Arquivo da tag: Lugar de Falta

Contra a colonização da cultura, dos corpos e desejos
Entrevista || Jéssica Teixeira*

Jéssica Teixeira, atriz, diretora, dramaturga e produtora nascida em Fortaleza. Foto: Autoretrato

Foi no Sesc Pompeia, na zona Oeste de São Paulo, numa noite de sexta-feira fria pré-pandemia-apocalipse, que nos deparamos com o trabalho de Jéssica Teixeira. Era um espetáculo impactante por várias razões, mas principalmente pela qualidade dramatúrgica e pelo talento daquela atriz. A deficiência física de Jéssica estava imbricada às desestabilizações provocadas pelo texto do solo E.L.A, que confrontava os padrões de normalidade atribuídos aos corpos e a construção do que chamamos de beleza e senso estético por vários vieses, inclusive o histórico.

Atriz, diretora, dramaturga e produtora, a cearense de 28 anos, nascida em Fortaleza, não consegue passar despercebida. “Nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante, e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando”. Desde que começou a fazer teatro, ainda na infância, a menina de muita energia acumulada – que além das lições de teatro tinha aulas de dança, violão, teclado, futebol e vôlei – notava como o público reagia ao seu corpo. “Ele”, diz ela, referindo-se ao corpo na terceira pessoa, “sempre chega primeiro”.

Em Lugar de falta, seu trabalho mais recente, apresentado no Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste (s): (contra)narrativas poéticas, a atriz diz sobre as ausências e os vazios que vamos tentando preencher, sem ao menos parar para compreender quais coisas estamos tentando substituir, encaixar nos buracos, soterrando os sentidos. No vídeo, Jéssica evidencia como as pessoas reagem ao corpo que destoa do que seria um padrão como um fardo a ser carregado, até um castigo por algum malfeito em vidas passadas.

Essa entrevista foi respondida entre Porto Alegre e São Paulo, nos intervalos de gravação de dois filmes: Possa Poder, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, e outro ainda sem nome definido, que tem roteiro de Jéssica, direção de Estela Lapponi e “um monte de artistas deficientes no elenco e na ficha técnica”. Na nossa conversa, Jéssica relembra a infância em Fortaleza, fala sobre o movimento teatral da cidade, a decisão de enveredar por produções solo no teatro, a descolonização de corpos e desejos, os artistas com deficiência e as lutas de futuro.

* Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA // JÉSSICA TEIXEIRA

Você começou nas artes cênicas ainda criança. O que a arte fez por sua infância e adolescência? Como se deu a escolha pelo teatro, já mais adulta?

Durante a minha infância e adolescência diziam que eu era hiperativa, mas eu e minha família nunca ligamos muito. O fato é que chegava na escola às 7h e, algumas vezes, saía às 19h, e outras, saía às 22h. Fazia dança, teatro, violão, teclado, futebol, vôlei. Eu tinha muita energia e precisava investir essa energia em algo para ter uma noite tranquila de sono. Sempre levei mais a sério o teatro e a dança. Buscava leituras, referências. Aos 12, parei de fazer aulas de jazz, balé e dança de rua, pois tive um momento muito difícil de dores fortes em uma costela. Parei de fazer aulas de dança, mas nunca deixei de dançar. Fui percebendo que a dança poderia ser dança no meu próprio ritmo e tempo. Comecei a sentir que a dança poderia também ser muito prazerosa, porque por um tempo, atrelava a dança a algo doloroso. Já no teatro, não parei de fazer aulas e, perto de fazer 15 anos, já sabia que encararia o teatro como profissão.

