Arquivo do Autor: Ivana Moura

Ilusões perdidas
Crítica do espetáculo “Esperanza”
7ª edição MIRADA

A visualidade da cena é sombria, soturna. Foto: Paola Vera / Divulgação

Esperanza, uma colaboração entre a diretora Marisol Palacios e o dramaturgo Aldo Miyashiro, propõe-se a ser um retrato crítico da sociedade peruana dos anos 1980, focalizando uma família de classe média em Lima. Fico a pensar de qual ou de quais esperanças eles estão se referindo desde o título. Da a ideia da “esperança concreta”, uma força motriz para a mudança social e política inspirada em Ernst Bloch? Uma chama que ilumina a escuridão, uma energia que sustenta a luta pela justiça e pela liberdade, poetizada por Pablo Neruda? Ou a crítica de Nietzsche, que considera a esperança uma ilusão que prolonga o sofrimento? Ou mesmo numa interpretação livre do termo, uma expectativa matemática, que pode ser referida como “valor esperado” ou “esperança matemática”, da Teoria das Probabilidades, de William Feller? Ou nos voltamos para as articulações de Paulo Freire, que faz uma distinção entre “esperança” (passiva) e “esperançar” (ativa)? Para Freire, a esperança passiva é uma espera por algo que pode ou não acontecer, enquanto “esperançar” é uma ação ativa, uma prática que envolve luta e transformação social.

O núcleo da trama gira em torno da visita iminente de um candidato a prefeito, evento que o patriarca vê como sua chance de salvação. Essa personagem encarna a busca por uma saída individualizada diante de uma situação que atinge a população de seu país – de violência e miséria econômica. . Sua obsessão em oferecer um banquete, quando a família mal tem o que comer no dia a dia, exemplifica como a busca por “salvar a pele” pode cegar alguém para as necessidades reais e imediatas.

O espetáculo teatral se desenrola no interior dessa casa de classe média em Lima, Peru, ao longo de um único dia. No cenário vemos mesa e cadeiras, ao fundo a cozinha, uma televisão de tubo, sofá, telefone, uma escada que leva ao primeiro andar, uma porta. A motiv-ação, a força que faz o dia caminhar e esse almoço organizado pelo pai da família para um político aguardado em vão. O pai, empolgado com a perspectiva ilusória de ascensão social, não percebe o caos que consome e deteriora as relações familiares.

O clima tenso dentro de casa reflete um período histórico específico marcado por expectativas de dias melhores, às voltas com a carestia e uma crescente violência no país. Os gestos largos do pai são confrontados com os gestos pequenos da mãe e dos filhos. Enquanto o pai se perde em seus delírios de grandeza, forçando sua esposa a situações humilhantes para conseguir ingredientes fiado nos armazéns da vizinhança, um drama silencioso permeia o lar: o filho caçula está desaparecido. 

A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão. Foto: Divulgação

Esperanza, uma peça que prometia mergulhar nos complexos tecidos sociais e familiares do Peru dos anos 80, mas não chega como uma análise penetrante das suas dinâmicas. Apesar de momentos de insight e ambições louváveis, a peça frequentemente se mostra esticada, como se tivesse vocação para um conto e foi apresentada como romance.

Mesmo com um elenco talentoso e afiado, formado por Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet, o jogo teatral não aparece pleno. Enquanto as atuações são competentes, os personagens muitas vezes se sentem unidimensionais, limitados por um roteiro que não lhes permite desenvolver plenamente.

O patriarca é retratado de maneira quase caricatural, servindo como uma demonstração exagerada de masculinidade tóxica. Esta escolha, embora possa visar a crítica social, acaba por reforçar as normas de gênero prejudiciais, sem oferecer uma reflexão crítica ou alternativas.

A luta da esposa pela sobrevivência da família seria um ponto de partida promissor para discutir a resistência feminina. No entanto, a peça relega essa personagem a um papel secundário, negligenciando a profundidade de sua experiência e a complexidade de sua resistência. A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão, mas sua história não é explorada em profundidade.

As personagens da peça parecem presas numa espera passiva por mudanças, mesmo que haja tentativas frustradas de ação, como os esforços da família para lidar com o desaparecimento do caçula, ou nas investidas anuladas do filho ou da filha de ir embora. O desaparecimento do filho mais novo, um evento potencialmente catalisador para uma crítica social profunda, é minimizado pela obsessão do pai com a visita do político. 

Embora Esperanza capture efetivamente a estética dos anos 80, essa escolha parece inclinar-se para uma nostalgia restaurativa, que busca reconstruir o passado perdido sem questionar na cena suas convulsões sociais e políticas. A direção de Marisol Palacios enfrenta o desafio de tecer juntos os diversos fios temáticos e narrativos de Esperanza. Em alguns momentos, a peça brilha, oferecendo vislumbres do poder que poderia ter se esses elementos fossem mais habilmente entrelaçados.

No entanto, a coesão geral sofre devido a uma abordagem que, em alguns pontos, parece hesitante ou inconsistente. Esperanza é uma obra que, apesar de suas boas intenções e momentos de clareza temática, luta para realizar plenamente seu potencial. A peça se encontra em uma encruzilhada entre a ambição de abordar questões de grande peso social e político e a capacidade de fazê-lo de maneira que ressoe verdadeiramente e com pontes com o presente também sombrio.

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Marisol Palacios e Aldo Miyashiro
Direção: Marisol Palacios
Elenco: Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet
Direção de arte: Micaela Cajahuaringa
Música e design de som: Manolo Barrios e Wicho García
Coordenação de comunicação: Gabriela Zenteno
Coordenação técnica: Juan Escudero
Coordenadora de teatro: Melissa Ramos
Produção geral: Centro Cultural PUCP
Produção executiva: Mariana Baumann
Fotografia cênica: Paola Vera
Operação de luz e som: Christopher Choton e Ari Gume Escobar
Técnica: Richard Sermeño e Baldemiro Negreros
Design gráfico: Shessira Villalobos
Coordenação técnica no Brasil: Melissa Guimarães
Equipe técnica no Brasil: Elaine Batista Silva, Maria Rosa Cangelle Lopes e Sibila Gomes dos Santos
Cenotecnia: Divadlo Produções | Julio Dojcsar
Produção Executiva no Brasil: Jennifer Souza e Jéssica Turbiani   
Direção de Produção no Brasil: SIM! Cultura | Daniele Sampaio 

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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Um Espetáculo de Energia e Tradição
Crítica de “El Teatro es un Sueño”

El teatro es un sueno, do grupo peruano Yuyachkani. Foto: Adauto Perin / Divulgação

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

El Teatro es un Sueño, do grupo peruano Yuyachkani, é uma celebração crítica do teatro, que utiliza elementos culturais e históricos para criar uma experiência de reflexão e comemoração coletiva. Na abertura do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em Santos, na quinta-feira (05/09), a peça eletrizou o público, que participou ativamente com os chamados das personagens mascaradas, dançando e cantando junto, ouvindo e aplaudindo as referências à liberdade e à democracia.

