Quaderna mostra truques do país dos conchavos
Crítica do espetáculo
As Conchambranças de Quaderna

 Jorge de Paula e Fábio Espósito em As Conchambranças de Quaderna. Foto: Ivana Moura

 Jorge de Paula e Guryva Portela. Foto: Ivana Moura

Jorge de Paula, Fábio Espósito, Henrique Stroeter e Guryva Portela.  Foto: Ivana Moura

Guryva Portela, Jorge de Paula, Henrique Stroeter, Fábio Espósito e Carlos Ataíde (no chão). Foto: Ivana Moura

O espetáculo As Conchambranças de Quaderna (1987), com texto de Ariano Suassuna (1927-2014), direção de Fernando Neves e realização da Beijo Produções Artísticas e Cia Vúrdon de Teatro Itinerante, se desenvolve em torno do peculato. Essa palavrinha vem do termo latino peculatus, cuja origem, por sua vez, vem de pecus — (gado) — que constituía a primitiva moeda para realização de compras e pagamento de multas. Peculato é a ação de subtrair ou desviar bem ou dinheiro por parte de funcionário público que deveria ser o guardião. Ouvimos a expressão com frequência nos noticiários. O sujeito se apropria de um bem que ele tem acesso em função do cargo que exerce. A partir desse abuso de confiança, o (mau) servidor comete o crime (Código Penal, artigo 312) e está prevista pena de 2 a 12 anos de prisão e multa.

O cômico em Ariano Suassuna funciona como mina explosiva. Abre caminho ao diálogo e escuta do público, na perspectiva do questionamento crítico e reflexivo. Com as armas do humor, da astúcia e da habilidade de resolver conflitos, o personagem mítico-poético Pedro Dinis Quaderna vence suas batalhas n’As Conchambranças de Quaderna.

A obra de Ariano Suassuna é composta por três atos: O Caso do Coletor Assassinado, Casamento com Cigano pelo Meio e A Caseira e a Catarina ou O Processo do Diabo. Teve apenas três montagens – no Recife (1987 e 2004) e no Rio de Janeiro (2011) – e foi publicada somente em 2018. N’As Conchambranças de Quaderna, Suassuna resgata Pedro Dinis Quaderna, personagem do seu Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971).

O projeto As Conchambranças de Quaderna foi viabilizado, em 2019, através do ProAC de Produção e Temporada de Espetáculos Inéditos de Teatro – Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. A encenação com os três atos poderia chegar a três horas de duração. A produção seguiu as recomendações das medidas sanitárias e do distanciamento social durante a pandemia do coronavírus, elegendo o primeiro ato da peça, O Caso do Coletor Assassinado, para a montagem, de cerca de uma hora.

Na peça, um “suposto” desfalque cometido pelo coletor de impostos da cidade gera uma crise política entre o Sertão do líder da oligarquia rural Dom Pedro Sebastião e o governo do estado da Paraíba. Dom Pedro Sebastião é Padrinho e protetor de Quaderna. Esse protagonista usa sua lábia, seu discurso para resolver contendas e fazer com que todos ganhem, principalmente ele mesmo.

As personagens são tipos e a encenação de Fernando Neves salienta as caricaturas na sua montagem em que os elementos do circo-teatro imprimem as diretrizes estéticas. Os papeis codificados, as peripécias, o trato popular no visual e a crítica social à política, à ganância, à hipocrisia, à xenofobia são tratados como andamento de uma partitura pelo diretor.

Neves confere à cena uma dinâmica lépida e fagueira, farta de marcações hilárias, efetuada com alegria pelo elenco. Em As Conchambranças de Quaderna os atores parecem se divertir, fazem folia com os próprios códigos.

 O músico Abuhl Júnior. Foto: Ivana Moura

Para garantir esse festim, o encenador conta com o músico Abuhl Júnior, ao vivo na bateria e percussão, que enriquece a ação dos atores na partitura e sonoridades incidentais.

O tempo e o ritmo com exatidão são valiosos para Neves, especialista em circo-teatro, estética que se dedica desde sempre com a família Santoro Neves ou há duas décadas, junto ao grupo Os Fofos Encenam.

No universo desse Sertão de Quaderna, as relações com quem exerce cargo de destaque são determinantes. O aspecto monetário e os elementos financeiros traduzem os pequenos embates de poder e sua sustentação.

Suassuna subverte hierarquias consagrando Imperador e Rei, Decifrador-armorial, Gênio da Raça, Monarca da Cultura Brasileira, Imperador do Reino do Sete-Estrelo do Escorpião e candidato a Gênio Máximo da Humanidade o “afilhado” de um importante coronel. O Padrinho é aconselhado por Quaderna na resolução de problemas políticos que precisam de estratégia, audácia, inteligência, rapidez, senso de conciliação. Quaderna, nesta encenação, saúda as manifestações de religiosidade afro-brasileiras, como as reverências em honra à Jurema, durante a apresentação.

Para desenvolver o espetáculo, o chão é festivo. A maquiagem é carregada, quase uma máscara. O ritmo das cenas é rápido. A dança nordestina está impregnada no corpo dos atores. Destaco o cavalo-marinho, um auto dos festejos natalinos. O folguedo possui 76 figuras nas categorias humana, fantástica e animais. Talvez venha daí qualquer coisa além de humana na postura das personagens.

Então, a dança do cavalo-marinho é bem ágil, enérgica, entusiasta, com um ritmo bem-marcado por um sapateado que sugere o galope dos cavalos. A sambada tem passos rasteiros intercalados de saltos, que se chama “bater mergulho”.

Nesse clima, o que os atores mostram vivamente é a confusão entre a natureza do que é público e privado. Se o território é brincante, a trilha sonora – assinada por Renata Rosa (cantora, compositora e rabequeira) e de Caçapa (arranjador, violeiro e compositor pernambucano) acentua, reforça o clima exultante do espetáculo.  

A criação visual do artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano, é uma obra de arte excepcional por si mesma. Os telões do cenário estão carregados do Brasil real e profundo. Os criativos figurinos, inspirados na estética armorial e na cultura nordestina, são assinados por Carol Badra.

Jorge de Paula e Fábio Espósito. Foto: Ivana Moura

O ator Jorge de Paula, que interpreta o Quaderna, brilha em cena. Ele associa sutileza, gestualidade, carisma, fôlego com graça e humor. É bom na ironia e na desfaçatez. Uma construção forte, que transmite muita empatia ao público. Quem assistiu Um Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, da recifense Trupe Ensaia Aqui e Acolá, sabe que o talento desse ator vem de longe.

Fábio Espósito tem uma atuação desconcertante como Evilásio Caldas. Sua experiência de palhaço, seu timing para comédia dão leveza à cena. Como um bom mágico, ele nos surpreende com as piadas, os silêncios e partitura corporal. Um brincante que contagia.

Guryva Portela faz Dom Pedro Sebastião e acentua as características do autoritarismo, machismo de forma bem exagerada na mira do grotesco para provocar o riso.

Carlos Ataíde como Seu Belo. Foto: Ivana Moura

Bruna Recchia, em primeiro plano, no papel da Presidente da Comissão de Inquérito. Foto: Ivana Moura

Os outros papéis são menores e cada um tem sua importância, concebidos na mesma linha do exagero, escolhida pela encenação. Henrique Stroeter faz o matador Joaquim brejeiro que trabalha basicamente com o gestual de segurar o rifle e amedrontar com a força bruta; Carlos Ataíde interpreta Seu Belo, funcionário do Cartório, medroso e engraçado e Bruna Recchia a Presidente da Comissão de Inquérito, que investe na maximização da caricatura da paulistana com seu olhar exótico sobre o nordestino, que pode tanto despertar o riso ou a irritação, depende do espírito do espectador.  

A trama reporta às farsas medievais, ancorada na astúcia da figura principal da peça e sua desenvoltura para solucionar as confusões. Na galeria de figuras de As Conchambranças de Quaderna não nos cabe julgamento moral. O crime de peculato, acobertado pelos personagens, traz junto com o riso prazeroso o alerta para que fiquemos atentos ao mundo real, ao Brasil que massacra seus artistas.

Essa crítica é necessária ao país que se sustenta em acordos e tramoias para se garantir no poder. De um país que vê passar a chamada de “PEC do Calote”, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que viabiliza o financiamento do Auxílio Brasil (programa que substitui o Bolsa Família), mas para isso abre espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022 às custas do não pagamento das dívidas judiciais do governo. Entre outros probleminhas.

Do espetáculo As Conchambranças de Quaderna fica um gostinho de quero mais, já que esta montagem está circunscrita ao primeiro ato. Do Brasil da “PEC do Calote” precisamos estar atentos e fortes para a luta.

