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Fuga artística para a natureza
Crítica de Paysages partagés 7 pièces entre champs et forêts
Festival de Avignon

Paysages partagés – 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas – sete peças entre campos e florestas), está acontecendo na floresta Pujaut, na cidade de mesmo nome, nos arredores de Avignon. Foto: Ivana Moura

Caroline Barneaud e Stefan Kaegi fizeram a proposta da criação das sete peças aos artistas, numa experiência de sete horas de duração. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Peça dos artistas portugueses Sofia Dias e Vitor Roriz. Foto: Foto: Christophe Raynaud de Lage 

A paisagem é um grande teatro. E, nesse ambiente, o que vale é a experiência coletiva. Em Paysages partagés – 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas – sete peças entre campos e florestas), a curadora e produtora Caroline Barneaud (diretora de projetos artísticos e internacionais do Théâtre Vidy-Lausanne) e o diretor Stefan Kaegi (integrante fundador da Rimini Protokoll), propõem uma viagem ambiciosa.

Uma dezena de artistas participam com sete formas artísticas que vibram e refletem sobre a vida no planeta e inevitavelmente tocam nas questões sobre alterações climáticas. Esse tour artístico aglutina peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset e do próprio Stefan Kaegi.

A palavra peça expande-se em outras transversalidades – da filosofia à fisioterapia, geopolítica, antropologia, política dos corpos, teatro documental.

O clima em Avignon está extremamente quente durante esse julho do festival. Esse calor intenso é uma das reações da desastrosa ação humana no Antropoceno. Os recursos da natureza exigem de nós outra consciência crítica e, lógico, outra postura nessa interdependência.

Nesse passeio multissensorial, os procedimentos são variados para estimular reflexões sobre a atuação humana na Terra e as consequências catastróficas que estamos colhendo: esculturas musicais, audioguia coreográfico, piquenique, peças filosóficas, criações sonoras, realidade virtual, fragmento de teatro documentário, instalação audiovisual.

São sete horas de caminhada ao ar livre, com algumas paradas para conferir os espetáculos, quando a própria paisagem aparece como protagonista. As peças acontecem basicamente em francês e inglês, com tradução sonora simultânea para ambas as línguas.

No Festival d’Avignon, o programa ocorre na floresta Pujaut, situada na cidade homônima nos arredores de Avignon. Entre maio e junho, o projeto foi desenvolvido em Chalet-à-Gobet, em Lausanne, onde fica o Jorat, um grande espaço florestal na Suíça.

Depois do Festival d’Avignon, Paysages partagés segue por Berlim, Milão, Eslovênia, Espanha, Áustria e Portugal, com estruturas e apoio de muitas instituições europeias.

Na floresta. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Em alguns momentos dessa experiência, os grupos estão juntos, noutras são separados por cores das pulseiras e das pequenas bandeiras sinalizadoras, verdes, azuis, amarelas, rosas. As divisões formam movimentos coreográficos na imensidão do campo. Por vezes, parecem turistas que seguem o guia para desbravar algum lugar ou até uma colônia de férias.

Cobertores e banquinhos foram emprestados em algumas situações. Não há cenas de violência ou linguagem imprópria nos trabalhos e algumas crianças estavam presentes acompanhadas por algum adulto.

O ponto de encontro para partir para floresta é o Parking Relais L’île Piot. Como estou hospedada próximo à Avignon Université, Campus Hannah Arendt, eu teria algumas opções para chegar ao centro. O ônibus iria demorar 40 minutos, então fiz a pé o primeiro trecho.

Com o sol derretendo os miolos, cheguei à Rua de La Republique e resolvi me informar com um guarda estrangeiro que movimentava a cancela para os carros. Ele disse no seu francês ruim que eu deveria pegar o ônibus por trás da estação.

Com a moleira cansada do calor, resolvi pegar um táxi, para não perder o horário. Ele, muito solícito, falou que chamaria o taxi. Que gentil, pensei. Resumo: ele chamou alguém que não tinha a bandeira do táxi e que me cobrou 25 euros por uma corrida de cerca de 2 quilômetros. Reclamei com o motorista. Mas, voilà, paguei com todos os 20 euros que tinha na carteira e apostei que tudo daria certo na volta. E deu.

Do Parking Relais L’île Piot, nós, espectadores com os bilhetes do espetáculo, partimos em ônibus para a floresta.

Por volta das 16h, nos deitamos sob as árvores, com cobertores emprestados e fones de ouvidos para aguardar as instruções. A imensidão do campo e o canto feérico das cigarras provocam os deslocamentos para outras dimensões; dentro da cabeça, rupturas momentâneas do stress do cotidiano.

Nesse embalo, iniciamos o percurso com a primeira obra, a peça sonora assinada por Stefan Kaegi. Olhando as copas das árvores, as nuvens, o horizonte, ou de olhos fechados, ouvimos a gravação de um grupo formado por uma criança, um psicanalista, um agente florestal.

A natureza é um ponto do debate, mas também assuntos da psicanálise como o inconsciente, medos ou projeção. A atuação do agente florestal entra na pauta e a expertise do profissional. As cigarras me chamam para outro lugar e aquela conversa vai se distanciando da minha escuta, apesar de estarem nos meus ouvidos. Minha mente vagueia.

Proposta de Begüm Erciyas e Daniel Kotter. Foto: Christophe Raynaud de Lage   

Seguimos… Uma pedra segura um livrinho que está pousado sobre um banco portátil. Somos convidados a folhear o impresso que contém o trabalho da artista turco-belga Begüm Erciyas e do realizador alemão Daniel Kötter. É uma breve ação individual do público com a obra, fotografias e textos curtos que exploram a política espacial do território do Cáucaso, numa zona de conflito entre a Arménia e Azerbaijão.

