Arquivo da tag: morte

Recife perde André Filho, um trabalhador do teatro

André Filho morreu no último sábado, aos 62 anos. Foto: reprodução blog Fiandeiros

O ano era 2016. Vento forte para água e sabão, oitavo espetáculo e o segundo infanto-juvenil da Companhia Fiandeiros de Teatro, estreava no Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife. Numa entrevista ao Satisfeita, Yolanda? o diretor André Filho dizia que o tema mais significativo da peça era a morte, um assunto ainda repleto de tabu nas peças voltadas à infância.

“Resolvi seguir o caminho dessa discussão justamente pela contramão, ou seja, falar sobre morte a partir da vida, o sopro da criação, a relação com o divino que vem de nosso pulmão. Procurei contrastar o macrocosmo e o microcosmo, aqui simbolizado pelo clássico e pelo popular, respectivamente, mas sem mensurar valores de importância. Vida e morte, luz e sombra, ausência e conteúdo, tudo se complementa, assim como tudo que existe no universo.”

O foco na atuação e na dramaturgia, a musicalidade, a delicadeza e a sensatez marcam o trabalho de André Filho, encenador, ator, músico, diretor musical e dramaturgo, um trabalhador do teatro, que faleceu no último domingo, 10 de setembro, aos 62 anos, vítima de complicações de uma pneumonia.

André deixa a esposa, Daniela Travassos, a filha Maya, de 1 ano, e o legado de um trabalho duradouro e consistente nas artes da cena de Pernambuco, que inclui a Companhia de Teatro Fiandeiros, que atua há 20 anos no Recife e foi criada em parceria com Daniela e Manuel Carlos, e a Escola de Teatro Fiandeiros, que existe há 13 anos, e ocupa um espaço significativo na iniciação e na formação artística na cidade.

Manuel Carlos, André Filho e Daniela Travassos, fundadores da Cia de Teatro Fiandeiros. Foto: Eduardo Travassos

Formado em Matemática pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), André Filho fez o Curso de Extensão Musical, terminado em 1989; o curso básico de Formação do Ator oferecido pela Fundaj na década de 1990; e o curso de Formação do Ator da UFPE.

Na segunda metade da década de 1980, assinou muitas direções musicais ou composições de trilha para espetáculos que tinham a direção de José Manoel Sobrinho: Cantarim de Cantará (1985), O mágico de Oz (1986), Avoar (1986), O menino do dedo verde (1987), Com panos e lendas (1987) e Cantigas ao pequeno príncipe (1996). “Fico pensando como seria minha trajetória de encenador se ele não tivesse surgido como diretor musical, com quem eu dividi muitas construções de espetáculos. Ele aprendeu a lidar com o ator e a atriz nessa perspectiva do canto, nessa relação íntima do teatro com a música. André tinha um foco que era pensar a música no espetáculo cênico como dramaturgia e isso somava muito ao trabalho dos encenadores com quem ele trabalhou”, diz José Manoel.

A última experiência de trabalho de José Manoel Sobrinho com André foi no espetáculo Sistema 25, direção de Sobrinho, em que André Filho assinou duas composições. “No caso do Sistema 25, ele não era o diretor musical, era Samuel Lira, mas quando ele compôs,  estudou as cenas e veio discutir comigo os arranjos, porque ele pensava o arranjo como processo dramatúrgico”, complementa.

Nas experiências como ator, o diretor mais frequente foi Antonio Cadengue (1954-2018), na Companhia Teatro de Seraphim: André Filho atuou em peças como Em nome do desejo (1990), O jardim das cerejeiras (1990), Senhora dos Afogados (1993), Os biombos (1995), O alienista (1996), Menino minotauro (1997), Autos Cabralinos (Auto do Frade e Morte e vida severina), de 1997, Lima Barreto, ao terceiro dia (1998), Sobrados e Mocambos (1999) e Todos que caem (2000).

Em 2003, surge a Companhia de Teatro Fiandeiros. Numa entrevista para o Satisfeita, Yolanda? dez anos depois, André Filho relembra o início da companhia e os motivos pelos quais aqueles artistas permaneciam juntos.

