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A encrenca do bem-estar social
Crítica do espetáculo “Welfare”
Festival de Avignon

 

Welfare , da diretora Julie Deliquet, abriu o Festival de Avignon no Cour d’Honneur du Palais des Papes.  Foto: Pascal Victor/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

“Qual é a obrigação do Estado para com aqueles que não conseguem garantir a própria sobrevivência?”, pergunta o cineasta norte-americano Frederick Wiseman no documentário Welfare, filmado num escritório de assistência social de Nova York, em 1973. Cinquenta anos depois, a encenadora francesa Julie Deliquet refaz a questão na adaptação teatral do filme, de título igual.

Welfare abriu a 77ª edição do Festival d’Avignon, na noite de quarta-feira (e segue até 14 de julho), no Cour d’Honneur, o pátio principal do Palais des Papes, icônico espaço desse evento cênico francês, que atrai espectadores de todo o mundo. 

Welfare é um importante documentário sobre o sistema de bem-estar social nos Estados Unidos da década de 1970. Não houve atualização do filme à peça para os dias de hoje, mas são detectados pontos de convergência com a proteção social na França.

Abrir o festival com exploração de nó difícil de desatar de algumas sociedades não deixa de ser uma ousadia do diretor do evento Tiago Rodrigues, português que estreia no cargo nesta edição. E é muito interessante que seja a encenação de uma mulher a abrir Avignon, por toda competência, mas uma diretora. Porque ainda hoje o desequilíbrio continua na ocupação dos lugares de poder nas diversas atividades.

Antes da cena começar, a encenadora Julie Deliquet e o diretor Tiago Rodrigues ficaram à frente do palco e pediram um minuto de silêncio em memória de Nahel, rapaz de 17 anos, morto por um policial francês durante uma blitz de trânsito em Nanterre, nos arredores de Paris, em junho. O silêncio “grita”.

Vamos ao jogo. Quando entro de última hora (porque só consegui o ingresso no último minuto), as cabanas já haviam sido fechadas e os atores estavam espalhados pelo enorme palco do Cour d’honneur. O cenário é um ginásio convertido em centro social, sem divisória. Que tipo de esporte a encenadora está propondo? O palco parece grande demais para a forma em que o jogo é instalado. Durante as quase três horas de duração, a luz da plateia fica acesa.

No palco, 15 excelentes atores ocupam duas posições do confronto: beneficiários sociais e funcionários do sistema. Mulheres e homens em situação de extrema pobreza, os fracassados da sociedade capitalista, que aguardam atendimento num centro de assistência social em NY no último dia antes das férias de 1973.

Todos transitam nessa cena a exigir migalhas para não morrer e expõem circunstâncias desesperadoras. Uma mãe de quatro filhos, grávida do quinto, demanda cheque-auxílio; uma velha com o marido hospitalizado; um cara que saiu da prisão; um casal com deficiência que não consegue trabalhar; um velho que perdeu o emprego após uma cirurgia; e por aí vai. São pessoas quebradas, economicamente miseráveis, que tentam se agarrar ao serviço de bem-estar para não sucumbir.

De um lado esses indigentes com urgências inadiáveis, a comida, o aluguel, a doença. Do outro, os representantes do baixo escalão da seguridade – inclusive um sargento da segurança que sofre racismo por parte de um usuário da seguridade -, que, às vezes, mostram boa-vontade em resolver os problemas, mas assumem o papel burocrático nos embates travados, na passagem do problema para outro funcionário, na constatação “é complicado”, “não foi possível”, etc. A peça aproxima-se dos enredos kafkianos, da burocracia da França, das agências do INSS.

Chamou atenção a escolha do elenco, esses corpos no palco, grandes e pequenos, negros, não brancos e pouco brancos. Isso diz sobre as escolhas da encenadora Julie Deliquet, diretora do Centro Dramático Nacional de Saint-Denis desde março de 2020.

A clivagem entre pobres, que estão no palco, e ricos, que estão fora desse platô, aciona algum mecanismo de incômodo. A classe com poder está ausente, mas assombra.