Após algum tempo, somos convidados a deixar o livrinho e a pedra sobre o banquinho, andar alguns metros para encarar outra experiência, utilizando capacetes virtuais. Com esses óculos, temos a sensação de sair do chão, subir e fazer o passeio de olhar o território do alto e depois traçar o zoom de aproximação. Essa subida panorâmica da realidade virtual projetada por Begüm Erciyas e Daniel Kötter desperta muitas sensações, entre elas a de que o mundo é imenso e nós….

Numa etapa seguinte, a dupla de artistas portugueses Sofia Dias e Vítor Roriz chama para a dinâmica dos corpos e o exercício de imaginação. Rodas são formadas a partir das instruções do audioguia poético e coreográfico da dupla, com direito a interações entre as pessoas, saudações aos pássaros e imitações de ações de bichos da floresta ou dos que existem dentro de nós. O corpo se move no espaço amplo para revelar coisas, a reivindicar as marcas do tempo e dos gestos construídos na trajetória humana.

Músicos tocam no meio da mata. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

De repente, do meio da mata, dos arbustos, surgem músicos que executam interlúdios de Ari Benjamin Meyers. Eles tocam deitados no chão ou confundindo-se com a paisagem, numa atitude que salienta um dos atos da pesquisa performativa de Meyers, de destacar o caráter efêmero da música na relação entre intérprete e público.

Peça de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, com irmãos gêmeos. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Andamos mais um pouco, nos encostamos e sentamos perto das árvores. Um telão está armado. Um rapaz numa cadeira de rodas vai se ajeitando para perto da tela. Ele é Guillaume Papachristou.

Clément e Guillaume Papachristou são gêmeos. Guillaume tem deficiência motora (paralisia cerebral) desde o nascimento. Os irmãos protagonizam um piquenique improvisado na floresta.

O quadro dirigido pelos italianos Chiara Bersani e Marco d’Agostin ganha texturas e um tempo impregnado pelo desafio na realização do gesto. Guillaume conta com a ajuda do irmão para fazer algumas atividades, como servir chá e biscoitos. Há uma profunda confiança entre os dois, que exploram o espaço da ficção, o teatro da alteridade e o conceito de corpo político de que fala Chiara Bersani. No final da tarde, sem pressa, os artistas brindam à vida, que exige muitos mais sentidos de respeito à especificidade de todas as formas.

Peça de Emilie Rousset. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

É feita uma pausa para o piquenique de todos, ou de quem reservou com a produção do evento o alimento ou levou algum lanchinho. Depois desse breve intervalo, três atores discutem a política agrícola europeia, o não financiamento para a transição para o orgânico, numa cena em meio aos vinhais.

Uma pesquisadora em etologia, ciência do comportamento animal, conta sobre a linguagem inerente de alguns deles na comunicação e na importância da biodiversidade. A direção é de Émilie Rousset, que utiliza arquivos e pesquisa documental para levantar peças, instalações e filmes e fazer sobreposição entre o real e o ficcional.

Depois de todas essas paradas, a natureza se manifesta numa tela preta, numa pastagem menos verde, com projeções de frases firmes e voz distorcida. Ao mesmo tempo em que faz um diagnóstico das características humanas, assume uma postura extremamente crítica, num monólogo virulento sobre a separação entra natureza e cultura. É carga pesada no Antropoceno que colapsou, está colapsando a biodiversidade. Criada pela suíça Tanya Beyeler e pelo espanhol Pablo Gisbert, do El Conde de Torrefiel, o discurso mira e acerta no alvo nos questionamentos urgentes desses tempos.

Para que o derradeiro ato não seja o sermão corretivo da natureza, os músicos de Ari Benjamin Meyers voltam a tocar, dessa vez enfileirados, de pé, na despedida da luz natural daquele dia. Para que essa experiência sensorial intensa prossiga ressoando no tempo vindouro, marcada pela cartografia do sensível visível e invisível, que desloca percepções insustentáveis.

Paysages partagés 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas, sete peças entre campos e florestas)
Conceito e curadoria: Caroline Barneaud e Stefan Kaegi
Peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Stefan Kaegi, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset
ComCorentin Combe, Thomas Gonzalez, Emmanuelle Lafon, Clément e Guillaume Papachristou, os músicos Maxime Atger alternando com Anton Chauvet, Amandine Ayme (saxofones), Julien Berteau (trombone), Téoxane Duval (flauta), Leïla Ensanyar (trompete) , Ulysse Manaud (tuba), e as vozes de Henri Carques, Febe Fougère, Charles Passebois, Sylvie Prieur, Oksana Zhurauel-Ohorodnyx
Apoio dramatúrgico ao projeto: Emilie Rousset e Elise Simonet
Direção musical: Daniel Malavergne
Figurinos: Machteld Vis
Adereços: Mathieu Dorsaz
Coordenação de paisagem cênica: Chloé Ferro, Monica Ferrari e Lara Fischer (Rimini Protokoll)
Assistente artística: Giulia Rumasuglia
Produção: Rimini Apparat (Alemanha) e Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)
Produção local: Festival d’Avignon
Co-produção: Bunker e Festival Mladi Levi (Eslovénia), Culturgest e Rota Clandestina – Câmara Municipal de Setúbal (Portugal), Tangente St. Pölten – Festival für Gegenwartskultur (Áustria), Temporada Alta (Espanha), Zona K e Piccolo Teatro di Milano Teatro d’Europa (Itália), Berliner Festspiele (Alemanha), Festival d’Avignon
Com o apoio da cidade de Pujaut
Com o apoio de Centro Camões Cultura portuguesa em Paris para a 77ª edição do Festival d’Avignon
Cofinanciado pela União Europeia
Em parceria com o INVR para os óculos de realidade virtual

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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A encrenca do bem-estar social
Crítica do espetáculo “Welfare”
Festival de Avignon

 

Welfare , da diretora Julie Deliquet, abriu o Festival de Avignon no Cour d’Honneur du Palais des Papes.  Foto: Pascal Victor/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

“Qual é a obrigação do Estado para com aqueles que não conseguem garantir a própria sobrevivência?”, pergunta o cineasta norte-americano Frederick Wiseman no documentário Welfare, filmado num escritório de assistência social de Nova York, em 1973. Cinquenta anos depois, a encenadora francesa Julie Deliquet refaz a questão na adaptação teatral do filme, de título igual.