O impacto das figuras com máscaras maximiza-se na entrada com a execução de um frevo rasgado, aquele ritmo pernambucano que aciona mecanismos de alegria no corpo. Em seguida, outras sonoridades igualmente contagiantes da região andina, como a cumbia e outras danças e músicas, tomam conta do ambiente. O Yuyachkani explora os espaços limiares dos rituais e das festas populares, trazendo para o centro da cena elementos da genealogia da história recente do Peru. A peça é composta de fragmentos, de retalhos de outras encenações, o que pode tanto ampliar a experiência quanto causar uma sensação de desconexão para alguns espectadores.

A interação com a plateia em El Teatro es un Sueño é central para a proposta de Yuyachkani, que vê o teatro como um espaço de encontro e jogo coletivo. O público é ativamente convidado a participar, refletir e celebrar, criando uma experiência compartilhada.

As sessões no Mirada contaram, além dos peruanos, com artistas brasileiros que participaram da oficina-montagem no Brasil. A colaboração entre atrizes e atores peruanos e brasileiros valorizou a dimensão intercultural da proposta de encontro e confraternização coletiva do Yuyachkani.

Dois intérpretes, uma atriz e um ator brasileiros, fazem traduções pontuais do que está sendo dito em espanhol, facilitando a compreensão para o público local. Momentos especiais incluem as músicas cantadas pelas estrelas da companhia, com forte conotação política de que estamos sempre em luta.

Inicialmente planejado para ocorrer na praça em frente ao SESC Santos, a apresentação foi transferida para uma área de convivência da entidade devido à ameaça de chuva. Isso se repetiu no dia seguinte pelo mesmo motivo, com o tempo chuvoso. A mudança de espaço trouxe dificuldades como a acústica e o eco, as barreiras de concreto para a evolução dos movimentos e a acomodação das pessoas, que precisaram se deslocar algumas vezes para a passagem dos atores ou dos cenários, como carroças, etc.

A mudança de local afetou a qualidade da apresentação, e a acústica prejudicou a clareza das falas e músicas. Além disso, a estrutura fragmentada da peça pode ter causado uma sensação de desconexão para alguns espectadores, dificultando a compreensão da narrativa como um todo. Mas mesmo com tudo isso, o tom festivo prevaleceu. 

A terceira sessão do espetáculo, no sábado, ocorreu no Emissário Submarino, um parque na divisa de Santos com São Vicente. Nesse local, o espetáculo pôde realizar de forma mais plena suas evoluções das personagens aristocráticas decadentes e anacrônicas, a intervenção dos diabos e dos anjos, o coro de papagaios e as escolhas estéticas do confronto entre os mundos mítico e onírico com as ações cotidianas e corriqueiras. Esse ambiente permitiu uma fruição mais completa da peça, destacando a homenagem ao teatro.

O Yuyachkani é um dos grupos teatrais mais longevos da América Latina.

Ao longo de seus 53 anos de trajetória, o grupo cultural Yuyachkani tem recriado uma genealogia da história recente do Peru, utilizando o teatro como uma ferramenta poderosa para a crítica social e a exaltação cultural. Influenciado por figuras como Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, pelo teatro de Bertolt Brecht e pela própria investigação estética do seu território, o grupo desenvolveu uma experiência artística marcada por uma vocação popular e um compromisso ccom os avanços  sociais e políticos do campo democrático. 

Dentre suas montagens mais significativas estão: La madre (1974), de Brecht; Allpa Rayku, Por la tierra (1978), uma criação coletiva que reflete sobre as lutas pela terra em um contexto de democracia e reforma agrária, enriquecida por uma profunda conexão com elementos culturais andinos; Los músicos ambulantes (1983), um sucesso duradouro que apresenta uma versão livre de Os músicos de Bremen, dos Irmãos Grimm, e de Os saltimbancos, de Chico Buarque; Pishtaco (1988), que marcou a inauguração de sua sala em Magdalena del Mar; Hasta cuándo corazón (1994), uma revisão das estratégias políticas e culturais diante do discurso neoliberal e do terror; Antígona (2000), um monólogo com texto de José Watanabe. As obras Hecho en el Peru: Vitrinas para un museo de la memoria (2001) e Sin título, técnica mixta (2004), exploram a instalação como uma forma de compreender a presença e interagir com a complexa realidade peruana.

A trajetória do Yuyachkani é um testemunho da determinação artística e da capacidade de adaptação do grupo frente às adversidades. Suas produções inspiram uma reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea do país, com suas contradições. El Teatro es un Sueño,  faz uma celebração da arte teatral como um espaço de resistência, encontro e apostas na utopia de mudanças sociais. 