Jorge de Paula e Fábio Espósito. Foto: Ivana Moura

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A liberdade é uma luta constante.
Estreia Sueño, de Newton Moreno

Denise Weinberg e José Roberto Jardim. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

Michelle Boesche e Leopoldo Pacheco. Foto: João Caldas Fº/ Divulgação

Paulo de Pontes. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

“Ou se é livre por inteiro ou se está em cativeiro”. O trecho da música de Sueño traduz o espírito do espetáculo. Livremente inspirada em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, a peça expõe desejos interrompidos de uma trupe de teatro e de uma família por uma ditadura sul-americana. Com direção e dramaturgia de Newton Moreno e elenco formado por Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Paulo de Pontes, Michelle Boesche, José Roberto Jardim e Simone Evaristo, Sueño estreia neste 5 de novembro de 2021 de modo presencial na área externa do Teatro João Caetano, em São Paulo.

As ditaduras são especialistas, sabemos, em confiscar destinos e semear pesadelos. Na peça, que começa em Santigo, no Chile, em 1973, um grupo de teatro ensaia Sonho de uma Noite de Verão. O diretor Vine forma um casal com uma militante política, que está gravida. Eles são separados pela ditadura.

A história é narrada pelo ponto de vista do diretor chileno, Vine, que anseia retomar sua montagem shakespeareana adiada pelo golpe e reencontrar sua companheira. Mesmo com a derrocada da ditadura, na década de 1990, os ecos do autoritarismo sobrevivem.

Sueño é nosso manifesto poético. Nossa teimosia estética para retornar ao teatro após o caos pandêmico e político que atravessamos, evidenciando nossa crise e buscando reafirmar a potência de nosso ofício. Uma peça em processo, sempre em processo, como este continente em ensaio há séculos. Por isso, chamamos esta primeira temporada de Etapa 1 do SUEÑO – ensaiando sonhos”, pontua o diretor e dramaturgo Newton Moreno.

A operação Condor, que envolveu Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina é o disparador da montagem. A intervenção para detectar “movimentos subversivos” foi responsável por muitas prisões e “desaparecimentos”. “Queremos acessar as gavetas-memórias desta rede persecutória e opressora. E assim desenvolver a dramaturgia, explorando um eixo organizador: processos ditatoriais na América Latina e as famílias separadas pela ditadura”, diz Newton Moreno.

Há um entra-e-sai na ‘fábula’, no universo onírico e violento de Shakespeare. “Embaixo do tapete mágico de fadas, enamorados e quiprocós, esconde-se a sombra tenebrosa dos desafetos, desmandos patriarcais de humanos e desumanos”, lembra Moreno.

Muitas camadas são criadas para falar da eterna utopia, da colonização, do devir latino-americano, dos regimes totalitários, do ontem e hoje, das nossas heranças de desgovernos.

Num dos ensaios de Sueño, que acompanhamos nos últimos dias, fomos contagiados pela força da montagem para encarar o tema-desafio. Da delicadeza para tocar o humano, esse ser tão frágil que nos seus projetos de grandeza esquece do tempo. Newton Moreno conduz com engenhosidade esse projeto coletivo que conta com quase 50 pessoas envolvidas diretamente. E extrai gradações interpretativas que vai da fúria à meiguice de um elenco afinado e apaixonante.

Ficha técnica:
Dramaturgia e Direção Geral: Newton Moreno
Direção de Produção: Emerson Mostacco
Direção Musical: Gregory Slivar
Direção de Movimentos: Erica Rodrigues
Elenco: Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Paulo de Pontes, José Roberto Jardim, Michelle Boesche, Simone Evaristo, Gregory Slivar (músico ao vivo)
Desenho de Luz: Wagner Pinto
Figurinos: Leopoldo Pacheco e Chris Aizner
Cenário: Chris Aizner
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assistente de Dramaturgia e Pesquisador: Almir Martines
Assistentes de Direção: Katia Daher (primeira etapa) e Erica Rodrigues
Assistente de Produção: Paulo Del Castro
Assistente de Luz: Gabriel Greghi
Adereços e cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque
Estrutura de box truss e arquibancadas: Fernando Hilário Oliveira
Desenho de som: Victor Volpi
Operador de Luz: Gabriel Greghi / Vinícius Rocha Requena
Operador som e Microfone: Victor Volpi
Palestrantes: Sérgio Módena e Ricardo Cardoso
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio – Douglas e Heloisa
Designer: Leonardo Nelli Dias
Fotos: João Caldas
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Produção Audiovisual: Ìcarus
Apoio Paisagístico: Assucena Tupiassu
Costureiras: Lande Figurinos e Judite de Lima
Equipe de Montagem de Luz: Guilherme Orro / Thiago Zanotta / Lelê Siqueira
Equipe de Montagem Cenário: F.S. Montagens
Estagiários: Camila Coltri; Fernando Felix; Marcelo Araújo; Bruna Beatriz Freitas; estagiário 5; estagiário 6
Produção: Mostacco Produções
Realização: “Heróica Companhia Cênica”, “Prêmio Zé Renato de Teatro”, “Secretaria Municipal de Cultura” e a “Prefeitura de São Paulo — Cultura”
“Este projeto foi contemplado pela 12a Edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura”

Serviço:
TEATRO MUNICIPAL JOÃO CAETANO – Rua Borges Lagoa, 650 – Vila Clementino – São Paulo.
Temporada: de 05 de novembro a 05 de dezembro de 2021.
Horários: De terça a domingo às 18 horas.
Ingressos: Entrada franca, com retirada na bilheteria uma hora antes do espetáculo.
Duração: 150 minutos + 30 minutos de debate após cada apresentação.
Classificação: 14 anos
Gênero: Tragicomédia
Lotação: 30 lugares
Informações: (11) 5573-3774 / 5549-1744

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Coletivo Angu pergunta: “Onde está todo mundo?”

Integrantes do Coletivo Angu de Teatro: Hermila Guedes, Gheuza Sena, Lilli Rocha, Ninive Caldas, Ivo Barreto, Arilson Lopes e André Brasileiro. Foto: Tadeu Gondim

A parceria entre Marcelino Freire e o Coletivo Angu de Teatro, do Recife, rende frutos há quase 20 anos. Neste domingo, 10 de outubro, o grupo mostra ao vivo, pelo Zoom, o trabalho Onde Está Todo Mundo?, quando joga com o universo das lives e da comunicação on-line.  A peça integra a programação Palco Virtual, do Itaú Cultural.

Estão no elenco desse experimento virtual os atores André Brasileiro, Gheuza Sena, Ivo Barreto, Lilli Rocha, Luís Cao, Ninive Caldas e do diretor Marcondes Lima.

Nessa “live farsesca” nem o autor – Marcelino Freire – nem as personagens criadas por ele durante a pandemia comparecem para participar do programa.

A peça foi criada no ano passado para o Festival Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência – Edição Cênicas, do Itaú Cultural, primeira seleção de auxílio a artistas no começo da pandemia. 

Quando a presencialidade, tão cara à cena teatral, começou a afastar-se, Marcelino Freire perguntou “Onde Está Todo Mundo?” E ofereceu ao Coletivo Angu um balaio repleto de humor corrosivo, doses de poesia e personagens absurdamente palpáveis nesse tempo cada vez mais surreal, de fronteiras difusas entre o ser e o não ser.

Com humor, o Coletivo ergue uma metacena que atravessa questões como a perda, o espaço vazio, o desaparecimento de pessoas e a dor.

Primeiro grupo a levar à cena a prosa de Freire, o Angu foi criado em 2003, do encontro entre os atores André Brasileiro, Fábio Caio, Gheuza Sena, Hermila Guedes, Ivo Barreto e do diretor Marcondes Lima para a montagem do espetáculo Angu de sangue.

Desde então, criou os espetáculos Ópera (2007), com texto de Newton Moreno, Rasif – mar que arrebenta (2008) e Ossos (2016) , com textos de Marcelino Freire, todas com direção de Marcondes Lima e Essa febre que não passa (2011) texto de Luce Pereira e direção de André Brasileiro e Marcondes Lima.

Nínive Caldas e Luís Cao em Onde está todo mundo?. Foto: Divulgação

SERVIÇO
Onde está todo mundo? [com interpretação em Libras]
Palco Virtual do Itaú Cultural
Quando: Domingo 10 de outubro de 2021, às 19h
[duração aproximada: 120 minutos]
Onde: Plataforma Zoom.
Ingresso: Gratuito, via Sympla
Mais informações: www.itaucultural.org.br​

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Uma conversa sobre Nordeste, teatro de grupo e política
Entrevista || Magiluth e No Barraco da Constância Tem!*

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Veja só. Foto: reprodução de tela

Piragem etnográfica do complexo, espetáculo do grupo No Barraco da Constância Tem!. Foto Edouard Fraipont

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. Foto: reprodução de tela

Não sabemos dizer ao certo se acontece noutras regiões do país, mas no Nordeste, o telejornalismo tem uma certa fixação por buracos. O desejo de estabelecer uma relação com as populações geralmente mais periféricas das cidades faz com que problemas que afetam o cotidiano das pessoas, como os buracos das ruas, ocupem bastante espaço na programação diária das emissoras. A partir desse mote e das metáforas infindáveis que pode desencadear, o grupo cearense No Barraco da Constância Tem! criou O desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, experimento audiovisual apresentado no Cena Agora, do Itaú Cultural, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas.