Welfare abriu a 77ª edição do Festival d’Avignon, na noite de quarta-feira (e segue até 14 de julho), no Cour d’Honneur, o pátio principal do Palais des Papes, icônico espaço desse evento cênico francês, que atrai espectadores de todo o mundo. 

Welfare é um importante documentário sobre o sistema de bem-estar social nos Estados Unidos da década de 1970. Não houve atualização do filme à peça para os dias de hoje, mas são detectados pontos de convergência com a proteção social na França.

Abrir o festival com exploração de nó difícil de desatar de algumas sociedades não deixa de ser uma ousadia do diretor do evento Tiago Rodrigues, português que estreia no cargo nesta edição. E é muito interessante que seja a encenação de uma mulher a abrir Avignon, por toda competência, mas uma diretora. Porque ainda hoje o desequilíbrio continua na ocupação dos lugares de poder nas diversas atividades.

Antes da cena começar, a encenadora Julie Deliquet e o diretor Tiago Rodrigues ficaram à frente do palco e pediram um minuto de silêncio em memória de Nahel, rapaz de 17 anos, morto por um policial francês durante uma blitz de trânsito em Nanterre, nos arredores de Paris, em junho. O silêncio “grita”.

Vamos ao jogo. Quando entro de última hora (porque só consegui o ingresso no último minuto), as cabanas já haviam sido fechadas e os atores estavam espalhados pelo enorme palco do Cour d’honneur. O cenário é um ginásio convertido em centro social, sem divisória. Que tipo de esporte a encenadora está propondo? O palco parece grande demais para a forma em que o jogo é instalado. Durante as quase três horas de duração, a luz da plateia fica acesa.

No palco, 15 excelentes atores ocupam duas posições do confronto: beneficiários sociais e funcionários do sistema. Mulheres e homens em situação de extrema pobreza, os fracassados da sociedade capitalista, que aguardam atendimento num centro de assistência social em NY no último dia antes das férias de 1973.

Todos transitam nessa cena a exigir migalhas para não morrer e expõem circunstâncias desesperadoras. Uma mãe de quatro filhos, grávida do quinto, demanda cheque-auxílio; uma velha com o marido hospitalizado; um cara que saiu da prisão; um casal com deficiência que não consegue trabalhar; um velho que perdeu o emprego após uma cirurgia; e por aí vai. São pessoas quebradas, economicamente miseráveis, que tentam se agarrar ao serviço de bem-estar para não sucumbir.

De um lado esses indigentes com urgências inadiáveis, a comida, o aluguel, a doença. Do outro, os representantes do baixo escalão da seguridade – inclusive um sargento da segurança que sofre racismo por parte de um usuário da seguridade -, que, às vezes, mostram boa-vontade em resolver os problemas, mas assumem o papel burocrático nos embates travados, na passagem do problema para outro funcionário, na constatação “é complicado”, “não foi possível”, etc. A peça aproxima-se dos enredos kafkianos, da burocracia da França, das agências do INSS.

Chamou atenção a escolha do elenco, esses corpos no palco, grandes e pequenos, negros, não brancos e pouco brancos. Isso diz sobre as escolhas da encenadora Julie Deliquet, diretora do Centro Dramático Nacional de Saint-Denis desde março de 2020.

A clivagem entre pobres, que estão no palco, e ricos, que estão fora desse platô, aciona algum mecanismo de incômodo. A classe com poder está ausente, mas assombra.

Aquelas figuras no limite de perderem a dignidade repetem a mesma história e quanto mais distantes forem os ouvidos de quem escuta, mais enfadonhos ficam esses falatórios. É uma ladainha só, sem horizonte de cessar o tormento. As narrativas se repetem com pequenas variações. Um exagero aqui, uma possível mentira acolá. Sem ápice, praticamente numa monotonia dramática. A cena não desperta entusiasmo. Quase um looping. Se a ideia era exasperar, conseguiu, nesse fluxo contínuo. 

Muita gente saiu durante a apresentação. Esse desconforto que gerou o movimento de saída da plateia é apenas uma reação à forma iterativa da estética do palco? Parece-me que sim e não. As escolhas da diretora Julie Deliquet investem numa tensão interna entre os dois campos, exploram o humor cáustico nos depoimentos dos demandantes. E deixam evidente que os dois lados perdem nessa partida. Pois, no caso desses dois grupos, eles não estão tão distantes nos seus lugares sociais.

Duas cenas quebram a monotonia da repetição das histórias: o jogo de basquete entre o guarda e um dos demandantes e a música executada ao vivo nessa espécie de intervalo do atendimento da repartição.

No final, não há soluções mágicas ou deus ex machina para quebrar o mecanismo do aparato administrativo massacrante. O capitalismo fabrica seus jogos insolúveis.