Na escola, eu já conseguia perceber as aberturas profissionais que o teatro tinha para além da cena. O teatro para mim não era só o fato de eu ser atriz. Tinha muito estudo de humanidade envolvida. Além disso, eu gostava de estar em vários lugares da cadeia produtiva do teatro: assistia a montagem de luz; ficava ao lado do operador de luz e, às vezes, até operava a luz; operava o som; sentava ao lado do diretor e prestava atenção nas provocações, sugestões; corria atrás das demandas de produção; fazia contrarregragem. Fazia de tudo um pouco, mas, principalmente, assistia muito teatro. Eu era uma espectadora assídua. Quando saía da escola mais cedo, era pra ir ao teatro. Eu brincava que a minha missa/culto do domingo era no teatro. Acho que, por isso, encarei cedo como profissão. Aos 16, prestei vestibular para a primeira turma de Licenciatura em Teatro que tinha aberto na Universidade Federal do Ceará e passei! E, assim que entrei no curso, era aquela aluna que já fazia todas as cadeiras possíveis, porque queria terminar logo essa etapa universitária. Então, aos 20, estava graduada em Teatro e trabalhando com vários grupos daqui de Fortaleza.

É muito conflituoso o olhar do poder público,
da gestão e até da própria sociedade civil
para encarar o artista como uma profissão.

Essa precariedade com a profissão artista
não acontece só aqui em Fortaleza.

 A cena artística cresceu, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Como é o contexto de produção do teatro em Fortaleza? Há incentivos? Grupos e artistas que te inspiram?

O contexto de produção em Fortaleza é muito complexo. Acho que não teve um só ano durante esse meu percurso que eu não pensei em desistir de ser artista ou de sair daqui. É muito conflituoso o olhar do poder público, da gestão e até da própria sociedade civil para encarar o artista como uma profissão. A verdade é que esse conflito, ou melhor, essa precariedade com a profissão artista não acontece só aqui em Fortaleza. Mas aqui há uma realidade de valores de cachês, orçamentos, fomentos, tempos de execução ainda muito precária. Temos muitos equipamentos culturais em Fortaleza e no Ceará, isso não tenho do que reclamar. Mas o que falta é manutenção, política pública continuada e gente trabalhando para que as coisas aconteçam como um dia eu vi acontecerem. A cena artística cresceu a passos largos, principalmente com os cursos técnicos e com a chegada dos cursos de teatro, dança, cinema, entre outros nas universidades, mas os incentivos e o poder público não estão conseguindo acompanhar.

Aqui tenho grandes artistas e amigos que me inspiram muito. Aos 14, numa dessas saídas da escola para o teatro, assisti a Silvero Pereira em cena, e, desde então, tem sido uma chama acesa dentro de mim, tanto pela qualidade artística que ele sempre buscou e fez acontecer, como também pela firmeza de postura para fazer o que ele acredita da forma mais política e sensível possível. Yuri Yamamoto, Ricardo Guilherme, Maria Vitória, Graça Freitas também fazem parte desses artistas que eu pude conhecer quando era adolescente e carrego sempre comigo.

Como foi a sua trajetória de trabalhos em grupos e quando você percebeu que era a hora de enveredar por uma carreira solo?

A minha trajetória em grupos e coletivos foi intensa e de muito aprendizado. Mas chegou um momento em que eu não me sentia segura quanto aos posicionamentos, pois muita coisa era decidida coletivamente e eu era só uma no meio de tantos. Até que precisei abrir mão desses grupos e coletivos, pois o que acredito precisava ser dito e mostrado com urgência, de uma forma estética e política, e eu percebia que não cabiam essas minhas urgências quando o assunto era “coletivo” ou quando o assunto era “a maioria vota e decide”. As pessoas estranhas como eu são solitárias até nessas horas democráticas de votações e consensos, por incrível que pareça. Então, para me sentir mais segura com os meus posicionamentos e para que eles escapassem do meu próprio corpo, sendo esse meu corpo a minha principal matéria prima de trabalho, decidi, em 2018, quando tinha acabado de finalizar o meu mestrado em Artes na UFC, que iniciaria o processo criativo do meu primeiro solo, E.L.A., que estreou em fevereiro de 2019, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza.

Você diz que seu corpo é um elemento que sempre chega primeiro na relação com as outras pessoas. Como lidar com isso no palco?

