Uma conversa sobre Nordeste, teatro de grupo e política
Entrevista || Magiluth e No Barraco da Constância Tem!*

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Veja só. Foto: reprodução de tela

Piragem etnográfica do complexo, espetáculo do grupo No Barraco da Constância Tem!. Foto Edouard Fraipont

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. Foto: reprodução de tela

Não sabemos dizer ao certo se acontece noutras regiões do país, mas no Nordeste, o telejornalismo tem uma certa fixação por buracos. O desejo de estabelecer uma relação com as populações geralmente mais periféricas das cidades faz com que problemas que afetam o cotidiano das pessoas, como os buracos das ruas, ocupem bastante espaço na programação diária das emissoras. A partir desse mote e das metáforas infindáveis que pode desencadear, o grupo cearense No Barraco da Constância Tem! criou O desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, experimento audiovisual apresentado no Cena Agora, do Itaú Cultural, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas.

Sabe o cubo mágico? A edição de texto e vídeo desse trabalho é como essa quebra-cabeças com assuntos que aparentemente não teriam ligação, mas fazem todo o sentido. O trabalho resgata a história de Manuel Olímpio Meira, um pescador que lidera um grupo numa viagem de jangada de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A empreitada é bem-sucedida e vira até matéria na revista Time, despertando o interesse de Orson Welles, que vem ao Brasil para filmar a história dos pescadores. Mas, durante as filmagens, há um acidente e Manuel Jacaré desaparece no mar.

O experimento imbrica o sebastianismo – foi o rei D. Sebastião quem desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 –, à história do pescador, à percepção que os nordestinos têm de suas cidades (há um trecho ótimo com supostas entrevistas de crianças europeias, mas usando o áudio de um vídeo com crianças nordestinas, falando sobre a relação delas com o Crato e se elas gostariam de permanecer na cidade quando crescessem), e até ao turismo ufológico no Ceará.

Como nós, Yolandas, adoramos proporcionar encontros e intercâmbios, enviamos o link desse vídeo para algumas pessoas, inclusive para Giordano Castro, do Magiluth. E, como a gente esperava, o grupo pirou com a ideia do No Barraco… para discutir o Nordeste. Resolvemos então promover esta conversa entre esses dois coletivos que nunca se encontraram pessoalmente, mas poderiam dar match.

O trabalho que o Magiluth apresentou no mesmo evento, Cena Agora, está disponível no Instagram e no YouTube do grupo. Veja só… é uma leitura comentada da matéria publicada na Veja São Paulo, que incitou a discussão sobre Nordeste pelo Itaú Cultural, e anunciava em sua manchete: São Paulo – Capital do Nordeste. Foi a primeira vez que os atores do Magiluth leram a publicação.

O grupo No Barraco da Constância Tem! é formado por Ana Carla de Souza, Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte. Damasceno, Honório, Renan e Sarah participaram da entrevista “coletiva”. Já do Magiluth, que junta Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner, participaram Giordano e Erivaldo. Foram quase três horas de conversa e nem tinha uma cerveja gelada na mediação, o que certamente vai acontecer no próximo encontro, seja na Mamede Simões, no Recife, ou na Instituto do Ceará, em Fortaleza.

*Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || MAGILUTH E NO BARRACO DA CONSTÂNCIA TEM!

Pollyanna Diniz: Como era o cenário de teatro no Recife e em Fortaleza quando vocês decidiram criar o Magiluth e o No Barraco da Constância Tem!, respectivamente? Por que se juntar em grupo?

Giordano Castro: Quando a gente surge, era muita coisa acontecendo aqui em Recife, dinheiro jorrando, o estado investindo. Mentira! Mas a gente tinha um cenário teatral local bem melhor do que nos últimos seis anos. O Magiluth surge em 2004. Entramos na universidade e quatro pessoas que faziam parte daquele grupo tinham mais interesse na prática do que na licenciatura. Começamos a entender que estar em grupo era a saída para furar uma bolha da cidade. É natural, vão se formando blocos e agrupamentos e o pessoal mais novo sempre tem um pouco de dificuldade. Depois que começamos a fazer, buscamos exemplos e inspirações noutros coletivos, grupos, alguns até contemporâneos. Mas estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas. 

Estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas.
Giordano Castro – Magiluth

Honório Félix: O No barraco da Constância tem! surgiu em 2012. Estou desde o começo. Temos agora outra configuração de grupo, mas lá no começo éramos eu, Tayana Tavares e Ariel Volkova. Eles não saíram, mas estamos passando por um momento de transição, de entendimento de como está funcionando esse coletivo. O Barraco surgiu porque eu, Tayana e Ariel trabalhávamos juntos, mas tínhamos uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente não via na cidade. E não é porque a gente não admirava as pessoas, mas olhávamos ao redor e tínhamos vontade de fazer uma coisa que não estava ali. Tínhamos vontade de pautar e de estabelecer a nossa própria poética, mesmo não sabendo muito bem o que era isso. 