Ficha Técnica

Roteiro e Direção: Miguel Rubio Zapata
Assistente de Direção:  Milagros F. Obando
Produção:  Milagros Quintana, Socorro Naveda
Coordenação Técnica: Alejandro Siles
Assistência Técnica: Jorge Rodríguez Chipana, Teófilo Sánchez, Abraham Silva
Direção Plástica: Segundo Rojas
Apoio Musical:  La Bendita
Direção Musical: Coro Martín Choy
Direção:  Marco Iriarte
Elenco: Rebeca Ralli, Teresa Ralli, Débora Correa, Ana Correa, Julián Vargas, Augusto Casafranca, Miguel Rubio, Milagros F. Obando, Daniel Cano, Ricardo Delgado, Gabriella Paredes, Silvia Tomotaki, Raúl Durand, Miriam Sernaqué, Igor Moreno, Augusto Montero, Segundo Rojas, Vinatea Reynoso Comparsa, Coro Marco Iriarte, La Bendita (Alejandro Siles Vallejos, Daniel Cano, Eduardo Navarro, Julián Vargas, Martín Choy, Milagros F. Obando, Rafael Ávalos Saco)
Artistas Brasileiros: Ana Célia Martins, Alê Fernandes, Allegra Ceccarelli, Arielle Barbosa, Bruno Fracchia, Carlos Becker, Carolina Angrisani, Carolina Rainho, Carolina Braga, Caroline Pessoa, Douglas Souza, Eleonora Artysenk, Elly Gomes, Fellipe Tavares, Gabriel Carrasco, Gustavo Curado, Henrique Nascimento, Julia Prudêncio, Júlia Ohana, Ketty Tassa, Lucas Sellera, Maikon Marinho, Patricia Garibaldi, Pauli Karlovic, Pérola Henríquez, Rafael Petito, Raquel Nascimento, Renata Pa, Rodrigo Alves, Rodrigo Konda, Sabrina Andrade, Sandra Bonomini, Thais Miranda
Banda Convidada: Quizumba Latina
Direção Musical no Brasil: Ugo Castro Alves
Produção Executiva no Brasil: Gustavo Valezi (Cult_B)
Produção no Brasil: Alice Mogadouro, Giovanna Zottis
Assistência Cênica e Produção Local: Criis Almeida, Mariana Procopio
Adaptação de Figurino e Adereços no Brasil: Zizi Lúcio, Norma Lúcio da Rocha
Coordenação Técnica no Brasil: Eduardo Albergaria
Técnicos no Brasil: Pedro Romão, Henrique Manchuria
Administrativo e Financeiro no Brasil: Giselle Bastos
Representação e Direção de Produção no Brasil: AFLORAR CULTURA – Cynthia Margareth

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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MIRADA 2024:
Um Palco para as Urgências da Ibero-América

El teatro es un sueño, montagem peruada, abre o MIRADA na rua. Foto de Ramiro Contreras / Divulgação

Esperanza, do Peru, país homenageado da edição, começa a maratona teatral no palco. Foto: Paola Vera 

  • A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

Vozes da Ibero-América ecoam através das artes cênicas em Santos, cidade litorânea paulista situada a 72 km da capital. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas transforma a Baixada Santista em um vibrante palco internacional, já consolidado em sua sétima edição como um dos principais eventos teatrais do Brasil. Idealizado pelo Sesc São Paulo, o festival bienal ocorre de 5 a 15 de setembro de 2024, ocupa os espaços tradicionais de teatro e se espalha por diversos locais da cidade e seu entorno, incluindo ruas, praças e edifícios históricos.

O MIRADA 2024 apresenta uma programação com 33 espetáculos de 10 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Uruguai), promovendo debates sobre identidade, realidades sociais e crises políticas. além de shows e atividades formativas, uma instalação imersiva e o Mirada Pro – um encontro que reúne programadores e diretores de festivais de artes cênicas tanto do Brasil quanto do exterior.

O festival propõe reflexões sobre temas contemporâneos e urgentes, encarados nas diversas montagens, como questões indígenas, perspectivas decoloniais, relações com a natureza, diversidade e representatividade, deslocamentos humanos e suas implicações sociais.

 Este ano, o festival homenageia o Peru, país que tem demonstrado vitalidade cultural frente a desafios políticos e sociais. Serão apresentados onze trabalhos peruanos, incluindo oito peças teatrais e três performances musicais. A abertura do evento, com El Teatro Es un Sueño, do Grupo Cultural Yuyachkani, leva às ruas de Santos um espetáculo que testemunha a força do teatro comunitário e político. Inspirada no ensaio Notas sobre una Nueva Estética Teatral do poeta peruano César Vallejo, esta produção utiliza música ao vivo, personagens mascarados e interações. 

Também na noite inaugural, Esperanza, do dramaturgo peruano Abel González Melo, transporta o público para o início dos anos 1980 em Lima, período turbulento que sucedeu o regime ditatorial naquele país. Dirigida por Marisol Palacios e Aldo Miyashiro, produzida pela Compañía de Teatro La Plaza, a peça é ambientada no microcosmo de uma residência de classe média e desenrola-se ao longo de um único dia, quando uma família prepara um almoço estratégico para um candidato à prefeitura, visando garantir um cargo ao patriarca. A trama revela as tensões e expõe o contraste entre as aspirações de ascensão social e a realidade caótica do cenário político.

A instalação sinestésica Florestania, concebida pela artista Eliana Monteiro, convida o público a romper com a rotina urbana e mergulhar na experiência sensorial da Amazônia. A obra, que estreou na 15ª Quadrienal de Praga, apresenta 13 redes confeccionadas em fibras de buriti por mulheres indígenas da Amazônia brasileira e peruana. Os visitantes são convidados a se deitar nas redes enquanto escutam, através de fones de ouvido, os sons ambientes de um dia na floresta amazônica. Fica em cartaz durante todo o festival.

La vida em otros planetas foca na educação pública no Peru. Foto: Marina García Burgos / Divulgação

Quemar el bosque contigo adentro. Foto: Paola Vera / Divulgação

Monga, com Jéssica Teixeira. Foto de Ligia Jardim / Divulgação

Existe uma forte presença de obras que exploram a questão feminina sob diversas perspectivas. Dirigido por Mariana de Althaus, La Vida en Otros Planetas traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de professores e alunos. Inspirada no livro Desde el Corazón de la Educación Rural de Daniela Rotalde, a peça incorpora relatos reais de educadores e testemunhos pessoais do elenco. Em um cenário que remete a uma sala de aula, os intérpretes se alternam entre personagens – docentes, estudantes e familiares – e apresentam dados históricos sobre o ensino no país, esse “outro planeta” desassistido pelo sistema. A dramaturgia de Althaus ilumina a precariedade do sistema educacional e questiona o papel da mulher nesse contexto, muitas vezes invisibilizada e subvalorizada.

Outra obra de Mariana de Althaus, Quemar el Bosque Contigo Adentro, reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico que entrelaça natureza e relações sociais. Em um ambiente rodeado de folhas secas e galhos de eucalipto, a montagem expõe a história de três mulheres – avó, mãe e filha – que vivem numa zona rural peruana marcada por abusos contra meninas. A chegada do pai da garota, há anos distante, desvenda feridas silenciadas e traumas profundos. A montagem estabelece uma analogia entre o abuso do corpo feminino e a depredação da natureza.