Já tracei várias dramaturgias para isso. Depende do que a obra pede. No caso do espetáculo E.L.A. escolhi me apresentar, no início, com o teatro todo escuro, aparecendo apenas a minha voz rouca e o meu sotaque cearense. Antes, eu sentia que quando entrava em cena, eu precisava de um tempo em silêncio antes de falar qualquer coisa, pois o meu corpo já falava demais com os espectadores. Então esperava e sentia com calma o tempo de falar para que em algum momento ele, o meu corpo, e a minha fala, dialogassem mais “harmonicamente”. Para isso, percebi também que precisava trabalhar muito a voz, então estudei e treinei as técnicas vocais mais diversas possíveis, porque é muito curioso como o meu corpo fala. É muito forte. E eu digo isso porque dá pra ver nas expressões faciais e corporais de quem assiste. E a minha voz não poderia ficar aquém do meu corpo, né? Então trabalhei muito esse corpo/voz de forma “unida” e “harmônica”, mas também “isolada” e “deslocada”.

CONFIRA A CRÍTICA DE IVANA MOURA A PARTIR DO ESPETÁCULO E.L.A

 Desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

Como descolonizar os nossos corpos e desejos?

Sendo curioso, curiosa, parando de consumir o óbvio, o formatado, o mesmo de sempre. Olhando para si, cuidando de si. A cada dia que passa o nosso corpo muda, se transforma, envelhece. A gente possui um infinito dentro da gente e eu me pergunto o motivo pelo qual muitas pessoas ainda insistem nas mesmas coisas, se nós estamos em constante mudança. Precisamos acompanhar nossas mudanças para que os nossos corpos sejam uma ótima companhia para a gente. E possam desejar muito além de uma forma, possam ser desejados, se permitam ser desejados. Acho que o desejo é um dos pontos cruciais, tanto para uma boa relação consigo mesmo, como também para que um dia a gente consiga derrubar várias construções sociais capacitistas, racistas, transfóbicas, homofóbicas, gordofóbicas, misóginas.

As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir.

Qual a importância da escrita dramatúrgica no seu trabalho? Que lugar isso ocupa?

Falar de dramaturgia é falar de tudo. Corpo, movimento, elementos de cena, objetos, luz, cores, texto. Acho um dos lugares mais interessantes hoje para criar em teatro, cinema, dança, artes visuais. Não consigo pensar em uma criação sem falar de dramaturgia, porque ela é uma teia que vai conectando tudo. Pode ser um universo inteiro num corpo pintado num pequeno quadro emoldurado ou um mundo dentro de uma caixa preta com vários corpos amontoados – ou com ninguém. As dramaturgias têm um lugar essencial, porque são as construções de sentidos ou provocações que o artista quer fazer, o lugar aonde ele quer chegar, ampliar ou expandir, e isso ganha uma infinidade de possibilidades de criação a partir das nossas escolhas artísticas. Então, prezo muito pelas diversas dramaturgias e pela escrita dramatúrgica. Tenho gostado, cada vez mais, de escrever meus próprios textos, pois sei que muitos dos textos que eu atuei durante a minha vida, consegui compreender a região/território em que o texto se passava e que o artista habitava, seus lugares de fala, dos personagens e do artista, todo o contexto que envolvia a obra. Mas, hoje, sinto que preciso, de vez em quando, escrever a partir do meu contexto e do meu ponto de vista, que ainda passa por certos apagamentos e invisibilidades, infelizmente.

Acho que ser um corpo com deficiência neste país
ainda é pesado, infelizmente…
porque não dá para passar despercebida nunca.

Quais lutas fazem Jéssica se engajar e desejar futuros melhores?