Trabalhamos muito entre o teatro e a dança, mas também partilhamos outras zonas de interesse. Esse grupo movimenta uma série de pessoas em projetos e criações diversas. Temos essa característica de ter um núcleo, digamos assim, mas estamos sempre nos juntando com alguém, trabalhando com uma série de pessoas que estão ao nosso redor.

O No Barraco surge de uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente
não via em Fortaleza. Tínhamos vontade de pautar
e de estabelecer a nossa própria poética.
Honório Félix – 
No Barraco da Constância tem!

Pollyanna: Fiquei curiosa com o nome do grupo. Qual a história?

Honório: A constância tem a ver com a qualidade de ser constante, de construir essa constância na criação, na elaboração, no exercício poético. E o barraco tem a ver com esse lugar que é acochado, mas que cabe, e tem uma relação de “barraquear”, de bater o pé, de chutar a porta, de barraco, de confusão, de contenda. Aí o Barraco é um pouco esse pandemônio, cabe muita coisa, muita gente, e se faz na elaboração constante.

Renan Capivara: Faço parte de uma leva mais recente que ingressou no Barraco, junto com Felipe e Sara em 2018. Entramos por ocasião do projeto Delirantes. Era de montagem, mas também se desdobrou e continuamos produzindo e criando mais coisas. E é interessante que essa relação não começou em 2018, porque eu conhecia Honório há muito tempo e conhecia William há um tempo. Conheci Honório no curso técnico em Dança em 2013 e acredito que trabalhar com ele agora vem um pouco dessa relação, que vem de um espaço formativo, e isso é muito importante de sublinhar.

Felipe Damasceno: Sou artista da dança, minha formação básica é da dança, mas como o Barraco trabalha com teatro, dança, e outras linguagens, não sei se faz mais sentido dizer que sou da Dança. Já nem sei mais de onde é que eu sou! Minha formação não passa pela universidade, pela estrutura acadêmica, formal, institucional. A minha formação foi sempre embasada nessa coisa de coletivo. Naquela época, ainda não existia faculdade de dança, então a formação da maioria das pessoas era muito dentro dessa lógica dos agrupamentos. Você está neste grupo tal e esse grupo, coletivamente, descobre como é que forma as pessoas, que caminhos tem que seguir. A coisa era meio entrelaçada, formação e criação.

Sarah Nastroyanni: Tenho crush no Barraco desde 2016, quando assisti Marlene pela primeira vez. Aí a gente passou um tempinho se paquerando, se queixando, até eu me tornar barraqueira em 2018 junto com Damas e Renan. E quando a gente se juntou, Renan falou um pouco de Delirantes, um dos projetos que a gente já se jogou, mas quando a gente se juntou mesmo, eu e Honório, foi para enviar cartas para artistas e espaços de exposição na cidade, apelando a autoria do mictório (Fonte), aquela obra que é atribuída formalmente ao Marcel Duchamp, ao fantasma da baronesa falida Elsa von Freytag-Loringhoven, que é a verdadeira autora . E começou com essa ação da gente escrever anonimamente cartas, mas se desdobrou. É um babado que está rolando até hoje, das cartas passou para exposição, vídeos em artes visuais, em diversas linguagens. E é um prazer conhecer vocês pessoalmente, do jeito que dá.

Pollyanna: Se vocês pudessem escolher um trabalho marcante, uma virada de chave na trajetória do grupo, qual seria?

Erivaldo Oliveira: Para mim, a virada de chave, muito simbólica, foi em Aquilo que o meu olhar guardou para você: a possibilidade de a gente trabalhar a partir do teatro, a partir do grupo. O espetáculo surgiu em 2011, num projeto também do Itaú, chamado Rumos Teatro, a primeira edição. E esse foi o primeiro edital que a gente recebeu uma grana, tinha a possibilidade de ter uma sede, um espaço onde a gente pudesse trabalhar. O grupo se modificou muito a partir daquele momento. Largamos os outros trabalhos e voltamos a entender que era dali que a gente podia se unir, ter forças, no sentido de sobrevivência, no sentido de viver daquilo que a gente veio ao mundo para fazer. Tem essa chave de estruturação.