“Nós nos reunimos em 2003. Nosso começo não foi muito diferente de outros coletivos: artistas que se juntam querendo se expressar coletivamente através de sua arte. Tínhamos origens distintas – éramos músicos, palhaços, professores, arte educadores, alguns já com experiência em trabalho de grupo, outros não. Eu havia sido convidado pelo Sesc para dirigir uma leitura dramatizada da peça A tempestade, de William Shakespeare. Convidei alguns atores para participar e o resultado é que, depois da leitura, o grupo quis continuar se encontrando para ler outros textos e conversar sobre teatro. Então decidimos seguir em frente com o processo de estudo e, daí, surgiu a Fiandeiros”, relembrava.

Na Fiandeiros, os campos de trabalho muitas vezes se misturavam: produção, gestão, atuação, direção, dramaturgia, direção musical e ensino de teatro.

Entre as produções mais marcantes do grupo estão Outra vez, era uma vez… (2003), texto de Filho, que assinava também a direção e direção musical, e ganhou o Prêmio Funarte de Dramaturgia na região nordeste em 2004; Noturnos, de 2011, texto e direção de André; e Histórias por um fio (2017), peça em que o artista assinava o texto e também estava em cena como ator, sob a direção de João Denys. Denys lembra com carinho dessa experiência. “Ele ficou muito satisfeito, porque não se achava lá um bom ator, mas foi muito reconhecido, até ganhou um prêmio no Janeiro de Grandes Espetáculos”, comenta o diretor. Naquela edição do festival, em 2018, a peça levou no total sete prêmios: Melhor Espetáculo, Diretor, Ator, Ator Coadjuvante, Cenário, Iluminação e Sonoplastia/Trilha Sonora.

“André era um sonhador, generosíssimo, sereno, aquela pessoa que fazia do teatro a vida dele. É uma criatura que vai nos deixar um vácuo, mas esse vácuo será preenchido com as sementes que ele deixou nos seus alunos, naqueles que o acompanhavam”, finaliza Denys.

Como artista que desde cedo acreditou no teatro como uma arte coletiva, André Filho era um defensor das políticas públicas para a cultura e o teatro. Articulado, tinha sempre uma opinião sensata, mas enfática, sobre as questões da cidade e do estado. Foi ouvido em praticamente todas as matérias sobre política cultural publicadas no Satisfeita, Yolanda? desde a criação do nosso site em 2011.

Neste ano, por exemplo, comentou as deficiências do Sistema de Incentivo á Cultura (SIC) e o valor irrisório do então Prêmio de Fomento às Artes Cênicas, que destinava uma verba de R$ 100 mil para ser dividida entre cinco produções. “Quando falamos nos festivais pelo país afora que o nosso fomento tem esse valor, as pessoas não acreditam! Destinar R$ 20 mil para realizar uma montagem é um desrespeito com a classe”, pontuou.

André Filho construiu uma trajetória que não se deixou marcar por egos e afetações. Quando questionado o que era preciso para ser um bom encenador, em 2016, disse que não se considerava e nunca havia pretendido ser um encenador. “Apenas procuro fazer um teatro que busca dialogar com a plateia, ser compreendido e me sintonizar com o mundo à minha volta. Uma vez vi uma entrevista com Abujamra que ele dizia que ‘ser encenador é a arte de ser dispensável’. Acho que é por aí. O que é mais bacana é que nosso trabalho é completamente invisível, quem brilha no palco é o ator. O trabalho do diretor é escrever no palco uma dramaturgia, escrita ou não, de maneira poética. Eu acho que para ser um bom encenador a primeira coisa que se tem a fazer é compreender que seu trabalho é invisível e que a cada novo processo se volta à estaca zero, do aprendizado. Quando isso não acontece corremos o risco de ficarmos repetitivos e presos ao passado. O tempo do teatro passa e não volta. Não adianta. Quanto mais tentarmos voltar ao que nos deu brilho um dia, mais nossa luz se apagará. Toda vez que penso nisso sinto quanto estou distante de ser um bom encenador”.