Sabe o cubo mágico? A edição de texto e vídeo desse trabalho é como essa quebra-cabeças com assuntos que aparentemente não teriam ligação, mas fazem todo o sentido. O trabalho resgata a história de Manuel Olímpio Meira, um pescador que lidera um grupo numa viagem de jangada de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A empreitada é bem-sucedida e vira até matéria na revista Time, despertando o interesse de Orson Welles, que vem ao Brasil para filmar a história dos pescadores. Mas, durante as filmagens, há um acidente e Manuel Jacaré desaparece no mar.

O experimento imbrica o sebastianismo – foi o rei D. Sebastião quem desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 –, à história do pescador, à percepção que os nordestinos têm de suas cidades (há um trecho ótimo com supostas entrevistas de crianças europeias, mas usando o áudio de um vídeo com crianças nordestinas, falando sobre a relação delas com o Crato e se elas gostariam de permanecer na cidade quando crescessem), e até ao turismo ufológico no Ceará.

Como nós, Yolandas, adoramos proporcionar encontros e intercâmbios, enviamos o link desse vídeo para algumas pessoas, inclusive para Giordano Castro, do Magiluth. E, como a gente esperava, o grupo pirou com a ideia do No Barraco… para discutir o Nordeste. Resolvemos então promover esta conversa entre esses dois coletivos que nunca se encontraram pessoalmente, mas poderiam dar match.

O trabalho que o Magiluth apresentou no mesmo evento, Cena Agora, está disponível no Instagram e no YouTube do grupo. Veja só… é uma leitura comentada da matéria publicada na Veja São Paulo, que incitou a discussão sobre Nordeste pelo Itaú Cultural, e anunciava em sua manchete: São Paulo – Capital do Nordeste. Foi a primeira vez que os atores do Magiluth leram a publicação.

O grupo No Barraco da Constância Tem! é formado por Ana Carla de Souza, Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte. Damasceno, Honório, Renan e Sarah participaram da entrevista “coletiva”. Já do Magiluth, que junta Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner, participaram Giordano e Erivaldo. Foram quase três horas de conversa e nem tinha uma cerveja gelada na mediação, o que certamente vai acontecer no próximo encontro, seja na Mamede Simões, no Recife, ou na Instituto do Ceará, em Fortaleza.

*Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || MAGILUTH E NO BARRACO DA CONSTÂNCIA TEM!

Pollyanna Diniz: Como era o cenário de teatro no Recife e em Fortaleza quando vocês decidiram criar o Magiluth e o No Barraco da Constância Tem!, respectivamente? Por que se juntar em grupo?

Giordano Castro: Quando a gente surge, era muita coisa acontecendo aqui em Recife, dinheiro jorrando, o estado investindo. Mentira! Mas a gente tinha um cenário teatral local bem melhor do que nos últimos seis anos. O Magiluth surge em 2004. Entramos na universidade e quatro pessoas que faziam parte daquele grupo tinham mais interesse na prática do que na licenciatura. Começamos a entender que estar em grupo era a saída para furar uma bolha da cidade. É natural, vão se formando blocos e agrupamentos e o pessoal mais novo sempre tem um pouco de dificuldade. Depois que começamos a fazer, buscamos exemplos e inspirações noutros coletivos, grupos, alguns até contemporâneos. Mas estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas. 

Estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas.
Giordano Castro – Magiluth

Honório Félix: O No barraco da Constância tem! surgiu em 2012. Estou desde o começo. Temos agora outra configuração de grupo, mas lá no começo éramos eu, Tayana Tavares e Ariel Volkova. Eles não saíram, mas estamos passando por um momento de transição, de entendimento de como está funcionando esse coletivo. O Barraco surgiu porque eu, Tayana e Ariel trabalhávamos juntos, mas tínhamos uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente não via na cidade. E não é porque a gente não admirava as pessoas, mas olhávamos ao redor e tínhamos vontade de fazer uma coisa que não estava ali. Tínhamos vontade de pautar e de estabelecer a nossa própria poética, mesmo não sabendo muito bem o que era isso. 

Trabalhamos muito entre o teatro e a dança, mas também partilhamos outras zonas de interesse. Esse grupo movimenta uma série de pessoas em projetos e criações diversas. Temos essa característica de ter um núcleo, digamos assim, mas estamos sempre nos juntando com alguém, trabalhando com uma série de pessoas que estão ao nosso redor.

O No Barraco surge de uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente
não via em Fortaleza. Tínhamos vontade de pautar
e de estabelecer a nossa própria poética.
Honório Félix – 
No Barraco da Constância tem!

Pollyanna: Fiquei curiosa com o nome do grupo. Qual a história?

Honório: A constância tem a ver com a qualidade de ser constante, de construir essa constância na criação, na elaboração, no exercício poético. E o barraco tem a ver com esse lugar que é acochado, mas que cabe, e tem uma relação de “barraquear”, de bater o pé, de chutar a porta, de barraco, de confusão, de contenda. Aí o Barraco é um pouco esse pandemônio, cabe muita coisa, muita gente, e se faz na elaboração constante.

Renan Capivara: Faço parte de uma leva mais recente que ingressou no Barraco, junto com Felipe e Sara em 2018. Entramos por ocasião do projeto Delirantes. Era de montagem, mas também se desdobrou e continuamos produzindo e criando mais coisas. E é interessante que essa relação não começou em 2018, porque eu conhecia Honório há muito tempo e conhecia William há um tempo. Conheci Honório no curso técnico em Dança em 2013 e acredito que trabalhar com ele agora vem um pouco dessa relação, que vem de um espaço formativo, e isso é muito importante de sublinhar.

Felipe Damasceno: Sou artista da dança, minha formação básica é da dança, mas como o Barraco trabalha com teatro, dança, e outras linguagens, não sei se faz mais sentido dizer que sou da Dança. Já nem sei mais de onde é que eu sou! Minha formação não passa pela universidade, pela estrutura acadêmica, formal, institucional. A minha formação foi sempre embasada nessa coisa de coletivo. Naquela época, ainda não existia faculdade de dança, então a formação da maioria das pessoas era muito dentro dessa lógica dos agrupamentos. Você está neste grupo tal e esse grupo, coletivamente, descobre como é que forma as pessoas, que caminhos tem que seguir. A coisa era meio entrelaçada, formação e criação.

Sarah Nastroyanni: Tenho crush no Barraco desde 2016, quando assisti Marlene pela primeira vez. Aí a gente passou um tempinho se paquerando, se queixando, até eu me tornar barraqueira em 2018 junto com Damas e Renan. E quando a gente se juntou, Renan falou um pouco de Delirantes, um dos projetos que a gente já se jogou, mas quando a gente se juntou mesmo, eu e Honório, foi para enviar cartas para artistas e espaços de exposição na cidade, apelando a autoria do mictório (Fonte), aquela obra que é atribuída formalmente ao Marcel Duchamp, ao fantasma da baronesa falida Elsa von Freytag-Loringhoven, que é a verdadeira autora . E começou com essa ação da gente escrever anonimamente cartas, mas se desdobrou. É um babado que está rolando até hoje, das cartas passou para exposição, vídeos em artes visuais, em diversas linguagens. E é um prazer conhecer vocês pessoalmente, do jeito que dá.

Pollyanna: Se vocês pudessem escolher um trabalho marcante, uma virada de chave na trajetória do grupo, qual seria?

Erivaldo Oliveira: Para mim, a virada de chave, muito simbólica, foi em Aquilo que o meu olhar guardou para você: a possibilidade de a gente trabalhar a partir do teatro, a partir do grupo. O espetáculo surgiu em 2011, num projeto também do Itaú, chamado Rumos Teatro, a primeira edição. E esse foi o primeiro edital que a gente recebeu uma grana, tinha a possibilidade de ter uma sede, um espaço onde a gente pudesse trabalhar. O grupo se modificou muito a partir daquele momento. Largamos os outros trabalhos e voltamos a entender que era dali que a gente podia se unir, ter forças, no sentido de sobrevivência, no sentido de viver daquilo que a gente veio ao mundo para fazer. Tem essa chave de estruturação.