A primeira luta é a de poder ter uma vida simples, banal e corriqueira, como qualquer outra, sem ser tratada de forma especial, com cuidados extremos. Viver uma vida sem tanto carregamento dos outros sobre mim. Acho que ser um corpo com deficiência neste país ainda é pesado, infelizmente. Hoje mesmo estava conversando com uma amiga e falei pra ela sobre um meme que vi que dizia assim: “é tanta luta, que eu já tô ficando agressiva”. Falei rindo, num tom de brincadeira, mas acaba sendo sério, porque não dá para passar despercebida. Pelo menos nunca consegui, por mais que tenha tentado. Vou na padaria, no restaurante e sinto a dificuldade das pessoas em lidar comigo, desviando olhares, cochichando. Desaprendem a falar e encontram problema onde não tem.

Outra luta que acredito é tirar os mistérios, os tabus, o eufemismo, quando a gente for falar sobre essas pautas afirmativas, porque eu gostaria profundamente que essas palavras fossem normalizadas nos vocabulários das pessoas: capacitismo, luta anticapacitista, pessoa com deficiência, pessoa de pele preta, negro, pessoa gorda, pessoa cega, surda, travesti, trans, indígena. Às vezes, as pessoas ainda sentem receio de falar sobre ou de errar. Mas como a gente avança com medo ou criando mistérios e tabus sobre esses corpos? Acredito que existem muitas coisas que a gente só aprende errando, infelizmente, mas se a gente não falar e discutir sobre tudo isso, não caminhamos para esse futuro melhor, mais digno e menos cansativo para todes.

 

A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+.

Falamos muito em acessibilidade nas artes, mas nos parece que ainda temos pouquíssimos artistas com deficiência nos palcos. O que você acha e como podemos mudar as coisas?

Acredito que não é que temos poucos artistas com deficiência nos palcos deste país, acho até que temos muitos. O problema está em nós mesmos, que não nos damos conta desses artistas, que estão espalhados por aí, construindo seus próprios espaços de atuação. O nosso olhar ainda está muito voltado para uma produção artístico-cultural quase intocável pelo seu “selo de qualidade”: padrão, clean, normativo, linear, fino, classe A, cheio de clarezas e esclarecimentos. A cultura brasileira é muito vasta e rica, mas parte dela ainda é patriarcal, elitista, clientelista, heteronormativa, bípede, simétrica e supostamente branca. A nossa cultura também é def, indígena, LGBTQIAP+, mas por que insistimos em reforçar e acompanhar essa cultura brasileira segregacionista e seletiva?

Neste último ano, pude me aproximar de 40 artistas com deficiência que estão atuando há muitos anos no setor cultural. Com alguns desses artistas, criei profundas afinidades e, inclusive, conseguimos trabalhar juntos, ainda que virtualmente. E foi a partir desses encontros que percebi o quanto os nossos corpos produzem linguagem, discursos, estéticas, que, por muito tempo, não eram reconhecidas pelas pessoas sem deficiência como pesquisa e produção artístico cultural. A nossa pesquisa, criação e produção era vista apenas como cota ou como critério de pontuação em editais.

A mudança da minha compreensão aconteceu quando conversávamos sobre os signos que escolhíamos para colocar nas nossas obras e sobre as nossas construções de discursos, e percebemos como esses signos e esses discursos se encontravam e se repetiam, ainda que de formas diferentes. Afinal, somos corpos estranhos, mas muito singulares entre o nosso “meio em comum”. Digo meio em comum, porque ainda não consigo dizer se somos uma comunidade exatamente, por tantas especificidades e singularidades.

Daí acredito que a mudança só vai acontecer quando houver uma virada na compreensão dos fazedores, críticos, curadores e consumidores das artes. Nós somos cultura viva também. Uma latente e estranha forma de sobreviver, de se comunicar, de se manifestar, de se vestir, de escrever e de performar neste mundo.

Em Lugar de falta, você fala muito sobre as coisas que nos faltam e que nós não paramos para percebê-las. O que nos falta como artistas de teatro no Nordeste do Brasil?

