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Ayiti: o espetáculo da revolução

Ayiti, a montanha que assombra o mundo se desenvolve em um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Foto: Marina Cavalcante / Divulgação

A Revolução Haitiana (1791-1804) foi uma insurreição que desafiou as bases ideológicas do colonialismo europeu e demonstrou a falência moral do sistema escravocrata. Contudo, permanece sistematicamente marginalizada nos currículos escolares das elites acadêmicas e dos Estados nacionais. Neste sábado, 2 de agosto, Marconi Bispo apresenta no Teatro Solo Gens, no Recife Antigo, a pré-estreia de Ayiti, a montanha que assombra o mundo. O espetáculo resgata essa memória silenciada e marca os 30 anos de carreira de desse artista,  uma voz coerente e lúcida do teatro político que fala a partir de Pernambuco e do Nordeste brasileiro.

O ator confronta diretamente o cânone historiográfico ocidental ao colocar em cena o que o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot definiu como “o evento impensável da modernidade” – uma revolução que a mentalidade colonial não conseguia nem mesmo conceber como possibilidade histórica. A montagem questiona por que uma revolução tão impactante permanece ausente dos sistemas educacionais globais.

Enquanto a Revolução Francesa (1789-1799) ocupa lugar central nos estudos históricos mundiais, poucos conhecem o movimento simultâneo que, nas Antilhas, superou em radicalidade os próprios jacobinos parisienses. Esta disparidade não é acidental: revela o caráter eurocêntrico da produção do conhecimento histórico.

A revolução haitiana foi mais radical porque os escravizados de Saint-Domingue (atual Haiti) levaram os ideais iluministas às suas consequências lógicas finais. Enquanto os revolucionários franceses mantiveram a escravidão nas colônias e excluíram mulheres e pobres dos direitos políticos, os insurgentes haitianos aboliram simultaneamente escravidão, colonialismo e hierarquias raciais. Entre 1791 e 1804, aproximadamente 500 mil africanos escravizados derrotaram militarmente França, Espanha e Inglaterra, expulsaram os colonizadores e fundaram a primeira república negra independente das Américas.

Pernambucano Marconi Bispo leva aos palcos a insurreição que apavorou impérios e inspirou liberdades. Foto: Inês Costa / Divulgação 

Michel-Rolph Trouillot, autor de Silencing the Past: Power and the Production of History (1995), argumenta que “a Revolução Haitiana é o acontecimento mais revolucionário na história das revoluções” precisamente porque representa uma ruptura ontológica – isto é, uma quebra fundamental na própria concepção de realidade – no pensamento ocidental. Trouillot, professor de antropologia na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, Estados Unidos) até sua morte em 2012, demonstra como essa revolução foi sistematicamente apagada por contradizer as bases ideológicas da supremacia branca – sistema de poder que estabelece a superioridade racial europeia como fundamento natural da organização social.

Sob a liderança de figuras extraordinárias como Toussaint Louverture (1743-1803) – ex-escravizado que se tornou autodidata em latim, francês, história militar e filosofia política –, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806) – general que proclamou a independência haitiana e se tornou o primeiro governante do país livre –, e Henri Christophe (1767-1820) – que construiu fortalezas monumentais ainda hoje patrimônio da UNESCO –, os revolucionários haitianos derrotaram os exércitos de Napoleão Bonaparte e proclamaram a abolição total da escravidão 64 anos antes do Brasil.

O impacto global foi imediato e aterrorizante para as potências escravistas. Thomas Jefferson, terceiro presidente americano e proprietário de mais de 600 escravizados, conforme documenta a obra Master of the Mountain (2012) do historiador Henry Wiencek, impôs embargo comercial total ao Haiti e se recusou a reconhecer sua independência. A França, por sua vez, exigiu uma indenização de 150 milhões de francos (equivalente a cerca de 21 bilhões de dólares atuais) pela “perda de propriedade” – os próprios ex-escravizados –, dívida que estrangulou economicamente o país até 1947.

Por que essa revolução permanece ausente dos currículos escolares brasileiros e mundiais? A resposta encontra-se na própria natureza transformadora radical do episódio – sua capacidade de romper completamente com as estruturas de poder estabelecidas. Como explicar que africanos “primitivos” – segundo a ideologia colonial – derrotaram a “civilizada” Europa? Como justificar a manutenção da escravidão após escravizados demonstrarem sua capacidade revolucionária e organizativa?