 

Aquilo que o meu olhar guardou para você. Foto: Blenda Souto Maior

Um torto, solo do Magiluth. Foto: Pollyanna Diniz

Viúva, porém honesta. Foto: Victor Jucá

Giordano: Vou subverter, Polly, vou dizer três trabalhos que marcam coisas bem diferentes e são bem importantes. O primeiro é Um torto, um solo do grupo, que dá uma guinada nessa busca poética que Honório falou, que eles não sabiam ainda quando surgiram, a gente também, a mesma coisa, me vejo muito nesse lugar. Mas acho que Um torto, por mais verde que seja, faz uma quebra nos trabalhos que a gente tinha feito. Depois dessa quebra, seguimos essa avenida que Um torto abriu de pesquisa e pensamento. O segundo trabalho é Viúva, porém honesta. Deixando a modéstia um pouco de lado, foi um trabalho de sucesso, de lotar casas, de fazer com que a gente entrasse nos principais circuitos. Já frequentávamos circuitos de festivais, mas com Viúva, ele chuta a porta e ele é mais do que a gente, é o próprio trabalho que se impõe. E o trabalho depois desse, logo em seguida, é O ano em que sonhamos perigosamente, que é o trabalho dentro da nossa trajetória que, se a gente pensar em questões de receptividade, pode ser considerado um fracasso. Mas, para o grupo, para tudo que significa e o que aconteceu, acho que é um dos trabalhos mais fodas e interessantes que a gente fez, enquanto pesquisa de linguagem. É um trabalho que surge de um desses momentos que, como Honório falou, vocês estão vivendo uma renovação, acho que isso acontece muito e várias vezes dentro de um coletivo, a gente passou por várias guinadas. Uma guinada de amadurecimento se dá por causa desse trabalho, durante esse trabalho.

Honório: Vou falar dos mais antigos. Acho que o primeiro trabalho que é uma virada de chave é o Piragem etnográfica do complexo (2013), que construímos despretensiosamente e que nos levou  para vários lugares. É um trabalho curto, de meia-hora, mas viajamos, fizemos um bocado de canto, fazíamos desde pátio de universidade até apresentação em galeria, em festival de performance. Foi um trabalho que nos colocou noutra perspectiva: “acho que a gente pode realmente investir nisso, né? Vamos continuar trabalhando?”.

Tem uma coisa interessante que rolou no Cena Agora, nesse último trabalho, que foi O desaparecimento do Jacaré Alcácer-Quibir. Ivana perguntou como a gente pensa montagem e edição no nosso trabalho durante o debate. E logo depois Ariel, um dos membros do coletivo, me telefonou para falar sobre o Jacaré, que foi incrível, que o debate foi lindo, e que ele ficou com isso martelando na cabeça, a pergunta da Ivana. E ele falou assim: “Honório, na verdade a gente funciona muito por essa coisa de montagem, de edição”.

Nesse sentido, outra virada de chave foi quando entramos no Porto Iracema das Artes, uma escola daqui do Ceará voltada à formação e pesquisa, no laboratório de pesquisa teatral com o projeto Encenações contracenadas – entre o distanciar e o invadir. Tínhamos dois anos de grupo e fizemos esse projeto que era super ousado: convidar cinco encenadores de Fortaleza para que cada um dirigisse uma cena de cinco minutos com a gente e, a partir de como eles trabalhavam procedimentos de direção, a gente ia ver como fazia uma edição, misturar essas cinco poéticas e “roubar” a autoria deles. A gente vai roubar isso aqui, vai se apropriar, hackear os procedimentos e inventar uma maneira de colocar essas relações diferentes para contracenar. Deu um trabalho medonho, porque realmente dá trabalho editar esse material, cenas muito diferentes entre si. E gerou um trabalho chamado Nada como quando começou. O Piragem era um grande sucesso e era conhecido pelo deboche. O Nada não tinha essa característica de deboche, mas tinha uma característica de atrevimento e, em certo sentido, era um trabalho que levantou uma suspeita sobre as pessoas: o que é que eles estão fazendo? Era um grupo que não é nem de teatro, nem de dança, está fazendo uma coisa esquisita, misturando um monte de gente.

E outra virada de chave, que meio que resvala até onde estamos agora, são dois trabalhos: Marlene – dissecação do corpo do espetáculo (2016) e Rara (2017). Marlene é um espetáculo que foi um sucesso, mas demorou a engatar. É um trabalho longo, de duas horas, com várias mudanças de atmosfera, meio grandioso, quase operístico, e tem essa característica de decadência. Mas ali a gente foi entendendo e trabalhando esses procedimentos de montagem, de edição, de costura, de mistura, vou por ali, vou aqui, vou misturar essa história que tem a ver com teatro de Fortaleza com uma história de Hollywood dos anos 1950 e daqui eu vou lá para as divas do jazz. É um trabalho que vai falando um pouco sobre essa relação da decadência, da diva, da história do teatro e do porquê a gente perpetua esse imaginário. Acho que é uma virada de chave junto com Rara, nosso trabalho de ficção científica. Começamos a entender uma zona de interesse, não estabelecer uma metodologia de trabalho, mas realizar uma criação em camadas, misturar assuntos. A gente entendeu nesses dois trabalhos que isso era o que a gente fazia, foi uma tomada de consciência e de que seria interessante continuar investindo nisso.

Nada como quando começou. Foto de Luiz Alves

 

Marlene – Dissecação do corpo do espetáculo. Foto de Toni Benvenutti

Rara. Foto: Luiz Alves

Sarah: Vou falar de um trabalho marcante de um ponto de vista bem pessoal que, para mim, mobiliza muitas das características do nosso fazer, que é Auto de Danação, que foi feito no fim do ano passado, uma performance por WhatsApp, oriunda de uma residência. Quando falo que mobiliza certas características, é de constância, porque vem de uma pesquisa de 2018, que teve uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria, uma coisa muito recorrente nos trabalhos do Barraco. Quis mencionar esse porque vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. Sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui, fico curiosa para saber de vocês como é que foi esse processo de Tudo que coube numa VHS, e o que vocês estão pensando e produzindo agora, como foi se inventar a partir dessas plataformas?

Auto de Danação, uma performance por WhatsApp, mobiliza muitas das características do nosso fazer, uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria. Vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. É sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui. Sarah – No Barraco da Constância tem!

Giordano: Sarah, esse trabalho nasce do desespero e do medo da morte. No ano de 2019, pré-pandemia, estreamos Apenas o fim do mundo, um trabalho bem recebido pela crítica, entramos nas premiações nacionais. Mas o Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. Vendo que os festivais estavam fudidos, porque muitos já estavam convidando a gente, mas faziam: “ah, a gente está meio sem grana e tal”, decidimos investir num espaço nosso aqui no Recife. Se tudo desse errado, faríamos espetáculo de domingo a domingo e tiraríamos a grana da bilheteria, o que, obviamente, não seria essas coisas, mas iríamos nos mantendo, fazendo o nosso trabalho. Aí, Sarah, a gente se fudeu. Toda a grana que tínhamos em caixa, investimos neste Casarão. Dois meses do Casarão, pandemia. E todos os festivais que a gente ia participar, que iriam ajudar a repor a grana, foram caindo. Também faríamos uma estreia em cima do Morte e Vida Severina, que caiu. Em abril, Erivaldo nos disse que a gente tinha mais um mês e meio de grana. Fudeu, véi. Foi quando começamos a pensar em criar: será que a gente adapta algum trabalho? Fomos esbarrando em questões. A internet da gente é uma bosta, as câmeras são ruins, não vamos conseguir fazer um trabalho online. Aí conversei com os meninos e disse que estava com uma ideia. E nasceu Tudo que coube numa VHS. Não foi uma pesquisa, não era algo que a gente já estava pensando. As primeiras ideias eram: como fazer um trabalho que levasse em consideração a maneira como a gente tem se comunicado, através dessas plataformas, um trabalho que fosse seguro tecnologicamente, que eu não ficasse na mão de uma internet muito boa, que as pessoas que participassem também não precisassem disso, que fosse simples. E as outras coisas fomos entendendo. A gente entendeu, por exemplo, que o trabalho não poderia ser muito longo. E, resumindo, Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas.

Erivaldo: Esse trabalho veio no sentido de nos salvar financeiramente e também a nossa sanidade porque, como Gio falou, no começo era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. E o fato de ficar todo mundo dentro de casa, grana acabando, festival caindo, Casarão fechado, isso tudo dá um bug na cabeça. Parece que, pela primeira vez na história mundial, o teatro vai morrer. Morremos, vamos morrer. Era tudo muito assustador. Essa qualidade estética criada a partir da tecnologia, do digital, foi sendo aprimorada com o passar do tempo. Lembro que a gente teve uma reunião com Lubi (Luiz Fernando Marques), porque queríamos fazer Apenas o fim do mundo, porque ele é constituído de muitos monólogos, então pensamos: todo mundo está nas suas casas, vamos fazer os monólogos e criar uma atmosfera para isso. E aí na reunião, Lubi disse: “gente, teatro não existe, não vai existir durante esse tempo de pandemia, porque o teatro requer presença”. E aí esse negócio, de que o teatro de fato requer presença, foi o que mais nos pegou. Como é que, mesmo nessa distância da tela, conseguimos estabelecer presença, no momento real? E o experimento, no momento que foi criado, tinha um frescor, a possibilidade de estar em cena. Não podíamos ir ao teatro, mas as nossas casas viraram palco. Então você está no meio de uma pandemia, de segunda a segunda, fazendo peça? A gente fazia 10 apresentações por noite, de segunda a segunda. Você tem uma ocupação, não deixa de lado os problemas, mas dá uma ressignificada, para ter sanidade e continuar acreditando na nossa potência de criação, na nossa arte. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós, fazedores, que foi importantíssimo, para além da segurança financeira. Na pandemia, diante de tudo que está acontecendo, milhares de amigos tendo que fechar as portas, não tendo como sobreviver, a gente tem que agradecer a uma junção do cosmo que fez esse trabalho existir, a partir da necessidade, do desespero. 

O Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. 
Giordano Castro – Magiluth

 

Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas financeiramente e também a nossa sanidade.  No começo da pandemia, era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós. 
Erivaldo Oliveira – Magiluth

Ivana Moura: Vocês acham que o teatro ocupa o lugar que deveria nas cidades de vocês?

Felipe: Não, o teatro não se encontra numa posição de importância, não tem um protagonismo. O que fazer para que isso mude? É acabar com o capitalismo! A louca! É pensar essas estruturas de difusão, a formação e a circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. Dentro do bojo cênicas, tem uma concentração geográfica em Fortaleza na Praia de Iracema, Centro, Benfica, Aldeota, Meireles, que tem um acesso direto, geográfico, a espaços culturais, enquanto o resto da cidade não tem tanta facilidade. Estamos falando, claro, de espaços institucionais, mas existe uma força muito grande de espaços alternativos, que fomentam uma produção própria. Mas, mesmo assim, tudo se concentra numa parte específica da cidade, que acho que não é muito diferente noutras cidades do Brasil. Estou me sentindo um político. Porque é tão óbvio, pelo menos para mim, acho que para todos que estão aqui, é uma pauta óbvia. 

O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. Direito cultural é manifestação, gente que, nos anos 1980, 1990, pautou que deveríamos ter uma escola de dança na cidade, para rivalizar com essa lógica privada de academias de dança, então precisava ter um curso de dança, um colégio de dança, que depois se transformou no curso técnico em dança. Acho que passa pela poética da arte, mas está mais atrelado à lógica política de como é que a classe artística de cada cidade e de um país se organiza para fazer essa reivindicação. E é sempre muito difícil, porque lidamos com o individualismo. Estamos sempre competindo, essa lógica de edital já incita que só um ou dois vão ganhar. Tem um ponto que sai da poética, da criação, e passa por um viés político de organização da classe.

O teatro não se encontra numa posição de importância. O que fazer para que isso mude? É pensar essas estruturas de difusão, formação e circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. 
Felipe – No Barraco da Constância tem!

 

O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Por que o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife.
Giordano Castro – Magiluth

Giordano: Mas eu acho, Felipe, que é político mesmo. O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Porque o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife. Kleber toma uma água maravilhosa e o filme dele é premiado. Obviamente tem a parte artística, do pensamento, do fazer, mas esse pensamento e esse artista só acontecem quando tem investimento. Se não, ele vai ficar pensando dentro da casa dele, ele vai ser genial dentro da casa dele. Tivemos momentos em que o teatro aqui teve uma visibilidade e ocupou um lugar forte no cenário nacional. Na época da gestão de Peixe (João Roberto Peixe, secretário de Cultura da cidade do Recife de 2001 a 2008), por exemplo, tivemos festivais de teatro que recebiam o que tinha de mais interessante, daqui e de fora. Hoje temos um momento muito difícil, porque desde que começamos a viver dentro do clã Campos, nessa política do PSB daqui, que se destruiu tudo que foi construído durante um tempo de gestão e a cultura virou evento, não virou uma política pública de manutenção, mas sim evento. E o PSB trabalha com medalhões dentro das secretarias, coloca um Ariano Suassuna para ser o secretário de Cultura, coloca uma Leda Alves para ser secretária. São pessoas fofas, maravilhosas, que têm uma história. Colocam essas pessoas como bode expiatório. E aí você chega no Recife, no aeroporto, e a primeira coisa que você vê é um caboclo de lança e um passista, fotos maravilhosas, e essa galera está fudida, porque essa galera só é boa para fazer foto, como imagem, mas não tem manutenção para essas figuras. 

Honório: Em Fortaleza, temos um investimento forte em formação, técnica, básica, e também de graduação, em diversos espaços e linguagens. E, quando se investe em formação, existe muita criação. Mas os espaços de escoamento dessa produção estão sucateados e sem investimentos. Houve um movimento, infelizmente veio a pandemia, de juntar os fóruns de várias linguagens através do Fórum de Linguagens e a gente produziu uma carta que falava de todos os equipamentos do Ceará, alguns até em desuso. Por exemplo, o Teatro Carlos Câmara, tem toda uma equipe lá, e não acontece nada, porque eles criam um mecanismo, o edital de ocupação. Vai lá uma produtora, se inscreve, passa dois anos tentando criar uma programação, acaba essa ocupação, a produtora sai, abre um novo edital, passa um ano o negócio fechado até que saia o resultado de uma nova ocupação. 

E, como o Felipe falou, essa coisa da centralização geográfica dificulta a criação do hábito de ir ao teatro. Existem outros problemas, como a mobilidade urbana e a cultura do medo, que vem de um movimento chamado “Fortaleza apavorada”, que quer reivindicar o lugar da segurança, uma coisa esquisita, a segurança ligada a uma ideia policialesca e de que a cidade é perigosa. Das pessoas criarem um medo e uma insegurança de estarem nas ruas, de quererem ser vigiadas, isso é muito forte. Foi também isso que nos mobilizou a criar essa pesquisa Delirantes, que começou em 2018 e rendeu o espetáculo Delirantes e malsãs

Queríamos criar um espetáculo nas praças públicas, a partir da epidemia de dança de Estrasburgo. Em junho de 1518, uma mulher começou a dançar no meio da rua, num vilarejo, e daqui a pouco todo mundo estava dançando, passaram dois meses dançando, e a maioria dessas pessoas morreram de tanto dançar. Vieram padres para exorcizar aquelas pessoas e também começaram a dançar, bandas de música, mas a galera se “contaminava” e dançava. Não existe uma comprovação do que causou isso, o porquê aconteceu, mas tinha a ver com aquele ambiente de final da Idade Média começo da Idade Moderna, totalitarismo e fortalecimento das monarquias absolutistas. Nos 500 anos desse fato, resolvemos fazer essa pesquisa. Iríamos estrear em março de 2020, com essa ideia de contaminação, de mobilizar uma multidão nas praças e aí acabou que mobilizou uma pandemia! 

 Giordano: Tá vendo? Foram vocês que ficaram pedindo epidemia!

 Felipe: Profético! Invocou esse troço, só pode!

 Erivaldo: E foi forte, né? Porque vocês pediram só para Fortaleza, mas veio para o mundo todo!

Delirantes e malsãs. Foto Toni Benvenutti

Honório: Quando a situação melhorou, cautelosamente começamos a ensaiar nas praças, entendendo o distanciamento social. No começo foi apavorante, entender como se juntar de novo, inclusive para adaptar o trabalho e recriá-lo do ponto de vista do distanciamento. Estreamos em outubro de 2020, fizemos uma circulação por sete praças em Fortaleza e teve público assistindo com distanciamento, num momento mais brando da pandemia. O trabalho está aí, mas só Deus sabe quando vamos dançar de novo. Também é doido entender como é que fica o nosso repertório. Será que vamos fazer algum dia? É uma coisa que tem me atormentado. 

Sarah: Fiquei com vontade de comentar uma coisa. Não é exatamente uma pergunta, mas é porque tem um trabalho de vocês, do Magiluth, que parte da Primavera Árabe e estamos falando das questões políticas que permeiam os trabalhos. Fiquei me lembrando como esse nosso imaginário em relação à forma do político tem se transformado. Vamos considerar dez anos para cá – pego esse recorte porque foi mais ou menos o tempo em que comecei a militar no movimento estudantil secundarista. Em 2013, tivemos o grande babado de junho, Copa do Mundo, tudo mais, aí visualizamos o que era uma multidão na rua, coisa que há muitos anos não tínhamos, os tensionamentos em relação à esquerda, black bloc e tal, e ninguém nunca imaginou que no fim das contas ia dar em Bolsonaro, quanto mais em não ver mais multidão na rua de jeito nenhum! Então, quando vocês fazem essa pesquisa que parte da Primavera Árabe, que passa pelas Jornadas de junho e agora todas as questões concretas de produzir na pandemia, como é que a gente está pensando, e eu fico curiosa para ouvir, a forma do político no teatro?

Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse.
Giordano Castro – Magiluth

Sobre as Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas. Não percebo como um protofascismo.
Felipe –
No Barraco da Constância tem!