Já a diretora chilena Paula Aros Gho apresenta Granada, uma releitura do mito grego de Perséfone que investiga a origem da violência patriarcal. Motivada pelas mobilizações feministas da quarta onda no Chile, Gho emprega o mito para abordar a luta contra a violência de gênero. A obra tem um caráter biográfico e contextual, refletindo sobre as experiências pessoais da diretora como professora universitária durante as manifestações de 2018.

¿Dónde Están las Feministas? Conferencia Performática de una Falsa Activista, de Liliana Albornoz Muñoz é uma conferência performática que mergulha nas complexidades e desafios do feminismo contemporâneo. A peça explora, através de sete capítulos e um epílogo, diversos aspectos da vivência feminista, desde estereótipos até incoerências nas atitudes de quem se identifica com o movimento.

Estratagemas Desesperados, concebida e dirigida por Amanda Lyra, é uma abertura de processo fundamentada em escritoras latino-americanas que investigam o horror e a violência em narrativas onde a mulher é o sujeito da ação. O espetáculo examina as manifestações da raiva feminina na sociedade contemporânea, explorando o contraponto entre a passividade do espaço doméstico ancestral e o desejo de um revide violento no âmbito social. Lyra, em sua primeira direção, traz à tona personagens que criam estratagemas desesperados para sobreviver e inverter a lógica de poder, desafiando os padrões morais e culturais de feminilidade.

Em Monga, Jéssica Teixeira continua a pesquisa iniciada em seu primeiro solo, E.L.A., utilizando seu corpo como matéria para a construção dramatúrgica. O trabalho revisita a história de Julia Pastrana, frequentemente referida como “mulher macaco” e transformada em atração de freak shows. Monga traz à tona o gênero do terror psicológico para questionar as normalizações do corpo feminino e derrubar mitos, na perspectiva de construir outros imaginários possíveis.

Yo soy el monstruo que os habla, do filósofo Paulo B. Preciado. Foto: Enric Rubio / Divulgação

Tierra gira em torno da morte da mãe do autor Sergio Blanco. Foto: Nairí Aharonián / Divulgação

Paul B. Preciado destaca-se no âmbito da filosofia e dos estudos sobre identidade e sexualidade, sendo reconhecido por sua abordagem pioneira na teoria queer e por questionar incessantemente as normas convencionais de gênero e sexualidade. A peça Yo Soy el Monstruo que os Habla é uma adaptação teatral de um discurso que Preciado proferiu em 2019 para 3.500 psicanalistas em Paris. O título, Eu Sou o Monstro que Vos Fala, já indica o tom desafiador e provocativo da obra. Preciado, como homem trans e pessoa não-binária, coloca-se na posição do “monstro” – aquele que a sociedade e a ciência tradicionalmente patologizaram.

A produção teatral busca ampliar o impacto do discurso original ao colocar em cena cinco performers trans e não-binários. Estes “monstros” são convidados a sair da “jaula” metafórica em que foram colocados pelas normas sociais vigentes. A peça critica a violência que a psicologia tradicional exerce sobre corpos dissidentes, convida a uma reformulação radical do pensamento sobre gênero e identidade.

Conhecido por sua exploração da autoficção no teatro, o dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sergio Blanco tem consistentemente borrado as linhas entre realidade e ficção em suas obras. Tierra (Terra) é uma peça profundamente pessoal que gira em torno da morte da mãe de Blanco, Liliana Ayestarán, uma respeitada professora de literatura. A obra se passa numa quadra esportiva escolar, com a escrivaninha de sua mãe, criando um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e ressonante.

Neste contexto, Blanco “entrevista” três personagens fictícios que foram alunos de sua mãe. Cada um traz consigo uma história íntima de perda, criando um mosaico de experiências sobre o luto e a memória. Essa configuração possibilita a Blanco investigar tanto sua própria dor quanto o aspecto universal do luto e seu impacto em nossas vidas.

Essa abordagem questiona a natureza da narrativa e da representação teatral, coisa que Blanco já fez em obras como Tebas Land, La Ira de Narciso e El Bramido de Düsseldorf.

Produção argentina A Velocidade da Luz. Foto: Kazuyuki Matsumoto / Divulgação

Montagem Palmasola, sobre o sistema prisional boliviano. Foto: David Campesino / Divulgação

Duas produções site-specific (espaços urbanos transformados em palcos vivos para a exploração de temas sociais complexos) que se destacam no cenário teatral contemporâneo e que estão presentes no MIRADA são A Velocidade da Luz e PALMASOLA – uma cidade-prisão. Essas obras utilizam espaços urbanos para criar experiências provocativas.

A Velocidade da Luz, dirigido pelo argentino Marco Canale, com duração de 180 minutos, é um espetáculo itinerante que convida o público a embarcar em uma jornada pelas ruas da cidade. A peça entrelaça histórias reais de moradores locais com uma trama fictícia. Durante uma residência de quatro semanas, Canale trabalhou com idosos da região para coletar suas memórias e experiências. Esses relatos pessoais foram incorporados à performance, permitindo que os próprios moradores participassem como atores, muitos sem experiência teatral prévia.

Os espectadores são guiados por diferentes locais da cidade, incluindo as casas dos participantes e um local considerado “sagrado” para a comunidade. Em cada parada, histórias são compartilhadas, canções são entoadas, e uma cartografia emocional do território é gradualmente construída.

Criado pelo grupo suíço KLARA-Theaterproduktionen em parceria com artistas bolivianos, PALMASOLA – uma cidade-prisão promete proporcionar uma experiência teatral impactante. Transformando a Casa da Frontaria Azulejada em Santos numa réplica da penitenciária Palmasola em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, a obra se aprofunda na realidade alarmante desse local. Ali, detentos e seus familiares compartilham um cotidiano sob regras próprias, em meio a desigualdades sociais e econômicas marcantes.

A trama avança a partir da ficção de um viajante estrangeiro capturado por tráfico de cocaína. Com encenação de Christoph Frick, diretor artístico da KLARA, a obra mescla elementos ficcionais e documentais, apresentando as realidades brutais do sistema prisional. A produção incorpora elementos multimídia, com vídeos que provavelmente ampliam a sensação de imersão e fornecem contexto visual adicional. A música investe na construção da atmosfera e tensão dramática.