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Ficha técnica:

Com Julie André (Elaine Silver) Astrid Bayiha (Mme Turner) Éric Charon (Larry Rivera) Salif Cisse (Jason Harris) Aleksandra de Cizancourt (Elzbieta Zimmerman) Évelyne Didi (Mme Gaskin) Olivier Faliez (Noel Garcia) Vincent Garanger (M. Cooper) Zakariya Gouram (M. Hirsch) Nama Keita (Mlle Gaskin) Mexianu Medenou (Lenny Fox) Marie Payen (Valerie Johnson) Agnès Ramy (Roz Bates) David Seigneur (Sam Ross) e Thibault Perriard (John Sullivan, músico)
Baseado no filme de
Frederick Wiseman
Tradução:
Marie-Pierre Duhamel Muller
Encenação:
 Julie Deliquet
Adaptação cênica:
Julie André, Julie Deliquet, Florence Seyvos
Colaboração artística:
 Anne Barbot, Pascale Fournier
Cenografia:
Julie Deliquet, Zoé Pautet
Luz:
Vyara Stefanova
Música:
Thibault Perriard
Figurino:
Julie Scobeltzine
Marionete:
Carole Allemand
Assistente de figurino:
 Marion Duvinage
Camareira:
 Nelly Geyres
Adereços
François Sallé, Bertrand Sombsthay, Wilfrid Dulouart, Frédéric Gillmann, Anouk Savoy – Atelier du Théâtre Gérard Philipe Centre dramatique national de Saint-Denis
Operação técnica geral:
 Pascal Gallepe
Diretor de palco:
Bertrand Sombsthay
Operador de luz:
Jean-Gabriel Valot
Operador de som:
Pierre De Cintaz
Tradução para o inglês para legendagem:
Panthea

Produção: Théâtre Gérard Philipe CDN de Saint-Denis
Coprodução: Festival d’Avignon, Comédie CDN de Reims, Théâtre Dijon Bourgogne CDN, Comédie de Genève, La Coursive Scène nationale de La Rochelle, Le Quartz Scène nationale de Brest, Théâtre de l’Union CDN du Limousin, L’Archipel Scène nationale de Perpignan, La Passerelle Scène nationale de Saint-Brieuc, CDN Orléans Centre-Val de Loire, Les Célestins Théâtre de Lyon, Cercle des partenaires du TGP Avec le soutien du Groupe TSF, VINCI Autoroutes, The Pershing Square Foundation, The Laura Pels International Foundation for Theater, Alios Développement, FACE Contemporary Theater, un programme de la Villa Albertine et FACE Foundation en partenariat avec l’Ambassade de France aux États-Unis, King’s Fountain, Fonds de Dotation Ambition Saint-Denis, Région Île-de-France, Conseil départemental de la Seine-Saint-Denis et pour la 77e édition du Festival d’Avignon : Fondation Ammodo et Spedidam
Residência:
 La FabricA du Festival d’Avignon
Gravação em parceria:
 France Télévisions
Com o apoio de:
 l’Onda pour l’audiodescription
Les films de Frederick Wiseman sont produits par Zipporah Films.
Agradecimentos: Patrick Braouezec, Pauline Legros, Anna Genet, Samuel Jérôme–Bourgeois, Lucile Miège, Odile et Gérard Haudebert, Madame Legal et l’équipe de l’école Vaucanson de Paris, les élèves et les enseignants des écoles L’Estrée, Louis Blériot et Jules Vallès de Saint-Denis, le gymnase Maurice Bacquet de Saint- Denis, Pauline MacEachran, Benjamin Larsimont et l’équipe du 110 Centre socioculturel coopératif de Saint-Denis, Marie Potiron et Mandela, Maty Diallo- Ouedda, Moussa Diallo-Ouedda, Keyah Ido-Benisty et Néhanda Ido-Benisty, Julien Gidoin

Em memória de Marie-Pierre Duhamel Muller

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A tramoia de Iago
Crítica do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza,
visto no Théâtre Odéon, em Paris

Iago (Nicolas Bouchaud) conspira contra Othello (Adama Diop) e Desdêmona (Emilie Lehuraux). Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Montagem de Jean-François Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez

Desde o início do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza – tragédia escrita pelo dramaturgo William Shakespeare provavelmente em 1603 – ficamos sabendo que o soldado Iago alimenta um ódio mortal por Othello, pois inveja seus feitos heroicos e porque seu comandante promoveu Cássio para o posto de tenente; nas palavras de Iago, “um teórico”, que nunca liderou um batalhão numa guerra.

Iago faz de tudo para destruir seu dirigente. Junto com Roderigo envenena o senador Brabantio, pai de Desdêmona, ao informar que ela fugiu com Othello. Conspira contra Othello e Cássio e utiliza muitos truques, artimanhas, conversas cruzadas, insinuações e um lenço perdido para persuadir Othello de que Desdêmona e Cassio são amantes.

É uma teia intrigante. Como Iago consegue empurrar Othello – o grande estrategista – para o abismo do ciúme. Sutis manipulações indicam caminhos, pois Iago é especialmente hábil em detectar e explorar as fraquezas humanas.

A versão do encenador Jean-François Sivadier para Othello – que passou pelo Théâtre Odéon, em Paris, antes de prosseguir em turnê europeia – explora as questões nevrálgicas da peça, mas com algumas lentes do século 21 e muitas das contradições acumuladas. Entre elas o feminicídio que já foi chamado de “crime passional”, e o racismo que exala dessa (daquela, da nossa) sociedade. Veneza enaltece os feitos do protagonista, mas o despreza – escancaradamente ou veladamente – como pleno cidadão.

É a primeira peça que assisto desse realizador. Então, para situar, Sivadier é um ator, dramaturgo e diretor de teatro e ópera, de 58 anos, que tem no currículo releituras de alguns clássicos. Em 2007 encenou Rei Lear no Festival de Avignon. Em 2022, recebeu o Grande Prêmio do Teatro da Académie Française pelo conjunto da sua obra.

A tradução francesa de Jean-Michel Déprats acentua as ambiguidades e os contrastes muito valorizados na encenação, que imprime um ritmo alucinante, que oscila da tragédia ao pop, com improvisações cômicas, escolhas sonoras setentista, que inclui Dalida, Freddie Mercury, John Lennon.