 

O ano em que sonhamos perigosamente. Foto: Renata Pires

Giordano: Acho tão foda essa pergunta. Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse. Isso é uma coisa muito maior, mas em movimentos menores, muita coisa aconteceu, como o Ocupe Estelita, que foi um movimento político organizado. Naturalmente, por tudo isso que estamos vivendo, os nossos trabalhos foram desembocando nessas questões, por sermos pessoas que tentam dialogar e falar coisas referentes ao nosso tempo e as coisas que nos atravessam. Então naturalmente os nossos trabalhos foram ficando mais políticos. Mas, individualmente, cada pessoa foi sendo atravessada por essa política e por isso de uma forma diferente. Hoje, confesso que já começo a pensar noutro lugar. Essa é uma discussão que tem passado muito por nós. No começo da criação do Morte e vida, ficamos nos questionando como fazer com que esse trabalho político também fosse poético. Como conseguir equilibrar? Houve momentos em que cheguei para os meninos dizendo: aqui, Karl Marx na mesa. É isso que a gente tem que falar. E hoje penso absolutamente diferente, por estar dialogando, criando em coletivo. A gente tá trabalhando e Erivaldo vem com os cortadores de cana dançando no meio do canavial. E a gente faz “uau!”. Isso é bonito e isso é político. E como equilibrar? 

Felipe: Como não sou acadêmica, posso fazer análises da realidade sem me obrigar a ter referências e nem notas de rodapé. Acho que, após 2010, eu sentia muito um movimento de evitar esse campo político, essa estrutura manifesto, evitar o Karl Marx na mesa. E aí depois teve aquela fase de trabalhos que falavam do fim do mundo. Veio a pandemia, o fim do mundo chegou e a gente vai fazer o quê? Sobrevive, né? E agora vejo umas coisas mais poéticas. Está dado: o mundo acabou e eu vou ser poética. 

Sobre essa coisa das Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas, de pessoas querendo menos R$ 0,20 nas passagens, direitos trabalhistas. Não percebo como um protofascismo. O fascismo está posto há muito tempo aqui.

Giordano: Concordo com você. O que eu estou querendo dizer é que aquelas marchas foram muito confusas porque existia uma pauta a princípio: começou por causa do aumento de passagem, mas não era somente isso. Depois virou tudo. E nesse “virar tudo” começamos a criar o campo que a direita precisava: o povo está na rua, não aguenta mais, temos que começar a derrubar essa pessoa daí, essa mulher, no caso. Aqueles movimentos tinham que ser muito mais do que simplesmente invadir as ruas, tinham que se tornar movimentos políticos, é o que Mujica falava muito. Eu achava de uma sabedoria muito grande quando ele dizia: “ok que as pessoas estão na rua. E quando é que isso vira política?” 

Pollyanna: Como foi pensar o Nordeste, essa ideia proposta pelo Itaú Cultural no projeto Cena Agora?

Felipe: Tive muita dificuldade porque encarei a proposta como tema: Nordeste. Aí imediatamente lembro da África. Ah, tem Moçambique, Egito, Madagascar, África do Sul, Marrocos, 54 países, mas a gente encara assim, Nordeste. Eita, vixe! Mas, durante o processo, senti que começamos a subverter essas percepções do que é esse Nordeste. Fomos desenvolvendo essas puxadas de tapete entre nós mesmos, como processo dramatúrgico, como poética. O trabalho é deboche, é político, alfineta, passa por todos esses campos.

Honório: Para mim foi o contrário. Fiquei empolgado com a “tag”: temos um lugar para brincar, isso aqui para jogar. Tem uma coisa muito forte em termos de montagem, que aconteceu no processo de edição do vídeo, mas também de construção de roteiro. Criamos um roteiro e depois fomos realocando as coisas, isso vem para cá, isso vai pra lá, porque faz mais sentido. Aí Felipe fala: “vamos pelo buraco”.

Giordano: Como vocês acharam tanto vídeo de buraco?

Felipe: Tem uma recorrência de matéria de buraco nesses jornais da Globo. Fortaleza tem tanta notícia e a pessoa vai falar de buraco? Aí joga no Youtube: “buraco” e vai de tag.

Giordano: Achei genial! Mas o meu primeiro bug nessa proposta foi o livro do Durval, A invenção do Nordeste, que li no processo de Morte e vida, que deixa claro que quem inventou o Nordeste foi o Nordeste. E agora? Que botei essa bomba na mão? Fico achando que é uma discussão tão grande, que volto lá para 2013, será que estamos atirando para o lugar certo? O que estamos discutindo? Volto para a primeira questão: por que tantos artistas saem do Recife? Porque Recife não dá condições para esses artistas. Aí é fudido isso. Nessa encruzilhada Nordeste é que eu me encontro. A gente não cuida da gente mesmo, quando você pensa que durante anos se manteve a política da seca, pelos políticos nordestinos, todos eles, o cearense, o pernambucano, o maranhense, porque isso gerava muita grana. Quando você começa a puxar uma árvore genealógica da política pernambucana e vê que o atual prefeito do Recife estava brigando com a prima dele, que também era candidata. O prefeito que antecedeu ele é casado com uma prima de Eduardo Campos e o governador estudou com a mulher de Eduardo Campos. Está na mão de uma pessoa só, de uma família só, um brigando com o outro, as mesmas pessoas! Em Natal estão brigando os Rosados contra os Alves, essas mesmas famílias, e eles se casam entre si. Será que não estou errando o foco dessa discussão?

Ivana: O capitalismo é implacável em qualquer esfera. As elites não se diferenciam muito. As elites do Nordeste não são mais boazinhas, mais gentis, menos perversas do que as elites de outros lugares, elas sentam na mesma mesa no banquete. 

Giordano: Sabe quando a gente tem aquele bolo de fio de telefone no chão e está querendo tirar só o fio vermelho, mas ele está enrolado em tanta outra coisa? Não tem como discutir o capitalismo sem discutir pautas identitárias. O preconceito contra nordestino está ligado a questões econômicas, não tem como falar de uma coisa e não falar de outra. Caralho! Quando me deram essa bomba, eu disse: “não sei o que fazer!”.

Honório: Tem várias pegadinhas, cascas de banana, você puxa uma coisa e vem outra junto. No nosso processo li um poema que tem muito a ver com o que você está falando. É de um escritor daqui, chamado Talles Azigon. Ele publicou no facebook em outubro de 2020: “Nordeste/os coronéis, os padres, os gringos/ o ridejaneirosampaulo/ não te mataram, nem matarão/ nordeste/ escritoras simpáticas amigas de ditadores,/ mulheres que montam cavalo e usam peixeira/ mulheres mais modernas que artistas plásticos do MoMA,/ machos que matam mulheres/ nordeste,/ terra de ferocidades imensas,/ terra de revoluções,/ braços e cu do Brasil/ nordeste,/ onde ladrões são políticos, literatos/ donos de grandes bibliotecas privadas,/ e bebem suco de manga com açúcar/ lavrado com sangue dos pretos/ o nordestino é antes de tudo um forte:/ forte dos reis  magos,/ forte schoonenborch,/ forte santo antonio,/ forte de santa cruz,/ e mesmo assim/ até hoje/ invadido por europeus/ nordeste,/ quantos países precisaremos erguer/ para conseguirmos ouvir nossa voz,/de nosso sotaque?”

Acho foda porque ele vai colocando as contradições do que é esse Nordeste, dos coronéis, dessas mulheres maravilhosas que andam de cavalo e usam peixeira, mas estão sendo assassinadas por esses machos. O grande escritor cearense, literato, está ligado aos movimentos contra abolicionistas, é tudo muito bizarro. A gente sabe que Gilberto Freyre foi importantíssimo para entender o regionalismo, para fortalecer a ideia de uma arte regional, e servir a quem?

Ivana: Durval Muniz, na abertura do Cena Agora, a partir dessa história que Giordano falou dos laços familiares, da influência e da importância de Gilberto Freyre, que apadrinhou Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. 

Giordano: A gente vai abrindo portas sem fim. Mas eu sou uma das pessoas do Magiluth bem contra Ariano Suassuna.

Ivana: Ai, ai, ai. Faço todas as críticas, mas uma coisa é a cabeça, outra o coração.

Giordano: Ivana, fui pra fazenda dele comer queijo com ele, conversar, ele era um velho engraçadíssimo, maravilhoso. Mas acho uma escrotidão o movimento armorial. Um movimento que nunca existiu, que ele criou tudo, como tinha que ser o desenho, como tinha que ser a dança. Foi ele quem criou, então é um movimento que não existiu. Acho isso um egocentrismo e é muito doido porque Pernambuco compra isso, compra o movimento armorial. Mas se eu falar isso aqui, eu tô fudido, mas é isso aí. Tá vendo? É difícil para mim fazer esse trabalho. 