A montagem paulista Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento em destaque, sob a direção de Naruna Costa e texto de Jhonny Salaberg, lança um olhar crítico sobre o sistema prisional feminino no Brasil, com foco especial nas mulheres negras e mães.

O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona traz à cena Esperando Godot. Nesta interpretação da clássica peça de Samuel Beckett, que serve como uma metáfora para a desolação pós-conflitos bélicos, o grupo propõe uma ruptura com a noção de messianismo, incentivando uma postura ativa e um apreço pelo viver o momento. 

O Grupo MEXA prossegue com sua exploração em torno do teatro baseado na realidade e do documentário teatral através de Poperópera Transatlântica. Este trabalho tece uma conexão entre as vivências pessoais dos membros do elenco e o poema épico Odisseia, de Homero. 

O Estado do Mundo (Quando Acordas), de Portugal. Foto: Manuel Lino / Divulgação

Vila Socó rememora tragédia de bairro operário. Foto: Sander Newton / Divulgação

Contra Xawara, com Juão Nyn. Foto: Bruna Damasceno / Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), da companhia portuguesa Formiga Atómica, e Vila Socó, pelo brasileiro Coletivo 302, compartilham uma preocupação com as consequências ambientais e sociais de ações humanas, destacando a urgência de uma consciência coletiva voltada para a sustentabilidade. A tragédia industrial narrada em Vila Socó é resgatada através de uma experiência imersiva que resgata a memória e a história de um bairro operário.

A preocupação ambiental é radicalizada no manifesto performático Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta, do brasileiro Juão Nyn, que discute as enfermidades e explorações trazidas pelo contato entre povos originários e colonizadores e suas consequências duradouras sobre as comunidades indígenas.

Ubu Tropical, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz _Foto: Maíra Ali Lacerda Flores / Divulgação

G.O.L.P. Foto: João Octávio Peixoto / Divulgação

Cabaré Coragem. Foto de Guto Muniz / Divulgação

A temática da ambição pelo poder e suas consequências devastadoras é explorada em Ubu Tropical e Mendoza. A primeira, uma produção da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do Brasil, utiliza a sátira para criticar a corrupção e a estupidez no poder, inspirando-se na obra de Alfred Jarry e refletindo sobre o cenário político brasileiro com influências do tropicalismo e modernismo. Enquanto El Presidente Más Feliz (Peru) é uma sátira que discute a corrupção e o abuso de poder, utilizando dança, música e criações audiovisuais para retratar a polarização e a fragmentação social.

Por outro lado, Mendoza, da companhia mexicana Los Colochos Teatro, reimagina a tragédia de Macbeth para o contexto da Revolução Mexicana, oferecendo uma perspectiva crítica sobre a luta pelo poder e suas implicações sangrentas.

G.O.L.P., um esforço conjunto do Teatro Experimental do Porto de Portugal e do Teatro La María do Chile, introduz uma camada adicional de complexidade ao debater a eficácia dos sistemas políticos através de uma ucronia (subgênero da ficção, que explora realidades alternativas baseadas em “e se” históricos. A ucronia reimagina o passado, propondo um desvio em eventos históricos conhecidos, resultando em um presente ou futuro alternativo) que contrasta um Portugal comunista idealizado com um Chile democrático em crise. A encenação questiona a capacidade de aprender com o passado para moldar futuros mais promissores, adicionando ironia e reflexão sobre a natureza cíclica do poder e da política.

Cabaré Coragem, apresentado pelo Grupo Galpão, do Brasil, reafirma o papel vital da arte como um meio de resistência. Inspirado na obra de Bertolt Brecht, esse espetáculo mistura teatro, música e dança, celebrando a identidade e a persistência artística frente às adversidades, e ecoando as preocupações com o poder e a corrupção presentes nas outras obras.

El Rincon De Los Muertos, do Peru. Foto: Claudia Cordova Zignago / Divulgação

Arqueologias do Futuro. Foto: Rodrigo Menezes / Divulgação

Historia de una oveja. Foto de CNA (Centro Nacional de las Artes – Delia

El Rincón De Los Muertos, monólogo protagonizado pelo ator Ricardo Bromley, mergulha nos ciclos de violência que marcaram profundamente a cidade de Ayacucho, situada na região dos Andes peruanos. Mama Angélica, pela Antares Teatro, conta a história de Angélica Mendoza de Ascarza, uma ativista social que busca seu filho desaparecido, refletindo sobre os direitos humanos e o impacto da violência política no Peru.

Historia de una Oveja, pela colombiana Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes, expande essa discussão ao trazer à tona as histórias de deslocamento e busca por identidade. Enquanto Subterrâneo, um Musical Obscuro, uma colaboração entre os portugueses da Má-Criação e os brasileiros do Foguetes Maravilha e Dimenti, é inspirado no acidente da mina San José no Chile. O espetáculo imagina as histórias dos 33 homens presos.

Arqueologias do Futuro, de Mauricio Lima e Dadado de Freitas, combina memórias pessoais do artista Mauricio Lima com vídeo depoimentos de jovens envolvidos no projeto Museu dos Meninos. Esse trabalho investiga as narrativas corporais, questionando quais corpos são reconhecidos e ouvidos, além de refletir sobre quem possui a autoridade para contar suas próprias histórias.

As Cores da América Latina. Foto: Hamylle Nobre / Divulgação

Azira’i, da atriz Zahy Tentehar. Foto: Annelize Tozetto / Divulgação

VAPOR, ocupação infiltrável (Brasil) e As Cores da América Latina (Brasil) são destaques na dança. VAPOR utiliza a capoeira e o breaking para criar uma dança não simétrica que emerge de movimentos cotidianos, refletindo sobre a invisibilidade social dos jovens nas periferias brasileiras. Já As Cores da América Latina celebra tradições culturais latino-americanas, como a Fiesta de la Tirana e o Cavalo Marinho, propondo um diálogo entre essas manifestações e elementos do teatro, para contar a história do último Fofão do Carnaval maranhense. Ambas as produções exploram a ressignificação de fronteiras e a preservação das tradições culturais.

De Mãos Dadas com Minha Irmã mescla técnicas teatrais e linguagens afro-brasileiras para narrar a trajetória da heroína Obá, explorando a desvalorização das mulheres e a importância da memória cultural. 