 

Aquilo que o meu olhar guardou para você. Foto: Blenda Souto Maior

Um torto, solo do Magiluth. Foto: Pollyanna Diniz

Viúva, porém honesta. Foto: Victor Jucá

Giordano: Vou subverter, Polly, vou dizer três trabalhos que marcam coisas bem diferentes e são bem importantes. O primeiro é Um torto, um solo do grupo, que dá uma guinada nessa busca poética que Honório falou, que eles não sabiam ainda quando surgiram, a gente também, a mesma coisa, me vejo muito nesse lugar. Mas acho que Um torto, por mais verde que seja, faz uma quebra nos trabalhos que a gente tinha feito. Depois dessa quebra, seguimos essa avenida que Um torto abriu de pesquisa e pensamento. O segundo trabalho é Viúva, porém honesta. Deixando a modéstia um pouco de lado, foi um trabalho de sucesso, de lotar casas, de fazer com que a gente entrasse nos principais circuitos. Já frequentávamos circuitos de festivais, mas com Viúva, ele chuta a porta e ele é mais do que a gente, é o próprio trabalho que se impõe. E o trabalho depois desse, logo em seguida, é O ano em que sonhamos perigosamente, que é o trabalho dentro da nossa trajetória que, se a gente pensar em questões de receptividade, pode ser considerado um fracasso. Mas, para o grupo, para tudo que significa e o que aconteceu, acho que é um dos trabalhos mais fodas e interessantes que a gente fez, enquanto pesquisa de linguagem. É um trabalho que surge de um desses momentos que, como Honório falou, vocês estão vivendo uma renovação, acho que isso acontece muito e várias vezes dentro de um coletivo, a gente passou por várias guinadas. Uma guinada de amadurecimento se dá por causa desse trabalho, durante esse trabalho.

Honório: Vou falar dos mais antigos. Acho que o primeiro trabalho que é uma virada de chave é o Piragem etnográfica do complexo (2013), que construímos despretensiosamente e que nos levou  para vários lugares. É um trabalho curto, de meia-hora, mas viajamos, fizemos um bocado de canto, fazíamos desde pátio de universidade até apresentação em galeria, em festival de performance. Foi um trabalho que nos colocou noutra perspectiva: “acho que a gente pode realmente investir nisso, né? Vamos continuar trabalhando?”.

Tem uma coisa interessante que rolou no Cena Agora, nesse último trabalho, que foi O desaparecimento do Jacaré Alcácer-Quibir. Ivana perguntou como a gente pensa montagem e edição no nosso trabalho durante o debate. E logo depois Ariel, um dos membros do coletivo, me telefonou para falar sobre o Jacaré, que foi incrível, que o debate foi lindo, e que ele ficou com isso martelando na cabeça, a pergunta da Ivana. E ele falou assim: “Honório, na verdade a gente funciona muito por essa coisa de montagem, de edição”.

Nesse sentido, outra virada de chave foi quando entramos no Porto Iracema das Artes, uma escola daqui do Ceará voltada à formação e pesquisa, no laboratório de pesquisa teatral com o projeto Encenações contracenadas – entre o distanciar e o invadir. Tínhamos dois anos de grupo e fizemos esse projeto que era super ousado: convidar cinco encenadores de Fortaleza para que cada um dirigisse uma cena de cinco minutos com a gente e, a partir de como eles trabalhavam procedimentos de direção, a gente ia ver como fazia uma edição, misturar essas cinco poéticas e “roubar” a autoria deles. A gente vai roubar isso aqui, vai se apropriar, hackear os procedimentos e inventar uma maneira de colocar essas relações diferentes para contracenar. Deu um trabalho medonho, porque realmente dá trabalho editar esse material, cenas muito diferentes entre si. E gerou um trabalho chamado Nada como quando começou. O Piragem era um grande sucesso e era conhecido pelo deboche. O Nada não tinha essa característica de deboche, mas tinha uma característica de atrevimento e, em certo sentido, era um trabalho que levantou uma suspeita sobre as pessoas: o que é que eles estão fazendo? Era um grupo que não é nem de teatro, nem de dança, está fazendo uma coisa esquisita, misturando um monte de gente.

E outra virada de chave, que meio que resvala até onde estamos agora, são dois trabalhos: Marlene – dissecação do corpo do espetáculo (2016) e Rara (2017). Marlene é um espetáculo que foi um sucesso, mas demorou a engatar. É um trabalho longo, de duas horas, com várias mudanças de atmosfera, meio grandioso, quase operístico, e tem essa característica de decadência. Mas ali a gente foi entendendo e trabalhando esses procedimentos de montagem, de edição, de costura, de mistura, vou por ali, vou aqui, vou misturar essa história que tem a ver com teatro de Fortaleza com uma história de Hollywood dos anos 1950 e daqui eu vou lá para as divas do jazz. É um trabalho que vai falando um pouco sobre essa relação da decadência, da diva, da história do teatro e do porquê a gente perpetua esse imaginário. Acho que é uma virada de chave junto com Rara, nosso trabalho de ficção científica. Começamos a entender uma zona de interesse, não estabelecer uma metodologia de trabalho, mas realizar uma criação em camadas, misturar assuntos. A gente entendeu nesses dois trabalhos que isso era o que a gente fazia, foi uma tomada de consciência e de que seria interessante continuar investindo nisso.