Cassio (Stephan Butel ), Othello e Iago. Foto: Jean Louis Fernandez

Sivadier escala um ator negro para o papel de Othello, como deve ser. Mas nem sempre foi assim. No passado não tão remoto, em muitas montagens, Othello era interpretado por um ator branco, algumas vezes com o rosto pintado de preto, na tradição racista do blackface. No artigo Othello joué par un Blanc : le théâtre français est-il raciste ? , de 16 octobre de 2015, a articulista Françoise Alexander questiona no jornal Le Monde a escolha do Philippe Torreton, um ator branco, para o papel principal de Othello na encenação de Luc Bondy.

A discussão rendeu outros artigos, como o da  atriz, cantora e dramaturga Yasmine Modestine, Pourquoi la distribution d’Othello par Luc Bondy est entièrement blanche?  . Mas a encenação não estreou, pois o renomado diretor, que já estava doente à época, morreu em novembro daquele ano.

Desdêmona (Emilie Lehuraux) e Othello (Adama Diop) . Foto: Jean Louis Fernandez

Quando entramos no teatro, Othello, interpretado pelo franco-senegalês Adama Diop, troca algumas palavras em Wolof com Desdêmona (Émilie Lehuraux). Ficamos sabendo, por exemplo que amor se diz mbëggeel. Nesse pequeno jogo amoroso do prólogo, Othello pede a mão de Desdêmona na língua falada no Senegal.

Na primeira parte da peça, Adama Diop, com dreadlocks, compõe um Othello solar, orgulhoso, leal, apaixonado, confiante, que aposta nos valores elevados, consciente do seu gênio militar. Mas esse homem que se fez a si mesmo não esquece das suas origens, de que foi arrancado de sua terra para ser escravizado. Seu talento guerreiro o libertou e engrandeceu. Mas enquanto estrangeiro da Veneza, ele reconhece o racismo dessa gente.

Em seu Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi reflete sobre a condição de Othello: “Como veneziano, ele deve chefiar a frota; como mouro, não tem permissão para pedir em casamento nenhuma veneziana”.

Se o texto de Shakespeare vibra em alto grau na denúncia contra o racismo. Jean-François Sivadier reforça essa perspectiva e dedicou o papel do Doge de Veneza (principal magistrado, que preside o senado) a uma atriz negra.

Othello ambicionava vencer o preconceito, mas encontrou Iago no meio do caminho para tirá-lo do eixo. Em Shakespeare: a invenção do humano, Harold Bloom analisa que, “entre todos os vilões da literatura, ele tem a honra nefasta de ocupar uma posição inatingível […] Nem mesmo o diabo – em Milton, Marlowe, Goethe, Dostoievsky, Melville – pode competir com Iago”.

Iago é defendido com brilhantismo por Nicolas Bouchaud, ator que já trabalhou em várias montagens de Sivadier. O artista explora as nuances desse personagem manipulador invejoso e dá o seu show na cena, canta clássicos do rock , cospe vinho tinto e espaguete, invoca as caretas do Coringa dos filmes de Hollywood e explode qualquer barreira de gênero interpretativo.

Quem não te conhece, que te compre!!!! O espectador conhece a verdadeira face de Iago e seus passos e maquinações, compartilhados nos solilóquios. Mas todas as outras figuras compram a face angelical, leal e humana que sua máscara diabólica esconde. Sempre atuando, disfarçado de amigo fiel, ele ouve de suas vítimas – Othello, Desdêmona, Cássio – “Honesto Iago”.

Atriz Émilie Lehuraux no papel de Desdêmona. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Jisca Kalvanda como Emilie, a esposa desprezada de Iago. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Algumas escolhas artísticas e de tom dão mais estatura às personagens femininas. Pequenas adições de pulsações contemporâneas ecoam na peça as lutas feministas e antirracistas destes tempos. A encenação adota uma postura mais aguerrida e menos de vitimização das figuras da mulher.

Émilie Lehuraux, junta frescor juvenil, magnanimidade e determinação para legitimar sua Desdêmona, seja em cena mais amorosas ou no enfrentamento a seu pai e à sociedade racista, no comitê dos senadores.

Ela canta Undress me conhecida na voz de Juliette Gréco, no centro do palco, descalça sobre um grande lençol, mortalha que outros atores vão desdobrar. E manifesta sua vivacidade para se defender do marido ensandecido de ciúme, que a acusa violentamente. A mesma atriz também assume com desenvoltura o papel de Bianca.

Emilie (Jisca Kalvanda), a esposa desprezada de Iago, funcionária de Desdêmona, fica com a incumbência de delatar os culpados e desmascarar suas mentiras. Na cena final, ela diz que a verdade quer prevalecer e ela não deve se calar. E faz um discurso contundente, que parece atravessar os tempos.

Sim, a essência da encenação está nos atores, o diretor investe no jogo dos intérpretes. Stephan Butel faz um Cássio que expõe as fragilidades de um militar. Na cena da bebedeira arquitetada por Iago, ao som de We Will Rock You, do grupo Queen, Butel exibe o lado mais ingênuo do seu tenente.

De silhueta longa e vocação camaleônica, Cyril Bothorel assume vários papéis, incluindo o de pai intratável de Desdêmona, que anda furiosamente pelo palco de pijamas despejando logorreia racista. Gulliver Hecq, como Roderigo também apaixonado por Desdêmona e manipulado por Iago, expõe a estupidez da personagem.

Os flertes de Jean-François Sivadier com a cultura pop ressaltam as pontes da época de Shakespeare com o mundo contemporâneo.

Cena da bebedeira de Cássio. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

São interessantes os recursos materiais que o Odéon–Théâtre de l’Europe dispõe para fazer a arte funcionar. Tenho certeza de que o diretor pernambucano Quiercles Santana ficaria bem-motivado em criar nesse espaço. Para se ter uma ideia. A cenografia do espetáculo é composta por molduras rotativas de madeira com grandes lonas de plástico transparente. Pois bem, na cena em que Othello está transtornado as molduras giram e com os efeitos de luz e som, por alguns instantes somos sugados para mente desestabilizada de Othello. Nesse momento, o mundo treme, a vida se comprime numa grande vertigem.  