A encenação argentina Sombras, Por Supuesto e a produção brasileira Azira’i trazem narrativas intimistas e pessoais, explorando a ausência e a memória. Sombras, Por Supuesto inspira-se no universo de Rainer Werner Fassbinder para criar uma trama realista com diálogos absurdos, enquanto Azira’i narra a relação da atriz Zahy Tentehar com sua mãe, a primeira mulher pajé de sua reserva indígena, utilizando elementos da cultura indígena e da memória pessoal. Essas produções investem no mergulho emocional de histórias que exploram a identidade e a herança cultural.

Teuda Bara, atriz de Cabaré Coragem, do Grupo Galpão participa do Encontro ao Vivo. Foto de Nayra Maria 

O MIRADA inclui atividades formativas, encontros críticos e apresentações musicais, como a da banda de cúmbia peruana Los Mirlos.

Os Encontros ao Vivo, as entrevista, com a mediação da jornalista Adriana Couto serão oportunidade de conhecer um pouco mais de alguns artistas e pensadores das artes cênicas ibero-americanas. Miguel Rubio Zapata e Marisol Palacios discutirão o potencial transformador do teatro na sociedade e a importância dos festivais como espaços de inovação. Daniel Veiga e Faby Hernández abordarão a representatividade e a identidade, destacando a arte como um meio de ativismo e inclusão. Teuda Bara e Mariana de Althaus conversarão sobre a intersecção entre dramaturgia e atuação, explorando como o teatro reflete e constrói realidades. Ricardo Bromley e Jéssica Teixeira compartilharão suas experiências em trabalhos que questionam memória, identidade e o uso do corpo na arte, sublinhando o papel da expressão artística como veículo de transformação social.

O Boteco Crítico é iniciativa que recria a atmosfera descontraída das conversas pós-espetáculo, convidando o público a participar de debates informais sobre as obras apresentadas. A ação neste festival é conduzido por um grupo de críticos teatrais Amilton Azevedo, Fernando Pivotto, Heloisa Sousa, Guilherme Diniz e Fredda Amorim; os quatro primeiros do do projeto Arquipélago.

O festival também oferece uma série de oficinas e aulas abertas, como a oficina com Ricardo Aleixo, que explora a poética da performance, e a aula aberta com Cristian Duarte, que propõe uma experiência coletiva de movimento e dança.

Os Encontros para o Futuro reúnem artistas, pensadores e fazedores de arte para discutir proposições criativas e reflexões sobre o futuro das práticas artísticas. Mediados por profissionais como Cristina Moura e Márcio Abreu, essas ações oferecem um espaço para diálogos abertos sobre os caminhos possíveis para a arte contemporânea.

Programação completa e mais informações em:  https://sescsp.org.br/mirada

Serviço:

MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas
Data: 5 a 15 de setembro de 2024
Local: Santos, SP, Brasil
Ingressos: Disponíveis no portal do Sesc SP, app Credencial Sesc SP, Central de Relacionamento Sesc SP, e nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo. (https://sescsp.org.br/mirada).
Preços:
R$ 10 (credencial plena)
R$ 20 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 40 (inteira)

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Agora Crítica, CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Jornada de resistência e busca por liberdade
Crítica da peça Alguém pra fugir comigo

Espetáculo recifense Alguém para fugir comigo. Foto: Ivana Moura

Alguém pra fugir comigo é um espetáculo de estrutura fragmentada e não linear, do Resta 1 Coletivo de Teatro, do Recife, que expõe diversas formas de opressão e de resistência em diferentes tempos – desde o “período escravocrata” até os dias atuais. A peça tem apelos de humanidades perdidas; ou clamor desesperado de que seja possível encontrar algum fio que leve ao coração das trevas.

Como se configuram os dispositivos da montagem, a peça parece abraçar as ideias de Chimamanda Ngozi Adichie sobre a importância de contar histórias e de evitar o perigo da história única.

Seus personagens, figuras ou flashes humanos são pobres e oprimidos, e a opção da montagem é a partir do olhar de luta delas e deles. Com isso, oferece ao público uma tapeçaria complexa de experiências de pessoas subalternizadas pelo sistema de ontem e de hoje. Pois como diz Adichie, “histórias importam”.

Montado em 2016, o que resultou na formação do Resta 1 Coletivo de Teatro, Alguém pra fugir comigo atravessou o pós-golpe de Dilma Rousseff, sobreviveu à pandemia, e respirou aliviado depois de quase sumir com ações diretas e indiretas do pior presente do Brasil. Isso está encarnado no corpo dos atores, nos fluxos de tensões e distensões da encenação. Nos quadros que se articulam entre si há encaixes perfeitos e outros que não se acomodam, gritam isoladamente.

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, corajosa e pulsante, desafia ao seu jeito, as convenções teatrais, mesclando diferentes estilos e abordagens narrativas. É uma trama que perpassa diferentes tempos e tipos, rasgando temas como desigualdade, resistência, injustiças e afetos. A origem conceitual e os disparadores vêm de textos políticos, líricos, filosóficos; relatos de fatos verídicos e imaginários.

Nessa estrutura estilhaçada se enroscam diferentes épocas e perspectivas. Desde a fuga de Liberdade, uma escravizada que busca escapar dos abusos da casa-grande, até reflexões sobre nossa cidadania vez por outra ameaçada, a peça mexe um caldo de experiências.

Há imagens extremamente potentes, poéticas, comoventes. Existe uma entrega na atuação do elenco, composto por Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. Eles “abraçam” tipos cotidianos em situações extremas e performance mais autoral. Mas há quebras, uns hiatos, umas ruínas expostas que se apresentam febris, mas podem cair em fragilidades.

A direção musical e o desenho de som de Kleber Santana, combinados com a iluminação de Luciana Raposo e o figurino simples em tons pastéis, criam uma atmosfera envolvente. Os trechos musicados e coreografados são carregados de poética onírica.

Personagens questionam como conquistar a liberdade. Foto: Ivana Moura

A peça provoca uma gama de emoções no público, desde risos frouxos com o vocabulário escatológico de algum personagem até momentos de profunda reflexão e comoção. Minha amiga Inocência Galvão foi às lágrimas na sessão de 15 de agosto, no Teatro Apolo.