Nada como quando começou. Foto de Luiz Alves

 

Marlene – Dissecação do corpo do espetáculo. Foto de Toni Benvenutti

Rara. Foto: Luiz Alves

Sarah: Vou falar de um trabalho marcante de um ponto de vista bem pessoal que, para mim, mobiliza muitas das características do nosso fazer, que é Auto de Danação, que foi feito no fim do ano passado, uma performance por WhatsApp, oriunda de uma residência. Quando falo que mobiliza certas características, é de constância, porque vem de uma pesquisa de 2018, que teve uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria, uma coisa muito recorrente nos trabalhos do Barraco. Quis mencionar esse porque vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. Sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui, fico curiosa para saber de vocês como é que foi esse processo de Tudo que coube numa VHS, e o que vocês estão pensando e produzindo agora, como foi se inventar a partir dessas plataformas?

Auto de Danação, uma performance por WhatsApp, mobiliza muitas das características do nosso fazer, uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria. Vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. É sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui. Sarah – No Barraco da Constância tem!

Giordano: Sarah, esse trabalho nasce do desespero e do medo da morte. No ano de 2019, pré-pandemia, estreamos Apenas o fim do mundo, um trabalho bem recebido pela crítica, entramos nas premiações nacionais. Mas o Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. Vendo que os festivais estavam fudidos, porque muitos já estavam convidando a gente, mas faziam: “ah, a gente está meio sem grana e tal”, decidimos investir num espaço nosso aqui no Recife. Se tudo desse errado, faríamos espetáculo de domingo a domingo e tiraríamos a grana da bilheteria, o que, obviamente, não seria essas coisas, mas iríamos nos mantendo, fazendo o nosso trabalho. Aí, Sarah, a gente se fudeu. Toda a grana que tínhamos em caixa, investimos neste Casarão. Dois meses do Casarão, pandemia. E todos os festivais que a gente ia participar, que iriam ajudar a repor a grana, foram caindo. Também faríamos uma estreia em cima do Morte e Vida Severina, que caiu. Em abril, Erivaldo nos disse que a gente tinha mais um mês e meio de grana. Fudeu, véi. Foi quando começamos a pensar em criar: será que a gente adapta algum trabalho? Fomos esbarrando em questões. A internet da gente é uma bosta, as câmeras são ruins, não vamos conseguir fazer um trabalho online. Aí conversei com os meninos e disse que estava com uma ideia. E nasceu Tudo que coube numa VHS. Não foi uma pesquisa, não era algo que a gente já estava pensando. As primeiras ideias eram: como fazer um trabalho que levasse em consideração a maneira como a gente tem se comunicado, através dessas plataformas, um trabalho que fosse seguro tecnologicamente, que eu não ficasse na mão de uma internet muito boa, que as pessoas que participassem também não precisassem disso, que fosse simples. E as outras coisas fomos entendendo. A gente entendeu, por exemplo, que o trabalho não poderia ser muito longo. E, resumindo, Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas.

Erivaldo: Esse trabalho veio no sentido de nos salvar financeiramente e também a nossa sanidade porque, como Gio falou, no começo era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. E o fato de ficar todo mundo dentro de casa, grana acabando, festival caindo, Casarão fechado, isso tudo dá um bug na cabeça. Parece que, pela primeira vez na história mundial, o teatro vai morrer. Morremos, vamos morrer. Era tudo muito assustador. Essa qualidade estética criada a partir da tecnologia, do digital, foi sendo aprimorada com o passar do tempo. Lembro que a gente teve uma reunião com Lubi (Luiz Fernando Marques), porque queríamos fazer Apenas o fim do mundo, porque ele é constituído de muitos monólogos, então pensamos: todo mundo está nas suas casas, vamos fazer os monólogos e criar uma atmosfera para isso. E aí na reunião, Lubi disse: “gente, teatro não existe, não vai existir durante esse tempo de pandemia, porque o teatro requer presença”. E aí esse negócio, de que o teatro de fato requer presença, foi o que mais nos pegou. Como é que, mesmo nessa distância da tela, conseguimos estabelecer presença, no momento real? E o experimento, no momento que foi criado, tinha um frescor, a possibilidade de estar em cena. Não podíamos ir ao teatro, mas as nossas casas viraram palco. Então você está no meio de uma pandemia, de segunda a segunda, fazendo peça? A gente fazia 10 apresentações por noite, de segunda a segunda. Você tem uma ocupação, não deixa de lado os problemas, mas dá uma ressignificada, para ter sanidade e continuar acreditando na nossa potência de criação, na nossa arte. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós, fazedores, que foi importantíssimo, para além da segurança financeira. Na pandemia, diante de tudo que está acontecendo, milhares de amigos tendo que fechar as portas, não tendo como sobreviver, a gente tem que agradecer a uma junção do cosmo que fez esse trabalho existir, a partir da necessidade, do desespero. 

O Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. 
Giordano Castro – Magiluth

 

Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas financeiramente e também a nossa sanidade.  No começo da pandemia, era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós. 
Erivaldo Oliveira – Magiluth

Ivana Moura: Vocês acham que o teatro ocupa o lugar que deveria nas cidades de vocês?

Felipe: Não, o teatro não se encontra numa posição de importância, não tem um protagonismo. O que fazer para que isso mude? É acabar com o capitalismo! A louca! É pensar essas estruturas de difusão, a formação e a circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. Dentro do bojo cênicas, tem uma concentração geográfica em Fortaleza na Praia de Iracema, Centro, Benfica, Aldeota, Meireles, que tem um acesso direto, geográfico, a espaços culturais, enquanto o resto da cidade não tem tanta facilidade. Estamos falando, claro, de espaços institucionais, mas existe uma força muito grande de espaços alternativos, que fomentam uma produção própria. Mas, mesmo assim, tudo se concentra numa parte específica da cidade, que acho que não é muito diferente noutras cidades do Brasil. Estou me sentindo um político. Porque é tão óbvio, pelo menos para mim, acho que para todos que estão aqui, é uma pauta óbvia. 

O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. Direito cultural é manifestação, gente que, nos anos 1980, 1990, pautou que deveríamos ter uma escola de dança na cidade, para rivalizar com essa lógica privada de academias de dança, então precisava ter um curso de dança, um colégio de dança, que depois se transformou no curso técnico em dança. Acho que passa pela poética da arte, mas está mais atrelado à lógica política de como é que a classe artística de cada cidade e de um país se organiza para fazer essa reivindicação. E é sempre muito difícil, porque lidamos com o individualismo. Estamos sempre competindo, essa lógica de edital já incita que só um ou dois vão ganhar. Tem um ponto que sai da poética, da criação, e passa por um viés político de organização da classe.

O teatro não se encontra numa posição de importância. O que fazer para que isso mude? É pensar essas estruturas de difusão, formação e circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. 
Felipe – No Barraco da Constância tem!

 

O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Por que o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife.
Giordano Castro – Magiluth

Giordano: Mas eu acho, Felipe, que é político mesmo. O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Porque o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife. Kleber toma uma água maravilhosa e o filme dele é premiado. Obviamente tem a parte artística, do pensamento, do fazer, mas esse pensamento e esse artista só acontecem quando tem investimento. Se não, ele vai ficar pensando dentro da casa dele, ele vai ser genial dentro da casa dele. Tivemos momentos em que o teatro aqui teve uma visibilidade e ocupou um lugar forte no cenário nacional. Na época da gestão de Peixe (João Roberto Peixe, secretário de Cultura da cidade do Recife de 2001 a 2008), por exemplo, tivemos festivais de teatro que recebiam o que tinha de mais interessante, daqui e de fora. Hoje temos um momento muito difícil, porque desde que começamos a viver dentro do clã Campos, nessa política do PSB daqui, que se destruiu tudo que foi construído durante um tempo de gestão e a cultura virou evento, não virou uma política pública de manutenção, mas sim evento. E o PSB trabalha com medalhões dentro das secretarias, coloca um Ariano Suassuna para ser o secretário de Cultura, coloca uma Leda Alves para ser secretária. São pessoas fofas, maravilhosas, que têm uma história. Colocam essas pessoas como bode expiatório. E aí você chega no Recife, no aeroporto, e a primeira coisa que você vê é um caboclo de lança e um passista, fotos maravilhosas, e essa galera está fudida, porque essa galera só é boa para fazer foto, como imagem, mas não tem manutenção para essas figuras. 

Honório: Em Fortaleza, temos um investimento forte em formação, técnica, básica, e também de graduação, em diversos espaços e linguagens. E, quando se investe em formação, existe muita criação. Mas os espaços de escoamento dessa produção estão sucateados e sem investimentos. Houve um movimento, infelizmente veio a pandemia, de juntar os fóruns de várias linguagens através do Fórum de Linguagens e a gente produziu uma carta que falava de todos os equipamentos do Ceará, alguns até em desuso. Por exemplo, o Teatro Carlos Câmara, tem toda uma equipe lá, e não acontece nada, porque eles criam um mecanismo, o edital de ocupação. Vai lá uma produtora, se inscreve, passa dois anos tentando criar uma programação, acaba essa ocupação, a produtora sai, abre um novo edital, passa um ano o negócio fechado até que saia o resultado de uma nova ocupação. 

