Morgana Narjara
Social Mídia: Li Buarque
Núcleo de comunicação: Dea Almeida (Alcatéia Comunicação) e Márcio Santos;
Produção Executiva: Catarina Caldas;
Produção Geral: Nínive Caldas.

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,