A falta é território presente em nossos corpos e nas nossas regiões. O que falta num, não falta noutro, porque o que falta neste outro, já é outra coisa. Lugar de falta é lugar de contradição também, porque é demais. Falta muito e, às vezes, sinto que a gente tenta esconder ou desviar atenção dessas faltas. Parece que é preciso que estejamos sempre muito preenchidos, cheios de respostas, muito completos, inteiros e preparados. Mas a gente sabe que não é assim. Então, acho que a maior falta nossa é a consciência dessas faltas.

No Lugar de Falta, quando vou falar sobre as pessoas “inteiras”, falo exatamente das pessoas que acham que são inteiras, que acham que têm tudo. Porque pessoas que têm tudo simplesmente nem existem. A hegemonia do belo, do padrão, do saudável é uma grande utopia, porque nunca será alcançada tal e qual idealizamos. Mas, infelizmente, ainda existem bilhões de pessoas buscando fazer parte dessa hegemonia do sucesso e precisando de corpos notoriamente não hegemônicos para depositar as suas próprias faltas, que se esforçam para esconder todos os dias. 

O que realmente nos falta é olhar para nós mesmos. Acho que essa é a principal falta. Conseguirmos nos escutar e nos percebermos de diversas formas. Conseguir acolher, cuidar e alimentar este corpo cheio de sensações que carregamos todos os dias. Com certeza, isso vai fazer toda a diferença na nossa relação conosco, com o outro, com o mundo e também vai refletir diretamente na nossa criação e produção artístico cultural.

 

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

Postado com as tags: , , , , ,

Nordeste múltiplo é esquadrinhado na ação Cena Agora do Itaú Cultural

Cia de Artes Fiasco, de Rondônia, apresenta Ave de Arribação. Foto: Michele Saraiva

Cia Biruta, de Petrolina, (PE) Foto: Tássio Tavares

Retalhos Mouriscos, com Maicyra Leão, de Sergipe. Foto: Daniela Carvajal

Silvero Pereira mostra seu trabalho Ser tão Nordeste. Foto: Divulgação

Ultrapassar é uma ideia boa para pensar o programa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas do Cena Agora, que o Palco Virtual de Teatro do Itaú Cultural realiza desde abril. Muitas visões ultrapassam os limites geográficos e as construções estereotipadas ou colonizadas sobre a região, com atuação de grupos e artistas do Nordeste, do Sudeste e do Norte. Assuntos como lugar de fala e de falta, machismo, memórias ancestrais e linguagem alimentam esses olhares sobre o Nordeste, nesta última semana, com apresentações de 27 a 30 de maio (quinta-feira a domingo).

Nesta quinta-feira (27/05), a atriz, produtora, diretora e roteirista cearense Jéssica Teixeira mostra Lugar de Falta, cena que questiona a insuficiência, a escassez, a zona de sentir vazio e sentir muito.

A Coletiva Teatral Es Tetetas, composta pelas artistas Kika Sena, Sarah Bicha e Brenn Souza, do Acre, expõe na sequência uma releitura do livro A Invenção do Nordeste. A cena Sem título trabalha a perspectiva de rompimento das noções de dor e sofrimento vinculadas à imagem da região e dos nordestinos, retomando memórias ancestrais soterradas. A gestora cultural acreana Karla Martins conduz o bate-papo após as apresentações.

Enio Cavalcante (foto divulgação) e Verônica Bonfim (foto: Juliana Varajão) da Pandêmica Coletivo

A carioca Pandêmica Coletivo Temporário de Criação reflete sobre o que nos constitui como nordestinos na sexta-feira na cena Interurbana. Dirigida por Juracy de Oliveira, o trabalho indaga: quanto de você é Nordeste? Quanto de Nordeste sai de você sem precisar nem abrir a boca.

O ator cearense Silvero Pereira também comparece na sexta-feira com Ser tão Nordeste, um mini-doc povoado pelo afeto na liga de três gerações de sua família, em realidade, perspectivas e sonhos. Depois das sessões a conversa é mediada pelo diretor amazonense Francys Madson.