E, como o Felipe falou, essa coisa da centralização geográfica dificulta a criação do hábito de ir ao teatro. Existem outros problemas, como a mobilidade urbana e a cultura do medo, que vem de um movimento chamado “Fortaleza apavorada”, que quer reivindicar o lugar da segurança, uma coisa esquisita, a segurança ligada a uma ideia policialesca e de que a cidade é perigosa. Das pessoas criarem um medo e uma insegurança de estarem nas ruas, de quererem ser vigiadas, isso é muito forte. Foi também isso que nos mobilizou a criar essa pesquisa Delirantes, que começou em 2018 e rendeu o espetáculo Delirantes e malsãs

Queríamos criar um espetáculo nas praças públicas, a partir da epidemia de dança de Estrasburgo. Em junho de 1518, uma mulher começou a dançar no meio da rua, num vilarejo, e daqui a pouco todo mundo estava dançando, passaram dois meses dançando, e a maioria dessas pessoas morreram de tanto dançar. Vieram padres para exorcizar aquelas pessoas e também começaram a dançar, bandas de música, mas a galera se “contaminava” e dançava. Não existe uma comprovação do que causou isso, o porquê aconteceu, mas tinha a ver com aquele ambiente de final da Idade Média começo da Idade Moderna, totalitarismo e fortalecimento das monarquias absolutistas. Nos 500 anos desse fato, resolvemos fazer essa pesquisa. Iríamos estrear em março de 2020, com essa ideia de contaminação, de mobilizar uma multidão nas praças e aí acabou que mobilizou uma pandemia! 

 Giordano: Tá vendo? Foram vocês que ficaram pedindo epidemia!

 Felipe: Profético! Invocou esse troço, só pode!

 Erivaldo: E foi forte, né? Porque vocês pediram só para Fortaleza, mas veio para o mundo todo!

Delirantes e malsãs. Foto Toni Benvenutti

Honório: Quando a situação melhorou, cautelosamente começamos a ensaiar nas praças, entendendo o distanciamento social. No começo foi apavorante, entender como se juntar de novo, inclusive para adaptar o trabalho e recriá-lo do ponto de vista do distanciamento. Estreamos em outubro de 2020, fizemos uma circulação por sete praças em Fortaleza e teve público assistindo com distanciamento, num momento mais brando da pandemia. O trabalho está aí, mas só Deus sabe quando vamos dançar de novo. Também é doido entender como é que fica o nosso repertório. Será que vamos fazer algum dia? É uma coisa que tem me atormentado. 

Sarah: Fiquei com vontade de comentar uma coisa. Não é exatamente uma pergunta, mas é porque tem um trabalho de vocês, do Magiluth, que parte da Primavera Árabe e estamos falando das questões políticas que permeiam os trabalhos. Fiquei me lembrando como esse nosso imaginário em relação à forma do político tem se transformado. Vamos considerar dez anos para cá – pego esse recorte porque foi mais ou menos o tempo em que comecei a militar no movimento estudantil secundarista. Em 2013, tivemos o grande babado de junho, Copa do Mundo, tudo mais, aí visualizamos o que era uma multidão na rua, coisa que há muitos anos não tínhamos, os tensionamentos em relação à esquerda, black bloc e tal, e ninguém nunca imaginou que no fim das contas ia dar em Bolsonaro, quanto mais em não ver mais multidão na rua de jeito nenhum! Então, quando vocês fazem essa pesquisa que parte da Primavera Árabe, que passa pelas Jornadas de junho e agora todas as questões concretas de produzir na pandemia, como é que a gente está pensando, e eu fico curiosa para ouvir, a forma do político no teatro?

Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse.
Giordano Castro – Magiluth

Sobre as Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas. Não percebo como um protofascismo.
Felipe –
No Barraco da Constância tem!

 

O ano em que sonhamos perigosamente. Foto: Renata Pires

Giordano: Acho tão foda essa pergunta. Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse. Isso é uma coisa muito maior, mas em movimentos menores, muita coisa aconteceu, como o Ocupe Estelita, que foi um movimento político organizado. Naturalmente, por tudo isso que estamos vivendo, os nossos trabalhos foram desembocando nessas questões, por sermos pessoas que tentam dialogar e falar coisas referentes ao nosso tempo e as coisas que nos atravessam. Então naturalmente os nossos trabalhos foram ficando mais políticos. Mas, individualmente, cada pessoa foi sendo atravessada por essa política e por isso de uma forma diferente. Hoje, confesso que já começo a pensar noutro lugar. Essa é uma discussão que tem passado muito por nós. No começo da criação do Morte e vida, ficamos nos questionando como fazer com que esse trabalho político também fosse poético. Como conseguir equilibrar? Houve momentos em que cheguei para os meninos dizendo: aqui, Karl Marx na mesa. É isso que a gente tem que falar. E hoje penso absolutamente diferente, por estar dialogando, criando em coletivo. A gente tá trabalhando e Erivaldo vem com os cortadores de cana dançando no meio do canavial. E a gente faz “uau!”. Isso é bonito e isso é político. E como equilibrar? 