Aquelas figuras no limite de perderem a dignidade repetem a mesma história e quanto mais distantes forem os ouvidos de quem escuta, mais enfadonhos ficam esses falatórios. É uma ladainha só, sem horizonte de cessar o tormento. As narrativas se repetem com pequenas variações. Um exagero aqui, uma possível mentira acolá. Sem ápice, praticamente numa monotonia dramática. A cena não desperta entusiasmo. Quase um looping. Se a ideia era exasperar, conseguiu, nesse fluxo contínuo. 

Muita gente saiu durante a apresentação. Esse desconforto que gerou o movimento de saída da plateia é apenas uma reação à forma iterativa da estética do palco? Parece-me que sim e não. As escolhas da diretora Julie Deliquet investem numa tensão interna entre os dois campos, exploram o humor cáustico nos depoimentos dos demandantes. E deixam evidente que os dois lados perdem nessa partida. Pois, no caso desses dois grupos, eles não estão tão distantes nos seus lugares sociais.

Duas cenas quebram a monotonia da repetição das histórias: o jogo de basquete entre o guarda e um dos demandantes e a música executada ao vivo nessa espécie de intervalo do atendimento da repartição.

No final, não há soluções mágicas ou deus ex machina para quebrar o mecanismo do aparato administrativo massacrante. O capitalismo fabrica seus jogos insolúveis.

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Ficha técnica:

Com Julie André (Elaine Silver) Astrid Bayiha (Mme Turner) Éric Charon (Larry Rivera) Salif Cisse (Jason Harris) Aleksandra de Cizancourt (Elzbieta Zimmerman) Évelyne Didi (Mme Gaskin) Olivier Faliez (Noel Garcia) Vincent Garanger (M. Cooper) Zakariya Gouram (M. Hirsch) Nama Keita (Mlle Gaskin) Mexianu Medenou (Lenny Fox) Marie Payen (Valerie Johnson) Agnès Ramy (Roz Bates) David Seigneur (Sam Ross) e Thibault Perriard (John Sullivan, músico)
Baseado no filme de
Frederick Wiseman
Tradução:
Marie-Pierre Duhamel Muller
Encenação:
 Julie Deliquet
Adaptação cênica:
Julie André, Julie Deliquet, Florence Seyvos
Colaboração artística:
 Anne Barbot, Pascale Fournier
Cenografia:
Julie Deliquet, Zoé Pautet
Luz:
Vyara Stefanova
Música:
Thibault Perriard
Figurino:
Julie Scobeltzine
Marionete:
Carole Allemand
Assistente de figurino:
 Marion Duvinage
Camareira:
 Nelly Geyres
Adereços
François Sallé, Bertrand Sombsthay, Wilfrid Dulouart, Frédéric Gillmann, Anouk Savoy – Atelier du Théâtre Gérard Philipe Centre dramatique national de Saint-Denis
Operação técnica geral:
 Pascal Gallepe
Diretor de palco:
Bertrand Sombsthay
Operador de luz:
Jean-Gabriel Valot
Operador de som:
Pierre De Cintaz
Tradução para o inglês para legendagem:
Panthea

Produção: Théâtre Gérard Philipe CDN de Saint-Denis
Coprodução: Festival d’Avignon, Comédie CDN de Reims, Théâtre Dijon Bourgogne CDN, Comédie de Genève, La Coursive Scène nationale de La Rochelle, Le Quartz Scène nationale de Brest, Théâtre de l’Union CDN du Limousin, L’Archipel Scène nationale de Perpignan, La Passerelle Scène nationale de Saint-Brieuc, CDN Orléans Centre-Val de Loire, Les Célestins Théâtre de Lyon, Cercle des partenaires du TGP Avec le soutien du Groupe TSF, VINCI Autoroutes, The Pershing Square Foundation, The Laura Pels International Foundation for Theater, Alios Développement, FACE Contemporary Theater, un programme de la Villa Albertine et FACE Foundation en partenariat avec l’Ambassade de France aux États-Unis, King’s Fountain, Fonds de Dotation Ambition Saint-Denis, Région Île-de-France, Conseil départemental de la Seine-Saint-Denis et pour la 77e édition du Festival d’Avignon : Fondation Ammodo et Spedidam
Residência:
 La FabricA du Festival d’Avignon
Gravação em parceria:
 France Télévisions
Com o apoio de:
 l’Onda pour l’audiodescription
Les films de Frederick Wiseman sont produits par Zipporah Films.
Agradecimentos: Patrick Braouezec, Pauline Legros, Anna Genet, Samuel Jérôme–Bourgeois, Lucile Miège, Odile et Gérard Haudebert, Madame Legal et l’équipe de l’école Vaucanson de Paris, les élèves et les enseignants des écoles L’Estrée, Louis Blériot et Jules Vallès de Saint-Denis, le gymnase Maurice Bacquet de Saint- Denis, Pauline MacEachran, Benjamin Larsimont et l’équipe du 110 Centre socioculturel coopératif de Saint-Denis, Marie Potiron et Mandela, Maty Diallo- Ouedda, Moussa Diallo-Ouedda, Keyah Ido-Benisty et Néhanda Ido-Benisty, Julien Gidoin