Iago quer rebaixar Othello à vulgaridade e provar que os valores como a honestidade, o amor e a honra valem muito pouco no final das contas. Nesse sentido, a encenação põe em movimento duas visões de mundo antagônicas. Se uma é calcada na dignidade, a outra distorce os sentidos pela corrupção.

O confiante Othello muda de discurso e de comportamento no decorrer do espetáculo. No início da peça, o protagonista rebate com brio as acusações de Brabâncio e fala de maneira equilibrada para provar o seu amor frente ao grupo de senadores. Mas, no final, ao baixar ao nível de seu algoz, Iago, utiliza metáforas desprezíveis nas palavras que destina a Desdêmona.

Quando Othello cai ao nível de seu falso amigo, ele se assemelha a Iago. Otelo abdica de ser Otelo. E essa operação em cena é linguagem explosiva.

O diretor Jean-François Sivadier arisca borrar os personagens. Após o intervalo nesta montagem com os cinco atos, por breves minutos, os dois atores – Nicolas Bouchaud e Adama Diop, de frente para o público, um ao lado do outro, repetem as mesmas falas e trocam de papeis. Essa jogada põe em andamento séculos de leituras interpretativas dos dois personagens e reforça que isso é teatro, frenético teatro, num jogo magistral de atores.

Máscara branca de Othello na montagem de Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

E para as cenas finais, do assassinato, do suicídio, da queda no abismo,  Othello aparece com uma máscara branca. Adama Diop imita gestos e caretas caricaturando a postura do selvagem. A cena tensiona as questões contemporâneas e complexifica a máscara branca. A mão do crime é preta, mas o braço da manipulação é branco.

E não nos enganemos. Ao desnudar o processo de humilhação e controle social Shakespeare nos lembra que nos assemelhamos aos seus personagens em abjeção.

Sim. É difícil imaginar um mundo sem Shakespeare (It is hard to imagine a world without Shakespeare), como registra o diretor do The Folger Shakespeare Library Michael Witmore, em Othello, o Mouro de Veneza, na edição que leva em conta o conhecimento que se tem da obra do dramaturgo no século 21. (Aqui o link da peça em inglês para baixar gratuitamente).  O bardo inglês prossegue expandindo nossas consciências.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Poesia e dramaturgia, tentativa e esperança de vida
Crítica do espetáculo Miró: Estudo nº2

Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth. Foto: João Maria Silva Jr

– Prédios não caem. Prédios são demolidos.

Essa é uma das falas-síntese do espetáculo Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth. Na noite de 27 de abril, cerca de trinta ou quarenta minutos depois que a peça havia terminado na Avenida Paulista, em São Paulo, mais um prédio caia na Região Metropolitana do Recife. Seis pessoas morreram e cinco ficaram feridas, entre elas uma mulher de 32 anos, e sua filha, uma adolescente de 16 anos. Os corpos foram encontrados abraçados debaixo dos escombros.

O edifício Leme, no bairro de Jardim Atlântico, em Olinda, era do tipo caixão, possuía 16 apartamentos e estava condenado desde o ano 2000. Como não tinha sido demolido, o prédio acabou ocupado. O jornal Folha de Pernambuco publicou que, de acordo com a Defesa Civil de Olinda, a cidade tem 110 imóveis com risco iminente de desabamento, todos prédios do tipo caixão que, como explicam as matérias de jornal, são edifícios construídos com uma técnica de alvenaria na qual as paredes fazem a função de sustentação da estrutura, sem que vigas ou pilares sejam utilizados.

Os 70 prédios do Conjunto Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, também Região Metropolitana do Recife, eram desse tipo. Como reforça o texto do espetáculo do Magiluth, foram construídos com recursos do antigo BNH, Banco Nacional da Habitação. Em 1995, um dos prédios foi interditado pela Defesa Civil por conta de rachaduras. Em 2005, todos os blocos foram interditados.

Muribeca dá nome ao conjunto habitacional, ao bairro em Jaboatão dos Guararapes, ao lixão desativado em 2009, que era o maior aterro sanitário de Pernambuco (“o sonho da casa própria ali, lado a lado com o lixão”, diz mais ou menos assim a dramaturgia do Magiluth), e ao poeta Miró, Miró da Muribeca.

Miró da Muribeca (1960-2022), João Flávio Cordeiro da Silva, era uma figura icônica do Recife. Era orgulhoso de viver de sua poesia. Ele próprio vendia seus livros e performava de um jeito único os poemas – sobre a cidade, o cotidiano, os problemas sociais, os encontros, os amores, o que poderia até ser considerado banal e, a partir do olhar de Miró, da sua elaboração, escrita e enunciação, ganhava forma e relevância.

Miró morreu em 2022 em decorrência de um câncer, mas também era alcoólatra.

Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Foto: João Maria Silva Jr.

E foi a partir dessa pessoa que o Magiluth enveredou na criação de mais uma peça, num processo que também se debruça sobre o teatro, o ofício, o como fazer. Em Estudo nº 1: Morte e Vida (2022), a partir de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a pergunta que disparava a encenação era “como montar uma peça?”. Agora, o grupo se questiona “como fazer uma personagem?”.

Essa pergunta é apresentada logo no início da peça e, a partir dela, discussões e possibilidades vão sendo compartilhadas com o público. Miró é uma pessoa ou uma personagem? O que é um protagonista? Um antagonista? Um coadjuvante? Figurantes? Elenco de apoio? E outras interrogações vão ecoando puxadas pela provocação inicial: quando estava performando, Miró era personagem? E nós, quando somos personagens? Só no vídeo para as redes sociais?