O grupo vai abrindo caminho em busca de uma linguagem própria. Mas soa como uma provocação/cilada o aviso do elenco de que “não há nada de novo ali” e que o público não deve esperar “isso” e “aquilo”. Pareceu-me um jogo de palavras para trazer o niilismo do quadro difícil que o teatro pernambucano enfrenta há anos e que só piorou. Cria um sentido dúbio sobre a obra. E não sei se devolve o efeito esperado pelos criadores/criadoras da cena.

Até porque, o espetáculo propõe uma escuta cúmplice, empática, de quem está à beira do abismo, de quem não suporta mais tanta pressão, dos momentos em que o mundo espreme tanto que quase não sobra fôlego para viver. E como alimentar a coragem, eles vão perguntando e vendo a resposta adiada.

Alguém pra fugir comigo evita oferecer respostas simplistas ou conforto imediato. Mas mesmo assim, relembra que é fundamental o exercício do afeto, da empatia e da solidariedade, especialmente em tempos de turbulência e incerteza. Talvez por a cena ser dura, com episódios cruéis, sinalize para esse caminho de humanidade.

A direção Analice Croccia e Quiercles Santana. Foto: Ivana Moura

O conceito de fuga é central na encenação, servindo como metáfora para a busca por liberdade e autodescoberta. A peça questiona: “Quando fuga virou sinônimo de liberdade? Justiça é sinônimo de liberdade? Estar livre é o mesmo que estar liberto?” Estas perguntas provocativas convidam o público a refletir sobre o verdadeiro significado de liberdade em diferentes contextos históricos e pessoais.

Através de personagens como Liberdade, a peça explora questões de identidade e pertencimento. A pergunta “Essas são nossas terras e origens?” ressoa profundamente, especialmente no contexto da história brasileira e sua herança colonial.

A direção de Analice Croccia e Quiercles Santana cria um jogo teatral dinâmico, mas com andamentos diferentes, da agilidade à lentidão. O uso de elementos simbólicos, como as malas carregadas pelos atores, funciona como metáfora para as bagagens emocionais e históricas que todos carregamos.

Como a própria peça sugere, qualquer dia desses você pode estar mais frágil e precisar de uma mão, de um braço, de um colo, de um abraço, de um empurrão. Talvez seja bom não esquecer disso.

FICHA TÉCNICA
Atuantes:
@analicecroccia
@ane_clima
@claubarros__
@pedrocaiqueferraz
@pollycabral
@rapha_berna
@wilamysrosendo

Operação de luz de @lucianaraposoluz
Pesquisa musical e execução de @klebersantana_bill
Direção de movimento de @patricia.costabailarina
Preparação de canto de @katarinamenezescanto
Texto de Ana Paula Sá e Quiercles Santana
Encenação de Analice Croccia e @quiercles

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Epifania coletiva
Algumas reflexões sobre o espetáculo
Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir

Fernanda Montenegro do Ibirapuera. Foto: Reprodução

Sim, foi uma noite memorável. Este domingo, 18 de agosto de [ano], entrou para a história do teatro brasileiro com a performance de Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir no Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer. A apresentação foi simultaneamente transmitida na parede traseira do prédio para 15 mil espectadores no parque. O contraste entre a intimidade da leitura e a grandiosidade do espaço aberto criou uma atmosfera única e inesquecível. Quase um show de rock, sem rock in roll, mas com filosofia, literatura, teatro, afetos e outras coisinhas, um espetáculo eletrizante, liberdade na veia.

Confesso que o que me inquietava com Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir para uma multidão no Parque Ibirapuera era que a ação do marketing do banco Itaú  dissipasse a essência teatral, a artesania, o impacto emocional nos espectadores. Enfim, pasteurizasse o ritual.

Por 75 minutos a arte vibrou plena em primeiro plano, que até ingenuamente esqueci da natureza do capital. Com o patrocínio do Itaú, (que sabe que a cultura é um bom negócio), a arte imperou lindamente. Por ser Fernandona imensa, por tudo que ela representa para este país e para a cultura, a política, a cidadania. Por sua postura coerente, por ela estar no imaginário do povo brasileiro como Zulmira (A Falecida, 1965), Romana (Eles Não Usam Black-Tie, 1981), Madame Carlota (A Hora da Estrela, 1985), Dona Margarida (O Que É Isso, Companheiro?, 1997), Dora (Central do Brasil, 1998, papel pelo qual foi indicada ao Oscar), Nossa Senhora (O Auto da Compadecida, 2000), Leocádia Prestes (Olga, 2004), Tránsito Arriza (O Amor nos Tempos do Cólera, 2007), Bibiana Terra Cambará (O Tempo e o Vento, 2013), Dona Matilde (O Beijo no Asfalto, 2018), Eurídice Gusmão (A Vida Invisível, 2019),  Carminha (Piedade, 2021), Eunice Paiva (Ainda Estou Aqui, 2024), para citar alguns filmes.          

Ou das novelas / séries Júlia Albuquerque Soares Camargo (Sangue do Meu Sangue, 1969), Sílvia Toledo (Baila Comigo, 1981), Francisca Newman (Brilhante, 1981), | Charlotte de Alcântara Pereira Barreto- Charlo (Guerra dos Sexos, 1983), Leonarda Furtado Machado-Naná (Cambalacho, 1986), Salomé Szimanski (Rainha da Sucata, 1990), Olga Portela (O Dono do Mundo, 1991),  Jacutinga (Renascer, 1993), Maria Izabel de Souza- Dona Picucha (Doce de Mãe, 2012), Drª. Teresa Petrucceli (Babilônia, 2015), Gilda (Gilda, Lucia e o Bode, 2020) entre muitas outras atuações na telinha.

Ou no palco: Fedra, Dona Doida, The Flash and Crash Days, Dias Felizes, Viver Sem Tempos Mortos, Nelson Rodrigues por Ele Mesmo. Esses são os espetáculos que assisti, da trajetória intensa do teatro da Fernandona. Cada um revestido de seu tempo encarnado de humanidades.

A atriz assina a dramaturgia, baseada no livro A Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir. Foto: Reprodução

Quando Dona Fernanda começou a ler sua versão de A Cerimônia do Adeus de Simone de Beauvoir tudo se iluminou numa mágica complexa para traduzir. A velha dama do teatro, de cabelos brancos, senhora absoluta da técnica de interpretar magnetizava as plateias do auditório e do parque. A multidão entrou em sintonia profunda com aquelas ideias relevantes da filósofa francesa. O silêncio era atravessado por muitas emoções densas, genuínas, choros, risos, lembranças individuais e coletivas.