Em memória de Marie-Pierre Duhamel Muller

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Inimigos do fim
Frescor de começos
Crítica de Entre les lignes,
espetáculo de Tiago Rodrigues

Tonan Quito na peça Entre les lignes, de Tiago Rodrigues, em Paris, Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

Percebo Entre les lignes como uma jornada por um labirinto, uma descoberta em sequência de bonecas russas, un mille-feuille cênico. Essas imagens chegam repletas de ideias de jogo e de muitas camadas agregadas com desafios, encaixes e algum sabor. O espetáculo do encenador português Tiago Rodrigues com o ator Tónan Quito erguido em fevereiro de 2013 em Lisboa, recriado em março de 2016, numa versão francesa, no âmbito do festival Terres de Paroles é intrigante. Produz no palco muitas reflexões acerca da criação, da cumplicidade, da ficção, do status de verdade, do dito e do não-dito, da presença.

Muitas associações possíveis nessa construção rizômica; nessas aberturas de pensamentos. São tantas propostas para chegar ao coração do teatro, talvez do que flameja esse coração que é teatro, que pulsa tanto até contagiar a plateia.

Assisti Entre les lignes nos últimos dias da curta temporada no Athénée Théâtre Louis-Jouvet, em Paris, onde ficou em cartaz entre 23 de novembro e 17 de dezembro de 2022, mas a peça segue em turnê de apresentações em abril de 2023 em Aix en Provence (Bois de l’Aune), em Toulouse (Théâtre Garonne), em maio em Creil (La Faïencerie).

Depois de subir algumas escadas e chegar ao poleiro, na Sala Christian-Bérard, um espaço intimista de 91 lugares no quarto andar do teatro (e isso já é uma experiência forte, seguir em comitiva por aquelas escadas com pouca iluminação e plenas de histórias), encontramos Tónan Quito, um intérprete maduro de barba grisalha, que aguarda o público se acomodar até perguntar: “Nós podemos ir?”

São muitas camadas desse complexo e intrigante espetáculo. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

No palco uma mesa, uma máquina de café, uma cadeira, lâmpadas fluorescentes tubulares brancas  no chão. Tonan Quito usa jogging e tênis. Tem o olhar apreensivo. Oferece um café à plateia. Alguém aceita. O ator bebe o seu. É uma sala de ensaio.  Mas pode ser outros lugares, vagando entre o passado e o futuro.  

Pega um livro e lê a carta de um preso para sua mãe. A mensagem está emaranhada com o diálogo de Édipo e Tirésias. “Mãe, decidi escrever-te esta carta, mesmo que não a quisesse endereçar a ti, esta carta que escrevo nas entrelinhas deste antigo livro é para o papá”. Tónan Quito conta ter encontrado um exemplar dessa obra na biblioteca do pai, comprado a um major de Moçambique. Duas histórias de parricidas.

O espetáculo é apresentado em francês, com extratos em português e legendas em francês. A tradução projetada ao fundo do palco – do texto de Sófocles e a carta do detento – ganha tipografias distintas.

Essas narrativas se cruzam imperiosas, promovendo tensões e erguendo obstáculos a uma compreensão rápida. Siga o fluxo. O processo é vertiginoso.