Felipe: Como não sou acadêmica, posso fazer análises da realidade sem me obrigar a ter referências e nem notas de rodapé. Acho que, após 2010, eu sentia muito um movimento de evitar esse campo político, essa estrutura manifesto, evitar o Karl Marx na mesa. E aí depois teve aquela fase de trabalhos que falavam do fim do mundo. Veio a pandemia, o fim do mundo chegou e a gente vai fazer o quê? Sobrevive, né? E agora vejo umas coisas mais poéticas. Está dado: o mundo acabou e eu vou ser poética. 

Sobre essa coisa das Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas, de pessoas querendo menos R$ 0,20 nas passagens, direitos trabalhistas. Não percebo como um protofascismo. O fascismo está posto há muito tempo aqui.

Giordano: Concordo com você. O que eu estou querendo dizer é que aquelas marchas foram muito confusas porque existia uma pauta a princípio: começou por causa do aumento de passagem, mas não era somente isso. Depois virou tudo. E nesse “virar tudo” começamos a criar o campo que a direita precisava: o povo está na rua, não aguenta mais, temos que começar a derrubar essa pessoa daí, essa mulher, no caso. Aqueles movimentos tinham que ser muito mais do que simplesmente invadir as ruas, tinham que se tornar movimentos políticos, é o que Mujica falava muito. Eu achava de uma sabedoria muito grande quando ele dizia: “ok que as pessoas estão na rua. E quando é que isso vira política?” 

Pollyanna: Como foi pensar o Nordeste, essa ideia proposta pelo Itaú Cultural no projeto Cena Agora?

Felipe: Tive muita dificuldade porque encarei a proposta como tema: Nordeste. Aí imediatamente lembro da África. Ah, tem Moçambique, Egito, Madagascar, África do Sul, Marrocos, 54 países, mas a gente encara assim, Nordeste. Eita, vixe! Mas, durante o processo, senti que começamos a subverter essas percepções do que é esse Nordeste. Fomos desenvolvendo essas puxadas de tapete entre nós mesmos, como processo dramatúrgico, como poética. O trabalho é deboche, é político, alfineta, passa por todos esses campos.

Honório: Para mim foi o contrário. Fiquei empolgado com a “tag”: temos um lugar para brincar, isso aqui para jogar. Tem uma coisa muito forte em termos de montagem, que aconteceu no processo de edição do vídeo, mas também de construção de roteiro. Criamos um roteiro e depois fomos realocando as coisas, isso vem para cá, isso vai pra lá, porque faz mais sentido. Aí Felipe fala: “vamos pelo buraco”.

Giordano: Como vocês acharam tanto vídeo de buraco?

Felipe: Tem uma recorrência de matéria de buraco nesses jornais da Globo. Fortaleza tem tanta notícia e a pessoa vai falar de buraco? Aí joga no Youtube: “buraco” e vai de tag.

Giordano: Achei genial! Mas o meu primeiro bug nessa proposta foi o livro do Durval, A invenção do Nordeste, que li no processo de Morte e vida, que deixa claro que quem inventou o Nordeste foi o Nordeste. E agora? Que botei essa bomba na mão? Fico achando que é uma discussão tão grande, que volto lá para 2013, será que estamos atirando para o lugar certo? O que estamos discutindo? Volto para a primeira questão: por que tantos artistas saem do Recife? Porque Recife não dá condições para esses artistas. Aí é fudido isso. Nessa encruzilhada Nordeste é que eu me encontro. A gente não cuida da gente mesmo, quando você pensa que durante anos se manteve a política da seca, pelos políticos nordestinos, todos eles, o cearense, o pernambucano, o maranhense, porque isso gerava muita grana. Quando você começa a puxar uma árvore genealógica da política pernambucana e vê que o atual prefeito do Recife estava brigando com a prima dele, que também era candidata. O prefeito que antecedeu ele é casado com uma prima de Eduardo Campos e o governador estudou com a mulher de Eduardo Campos. Está na mão de uma pessoa só, de uma família só, um brigando com o outro, as mesmas pessoas! Em Natal estão brigando os Rosados contra os Alves, essas mesmas famílias, e eles se casam entre si. Será que não estou errando o foco dessa discussão?

Ivana: O capitalismo é implacável em qualquer esfera. As elites não se diferenciam muito. As elites do Nordeste não são mais boazinhas, mais gentis, menos perversas do que as elites de outros lugares, elas sentam na mesma mesa no banquete. 