A poesia e a nordestinidade do rap-repente conduzem as buscas cênicas e sonoras da obra Constança, que a Cia. Pão Doce, de Mossoró, no Rio Grande do Norte, mostra no sábado, 29. Já a artista sergipana Maicyra Leão leva para a roda a peça Retalhos Mouriscos, um percurso de migração, concepções de nordestinidade com resíduos de transpassamento culturais que incluem as influências árabes. Karla Martins conversa com os convidados ao final das cenas.

A programação do domingo 30, – derradeiro dia desses cruzos que prometem reverberar-, valoriza o Nordeste além das capitais e expande seus limites para outros estados fora da região. A Cia de Artes Fiasco, de Rondônia, convida o espectador a seguir a poética da revoada, de levantar o próprio corpo e a terra ao redor com Ave de Arribação.

Notícias do Dilúvio — Um Canto a Canudos, da Cia Biruta, da cidade pernambucana de Petrolina, explora um registro histórico da participação de mulheres na Guerra de Canudos, entrelaçando referências às práticas culturais populares do Sertão. O encontro mediado novamente por Francis Madson.

Karla Martins e Francys Madson são os mediadores da semana. Fotos divulgação

O recorte Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas da programação Cena Agora vem propondo “círculos dialógicos” para quebrar com ideias colonialistas e estereotipadas do Nordeste único, da história única, para se conectar com múltiplos teatros humanizados, sustentados na alteridade, no conversação e na valorização  da coautoria do outro (público). Um total de 28 grupos ou artistas teatrais do Nordeste, do Norte e do Sudeste entraram nessa roda.

Cena Agora tem se configurado numa arena pulsante que congrega poéticas e debates com muitas vozes, forjando encontros, diálogos e nos mostrando outras possibilidades de interação em meio a situação de isolamento que persiste, afetando tão fortemente nosso desejo de convivência”, considera Galiana Brasil, gerente de Artes Cênicas do Itaú Cultural. “Para além do extrato estético apurado e instigante, as encruzilhadas têm sido espaços de calor e afeto, subvertendo a ideia comum de distanciamento causada pela mediação digital, possibilitando momentos de fruição conjunta e muita prosa entre artistas e público de geografias tantas”, sustenta.

Muita interseção e partilha vêm ocorrendo no Encruzilhada Nordeste(s), desde abril, fomentando outras cumplicidades e abertura de horizonte éticos, estéticos políticos. Passaram e ficou um pouco de cada umx, do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do livro A invenção do Nordeste e outras artes em conversa com Galiana Brasil. E muitas cenas inquietantes, provocadoras, propulsoras de muitos pontos de vista.

Em abril vimos Onan Yá – A caminhada da sacerdotisa, da diretora teatral e dramaturga paulista/baiana Onisajé; O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, do cearense No barraco da Constância tem!; Rhizophora – Estudo nº 01, do Coletivo de Dança-teatro Agridoce, de Pernambuco; Boca, dos maranhenses Erivelto Viana e Urias de Oliveira, Web-Strips: Volume Encruzilhadas, do grupo baiano Dimenti, e o Sem título, do Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte.

Elaborando olhares sobre a migração e subjetividades , no início de maio participaram o alagoano Clowns de Quinta, com Prisioneiro do Reggae, o paraibano Alfenim, com Pequeno Inventário das Afinidades Nordestinas; o sergipano Boca de Cena em Remundados, o potiguar Casa de Zoé em Encontros, NÉ? e a dupla maranhense Brenna Maria e Ywira Ka’i em Você já Sangrou Hoje? Grupos paulistanos com DNA nordestino contribuíram para os cruzos do encontro: Estopô Balaio, com o seu EX-NE – O Sumiço, e a Cia. do Tijolo, com O Outro Nome da Amizade.

Semana passada teve a mesa Mídia e a (des)construção do imaginário NORDESTE, mediada por Aninha de Fátima Sousa, gerente do Núcleo de Comunicação do Itaú Cultural. A conversa sobre atitudes xenofóbicos machistas, e racistas foi com a jornalista e atriz pernambucana Ademara Barros, que ganhou espaço na internet com seus vídeos de humor irônico e a baiana Val Benvindo, jornalista, produtora, apresentadora e consultora em diversidade racial.