Cyril Lionel Robert James (1901-1989), autor de The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution (1938), obra considerada pioneira nos estudos pós-coloniais, demonstra magistralmente como os revolucionários haitianos aplicaram os princípios da Revolução Francesa com uma coerência que os próprios franceses não tiveram. Enquanto Robespierre guilhotinava aristocratas mas mantinha a escravidão colonial, Toussaint abolia a escravidão e estabelecia igualdade racial absoluta.

A Perspectiva Decolonial de Marconi Bispo

Bispo tem 45 produções cênicas na trajetória. Foto: Leandro Lima / Divulgação

Dramaturgia entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual. Foto: Lucas Emanuel / Divulgação

Ayiti, a montanha que assombra o mundo nasce de um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Marconi Bispo constrói uma dramaturgia que entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual, estruturando o espetáculo como o que a teórica Leda Maria Martins denomina “oralitura” – conceito que reconhece as tradições orais africanas como epistemologias legítimas, desenvolvido em obras como Afrografias da Memória (1997).

“Por que sabemos tão pouco sobre a revolução que fundou a primeira nação negra de ex-escravizados a derrotar invasores, expulsar colonizadores, abolir escravidão e proclamar soberania absoluta?”, questiona Bispo. A pergunta funciona como fio condutor dramatúrgico porque sua resposta revela os mecanismos de apagamento que ainda operam na contemporaneidade.

O artista estabelece conexões históricas concretas entre Haiti e Pernambuco através de uma metodologia que denomina “cartografia afroatlântica”. Ambos territórios compartilham heranças iorubás, experiências quilombolas e tradições de resistência que atravessaram o Atlântico. A Revolução Haitiana ecoou diretamente no Quilombo dos Palmares (século XVII, Serra da Barriga/AL), na Revolta dos Malês (1835, Salvador/BA) – insurreição de escravizados muçulmanos que planejavam tomar o poder na Bahia –, e na Cabanagem (1835-1840, Pará) – revolta popular que chegou a controlar a província paraense por quase um ano.

A Colaboração Acadêmica Internacional

A dramaturgia compartilhada com Kamai Freire adiciona rigor acadêmico internacional ao projeto. Freire, maestro e sacerdote de candomblé que desenvolve pesquisa doutoral sobre música e espiritualidade na Revolução Haitiana pela Universidade HfM Franz Liszt Weimar – instituição alemã especializada em música fundada em 1872 na cidade de Weimar –, traz perspectivas que conectam sonoridades africanas, liturgias haitianas e cosmogonias afro-brasileiras.

Esta colaboração interliga diferentes tradições acadêmicas e saberes ancestrais, criando uma obra que dialoga simultaneamente com a pesquisa universitária europeia, as tradições orais africanas e as experiências diaspóricas contemporâneas. No final de 2024, entre os meses de outubro e dezembro, o artista pernambucano desenvolveu uma residência artística no Porto, Portugal, viabilizada através de uma parceria institucional que envolveu a Circolando Cooperativa Cultural, Central Elétrica, Programa InResidence e Câmara Municipal do Porto. Esta imersão investigativa na cidade portuguesa aprofundou sua pesquisa sobre as reverberações atlânticas da insurreição haitiana e suas conexões com o imaginário colonial luso-brasileiro.

Três Décadas de Arte Política Consistente

Marconi Bispo completa 30 anos de carreira em 2025, consolidando três décadas de teatro político. Sua trajetória de 45 produções cênicas evidencia uma consistência artística construída sobre compromissos éticos com as questões raciais e territoriais. Ao longo dessas três décadas, o artista desenvolveu um conceito de transformação artística permanente baseado na constante renovação das formas estéticas como instrumento de mudança social – perspectiva que encontra eco na pedagogia teatral de Paulo Freire e nas propostas de democratização cultural de Augusto Boal.

Formado pela UFPE em 1999, Bispo desenvolveu uma metodologia que articula teatro brechtiano, ritualística afro-brasileira e pedagogia freiriana. Como sacerdote iniciado para Ìyémọjá e Ọbàlùfọ̀n (2004) e Ọrúnmìlà Bàbá Ifá (2023), sua criação artística funciona como canal de ancestralidade e ferramenta de cura coletiva – conceito fundamentado nos estudos de Muniz Sodré sobre a “ciência social afro-brasileira” (Pensar Nagô, 2017), que demonstra como as tradições iorubás operam processos terapêuticos comunitários.