As dúvidas da criação são exposta na peça. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

O ator interrompe as histórias contadas para conjecturar em francês que espera o seu texto para o ensaio mas, como sempre, Tiago está atrasado. A fidelidade, a cumplicidade entre os dois artistas são evidenciadas entre esperas e reminiscências, desejos que a cena se materialize e medo de que isso não ocorra. Vêm a tona os posicionamentos no mundo e processos criativos. Nesses bastidores da criação o ator sabe e diz que as coisas fervilham na cabeça do dramaturgo/diretor mas… tem medo, mesmo sabendo que é sempre assim.

Confessa que é um jogo, que eles inventaram. Um jogo da criação teatral; um exercício sublime, delicado e frágil e tão carregado de dúvidas. Um complexo e exigente texto. Essa linguagem poderosa magnetiza os espectadores em Paris, 

Numa entrevista, o encenador Tiago Rodrigues (novo diretor do Festival de Avignon) falou que “a ideia do fracasso” ocupava o centro da sua peça Entre les Lignes, que isso pulsava no núcleo do desejo de fazer o espetáculo. Sem dúvida é de uma potência imensa testar a possibilidade de falha. Isso ocupa o palco, o pensamento, a vida.

Arma-se um labirinto sem começo e sem fim. De um café lisboeta – ponto de encontro de Tiago Rodrigues com Tónan Quito -, ao palácio em Tebas, o apartamento do encenador, os corredores de uma cadeia. Atalhos e desvios… Lugares de encontros imprevistos. Dos desafios da navegação lançados por Deleuze e Guattari, Tónan Quito propõe uma viagem entre passado, presente e futuro.

Nessa mise en abyme, as histórias vão se entrelaçando, do parricídio eternizado por Sófocles, as razões de um condenado à prisão perpétua, de um diretor que nunca aparece e até um pequeno excerto de Dom Quixote de Cervantes. Essas várias superfícies de textos são ambiciosas. Somos desafiados a encontrar começos em sinapses múltiplas.

Tonan Quito no l’Athénée-Théâtre Louis Jouvet, em Paris. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

O dramaturgo justifica sua ausência por um problema de visão que o impede de ler. Essa cegueira (metafórica? )chama Tirésias para a dança. Já o alardeado sumiço revela os bastidores, os preparativos, as engrenagens a reforçar a vocação coletiva do teatro. Tiago Rodrigues não está lá e está. Tudo é matéria do espetáculo. Sobretudo a presença.

A atuação de Tónan Quito é brilhante. A plateia segue o ator encantada, se entrega ao jogo inteligente, ri das partes mais humoradas.  Ele mostra virtuosismo, até nas indicações cênicas mais caricaturais entre o drama e farsa. O público ri e adere. Achei excessivo o caricaturesco. Meus olhos reclamaram das lâmpadas fluorescentes acendidas para pontuar alguma mudança e utilizadas quase como personagem na cena da paródia.

O ator pede a alguém do público que faça a última leitura do texto Entre les Lignes, distribuído à plateia em formato de livreto.

E encerra dizendo que que a peça não aconteceu. Que pode estar apontada no futuro, por não ter assentada no passado. Intrigante. a complexidade da escrita prossegue em sua dinâmica de trocas estreitas. Essa desapropriação temporal. Essa insistência na transgressão. Essa infinita busca pelo frescor do começo.

Entre les lignes
Uma criação de Tiago Rodrigues & Tónan Quito
Texto Tiago Rodrigues
Com Tónan Quito
Colaboração artística Magda Bizarro
Cenografia, ilustração, figurinos Magda Bizarro, Tiago Rodrigues, Tónan Quito
Direção técnica André Pato
Tradução francesa Thomas Rasendes
Legendas Sónia De Almeida
Produção associada OTTO Productions – Nicolas Roux & Lucila Piffer
Produção original Magda Bizarro & Rita Mendes
Projeto da empresa Mundo Perfeito (2013) com o apoio do Governo Português e da DGArtes.
Duração: 1h20

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Iniciativa de crítica teatral.

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