Os piauienses do grupo Canteiro Teresina apresentaram Amora, o grupo pernambucano Magiluth mostrou o trabalho O Mundo Quase Acabou. O também grupo pernambucano O Poste Soluções Luminosas exibiu o experimento cênico híbrido LONGUSU XENUNPRE DUDU NORDESTINAPE, sobre falas inviabilizadas. Fractais, do Grupo Ninho de Teatro, do Ceará levou para a cena recortes de sua pesquisa sobre gênero a partir dos feminismos e das masculinidades.

Eztetyka do Sonho, do Teatro dos Novos, da Bahia, mostrou uma encenação virtual do manifesto lançado por Glauber Rocha em 1971, para revisitar questões do que seria uma linguagem para uma arte verdadeiramente revolucionária. Cabra Macho, do ator paraibano Zé Wendell, investiga com humor as repercussões do machismo no Nordeste, na construção da identidade LGBT.

As conversas foram mediadas pelo diretor Jorge Alencar e o ator Neto Machado, da Bahia; pela  diretora teatral e dramaturga paulista/baiana Onisajé; e pelo ator e diretor mineiro Rodrigo Mercadante. 

SERVIÇO:
Cena Agora – Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas
Semana 4:
De 27 a 29 de maio (quinta-feira a sábado), às 20h
Dia 30 de maio (domingo), às 19h
Todos as apresentações são seguidas de bate-papo com o elenco.
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla.
Mais informações em: www.itaucultural.org.br

PROGRAMÇÃO E SINOPSES
Semana 4

27 de maio, quinta-feira, 20h

Jéssica Teixeira, do Ceará. Foto: Igor Melo

Lugar de Falta
Com Jéssica Teixeira (CE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com a atriz. Mediação de Karla Martins
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
Lugar de falta. Não é de fala. Não é de escuta. É de falta. Aqui, a falta é pura contradição. Um
lugar escasso e cheio. Sentir vazio e sentir muito. É do nada e é demais!
Ficha Técnica:
Direção, Roteiro e Atuação: Jéssica Teixeira.
Produção Executiva: Jéssica Teixeira
Direção de Fotografia e Operação de Câmera: Camila de Almeida
Edição, Cor e Legenda: Victor di Marco
Consultoria em Acessibilidade Cultural: Gislana Vale
Trilha Sonora Original e Mixagem: Marcus Au Coêlho

Sem título
Com Coletiva Teatral Es Tetetas (AC)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Karla Martins
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
Uma releitura de A Invenção do Nordeste, um retorno às memórias ancestrais que foram
soterradas, numa camada bem espessa da dor. Como num resgate dessas memórias, propõe-
se um rompimento das noções de dor e sofrimento, que são intensamente vinculadas à
imagem que se faz do Nordeste e de pessoas nordestinas.
Ficha Técnica:
Performance: Kika Sena
Edição de vídeo: Sarah Bicha e Brenn Souza
Roteiro: Kika Sena, Sarah Bicha e Brenn Souza
Direção: Brenn Souza e Kika Sena
Fotografia: Sarah Bicha e Brenn Souza
Indumentária e caracterização: Sarah Bicha e Brenn Souza.

28 de maio, sexta-feira, 20h

Interurbana
Com Pandêmica Coletivo Temporário de Criação (RJ)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Francys Madson
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:

Ligações interurbanas. Corpo, caju, facetas, fúria e voz. Quanto de você é Nordeste? Quanto
de Nordeste sai de você sem precisar, nem mesmo, dizê-lo?
Ficha Técnica:
Direção: Juracy de Oliveira
Performance: Alda Pessoa, Diane Veloso, Enio Cavalcante, Josyara e Verônica Bonfim.
Realização: Pandêmica Coletivo Temporário de Criação