 

Postado com as tags: , , , , , ,

Sai de cena a Diva absoluta do teatro brasileiro

Bibi Ferreira morre nesta quarta-feira, no Rio de Janeiro. Foto: Wilian Aguiar / Divulgação

Bibi Ferreira morreu nesta quarta-feira, aos 96 anos, no Rio de Janeiro. Foto: Wilian Aguiar / Divulgação

Há artista que queremos que viva para sempre aqui na Terra. Um desejo pueril, é verdade. É como se fosse um totem, um farol de ilha. São seres que transbordam de talento, mas também perseguem o mais pleno domínio técnico e não negligencia da disciplina. Abigail Izquierdo Ferreira era uma dessas criaturas. Atriz, cantora, compositora e diretora, a nossa Bibi Ferreira partiu para outra dimensão no início da tarde desta quarta-feira (13/02), aos 96 anos. Ela descansava em seu apartamento no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, quando sofreu uma parada cardíaca. Em setembro do ano passado, Bibi havia anunciado aposentadoria dos palcos – por conta de recomendações médicas – quando encerrou a turnê Por Toda a Minha Vida. Ela foi internada no ano passado em três ocasiões por conta de infecções oportunistas.

“Nunca pensei em parar. Essa palavra nunca fez parte do meu vocabulário, mas entender a vida é ser inteligente. Fui muito feliz com minha carreira. Me orgulho muito de tudo que fiz. Obrigada a todos que de alguma forma estiveram comigo, a todos a que me assistiram, a todos que me acompanharam por anos e anos. Muito obrigada!”

Bibi Ferreira anunciou sua aposentadoria em comunicado publicado em rede social, em 10 de setembro de 2018.

A professora e doutora em teatro Deolinda França de Vilhena, que foi produtora e secretária particular de Bibi, recebeu a notícia da morte em Paris e fez uma transmissão ao vivo pelo Facebook. Muito emocionada postou: “Graças a D’us eu estou no lugar certo! Estou na Cartoucherie de Vincennes, no Théâtre du Soleil, D’us sabe o que faz e a gente não sabe o que diz…”. Agradeceu: “Obrigada por tudo…te amarei eternamente! E sei que tenho mais um anjo da guarda a velar por mim!”. E pleiteou que “o velório de Bibi seja no palco do Teatro Municipal, o foyer é pequeno para a importância dela!”

Bibi Ferreira morre nesta quarta-feira, no Rio de Janeiro. Foto: Wilian Aguiar / Divulgação

Uma combinação de talento e dedicação às artes cênicas. Foto: Wilian Aguiar / Divulgação

Ao longo da carreira, Bibi encarou grandes desafios, cantou Edith Piaf, Amália Rodrigues, Carlos Gardel, Dolores Duran, Chico Buarque, entre outros. Por sua atuação como a personagem Joana, da peça Gota D’Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque (adaptação da tragédia Medéia, de Eurípedes, para os morros cariocas), com direção de Gianni Ratto, recebeu o prêmio Molière em 1975.

Bibi tinha ascendência portuguesa, espanhola e argentina. Ela nasceu no Rio em 1º de julho de 1922, filha do ator Procópio Ferreira e a bailarina Aida Izquierdo. Sua estreia nos palcos, do qual nunca iria sair por quase toda a sua vida, foi com apenas 24 dias. Em cena, ela apareceu no colo da madrinha, Abigail Maia, em encenação de Manhãs de sol, de Oduvaldo Vianna (1892-1972). Bibi substituiu uma boneca que seria usada na peça e desapareceu pouco antes do início do espetáculo.

Conta que ela foi morar na Espanha com a mãe depois da separação dos pais e lá estudou balé. De volta ao Brasil, não foi aceita no tradicional Colégio Sion, no Rio de Janeiro, por ser herdeira de um artista de teatro. Procópio então bancou os estudos em Londres.

Sua estreia profissional ocorreu no Brasil, em 1941, no papel da esfuziante Mirandolina, da peça La locandiera, de Carlo Goldoni. Três anos depois monta sua própria companhia, por onde passaram nomes como Cacilda Becker, Maria Della Costa, Henriette Morineau, Sérgio Cardoso e Nydia Licia. Foi uma das primeiras mulheres a dirigir teatro no Brasil.

Por Piaf, a Vida de uma Estrela da Canção, recebeu os prêmios Mambembe e Molière, em 1984 e da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (APETESP) e Governador do Estado, em 1985. Nos primeiros quatro anos, dos seis que ficou em cartaz, o espetáculo atingiu a marca de um milhão de espectadores.

Bibi foi casada seis vezes. Com Carlos Lage, Armando Magno, Herval Rossano, Edson França, Paulo Porto e Paulo Pontes. A artista teve uma única filha com o ator Armando Carlos Magno: Tereza Cristina Izquierdo Magno.

Em março do ano passado, já com 95 anos, a artista foi conferir o espetáculo Bibi: uma vida em musical. Ficou emocionada com a peça escrito por Artur Xexéo e Luanna Guimarães, com direção de Tadeu Aguiar e com interpretação de Amanda Costa, e cantou sem microfone, uma música de Edith Piaf (1915-1963).

Artista multimídia, Bibi ao longo da carreira fez filmes, apresentou programas de TV, gravou discos e dirigiu shows. Essa artista fascinante deixa o exemplo mais perfeito de amor e dedicação a essa arte.

Postado com as tags: ,

Partida de Celibi. Primeiro impacto

Henrique Celibi na peça As Perucas de Bibi. Foto: Ivana Moura

Na peça As Perucas de Bibi, em abril, no Teatro Apolo. Foto: Ivana Moura

A última vez em que encontrei o ator, diretor e dramaturgo Henrique Celibi foi na segunda sessão da peça As Perucas de Bibi, no sábado de Aleluia. Falei com ele rapidinho depois da apresentação, pois aquela noite teria dose dupla de teatro, já que fui ver a Paixão de Cristo do Recife, com José Pimentel. Menos de um mês depois, recebo com pesar a notícia de sua morte. “Levou uma queda, pediu socorro à vizinha que, por sua vez, chamou os Bombeiros. Ele estava todo ensanguentado, com uma perfuração na veia femoral. Foi socorrido, mas sofreu duas paradas cardíacas e não resistiu”, conta a atriz Sharlene Esse, que dividia o palco com Henrique em As Perucas de Bibi. “Quem deu a notícia da morte de Celibi a Américo (Barreto) foi a tia dele, uma senhorinha velhinha”, diz Sharlene. Celibi morava sozinho no bairro do Arruda e inquieto como era já estava articulando os ensaios de uma nova peça, The Celibi Show.

Com ele era assim. Não tinha tempo ruim, nem circunstâncias ideais para fazer algo. Muitas peças surgiram dessa motivação. Cara, coragem e um talento múltiplo. A Bicha Burralheira, a estória que sua mãe não contou; Madleia + ou – doida; Cabaré Diversiones; As Perucas de Bibi.

Poderia achar que foi um acidente estúpido. Mas os acidentes caseiros são traiçoeiros. Logo Celibi, que parecia um homem-aranha a se pendurar em tudo que é lugar, com aquele seu corpinho ágil.

Henrique Celibi, um guerrilheiro dos palcos pernambucanos

Um guerrilheiro dos palcos pernambucanos, em Cabaré Diversiones. Foto: Ivana Moura

Henrique Celibi, ao centro, é autor, diretor, figurinista do espetáculo

Henrique Celibi, ao centro, em Cabaré Diversiones. Foto: Divulgação

Henrique Celibi

Medleia + ou – Doida. Foto: Ivana Moura

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho. Foto: Henrique Celibi/acervo pessoal

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho na época do Vivencial. Foto: Henrique Celibi/ acervo pessoal

Melhor Ator

Melhor Ator do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura 

Quando conheci Celibi, em meados da década de 1980, o artista andava às voltas com o texto Cinderela – a história que sua mãe não contou, ainda como esquete  A Bicha Burralheira que apresentou na Boate Misty. Ajudei a divulgar. Gostava daquele menino elétrico e cheio de imaginação. Depois Cinderela virou o megassucesso com a Trupe do Barulho.

Viajamos juntos para o festival de São José do Rio Preto, com uma peça que não sei se foi O Coronel de Macambira ou o Casamento de Catirina. E o que lembro dele desses tempos era uma elegância no andar, uma alegria das pequenas coisas, resistência não alardeada mas que poderia ser captada, persistência na arte e nos sonhos. Mesmo que tudo estivesse desmoronando por dentro, era preciso manter uma pose, uma esperança, alimentar a alegria.

Egresso do Grupo Vivencial, Celibi era um sobrevivente. E criaturas assim têm uma grande capacidade de adaptação aos lugares mais hostis. Com ousadia, garra e criatividade.

Henrique Celibi. Foto: Facebook

Henrique Celibi. Foto: Facebook

Batizado de Valdenou Henrique de Moura, ele entrou no Vivencial aos 14 anos e lá aprendeu a ser ator, diretor, figurinista, cenógrafo, maquiador, dramaturgo e outros sete.

Como decretou Oswald de Andrade, “A alegria é a prova dos nove”. Celibi tinha humor. Um humor que me encantava. Por ser crítico e autocrítico. E era uma voz importante de reflexão no meio da cena teatral recifense, em parte tão autoindulgente e com lentes tão generosas para o seu próprio umbigo.

Quem vai fazer a crítica de dentro das próximas montagens em homenagem ao Vivencial? Enquanto a maioria das vivecas se instalou no conforto de sua sala de jantar, Celibi prosseguia a treinar a iconoclastia que aprendeu no Vivencial.

É bem interessante seu comentário depois da estreia de Puro Lixo, montagem dirigida por Antonio Cadengue, inspirada ou em homenagem ao grupo Vivencial. Celibi ponderou em sua página do Facebook:

“Nunca fomos anjos! Muito pelo contrário, não gostávamos das auréolas. Principalmente as feitas com arminhos. Gostávamos mesmo era de sermos demoníacas: “espelho meu existe alguém pior que eu? Espelho, espelho meu, existe alguém mais terrível do que eu?”… Não. Não existiam! Éramos terríveis, as vivecas! Gostávamos mesmo era de tirar os “chatos” na London, London da virilha de Gal porque éramos nós as tropicais e fatais.

Sabíamos dos demônios que em nós habitavam e como fazer para alimentá-los ou não. E esses deixavam as migalhas das sobras em nossas convivências. Era o que fazíamos com esses demônios que não valem a pena serem alimentados e sim combatidos com gaiatices.
Dávamos muxoxos para as hipocrisias e conceitos estabelecidos. (sem o menor medo de o galo cantar e nos transformarmos em peixes soias da boca torta).

Tínhamos a consciência de que éramos nós as “Cinderelas”, lindas com o vestido de baile, mas, sem o sapatinho de cristal e sim, com os pés sujos da lama em que a sociedade insistia em afundar-se. (ainda insistem).

O espetáculo Puro Lixo é muito bem cuidado, produzido, com um elenco bem dirigido apesar de faltar frescura na “viadagem” vivenciada Por Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcao, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira. Poderia ser mais vibrante como sugere o título. Com muitos méritos sim. Todos! Mas, o que a mim incomoda no espetáculo é o bem feito, politicamente correto do ser em estar nesse tempo presente.

(…) Nossos manifestos eram quá, quá, quá… Nossos negros eram loiros de cabelos e cabeleiras. Sabíamos de que o certo é na frente mais o que a nós importava era mostrar que o justo mesmo era atrás. Mesmo assim e assim mesmo, com todo o glamour, (que não tínhamos) fico muito gratificado em ser personagem dessa crônica teatral que é um luxo só!”

Ou quando comentou sobre o filme Tatuagem, de Hilton Lacerda. Disse que a obra tem uma atmosfera “Vivencialesca”, mas se cotejada ao grupo Vivencial, o filme é certinho demais. Celibi guardou em si essa anarquia que pautava as peças, ações e intervenções culturais da trupe olindense. “Mangávamos e debochávamos de tudo e de todos”, gostava de dizer.

Seu olhar crítico e debochado, sua língua cheia de humor e, às vezes ferina, sua criatividade transbordante a inventar arte de lixo. Seu carinho pelas pessoas de arte (do teatro, da dança, da performance, do carnaval, do cinema), seu incentivo aos que queriam mergulhar nesse mar.

Ele que vivia sem rede de segurança nos inspirava coragem.

Agora em abril ele postou no Facebook: “Às vezes sinto meu corpo pequeno demais para abrigar meu espirito… E a sensação é muito estranha… Ver que não caibo mais em mim…” Parece um recado para quem acredita em anúncios sobrenaturais.

Mas acho que ele deve estar mangando dele mesmo, desse descuido. Pode estar já se divertindo da saudade que provoca em nós.

Postado com as tags: , , , , ,

Inspirado poeta teatral

Naum Alves de Souza, homem de múltiplos talentos morreu sábado, aos 73 anos. Foto: reprodução do youtube

Naum Alves de Souza, homem de múltiplos talentos, morreu sábado, aos 73 anos. Foto: Reprodução do Youtube

Os amantes, interessados e até curiosos sabem da importância do diretor, autor, roteirista, cenógrafo, figurinista, artista plástico e criador de bonecos Naum Alves de Souza para as artes. Homem de teatro, cinema, televisão e outras linguagens, ele deixou uma obra dramatúrgica singular e de uma brasilidade intrínseca.

Meu contato com sua obra ocorreu no final dos anos 1980, no antigo Curso de Formação do Ator, da Universidade Federal de Pernambuco. Uma grande alegria estudar a trilogia formada por No Natal a Gente Vem Te Buscar (1979), A Aurora da Minha Vida (1981) e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão (1984).

Ele também é autor de Suburbano Coração, peça com músicas de Chico Buarque.  Do espetáculo Dona Doida, protagonizado por Fernanda Montenegro, em que adaptou de poemas de Adélia Prado – que assisti no Rio de Janeiro, e confesso que gosto mais hoje do que na época. De Ilmo. Sr., sobre dois velhos ranzinzas. E assinou os cenários e figurinos do show Falso Brilhante, de Elis Regina, que desejei tanto ter visto. Naum cuidou da cenografia, figurinos e direção artística de Macunaíma, com direção de Antunes Filho, um marco do teatro brasileiro. E é o autor do boneco Garibaldo, de Vila Sésamo, que embalou a infância de alguns.

Marieta Severo e Mário Borges, em No Natal a Gente vem te Buscar.

Marieta Severo e Mário Borges, em No Natal a Gente vem te Buscar

Em No Natal a Gente vem Te Buscar, os personagens comuns, destituídos de heroísmos ganham os holofotes. Uma solteirona e suas memórias. O desmoronamento interno da personagem. Decadência do grupo familiar. O atropelamento da Tia na porta do asilo, o choque, como detonador para abalar valores.

O tempo imbricado com a memória. Passado e presente se emaranhando com o futuro. Cacos de um quebra-cabeça dessa trajetória dolorosa da Solteirona. E de uma delicadeza de sentimentos que flutuam nas entrelinhas, no não dito, ou não totalmente revelado com palavras.

O dramaturgo lança um olhar carinhoso e bem-humorado – mas que desmascara idealizações – sobre essa galeria de personagens, tão fáceis de serem identificados.

Naum Alves de Souza morreu nesse sábado (9), em São Paulo, aos 73 anos. Foi sepultado no Cemitério Gethsêmani, em São Paulo, neste domingo. Nascido em Pirajuí (a 384 km de São Paulo), ergueu uma carreira admirável na capital paulista, para onde se mudou aos 18 anos.

