Arquivo mensais:janeiro 2011

Cuestión de principios é para aplaudir de pé

Foto: Ivana Moura

Um belo texto. Dois ótimos atores. Uma direção segura. Um espetáculo para se aplaudir de pé. Cuestión de principios, montagem uruguaia da peça do argentino Roberto Cossa, com direção de Patrícia Yossi; Laura Sánchez e Walter Reyno no elenco, propõe uma reflexão sobre a crise da utopia socialista. A encenação do Montevideo Teatro, do Uruguai, foi exibida ontem e ainda poderá ser vista neste domingo (23), às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Bairro do Recife), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Depois de muito tempo sem se verem, pai e filha estão frente a frente. Ele é um sindicalista de longa militância política, que dedicou a vida para a construção de um novo mundo, sob sua ótica, mais justo. Ela é uma escritora e jornalista bem-sucedida. Ele já tem uns 70 anos e anda com roupas desalinhadas. Ela é elegante. Quando o pai resolve escrever suas memórias, convoca a filha para compor o livro. Com visões de mundo bem distintas, instala-se o confronto, em que ideais e ética estão na berlinda.

O pai comunista é um pouco sectário, mas honesto. Sua filha o questiona, e diz que ele se equivocou. Também estão em jogo os afetos, não só a política. Talvez, sobretudo, os afetos. Já que, como diz o protagonista, que acreditava que, mudando a economia, transformaria o homem. Mas o ser humano não é apenas economia, é também religião e outros fatores.

Um encontro “borrado pelos afetos”. O ex-militante dos Obreiros – um importante movimento esquerdista que lutava contra a ditadura, contra o imperialismo norte-americano e contra o colonialismo – se depara na figura de sua própria filha com tudo contra o qual lutou. Ela está a “serviço” do capitalismo, pertence ao mainstream, é representante da classe média burguesa. E chega ao cúmulo de confessar que sua primeira experiência sexual foi com um homem norte-americano, para se vingar do pai. Não poderia haver castigo pior para ele.

Foto: Ivana Moura

A peça está estruturada em idas e vindas da filha. Primeiro, ela não quer editar o livro do pai. Depois volta atrás e diz que aquilo é uma questão de negócios e assinam um contrato. E nesses confrontos, as verdades de cada um são reveladas. E destoam. As lembranças do velho são questionadas pela jovem. As cenas são rápidas, e nos diálogos sob o pretexto de se falar de política, de ética, eles discordam dos fatos reais. Até chegar à questão familiar. Principal para ela, que teve um pai adorado e ausente.

Os dois personagens atuam em campos opostos para defender suas argumentações. E elas são fortes. A composição de cada figura é encantadora. Ela é firme, decidida, mais pragmática, revela o outro lado. O gestual dele traz a carga emocional de um homem que sonhou com um mundo diferente e é obrigado a rever sua história. E o diálogo é cheio de humor, de nuances, de delicadeza. O livro será publicado ou não? Bem, isso talvez não importe tanto assim.

Postado com as tags: , , , , , ,

A beleza do Retábulo

Foto: Ivana Moura

Luiz Carlos Vasconcelos, depois da estreia da peça Retábulo, na sede do Teatro Piollin, disse que o espetáculo não está pronto. Que muitos assombros e surpresas vão surgir do corpo dos atores nos próximos meses da temporada que iniciou nesta quinta-feira em João Pessoa, Paraíba, e segue até março. Se essa montagem já expõe sinais de arrebatamento, imagine quando for inflada de beleza no laboratório de Vasconcelos?! São apostas de que consiga se igualar ou superar em pulsação e vivacidade a encenação emblemática do grupo, Vau da Sarapalha (do texto de Guimarães Rosa), que desde que foi lançada, em 1992, seduziu plateias brasileiras e de outros países.

O texto é uma prosa experimental de Osman Lins, autor também do romance Avalovara e de Lisbela e o Prisioneiro (popularizado por Guel Arraes no cinema e na TV), entre outras preciosidades. Retábulo de Santa Joana Carolina, uma das narrativas do livro Nove, Novena, foi publicado em 1966, sob os aplausos dos críticos, pasmados com a inovação poética do escritor pernambucano. Foi a guinada na carreira de Osman Lins. Na ficção, Osman homenageia sua avó paterna, sacralizando sua trajetória de dignidade, generosidade e bondade.

No palco, o encenador retirou o aspecto de santificação e investiu na dureza do trajeto humano, de uma mulher do povo, assaltada por perdas, invejas e traições. O grupo paraibano, que tem uma atuação voltada para a formulação de novas linguagens cênicas, arrisca mais uma vez. Forma e conteúdo trilham num caminho radical. Para isso, Luiz Carlos Vasconcelos lançou mão de outro procedimento osmaniano, o do romance Avalovara. Em Avalovara, o escritor concebe a narrativa a partir de um palíndromo latino (Sator ArepoTenet Opera Rotas), que quer dizer: “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos”. Ou ainda: “O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”.

Esse artifício geométrico está no palco nas 25 casas (quadrados) desenhados no chão que compõem o tabuleiro e são milimetricamente ocupadas pelos atores no desenvolvimento dos 12 mistérios. Nessa intenção de uma cena aperspectiva, o foco narrativo é multiplicado no seu descentramento, a história é contada de forma descontínua e fragmentada. Nisso reside sua força, numa forma que inquieta e exige uma postura ativa do espectador, que poderá se incomodar e perder uma ou outra coisa dessa fábula, devido a agilidade narrativa, ou cruzamento de episódios. Ou na passagem de personagens, interpretados por mais de um ator. “Osman dialoga com a cena contemporânea, do pós-dramático e tudo isso e nos coloca esse desafio”, comemora um entusiasmado Luiz Carlos Vasconcelos.

Foto: Ivana Moura

Retábulo vai crescer muito na cena. “Posso levar cada mistério a um delírio que ainda não está posto”, promete o diretor. Ele, mais do qualquer espectador que assistiu ao espetáculo sabe do processo inacabado que vai sendo construído. O corpo e voz do elenco que miram a precisão; o coro que busca uma ligadura para se transformar num só corpo mais harmônico. As imagens, que já guardam uma beleza rara na composição coreográfica, na rápida movimentação, anseiam pela perfeição ou sua proximidade. O cuidado estético; e o ator como cocriador de uma poética anuncia que vai cutucar esse público sedente por experiências mais radicais.

A música executada ao vivo apregoa que vai vestir esse corpo do ator e abismar ainda mais essa plateia em sua sensibilidade. O cenário, com tronco de bambu guarda segredos que serão reveladas aos poucos, a cada nova sessão.

O elenco, formado por Buda Lira, Everaldo Pontes, Ingrid Trigueiro, Luana Lima, Nanego Lira, Servilio de Holanda, Soia Lira e Suzy Lopes, mostra a grandeza do talento do Piollim, e muito mais uma entrega que vai explodir em pequenos movimentos e numa fala para dar um nó na cabeça de quem acha que teatro pode ser muito mais. Vasconcelos parodia Osman Lins e avisa “teatro não é bombom que se suga displicentemente”. Teatro é uma experiência inigualável e inesquecível para mergulhar no presente. Retábulo mostra isso muito bem. Parabéns Piollim, Luiz Carlos Vasconcelos, seu elenco e seu grupo por acreditar na arte.
Voltaremos a falar de Retábulo. Ainda há muito que dizer.

Postado com as tags: , , ,

Mais uma graça de São Djalminha

“Fininha – Num deixa de ser bonito: ser noiva de santo. Antes isso que num ser noiva de ninguém.

Maria Caritó – Pense. Uma vez na vida, pense: eu sou a noiva mais longíqua da estória das noivice. Eu tô prometida a um santo. Num tem prazo preestabelecido para consumação do casório. E pior: quando eu consumar, eu vô ta morta. O que é que eu vou aproveitar? Tu acha que vai ter xenhenhém no Céu? Nem a memória do xenhenhém eu vou levar comigo”. (Maria do Caritó / Newton Moreno)

Foto: Paulo Júnior/Divulgação

Em novembro do ano passado, fiz uma viagem muito rápida ao Rio de Janeiro. Fui numa sexta para voltar no dia seguinte. Maria Bethânia estava lançando o seu DVD e chamou a imprensa para uma coletiva. Adoro Bethânia, mas essa ponte aérea valeu mesmo a pena por outro motivo: aproveitei para conferir a montagem Maria do Caritó, com Lília Cabral como protagonista.

O texto merecia mesmo a intérprete que ganhou. Meses antes, eu havia me deliciado com a leitura da peça de Newton Moreno. Passei uma semana com o livro na bolsa, me sentindo na obrigação de dividir aquelas tiradas. Dava vontade de ler para o atendente do banco, da padaria, para a mulher no carrinho ao lado no supermercado. Só pelo prazer de compartilhar e ver a reação das pessoas. Newton fez uma obra sincera, divertida, com influências circenses e regionalistas, mas que fala de sonho, de ideal, de não desistir.

Estava curiosa para ver tudo que tinha lido no palco. Será que me tomaria da mesma forma? A trupe encabeçada por Lilia Cabral, que conta ainda com Leopoldo Pacheco, Silvia Poggetti, Fernando Neves e Dani Barros, com direção de João Fonseca, simplesmente hipnotiza o público. Impagável, por exemplo, a cena em que Maria Caritó faz um número musical para tentar entrar no circo e assim ficar mais perto do seu pretendente, o galã russo Anatoli. Ou o ‘milagre’ de Maria Caritó com uma galinha.

Foto: Paulo Júnior/Divulgação

Na última terça-feira, foram (anunciados os indicados ao Prêmio Shell de Teatro 2010 do Rio de Janeiro. Não foi surpresa saber que Maria do Caritó foi a recordista de indicações, concorrendo em seis categorias: Autor (Newton Moreno), Direção (João Fonseca), atriz (Lilia Cabral), Cenário (Nello Marrese), Figurino (J.C. Serroni) e Música (Alexandre Elias). Parabéns ao grupo e ao fofíssimo Newton Moreno! A peça é um presente para o público!

Postado com as tags: , , ,

Muito satisfeitas!

O lançamento do Satisfeita, Yolanda será nesta sexta (21), às 21h, no Espaço Muda (Rua do Lima, 280, Santo Amaro). Estão todos convidados! Vamos ter exposição de figurinos do coletivo Angu de Teatro, organizada por Carol Monteiro; duas performances apresentadas por Júnior Sampaio (Confissão de caboclo, do poeta José da Luz, e Matuto no futebol, de José Laurentino); Fábio Caio (Angu de Teatro) fará a cena Muribeca, da peça Angu de sangue; e Arilson Lopes promete uma dublagem especial. A trilha da noite, só com músicas de espetáculos, ficará por conta de Marcondes Lima, ator, diretor, cenógrafo e figurinista. Esperamos vocês!

Postado com as tags: , , , , , ,

As feridas abertas da migração

Foto: Ivana Moura

Era tão difícil compreender o que ela dizia! Na realidade, eu a admirava muito. Como alguém, sem saber o idioma do país de destino, tem a coragem de se aventurar? Depois de um tempo de convivência, percebi que era a necessidade que convertia o medo em ação. Estávamos numa cidadezinha no fim do mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, no meio de uma neve gigante. Mas era um lugar turístico, de muitos resorts e ofertas de emprego que pagavam em dólar. Ela estava só com o marido. Tinha deixado os três filhos no México com a mãe. Àquela época, em 2007, já não os via há quatro anos. A saudade machucava e o sonho era o reencontro.

Revivi todas essas memórias com a montagem No vayas a llorar, da companhia Teatro Viento de Água, de Cuba, que se apresentou no 17º Janeiro de Grandes Espetáculos. São duas histórias andando em paralelo no monólogo: a de uma mãe que sai de Havana para o México e está ansiosa pela autorização para que o filho a acompanhe; e a de Antonia, abandonada por Juan, o marido que, depois de 11 anos de casamento, decidiu buscar uma vida melhor noutro país. No primeiro caso, ficção e realidade mantêm uma relação estreita. A atriz Maribel Barrios, que inclusive é chamada pelo próprio nome numa parte da encenação, sofreu para recuperar o filho há 10 anos. A criança tinha quatro anos e ficou na ilha com uma tia.

Ainda estou me questionando como essa montagem terá sido recebida em Cuba. Sim, porque ela é direta, provocativa, sarcástica até. Relembra, por exemplo, principalmente em imagens, o ano de 1994, quando Clinton interveio para tentar evitar um êxodo maciço de cubanos. Também lembra 1966, a Guerra do Vietnã e os seus bombardeios.

Nesse cenário de desolação, de abandono, saudade e frustração, é interessante pensar como Boris Villar arquitetou o seu texto e a direção. A plateia é levada à realidade dos personagens ou pelas fotografias projetadas num lençol que parece uma colcha de retalhos ou pela ‘balsa’ de madeira que Antonia usa para navegar à procura – desesperada – pelo marido, encontrando muitos mortos pelo caminho. As músicas dão o contraponto ou acentuam situações. Lembram a religiosidade, as manifestações culturais, e podem ser evidentemente tristes ou não.

Foto: Ivana Moura

Na construção do texto, os personagens se sucedem, mas nada que indique uma previsibilidade. Ao contrário. E isso da mesma forma que ajuda a dar agilidade à peça, pode dificultar a compreensão, já que a atriz encena vários personagens na sua busca pelo companheiro.

E a peça nos dá a sensação de que essa situação de fuga de uma realidade continua a mesma. Ou de que essa dor ainda não sarou e, por isso, precisamos ouvir falar dela. Gritar, cantar, nos sujar com o sangue até de quem não está mais aqui. Fiquei com vontade de conhecer mais do teatro cubano. Algo que fugisse à idéia do exílio.

Ah, não sei como terminou a história da minha amiga mexicana. Se ela reencontrou os filhos, se demorou ou não para isso acontecer. Espero que ela os tenha pertinho agora.

Postado com as tags: , , ,