Para além das definições que enveredam pelas artes da cena, que podemos falar daqui a pouco, as fricções mais interessantes se dão quando esses conceitos tensionam as questões sociais alinhavadas pela dramaturgia.

A situação que desencadeou a escrita de um dos primeiros poemas de Miró, por exemplo, é trazida ao palco: uma abordagem policial a cinco jovens que estavam a caminho do Centro do Recife. Dali viria Quatro horas e um minuto*, poema publicado em seu primeiro livro, Quem descobriu o azul anil?:

quatro horas
quatro ônibus
levando vinte e quatro
pessoas
tristonhas e solitárias

quatro horas e um minuto
acendi um cigarro
e a cidade pegou fogo

cinco horas
cinco soldados
espancando cinco pivetes
filhos sem pai e
órfãos de pão

seis horas
o Recife reza
e eu voando
pra ver Maria

(Quatro horas e um minuto)

Na cena criada pelo Magiluth, os cinco jovens do bairro dos Coelhos, na periferia do Recife, estão andando e tirando onda pela rua até que um deles é abordado por um policial: “Tá rindo do quê, boy?”. A pergunta é seguida por um tapa.

Quando esses jovens se tornam protagonistas? De que forma eles são protagonistas? Qual a diferença entre um João “dos Coelhos” e um João? Entre um João da Muribeca e um João de Casa Forte? João de Casa Forte precisa ser nomeado? Quais outras estruturas podem servir para nomear João de Casa Forte? O colégio Santa Maria ou o Mackenzie, por exemplo, servem a esse propósito? Por outro lado, quais estruturas inexistem na construção do João da Muribeca, dos Coelhos, do Jardim Romano, de São Miguel Paulista? Um poeta marginal pode ser protagonista?

Um dos trunfos do Magiluth em Estudo nº2 é a engenhosidade na construção da dramaturgia. Poesia virou texto de teatro. Foi cortada, recortada, mudou de lugar, outros textos foram acrescentados, mas a poesia está lá. A obra de Miró está lá, adaptada ao teatro de um jeito imbricado, sem começo, meio ou fim, sem delimitações, invadindo todos os espaços no palco e espraiada.

Além disso, não há uma tentativa de fazer uma peça biográfica ou documental, apesar de alguns elementos biográficos e documentais nos ajudarem a ter pistas dessa pessoa-personagem, como alguns depoimentos de vizinhos de Miró. Mas não há muitas explicações – por exemplo: em nenhum momento o grupo conta que a cena desses jovens virou um dos primeiros poemas de Miró. Ela apenas está, existe, como dramaturgia e poesia, sem a necessidade de muitas explicações, a própria cena dando conta do seu contexto.

Depois de um prólogo estendido, guiado pela pergunta sobre como fazer uma personagem, o Magiluth expõe as suas escolhas para levar Miró personagem ao teatro. E essas escolhas, ao que me parece, carregam certo ineditismo na trajetória do grupo. O que o espectador acompanha é quase um processo de simbiose entre Erivaldo Oliveira, ator protagonista que interpreta Miró, e o poeta. Desde a dramaturgia, quando as fotos de Erivaldo se misturam às referências de Miró. Qual o nome da mãe de Erivaldo mesmo? E do poeta? Quem é filho único? Quem tem muitos irmãos? Os dois perderam as suas mães e esse buraco impactou a vida dos dois, talvez com pesos diferentes.

E essa construção vai alcançando de mansinho a cena – o conhaque que Erivaldo bebe repetidas vezes, a imagem da Muribeca na projeção do telão – e o corpo do ator, que é primeiro Erivaldo, personagem de si mesmo no palco, e vai aos poucos mimetizando Miró. Que imita o seu jeito de andar, de abrir os braços, de se expressar, que carrega a guia no pescoço com o dorso nu. Até que Erivaldo e Miró são um e são múltiplos: ator-personagem no palco, poeta-performer no vídeo.

Não tem como não exaltar o trabalho de Erivaldo Oliveira como ator em Miró. Principalmente para quem, como eu, acompanho o trabalho do grupo há muito tempo. Como quase tudo na vida, o trabalho do ator também é uma construção. Treino, repetição, aperfeiçoamento, faz de novo e novo. Uma das palavras-síntese para Magiluth é processo. Em Miró estão o Erivaldo de Viúva, porém honesta (2012) e da mãe fabulosa que ele ergueu em Apenas o fim do mundo (2019) e que tinha uma cena inesquecível com o Luiz de Pedro Wagner. Erivaldo tem mapeado Miró em sua consciência, em seu corpo, ora ao se conter, ora ao se expandir.

A cena em que se banha é como um nascimento, um batismo, um banho de mar no chuveiro, a cura para o porre de realidade e conhaque e, ao mesmo tempo, uma ode ao que pode vir. As ligações que faz aos poetas amigos, Wellington (Wellington de Melo), Cida (Cida Pedrosa) e Wilson (Wilson Freire), revelam a dor e os dramas internos do poeta-pessoa-personagem em cenas tristes e lindas.

Mas, como disse, a escolha me parece inédita ao grupo: levar uma personagem real à cena mimetizada. Interpretá-la de tal modo que o público possa se impressionar com as semelhanças entre ator e pessoa-personagem.

De outro modo, os polos colocados em cena quando o grupo apresenta, de um lado, a construção de uma personagem dramática, de modo tradicional, com caracterizações, como na cena de Giordano Castro; e de outro, o ator mais cru, que segue a sua intuição, é personagem de si mesmo, como na cena de Bruno Parmera, também não são escolhas recorrentes do grupo ao longo do seu repertório.