Ser tão Nordeste
Com Silvero Pereira (CE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o ator. Mediação de Francys Madson
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (melhor fruição)
Sinopse:
É um registro carinhoso, um olhar cheio de afeto sobre três gerações da família do ator Silvero
Pereira: pais, ele e seu sobrinho. Um mini-doc sobre origem, sobre passado, presente e futuro,
sobre realidade, perspectivas e sonhos.
Ficha Técnica:
Argumento, Texto, Direção e edição: Silvero Pereira
Atuação: Silvero Pereira, Rita Invenção e José Alves
Colaboração: Dougllas Robson

29 de maio, sábado, 20h

Cia Pão Doce de Teatro. Foto Thyago Dantas

Constança
Com Cia. Pão Doce de Teatro (RN)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Karla Martins
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
Em constância na caminhada, a Cia. Pão Doce apresenta as suas buscas cênicas e sonoras,
bebendo na poesia e no rap-repente de uma nordestinidade que povoa e foge do senso
comum.
Ficha Técnica:
Direção: Cia Pão Doce
Elenco: Paulo Lima, Lígia Kiss, Romero Oliveira, Raull Davyson, Edson Saraiva e Mônica Danuta
Dramaturgia: Cia. Pão Doce
Música: Romero Oliveira
Iluminação: Paulo Lima
Imagem, edição, som direto: Ribeiro Produções
Cenografia e figurino: Cia Pão Doce
Preparação vocal: Cláudia Azevedo
Produção: Cia Pão Doce

Maicyra Leão. Foto: Marcelo Dischinger

Retalhos Mouriscos
Com Maicyra Leão (SE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Karla Martins
Duração:
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
A cena é uma epopeia subterfúgica repartida entre a história de migração no Nordeste, a
trajetória particular de sujeitos em devir retirante e, em meio a isso, a criação de uma criança
declarada nordestina. O mote é múltiplo, difuso, entrecortado e costurado como qualquer
processo de construção de uma identidade mutante. A cena foi elaborada especificamente
para o Cena Agora: Encruzilhada Nordeste, na perspectiva de povoar a noção de
nordestinidade com resíduos de atravessamentos culturais para além da tríade africano – índio
– europeu, mais precisamente com borraduras árabes.
Ficha Técnica:
Performance e concepção: Maicyra Leão
Dramaturgia visual: Rodrigo Garcia
Direção Musical: Nouras Hanana
Violino: Kayan Leão

30 de maio, domingo, 19h

Cia de Artes Fiasco. Foto Michele Saraiva

Ave de Arribação
Com Cia de Artes Fiasco (RO)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Francys Madson
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
É sobre pássaros/pessoas que estão soterradas em lugares de solidão, mas, também de desejo
recalcado que emerge da espera de um regresso incerto dos seus entes queridos. Para nós,
ovos-filhos, para o Estado, números e super soldados. Revoar, neste caso, é levantar o próprio
corpo e a terra ao redor. Qual revoada é possível?
Ficha Técnica:
Dramaturgia e Direção: Fabiano Barros:
Elenco : Rafaela Oliveira e Artur Nestor
Músico Compositor: Rinaldo Santos:
Produção Aline T
Administração: Emilly Lamarão 

Notícias do Dilúvio – Um Canto a Canudos
Com Cia Biruta (PE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com o elenco. Mediação de Francys Madson
Duração:
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos
Sinopse:
Entrelaço de referências às práticas culturais populares do Sertão com registros históricos da
participação de mulheres na Guerra de Canudos. A proposta é atualizar, contar e cantar o lugar
em que se forma o silêncio que luta e afronta o esquecimento. Nele estão as personagens Das
Dores e Dos Anjos, em oração, rememoração e alucinação no espaço/tempo navegante de
uma das mais importantes experiências de resistência popular do país.
Ficha Técnica:
Encenação: Antonio Veronaldo
Texto: Luis Osete Carvalho e Antonio Veronaldo
Elenco: Cristiane Crispim e Camila Rodrigues

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , ,