Em 1989, Beatriz Nascimento – historiadora e intelectual brasileira –, lançou em parceria com Raquel Gerber o filme Ôrí. Enquanto historiadora, Beatriz observava como o negro é retratado na historiografia do Brasil apenas sob a ótica da escravidão. É no intuito de devolver a humanidade e a identidade negra roubada ao longo do processo da colonização que Beatriz se lança em sua pesquisa em torno da reconstrução dessa imagem. No filme Ôrí (1989), temos Beatriz – na qualidade de narradora e roteirista – compartilhando os frutos dessa pesquisa. O que estava em disputa com o resgate dos símbolos da cultura negra no país era a construção de uma identidade como instrumento de auto afirmação racial, intelectual e existencial. O filme retrata a organização dos movimentos negros brasileiros das décadas de 70 e 80, os barracões e as apresentações das escolas de samba, terreiros, encontros acadêmicos entre intelectuais negras/os, os bailes blacks e mais uma série de expressões artísticas afrodiaspóricas, manifestações religiosas e eventos em torno da construção de uma agenda negra. Todos esses registros visavam responder à questão “onde é quilombo hoje?” e oferecer um reflexo no qual a/o negra/o pudesse se reconhecer.
Beatriz Nascimento abriu caminhos para que muitas e muitos, após ela, seguissem somando na busca pela identidade negra, disputando a construção de imagens para além daquelas estigmatizantes que remetem ao colonialismo e que, ainda hoje, são disseminadas pelo racismo cordial à brasileira. O convite de Nascimento para escrever “uma história feita por mãos negras” (título de um de seus livros), encontrou reverberação e hoje assistimos a uma verdadeira proliferação de mãos negras tecendo histórias ou, para ficarmos com o termo de Conceição Evaristo, compondo um grande arquivo a partir de suas escrevivências: deixando o lugar de objeto dos discursos dominantes e assumindo a autoria de suas próprias narrativas.
Àwọn Irúgbin, espetáculo apresentado no OFFRec 2025 compondo a programação do Festival Recife do Teatro Nacional, é mais uma realização comprometido com o resgate e valorização da cultura negra. Deixando evidente sua orientação pelas ideias de Beatriz Nascimento, o elenco – composto exclusivamente por jovens negras/os da periferia da Região Metropolitana do Recife – nos recebe dançando, como em um baile black, e nos convida a dançar também. Em seguida, cita as palavras da autora sergipana, presentes no filme Ôrí: “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”.
A peça é resultado de uma residência de dois anos com o núcleo O Postinho, uma residência oferecida pelo grupo O Poste Soluções Luminosas. A Escola O Poste de Antropologia Teatral oferece uma formação que inclui atividades como “Tradições da Mata: Cavalo Marinho e Maracatu de Baque Solto na construção do ator”, com Andala Quituche; “O Corpo Ancestral – Práticas de Treinamento Ancestral do grupo O Poste Soluções Luminosas” e “Voz Criativa”, com Naná Sodré; “Tradição indígena como preparação para o corpo do ator”, com Iara Campos; “Poética Matricial dos Orixás e Encantados” e “A criação do figurino e acessibilidade em perspectiva acessível de retomada”, com Agrinez Melo; “O Performer Ancestral” e “Dramaturgia”, com Samuel Santos; “Capoeira no jogo do ator”, assinada por Gaby Conde, além de preparação de corpo, de voz, criação de figurinos, aulas de danças diaspóricas e aulas de história do teatro negro-africano.
Àwọn Irúgbin, que significa “sementes” em yorubá, consiste em um espetáculo composto por quatro cenas unidas pela temática da busca por uma referência na qual a/o negra/o possa se reconhecer, com dramaturgias distintas em cada cena desenvolvidas pelo próprio elenco. As diferentes potências e o fato de cada cena ser idealizada por um/a artista diferente resulta numa montagem de qualidade heterogênea, mas também é prova do incentivo à autonomia e à conquista da própria voz, por parte do grupo O Poste. Cada cena tem como pano de fundo as escrevivências de Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo em diálogo com suas referências, como quem nos conta quem plantou as sementes para que eles pudessem colher os frutos como, por exemplo, Zumbi dos Palmares, João Cândido, Luiza Mahin, Luiz Gama, Conceição Evaristo, Leda Maria Martins, além da já mencionada Beatriz Nascimento. Todas essas figuras complexificam o quadro do que é ser negra/o e contribuem para o alargamento da história e da cultura afrodiaspórica no Brasil, superando narrativas de invisibilização e subalternidade.
Larissa Lira dedica a sua cena à Elza Soares e relembra marcos do Brasil e da vida pessoal da cantora costurados pelas letras de suas músicas (“O meu país é meu lugar de fala”, trecho de o que se cala, e “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, trecho de A carne). Elza, que sofreu tentativas de feminicídio e agressões do seu ex-companheiro, é apresentada como signo de força e resistência a partir da contação de um sonho com búfalos e com a orixá Iansã. Como uma espécie de porta-bandeira – toda de verde brincando e girando com uma bandeira de cor verde sólida –, a jovem atriz busca mimetizar em sua dicção o timbre inconfundível da voz rasgada de Elza, demonstrando o tamanho de sua extensão vocal explorando dos sons mais graves aos agudos, privilegiando o experimento sonoro à transmissão do texto.

Espetáculo é fruto de uma residência do núcleo O Postinho, projeto do grupo O Poste Soluções Luminosas. Foto: Ricardo Maciel
Na cena seguinte, Sthe Vieira interpreta uma afroindígena que não encontra figuras semelhantes a si mesma nas revistas, jornais, filmes e propagandas. Sua cena dá o tom da interseccionalidade entre as lutas das gentes negras e indígenas. Assim como na citação de Beatriz Nascimento que abre a peça, ela também está em busca de sua identidade e as imagens de mulheres na mídia a afastam da sua cultura, história e percepção de si.
Sthe canta a música Me usa da Banda Magníficos e dá voz a uma narrativa muito familiar a muitos/as brasileiros/as: a da avó ou bisavó “pega no laço”. O eufemismo dessa expressão – que não é utilizada pela atriz – esconde que ser “pega no laço”, na verdade, significa ser levada contra sua vontade, sequestrada. Sthe, ao evitar a expressão popular, dá o tom da gravidade e nos faz estranhar o forró que nos é tão familiar quanto a expressão aqui citada: “Amor, me leva e faz de mim o que quiser. Me usa. Me abusa, pois o meu maior prazer é ser tua mulher”. Crescendo longe de suas referências, ela se volta à sua ancestralidade através da música: a personagem – que desde o início da cena veste um cocar – toca chocalho, canta ponto de caboclo e canta em uma das línguas originárias acompanhada pelas/os demais artistas do elenco, que estão tocando ao vivo alguns instrumentos do outro lado do palco do teatro Hermilo Borba Filho.
Cecília Chá também manda um salve para as mais velhas em sua cena e homenageia as vovós. Talvez o momento mais emocionante da montagem seja o momento em que Cecília interpreta uma neta ao lado de sua avó vendo nuvens. A atriz consegue criar uma atmosfera na qual a vemos ali, junto com essa avó, apontando para o céu e reconhecendo pessoas nas nuvens: Bernadete Pinheiro, Sueli Carneiro, Nego Bispo, Conceição Evaristo e, de repente, a avó já não está mais ali. Isso não a impede de seguir conversando com a sua avó. Cecília nos transporta para uma sessão de Preto Velho num terreiro de umbanda. Ouvimos o ponto da Vovó Maria Redonda enquanto Cecília se transmuta na Preta Velha. A neta e a avó se encontram no mesmo corpo e nos lembram que não há fim: apenas começo, meio e começo. Ela(s) se agacha(m), risca(m) com pemba uma espiral no chão com algumas nuvens dentro e nos pede(m) para não esquecermos o formato das nuvens como quem pede para não esquecer dos que vieram antes de nós, pois assim como as nuvens, eles/as ainda nos acompanham.
O palco está no meio, entre as duas arquibancadas, e o público está dividido por esse corredor onde se dão os atos. A montagem brinca com a extensão desse corredor, aproveitando que estamos olhando em determinada direção para aprontar a próxima cena na direção oposta. Thallis Ítalo surge dentro de uma bacia de água do lado oposto do palco enquanto nosso olhar ainda se despedia de Cecília. A cena de Thallis, diferentemente das demais, parece explorar um conflito interior. Seu personagem se chama Obelin e nasceu próximo às águas de Oxum, filho de mãe preta, mas por ser mais claro que sua mãe, ele não sabe que cor tem. Thallis aborda a questão da mestiçagem e do colorismo. A que coletividade pertence um filho claro de uma mãe de pele escura? Em busca de respostas, Obelin vaga pelas águas de rio e de mar. Como elemento cenográfico, Thallis lança mão de uma bacia com água e não economiza banhos ao longo de suas cenas, permitindo-se até mesmo dar eventuais banhos na plateia de tabela.
Sthe Lima interpreta Yemanjá, a rainha do mar, e Larissa Lira interpreta Oxum na cena de Thallis. As duas cantam em yorubá, enquanto Obelin segue em busca da resposta pela sua ancestralidade. É Vovô Dedé quem lhe pede para olhar para seu reflexo nas águas e, assim, Obelin se reconecta com suas raízes negras, remetendo mais uma vez à citação de Beatriz Nascimento: “A invisibilidade está na raiz da perda da identidade”.
A montagem, que não tem fim, “termina no meio” da mesma forma que começa: trazendo o público para dançar como em um baile black. O lema espiralar “começo, meio e começo” se configura em um dispositivo performativo e organiza a estrutura da montagem que, devido ao seu caráter episódico, poderia vir a ter no futuro, se for do desejo das/os envolvidas/os, mais cenas e artistas acoplados/as ao espetáculo multiplicando essas sementes. Me pergunto, apenas, se ao insistir em frases como “o negro é espiralar, o negro dança, o negro ginga” não acabamos por criar novos essencialismos acerca da identidade negra. Quero dizer: será que na busca pela identidade negra, ao invés de contribuir com o alargamento e complexificação do ser negra/o, não estamos incorrendo em novas clausuras ao afirmar que “o negro” – já começando pelo uso da palavra no singular e no masculino – é definido pelos atributos do que o seu corpo pode fazer? Não estamos mais uma vez reincidindo numa essencialização do que somos e/ou podemos ser ao investir nessa relação direta entre as gentes negras e o corpo? Podemos não ser ou não fazer o que dizem que fazemos? Creio que essa conversa talvez não caiba nesta crítica – o que não quer dizer que gostaria que ela terminasse aqui –, mas quero, desde já, lançar também algumas sementes.
* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.
Ficha técnica:
Produção/direção: Núcleo O Poste Soluções Luminosas / Agrinez Melo
Elenco: Cecília Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo
Preparação corporal/ancestral/voz: Naná Sodré e Darana Nagô
Preparação poética/figurino: Agrinez Melo
Assessoria dramatúrgica: Samuel Santos
Aulas de história do teatro negro-africano e performance Bantue: Jeff Vitorino e Matheus Amador
Assessoria de imprensa: Daniel Lima


