O Magiluth geralmente vai por outro caminho, o do ator-performer que não está necessariamente interessado em mimetizações, que ajudou a construir uma dramaturgia em sala de ensaio e, a partir do texto, das ações propostas e do corpo consegue estabelecer um estado de presença que alcança o espectador. Um estado de presença que, do palco, idealmente, integra o espectador à encenação. E o mais interessante no grupo é que esse estado, essa energia que os atores vão erguendo em cena, se dá no coletivo, no jogo e na interação entre aqueles atores, como se um puxasse e mobilizasse o outro até o lugar que desejam alcançar, todos juntos.

E essa é uma das quebras em Miró: Estudo nº2. Esse estado de presença coletivo, do modo como ele acontece em outras encenações, como O ano em que sonhamos perigosamente (2015), Dinamarca (2017) e Estudo nº1: Morte e Vida, por exemplo, não se estabelece da mesma maneira. O protagonismo, neste caso, também está relacionado à presença. Então, na maior parte do tempo, essa linha de forças está desnivelada. É um demérito do espetáculo? Não, é apenas um modo diverso de colocar as peças no tabuleiro da encenação e uma experiência diferente na trajetória do grupo.

Um dos momentos em que essa energia está um pouco mais equilibrada, embora em níveis menores de força, é quando os atores voltam ao procedimento recorrente de criação de cenas curtas, que se desenrolam como um jogo, e incorporam referências e citações de trabalhos anteriores. Se, como disse, processo é palavra-síntese do Magiluth, essas cenas são antropofagia. Olhar para si mesmo, para o mundo, voltar ao que foi, trazer coisas novas, acrescentar camadas de significação.

Por exemplo: pelo menos desde O ano em que sonhamos perigosamente (ou talvez desde Aquilo que o meu olhar guardou para você, 2012) o grupo traz à cena questionamentos sobre a ocupação do espaço urbano e a especulação imobiliária. Em Miró, os diálogos entre um engenheiro e um aprendiz, Giordano Castro e Bruno Parmera, sobre as especificidades na construção de um conjunto habitacional explicitam o descaso com o direito à moradia digna diante da sanha capitalista de construtores – aqueles da mesma laia dos que estão erguendo não sei quantas torres no Cais José Estelita, no Recife. Se antes o grito desesperado chamava por Stella, de Um bonde chamado desejo, em O ano em que sonhamos perigosamente, agora chama por Norma.

(…)

domingo era o dia mais feliz
antes de norma beijar um outro na boca

(Onde estará Norma?)

O casal de Todas as histórias possíveis, experimento criado durante o isolamento social provocado pela pandemia de covid-19, aquele que se forma despretensiosamente e depois ganha a chave da casa do outro, recebe um áudio dizendo o que tem na geladeira e um convite para que fique à vontade, se sinta em casa, pode ser o mesmo casal que passa 22 anos juntos em Miró e depois não consegue imaginar a vida sem o outro?

estou pronto
eu também
foram
deixando para trás 22 anos juntos
naquele apartamento
dentro do elevador nenhuma palavra
térreo
agora teriam 22 mil ruas para seguir
seguiram

nenhum dos 2 sabia pra onde

(Separação)

O morto, que “é bom porque a gente deixa ele lá, no lugar, e quando volta ele tá lá, igual, na mesma posição” e que a gente coloca “flores por cima para esconder o cadáver”, de O ano em que sonhamos perigosamente, aquele que morre de exaustação pela precarização do trabalho em Estudo nº1: Morte e vida e permanece lá, no mesmo lugar, até o fim da peça, talvez aqui haja esperança, talvez ele não tenha morrido, cancelem o coveiro. O coração ainda bate.

(…)

ele pensou que agora estava
definitivamente morto
quando o legista disse:
não
não levem agora
o coração ainda bate
(…)

(Muita hora nessa calma)

Miró talvez seja a resposta mais imediata e ainda um pouco crua e, por isso tão verdadeira e bonita, ao que estamos vivendo. A resposta e a contribuição do Magiluth, porque é o que eles sabem fazer, continuar fazendo teatro, mesmo que o mundo lá fora esteja acabando como foi em O ano… ou nos experimentos durante a pandemia. Se, como dizem na dramaturgia, tentativa é a palavra mais importante no espetáculo, não é também uma das que mais fazem sentido hoje? Se vivenciamos tantas mortes, se perdemos Miró, como trabalhamos esse luto coletivamente, fazemos viva a sua obra e o seu legado, e entregamos juntos beleza e arte? A cidade pega fogo há bastante tempo. Foi o cigarro que eu acendi? Que acendemos juntos e não soubemos como apagar? Agora é hora de voltar a construir a cidade, oxalá sobre bases mais sólidas.

*Os poemas ao longo do texto não necessariamente são citados na íntegra no espetáculo.

Ficha Técnica:
Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Miró: Estudo nº2
Quando: 9 de maio, terça-feira, às 20h, no Teatro de Santa Isabel (ingressos esgotados)
13, 14, 20 e 21 de maio, sábado e domingo, às 19h, no Teatro Apolo (ingressos à venda)
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada), à venda no Sympla

Estudo nº1: Morte e Vida
Quando: 16, 17, 18 e 19 de maio, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada), à venda no Sympla

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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É urgente a amazonização dos mundos
Crítica do espetáculo Altamira 2042

Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Foto: Nereu Jr / Divulgação

Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha.

Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências.

A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio.

Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta para a Natureza.

Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas.

Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense).

Foto Nereu Jr

Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento.

Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz mitos amazônicos, como o da mulher-cobra,

A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia.

A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. 

Foto: Nereu Jr

Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos.

Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo.

No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos:

Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos.

Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”.

O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte.

Cena Expandida

Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.

A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno.

Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.

Ficha técnica:
Altamira 2042
Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha
Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral
Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Jimmy Wong
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro
Figurino: Carla Ferraz
Luzes: Cibele Forjaz
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Foto: Nereu Jr.

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