Postado com as tags: ,

Adeus ao provocador Abujamra

Antonio Abujamra morreu aos 82 anos. Foto: Bertolucci/ Tv Cultura

Antonio Abujamra morreu aos 82 anos. Foto: Bertolucci/ Tv Cultura

A última vez que o ator e diretor Antônio Abujamra esteve no Recife com um espetáculo foi Começar a terminar, apresentado no Teatro Barreto Júnior, em janeiro de 2010. O texto do próprio Abujamra tratava da morte, da velhice, a partir de fragmentos da obra de Samuel Beckett. No palco ele clamava que o “o mundo é feio, que culturalmente está tudo acabado”. E emendava com um apesar disso, “todo mundo quer me entrevistar”.

Antônio Abujamra virou personagem de si mesmo há muito tempo e vinha desenvolvendo com petulância e ousadia esse papel, que fez sucesso no programa Provocações, que apresentava desde 2000 na TV Cultura.

Sua irreverência e iconoclastia vão fazer falta. Nesta terça-feira o ator e diretor de teatro de 82 anos partiu para outras esferas. Ele foi encontrado morto por um sobrinho em sua casa na Rua Maranhão, Higienópolis, Zona Oeste de São Paulo. Morreu dormindo.

A TV Cultura divulgou uma nota na página do programa no Facebook: “É com grande pesar que informamos que hoje, 28/04/2015, o apresentador de Provocações, Antônio Abujamra, faleceu. Agradecemos o carinho e apoio de todos que tem nos acompanhado ao longo desses 14 anos de programa”.

O cineasta Samir Abujamra, sobrinho de Antonio, também publicou no Facebook. “Morreu meu ídolo, meu segundo pai, o homem que me fez ser artista. Tio Tó, Antonio Abujamra”.

Artista de múltiplos talentos, Abu (como era conhecido entre seus pares) exerceu as funções de autor, iluminador, tradutor, ator, diretor teatral e apresentador. Nascido em Ourinhos, no interior de São Paulo, em 15 de setembro de 1932, ele foi pioneiro a praticar no Brasil os métodos teatrais de mestres como Bertolt Brecht e Roger Planchon. Ele trouxe essas ideias do período que passou estudando teatro na Europa – esteve em Madri, Paris e Berlim.

Na TV Globo, Abujamra fez muito sucesso na novela Que rei sou eu? (1989) como o vilão Ravengar.

Performance do artista. foto: Adriana Elias

Performance do artista. foto: Adriana Elias


Formado em filosofia e jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em 1957, ele também exerceu a crítica teatral. Atuou como ator e diretor no Teatro Universitário, entre 1955 e 1958, nas peças O Marinheiro, de Fernando Pessoa; À Margem da Vida e O Caso das Petúnias, de Tennessee Williams; A Cantora Careca e A Lição, de Eugène Ionesco; e Woyzeck, de Georg Büchner.

Sua estreia profissional como encenador foi em São Paulo, no Teatro Cacilda Becker em 1961, com Raízes, de Arnold Wesker, e no Teatro Oficina, com José, do Parto à Sepultura, de Augusto Boal. E não parou mais, com especial interesse pelo teatro político fincado na técnica brechtiana.

Em 1965, Abujamra dirige, no Rio de Janeiro, a montagem de O Berço do Herói, de Dias Gomes, peça que foi interditada pela censura no dia do ensaio geral. Na década de 1970 recebe o Prêmio Molière, pela direção de Roda Cor de Roda, de Leilah Assumpção.

A carreira de ator profissional só é iniciado quando ele já tem 55 anos. Participa de duas telenovelas e três peças no intervalo de dois anos e é premiado pelo desempenho no monólogo O Contrabaixo, de Patrick Suskind, 1987.

Em 1991, recebe outro Prêmio Molière pela direção de Um Certo Hamlet, espetáculo de estreia da companhia Os Fodidos Privilegiados, fundada por Abujamra para ocupar o Teatro Dulcina, no Rio. Com os Fodidos Privilegiados ganhou também o o Shell de 1997 por O casamento, direção que dividiu com João Fonseca.

Abaixo o último programa Provocações, que foi exibido em 21 de abril

Postado com as tags: , ,