Eu fiquei entre as 800 pessoas do auditório; minha amiga Gracinha Melo estava junto às 15 mil pessoas do gramado. A experiência dela foi mais ritual, pelo que ela (e outras pessoas contam) e absolutamente deslumbrante. O domingo foi ensolarado, com um final de tarde com temperaturas amenas e uma lua imensa parecia abençoar a atriz e seu público naquele encontro.

Marcado para começar às 19h, o evento iniciou por volta das 19h30, com a participação de Fernanda Torres, filha de Montenegro, que se dirigiu à multidão no parque (com transmissão para a plateia do auditório) para discorrer sobre a relação da mãe com a literatura de Beauvoir. “Essa obra fala, acima de tudo, da liberdade e de sua importância em nossas vidas, não importa a idade ou a origem de cada um”. Fernandinha mencionou que, apesar das vidas diferentes, a liberdade também guiou o percurso de Fernandona. Em seguida, contou que sua mãe foi impactada por O Segundo Sexo quando tinha 20 anos e que, quando ela, a filha, completou 17 anos, a mãe fez questão de lhe dar uma edição de presente.

Ao se aproximar dos 80 anos, Fernanda Montenegro levou a obra de Beauvoir para o palco. Com base no livro A Cerimônia do Adeus e trechos de outras obras foi encenado Viver Sem Tempos Mortos. A atriz enfrentava o luto pela perda de seu marido, o ator Fernando Torres, e de vários companheiros de sua geração artística, e no palco fazia uma poderosa reflexão sobre o passar do tempo, e a finitude.

Fernanda Torres e Fernanda Montenegro. Foto: Ivana Moura

O espetáculo Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir teve uma origem intimista, como relatou Fernanda Torres. Inicialmente concebido para ser apresentado no auditório da Academia Brasileira de Letras, onde Fernanda Montenegro ocupa uma cadeira como imortal, o projeto rapidamente ganhou vida própria.

Após as primeiras apresentações em um pequeno teatro no Rio de Janeiro, o espetáculo conquistou o público de forma surpreendente. O sucesso crescente demandou espaços cada vez maiores para acomodar a audiência entusiasmada. Esta trajetória ascendente culminou na grandiosa apresentação no Parque Ibirapuera, em São Paulo.

Esta evolução do espetáculo – de um ambiente íntimo da ABL para um dos maiores parques urbanos do Brasil – reflete a popularidade de Fernanda Montenegro e o interesse duradouro nas ideias de Simone de Beauvoir. Demonstra, ainda, como uma performance aparentemente simples – uma atriz lendo os escritos de uma filósofa – pode ressoar profundamente com um público diverso e numeroso.

Junto com Fernanda, o público atravessa a infância, adolescência e juventude de Simone de Beauvoir, suas descobertas, aventuras e vida sexual. A narrativa passa pelo horror da Segunda Guerra Mundial e pela juventude contestatória do Maio de 1968, que sacudiu a França e mudou o mundo. Com o filósofo Jean-Paul Sartre sempre presente, Simone vive uma vida intensa até se aproximar da finitude do companheiro intelectual e de seu próprio fim, repleto de novas redescobertas.

Com seu registro único, a atriz magnetizou as paleias. Foto: Reprodução de tela

A apresentação de Fernanda Montenegro extrapolou o espetáculo cultural para se configurar como um poderoso ato político e social. O historiador Eric Hobsbawm, em suas obras, argumentava que a cultura é tanto um reflexo quanto um agente das condições sociais e políticas de seu tempo. Escutar as palavras da filósofa feminista reflete as discussões contemporâneas sobre igualdade de gênero e direitos das mulheres, temas que estão no centro do debate político atual.

Ao refletirmos sobre os avanços e recuos no campo comportamental e as tensões do século 21, é fascinante revisitar o pensamento de Beauvoir sobre o amor. Fernanda Montenegro apresentou a visão ampla e complexa de Beauvoir sobre o amor, começando pelo amor próprio – uma jornada de autodescoberta como mulher e ser pensante. O amor carnal, ou amor sexual, tema recorrente na obra da filósofa, foi abordado com nuances surpreendentes. Com destaque para a relação de Beauvoir com Jean-Paul Sartre, descrita como um amor livre e intelectualmente estimulante. 

Fernanda Montenegro completa 95 anos em outubro; o público cantou parabéns para você. 

O evento no Ibirapuera, com sua produção de alto nível, criou uma atmosfera especial. A qualidade do som permitiu uma boa recepção, enquanto a iluminação gerou intimidade apesar da vastidão do espaço. Momentos de humor provocaram risos coletivos, criando uma sensação de comunhão, enquanto as passagens introspectivas foram recebidas com um silêncio reverente.

Foi inspirador observar a reação do público no gramado. Jovens, possivelmente sem contato prévio com Beauvoir, ouviam atentos. A menção ao livro O Segundo Sexo foi recebida com aplausos entusiasmados, por quem reconhece a importância da obra.

O clímax emocional veio no final, quando as cortinas se abriram revelando a multidão. Nos últimos dez minutos, Fernanda se dirigiu diretamente ao público. Suas palavras sobre o poder do teatro na era digital ressoaram profundamente: “O teatro é uma arte arcaica, primitiva, um ser humano diante de outro trazendo a presença de uma terceira dimensão. Isso está acontecendo em uma era eletrônica.”

As últimas frases do monólogo ganharam relevo, traçando um paralelo entre a trajetória da atriz e os motivos para revisitar Beauvoir: “Não sou escrava do meu passado. O que sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Eu acredito que consegui fazê-lo. Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

“O acaso existe e tem sempre a última palavra”, frase dita nos primeiros minutos do espetáculo, apontam para outras possibilidades e torço que inspire os jovens presentes a fazerem a diferença no mundo, abraçando a liberdade tão celebrada no palco.

Um momento particularmente tocante ocorreu os agradecimentos, quando o público de praticamente 16 mil pessoas espontaneamente cantou “Parabéns para Você” para Fernanda. Emocionada, a atriz declarou que esse era um grande presente, sua grande festa de aniversário, demonstrando sua profunda conexão com o público e sua gratidão pela vida e carreira extraordinárias que tem vivido.

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

 

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