Acho que a gente precisa ter pé no chão, olhar essas pessoas nos olhos. Não tenho que ficar endeusando Ariano Suassuna, tenho que saber quem é Ariano Suassuna. Ele pode criar o conto de fadas dele, fazer o que ele quiser – e eu acho que, enquanto criador de literatura, dramaturgo, ele é muito foda. Mas não tenho que comprar a mentira dele e nem derrubá-lo. Não sou dessas pessoas que acreditam que tenho que acabar com o legado, desmascarar Ariano Suassuna. 

Não, eu não tenho que desmascarar Ariano Suassuna! Não tenho que desmascarar Karol Conká, minha gente! Não tenho problemas com Karol Conká! Se Karol Conká foi escrota a vida dela toda, e vai continuar sendo escrota, para mim o problema é dela. Agora eu tenho que saber que, num momento das nossas vidas, enquanto eu assistia ao Big Brother e ela me dava um Big Brother, naquele momento tivemos choques de interesses. E depois a vida continua. Entendesse? Tenho choques de interesse com Ariano Suassuna quando ele quer, por exemplo, fundar um ideal de cultura pernambucana, o armorial. Não compro essa ideia, não quero que ele dite a minha forma de fazer, mas acho massa que ele criou o conto de fadas dele, tá ligado? Não quero derrubar as coisas dele, deixa ele lá, como não quero derrubar Gilberto Freyre.

Tenho que olhar para Gilberto Freyre e saber que ele criou uma grande falácia, naquela ideia de mistura pacífica de raça. Mistura pacífica de raça? O caralho! Ninguém estava estuprando ele. É nesse lugar. Aí tenho que falar com ele e dizer: “ei, brother, na boa, tu escreveu Casa-grande & senzala, olha, parabéns por essa ficção”. Vou falar com ele desse lugar. 

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

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Contra a colonização da cultura, dos corpos e desejos
Entrevista || Jéssica Teixeira*

Jéssica Teixeira, atriz, diretora, dramaturga e produtora nascida em Fortaleza. Foto: Autoretrato

Foi no Sesc Pompeia, na zona Oeste de São Paulo, numa noite de sexta-feira fria pré-pandemia-apocalipse, que nos deparamos com o trabalho de Jéssica Teixeira. Era um espetáculo impactante por várias razões, mas principalmente pela qualidade dramatúrgica e pelo talento daquela atriz. A deficiência física de Jéssica estava imbricada às desestabilizações provocadas pelo texto do solo E.L.A, que confrontava os padrões de normalidade atribuídos aos corpos e a construção do que chamamos de beleza e senso estético por vários vieses, inclusive o histórico.

Atriz, diretora, dramaturga e produtora, a cearense de 28 anos, nascida em Fortaleza, não consegue passar despercebida. “Nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante, e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando”. Desde que começou a fazer teatro, ainda na infância, a menina de muita energia acumulada – que além das lições de teatro tinha aulas de dança, violão, teclado, futebol e vôlei – notava como o público reagia ao seu corpo. “Ele”, diz ela, referindo-se ao corpo na terceira pessoa, “sempre chega primeiro”.

Em Lugar de falta, seu trabalho mais recente, apresentado no Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste (s): (contra)narrativas poéticas, a atriz diz sobre as ausências e os vazios que vamos tentando preencher, sem ao menos parar para compreender quais coisas estamos tentando substituir, encaixar nos buracos, soterrando os sentidos. No vídeo, Jéssica evidencia como as pessoas reagem ao corpo que destoa do que seria um padrão como um fardo a ser carregado, até um castigo por algum malfeito em vidas passadas.

Essa entrevista foi respondida entre Porto Alegre e São Paulo, nos intervalos de gravação de dois filmes: Possa Poder, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, e outro ainda sem nome definido, que tem roteiro de Jéssica, direção de Estela Lapponi e “um monte de artistas deficientes no elenco e na ficha técnica”. Na nossa conversa, Jéssica relembra a infância em Fortaleza, fala sobre o movimento teatral da cidade, a decisão de enveredar por produções solo no teatro, a descolonização de corpos e desejos, os artistas com deficiência e as lutas de futuro.

* Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA // JÉSSICA TEIXEIRA

Você começou nas artes cênicas ainda criança. O que a arte fez por sua infância e adolescência? Como se deu a escolha pelo teatro, já mais adulta?

Durante a minha infância e adolescência diziam que eu era hiperativa, mas eu e minha família nunca ligamos muito. O fato é que chegava na escola às 7h e, algumas vezes, saía às 19h, e outras, saía às 22h. Fazia dança, teatro, violão, teclado, futebol, vôlei. Eu tinha muita energia e precisava investir essa energia em algo para ter uma noite tranquila de sono. Sempre levei mais a sério o teatro e a dança. Buscava leituras, referências. Aos 12, parei de fazer aulas de jazz, balé e dança de rua, pois tive um momento muito difícil de dores fortes em uma costela. Parei de fazer aulas de dança, mas nunca deixei de dançar. Fui percebendo que a dança poderia ser dança no meu próprio ritmo e tempo. Comecei a sentir que a dança poderia também ser muito prazerosa, porque por um tempo, atrelava a dança a algo doloroso. Já no teatro, não parei de fazer aulas e, perto de fazer 15 anos, já sabia que encararia o teatro como profissão.

Na escola, eu já conseguia perceber as aberturas profissionais que o teatro tinha para além da cena. O teatro para mim não era só o fato de eu ser atriz. Tinha muito estudo de humanidade envolvida. Além disso, eu gostava de estar em vários lugares da cadeia produtiva do teatro: assistia a montagem de luz; ficava ao lado do operador de luz e, às vezes, até operava a luz; operava o som; sentava ao lado do diretor e prestava atenção nas provocações, sugestões; corria atrás das demandas de produção; fazia contrarregragem. Fazia de tudo um pouco, mas, principalmente, assistia muito teatro. Eu era uma espectadora assídua. Quando saía da escola mais cedo, era pra ir ao teatro. Eu brincava que a minha missa/culto do domingo era no teatro. Acho que, por isso, encarei cedo como profissão. Aos 16, prestei vestibular para a primeira turma de Licenciatura em Teatro que tinha aberto na Universidade Federal do Ceará e passei! E, assim que entrei no curso, era aquela aluna que já fazia todas as cadeiras possíveis, porque queria terminar logo essa etapa universitária. Então, aos 20, estava graduada em Teatro e trabalhando com vários grupos daqui de Fortaleza.

É muito conflituoso o olhar do poder público,
da gestão e até da própria sociedade civil
para encarar o artista como uma profissão.

Essa precariedade com a profissão artista
não acontece só aqui em Fortaleza.

 A cena artística cresceu, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Como é o contexto de produção do teatro em Fortaleza? Há incentivos? Grupos e artistas que te inspiram?

O contexto de produção em Fortaleza é muito complexo. Acho que não teve um só ano durante esse meu percurso que eu não pensei em desistir de ser artista ou de sair daqui. É muito conflituoso o olhar do poder público, da gestão e até da própria sociedade civil para encarar o artista como uma profissão. A verdade é que esse conflito, ou melhor, essa precariedade com a profissão artista não acontece só aqui em Fortaleza. Mas aqui há uma realidade de valores de cachês, orçamentos, fomentos, tempos de execução ainda muito precária. Temos muitos equipamentos culturais em Fortaleza e no Ceará, isso não tenho do que reclamar. Mas o que falta é manutenção, política pública continuada e gente trabalhando para que as coisas aconteçam como um dia eu vi acontecerem. A cena artística cresceu a passos largos, principalmente com os cursos técnicos e com a chegada dos cursos de teatro, dança, cinema, entre outros nas universidades, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Aqui tenho grandes artistas e amigos que me inspiram muito. Aos 14, numa dessas saídas da escola para o teatro, assisti a Silvero Pereira em cena, e, desde então, tem sido uma chama acesa dentro de mim, tanto pela qualidade artística que ele sempre buscou e fez acontecer, como também pela firmeza de postura para fazer o que ele acredita da forma mais política e sensível possível. Yuri Yamamoto, Ricardo Guilherme, Maria Vitória, Graça Freitas também fazem parte desses artistas que eu pude conhecer quando era adolescente e carrego sempre comigo.

Como foi a sua trajetória de trabalhos em grupos e quando você percebeu que era a hora de enveredar por uma carreira solo?

A minha trajetória em grupos e coletivos foi intensa e de muito aprendizado. Mas chegou um momento em que eu não me sentia segura quanto aos posicionamentos, pois muita coisa era decidida coletivamente e eu era só uma no meio de tantos. Até que precisei abrir mão desses grupos e coletivos, pois o que acredito precisava ser dito e mostrado com urgência, de uma forma estética e política, e eu percebia que não cabiam essas minhas urgências quando o assunto era “coletivo” ou quando o assunto era “a maioria vota e decide”. As pessoas estranhas como eu são solitárias até nessas horas democráticas de votações e consensos, por incrível que pareça. Então, para me sentir mais segura com os meus posicionamentos e para que eles escapassem do meu próprio corpo, sendo esse meu corpo a minha principal matéria prima de trabalho, decidi, em 2018, quando tinha acabado de finalizar o meu mestrado em Artes na UFC, que iniciaria o processo criativo do meu primeiro solo, E.L.A., que estreou em fevereiro de 2019, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza.