Giordano: Sabe quando a gente tem aquele bolo de fio de telefone no chão e está querendo tirar só o fio vermelho, mas ele está enrolado em tanta outra coisa? Não tem como discutir o capitalismo sem discutir pautas identitárias. O preconceito contra nordestino está ligado a questões econômicas, não tem como falar de uma coisa e não falar de outra. Caralho! Quando me deram essa bomba, eu disse: “não sei o que fazer!”.

Honório: Tem várias pegadinhas, cascas de banana, você puxa uma coisa e vem outra junto. No nosso processo li um poema que tem muito a ver com o que você está falando. É de um escritor daqui, chamado Talles Azigon. Ele publicou no facebook em outubro de 2020: “Nordeste/os coronéis, os padres, os gringos/ o ridejaneirosampaulo/ não te mataram, nem matarão/ nordeste/ escritoras simpáticas amigas de ditadores,/ mulheres que montam cavalo e usam peixeira/ mulheres mais modernas que artistas plásticos do MoMA,/ machos que matam mulheres/ nordeste,/ terra de ferocidades imensas,/ terra de revoluções,/ braços e cu do Brasil/ nordeste,/ onde ladrões são políticos, literatos/ donos de grandes bibliotecas privadas,/ e bebem suco de manga com açúcar/ lavrado com sangue dos pretos/ o nordestino é antes de tudo um forte:/ forte dos reis  magos,/ forte schoonenborch,/ forte santo antonio,/ forte de santa cruz,/ e mesmo assim/ até hoje/ invadido por europeus/ nordeste,/ quantos países precisaremos erguer/ para conseguirmos ouvir nossa voz,/de nosso sotaque?”

Acho foda porque ele vai colocando as contradições do que é esse Nordeste, dos coronéis, dessas mulheres maravilhosas que andam de cavalo e usam peixeira, mas estão sendo assassinadas por esses machos. O grande escritor cearense, literato, está ligado aos movimentos contra abolicionistas, é tudo muito bizarro. A gente sabe que Gilberto Freyre foi importantíssimo para entender o regionalismo, para fortalecer a ideia de uma arte regional, e servir a quem?

Ivana: Durval Muniz, na abertura do Cena Agora, a partir dessa história que Giordano falou dos laços familiares, da influência e da importância de Gilberto Freyre, que apadrinhou Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. 

Giordano: A gente vai abrindo portas sem fim. Mas eu sou uma das pessoas do Magiluth bem contra Ariano Suassuna.

Ivana: Ai, ai, ai. Faço todas as críticas, mas uma coisa é a cabeça, outra o coração.

Giordano: Ivana, fui pra fazenda dele comer queijo com ele, conversar, ele era um velho engraçadíssimo, maravilhoso. Mas acho uma escrotidão o movimento armorial. Um movimento que nunca existiu, que ele criou tudo, como tinha que ser o desenho, como tinha que ser a dança. Foi ele quem criou, então é um movimento que não existiu. Acho isso um egocentrismo e é muito doido porque Pernambuco compra isso, compra o movimento armorial. Mas se eu falar isso aqui, eu tô fudido, mas é isso aí. Tá vendo? É difícil para mim fazer esse trabalho. 

Acho que a gente precisa ter pé no chão, olhar essas pessoas nos olhos. Não tenho que ficar endeusando Ariano Suassuna, tenho que saber quem é Ariano Suassuna. Ele pode criar o conto de fadas dele, fazer o que ele quiser – e eu acho que, enquanto criador de literatura, dramaturgo, ele é muito foda. Mas não tenho que comprar a mentira dele e nem derrubá-lo. Não sou dessas pessoas que acreditam que tenho que acabar com o legado, desmascarar Ariano Suassuna. 

Não, eu não tenho que desmascarar Ariano Suassuna! Não tenho que desmascarar Karol Conká, minha gente! Não tenho problemas com Karol Conká! Se Karol Conká foi escrota a vida dela toda, e vai continuar sendo escrota, para mim o problema é dela. Agora eu tenho que saber que, num momento das nossas vidas, enquanto eu assistia ao Big Brother e ela me dava um Big Brother, naquele momento tivemos choques de interesses. E depois a vida continua. Entendesse? Tenho choques de interesse com Ariano Suassuna quando ele quer, por exemplo, fundar um ideal de cultura pernambucana, o armorial. Não compro essa ideia, não quero que ele dite a minha forma de fazer, mas acho massa que ele criou o conto de fadas dele, tá ligado? Não quero derrubar as coisas dele, deixa ele lá, como não quero derrubar Gilberto Freyre.

Tenho que olhar para Gilberto Freyre e saber que ele criou uma grande falácia, naquela ideia de mistura pacífica de raça. Mistura pacífica de raça? O caralho! Ninguém estava estuprando ele. É nesse lugar. Aí tenho que falar com ele e dizer: “ei, brother, na boa, tu escreveu Casa-grande & senzala, olha, parabéns por essa ficção”. Vou falar com ele desse lugar. 

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