Você diz que seu corpo é um elemento que sempre chega primeiro na relação com as outras pessoas. Como lidar com isso no palco?

Já tracei várias dramaturgias para isso. Depende do que a obra pede. No caso do espetáculo E.L.A. escolhi me apresentar, no início, com o teatro todo escuro, aparecendo apenas a minha voz rouca e o meu sotaque cearense. Antes, eu sentia que quando entrava em cena, eu precisava de um tempo em silêncio antes de falar qualquer coisa, pois o meu corpo já falava demais com os espectadores. Então esperava e sentia com calma o tempo de falar para que em algum momento ele, o meu corpo, e a minha fala, dialogassem mais “harmonicamente”. Para isso, percebi também que precisava trabalhar muito a voz, então estudei e treinei as técnicas vocais mais diversas possíveis, porque é muito curioso como o meu corpo fala. É muito forte. E eu digo isso porque dá pra ver nas expressões faciais e corporais de quem assiste. E a minha voz não poderia ficar aquém do meu corpo, né? Então trabalhei muito esse corpo/voz de forma “unida” e “harmônica”, mas também “isolada” e “deslocada”.

CONFIRA A CRÍTICA DE IVANA MOURA A PARTIR DO ESPETÁCULO E.L.A

 Desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

Como descolonizar os nossos corpos e desejos?

Sendo curioso, curiosa, parando de consumir o óbvio, o formatado, o mesmo de sempre. Olhando para si, cuidando de si. A cada dia que passa o nosso corpo muda, se transforma, envelhece. A gente possui um infinito dentro da gente e eu me pergunto o motivo pelo qual muitas pessoas ainda insistem nas mesmas coisas, se nós estamos em constante mudança. Precisamos acompanhar nossas mudanças para que os nossos corpos sejam uma ótima companhia para a gente. E possam desejar muito além de uma forma, possam ser desejados, se permitam ser desejados. Acho que o desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como também para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir.

Qual a importância da escrita dramatúrgica no seu trabalho? Que lugar isso ocupa?

Falar de dramaturgia é falar de tudo. Corpo, movimento, elementos de cena, objetos, luz, cores, texto. Acho um dos lugares mais interessantes hoje para criar em teatro, cinema, dança, artes visuais. Não consigo pensar em uma criação sem falar de dramaturgia, porque ela é uma teia que vai conectando tudo. Pode ser um universo inteiro num corpo pintado num pequeno quadro emoldurado ou um mundo dentro de uma caixa preta com vários corpos amontoados – ou com ninguém. As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir, e isso ganha uma infinidade de possibilidades de criação a partir das nossas escolhas artísticas. Então, prezo muito pelas diversas dramaturgias e pela escrita dramatúrgica. Tenho gostado, cada vez mais, de escrever meus próprios textos, pois sei que muitos dos textos que eu atuei durante a minha vida, consegui compreender a região/território em que o texto se passava e que o artista habitava, seus lugares de fala, dos personagens e do artista, todo o contexto que envolvia a obra. Mas, hoje, sinto que preciso, de vez em quando, escrever a partir do meu contexto e do meu ponto de vista, que ainda passa por certos apagamentos e invisibilidades, infelizmente.

Acho que ser um corpo com deficiência neste país
ainda é pesado, infelizmente…
porque não dá para passar despercebida nunca.

Quais lutas fazem Jéssica se engajar e desejar futuros melhores?

A primeira luta é a de poder ter uma vida simples, banal e corriqueira, como qualquer outra, sem ser tratada de forma especial, com cuidados extremos. Viver uma vida sem tanto carregamento dos outros sobre mim. Acho que ser um corpo com deficiência neste país ainda é pesado, infelizmente. Hoje mesmo estava conversando com uma amiga e falei pra ela sobre um meme que vi que dizia assim: “é tanta luta, que eu já tô ficando agressiva”. Falei rindo, num tom de brincadeira, mas acaba sendo sério, porque não dá para passar despercebida. Pelo menos nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando. Desaprendem a falar e encontram problema onde não tem.

Outra luta que acredito é tirar os mistérios, os tabus, o eufemismo, quando a gente for falar sobre essas pautas afirmativas, porque eu gostaria profundamente que essas palavras fossem normalizadas nos vocabulários das pessoas: capacitismo, luta anticapacitista, pessoa com deficiência, pessoa de pele preta, negro, pessoa gorda, pessoa cega, surda, travesti, trans, indígena. Às vezes, as pessoas ainda sentem receio de falar sobre ou de errar. Mas como a gente avança com medo ou criando mistérios e tabus sobre esses corpos? Acredito que existem muitas coisas que a gente só aprende errando, infelizmente, mas se a gente não falar e discutir sobre tudo isso, não caminhamos para esse futuro melhor, mais digno e menos cansativo para todes.

 

A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+.

Falamos muito em acessibilidade nas artes, mas nos parece que ainda temos pouquíssimos artistas com deficiência nos palcos. O que você acha e como podemos mudar as coisas?

Acredito que não é que temos poucos artistas com deficiência nos palcos deste país, acho até que temos muitos. O problema está em nós mesmos, que não nos damos conta desses artistas, que estão espalhados por aí, construindo seus próprios espaços de atuação. O nosso olhar ainda está muito voltado para uma produção artístico-cultural quase intocável pelo seu “selo de qualidade”: padrão, clean, normativo, linear, fino, classe A, cheio de clarezas e esclarecimentos. A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+, mas por que insistimos em reforçar e acompanhar essa cultura brasileira segregacionista e seletiva?

Neste último ano, pude me aproximar de 40 artistas com deficiência que estão atuando há muitos anos no setor cultural. Com alguns desses artistas, criei profundas afinidades e, inclusive, conseguimos trabalhar juntos, ainda que virtualmente. E foi a partir desses encontros que percebi o quanto os nossos corpos produzem linguagem, discursos, estéticas, que, por muito tempo, não eram reconhecidas pelas pessoas sem deficiência como pesquisa e produção artístico cultural. A nossa pesquisa, criação e produção era vista apenas como cota ou como critério de pontuação em editais.

A mudança da minha compreensão aconteceu quando conversávamos sobre os signos que escolhíamos para colocar nas nossas obras e sobre as nossas construções de discursos, e percebemos como esses signos e esses discursos se encontravam e se repetiam, ainda que de formas diferentes. Afinal, somos corpos estranhos, mas muito singulares entre o nosso “meio em comum”. Digo meio em comum, porque ainda não consigo dizer se somos uma comunidade exatamente, por tantas especificidades e singularidades.

Daí acredito que a mudança só vai acontecer quando houver uma virada na compreensão dos fazedores, críticos, curadores e consumidores das artes. Nós somos cultura viva também. Uma latente e estranha forma de sobreviver, de se comunicar, de se manifestar, de se vestir, de escrever e de performar neste mundo.

Em Lugar de falta, você fala muito sobre as coisas que nos faltam e que nós não paramos para percebê-las. O que nos falta como artistas de teatro no Nordeste do Brasil?

A falta é território presente em nossos corpos e nas nossas regiões. O que falta num, não falta noutro, porque o que falta neste outro, já é outra coisa. Lugar de falta é lugar de contradição também, porque é demais. Falta muito e, às vezes, sinto que a gente tenta esconder ou desviar atenção dessas faltas. Parece que é preciso que estejamos sempre muito preenchidos, cheios de respostas, muito completos, inteiros e preparados. Mas a gente sabe que não é assim. Então, acho que a maior falta nossa é a consciência dessas faltas.

No Lugar de Falta, quando vou falar sobre as pessoas “inteiras”, falo exatamente das pessoas que acham que são inteiras, que acham que têm tudo. Porque pessoas que têm tudo simplesmente nem existem. A hegemonia do belo, do padrão, do saudável é uma grande utopia, porque nunca será alcançada tal e qual idealizamos. Mas, infelizmente, ainda existem bilhões de pessoas buscando fazer parte dessa hegemonia do sucesso e precisando de corpos notoriamente não hegemônicos para depositar as suas próprias faltas, que se esforçam para esconder todos os dias. 

O que realmente nos falta é olhar para nós mesmos. Acho que essa é a principal falta. Conseguirmos nos escutar e nos percebermos de diversas formas. Conseguir acolher, cuidar e alimentar este corpo cheio de sensações que carregamos todos os dias. Com certeza, isso vai fazer toda a diferença na nossa relação conosco, com o outro, com o mundo e também vai refletir diretamente na nossa criação e produção artístico cultural.

 

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