A pré-estreia reúne importantes nomes da cultura pernambucana: Thulio Xambá e Beto Xambá, do Grupo Bongar, trazem percussões que conectam Recife às sonoridades da resistência haitiana. Os tambores desempenharam papel fundamental na comunicação entre insurgentes durante a revolução.

Brunna Martins, Kadydja Erlen e Arthur Canavarro integram um elenco que representa a diversidade geracional do teatro negro nordestino. Esta aliança materializa redes de solidariedade artística que espelham as próprias redes clandestinas que sustentaram a comunicação entre diferentes regiões de Saint-Domingue durante a revolução. 

SERVIÇO
🎭 ESPETÁCULO “AYITI, A MONTANHA QUE ASSOMBRA O MUNDO”
📅 2 de agosto (sábado) | ⏰ 19h
📍 Solo Gens – Rua do Apolo, 70, Recife Antigo
🎫 R$ 20 (meia) | R$ 40 (inteira)
📧 marconibispo77@gmail.com | 📱 @marconi.bispo

🔥 FICHA TÉCNICA
Concepção e Interpretação: Marconi Bispo
Dramaturgia: Marconi Bispo e Kamai Freire
Coordenação de Pesquisa: Kamai Freire
Audiovisual: Arthur Canavarro, Diego Amorim, Fernando Camaroti, Hassan Santos
Projeção e Iluminação: João Guilherme de Paula
Assessoria de Imprensa: Daniel Lima
Participações: Arthur Canavarro, Beto Xambá, Brunna Martins, Kadydja Erlen, Thulio Xambá

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Escuta pública para discutir
o Festival Recife do Teatro Nacional

 

Sinapse Darwin, da Casa de Zoé, esteve na programação do 23º FRTN. Foto: Marcos Pastich/PCR

Evento acontece terça-feira (29), às 18h30, no Teatro do Parque

A Secretaria de Cultura do Recife convocou uma escuta pública para construir coletivamente a 24ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN), que acontecerá em novembro. Na próxima terça-feira (29/07), às 18h30, artistas, produtores e demais profissionais da cena teatral recifense são chamados para se reunir na sala da Banda Sinfônica do Teatro do Parque para contribuir com a programação do festival.

“O Festival Recife do Teatro Nacional sobe aos palcos da cidade em novembro. Mas, nos bastidores, a programação já começou. E todos os cênicos da cidade estão convidados a se engajar na produção da próxima edição do festival”, destaca a convocatória oficial.

A iniciativa busca que o festival consiga “apresentar e representar esperanças e necessidades da eloquente cena recifense”, mas enfrenta um desafio que tem se repetido: a baixa participação da classe artística nestes momentos de construção coletiva.

Embora seja comum ouvir reclamações e sugestões da classe teatral recifense nas redes sociais e nas mesas de bares da cidade, a presença física nas escutas públicas tem sido decepcionante. Em 2023, apenas 20 pessoas compareceram. Em 2024, o número caiu para 15 participantes – um quórum que preocupa os organizadores, especialmente considerando que o Recife possui uma cena teatral vibrante e numerosa.

“A hora da grita é essa, mas elas preferem as redes sociais e as mesas dos bares”, observa um integrante da organização, refletindo sobre a contradição entre as críticas virtuais e a ausência nos espaços formais de discussão.

Principais pontos críticos apontados na última avaliação pública 

O encontro de terça-feira ganha ainda mais relevância diante das questões levantadas na avaliação pública da 23ª edição, realizada em dezembro de 2024. Durante três horas de discussão na mesma sala da Banda Sinfônica, artistas, produtores e a avaliadora contratada Giovana Soar debateram os acertos e problemas enfrentados pelo festival.

Infraestrutura e equipe técnica: A avaliação revelou o esgotamento das equipes técnicas dos teatros, especialmente no Centro Apolo-Hermilo. Nathalie Revoredo, iluminadora com 11 anos de experiência no local, alertou: “Temos espaços exaustos e um corpo exausto não consegue realizar muito.” O atraso de uma hora e meia na apresentação de Mulheres de Nínive exemplificou os limites da infraestrutura atual.

Comunicação e divulgação: A avaliadora Giovana Soar identificou a comunicação como “um dos pontos mais delicados”, destacando a necessidade de melhorar a divulgação para alcançar públicos mais amplos. O programa do festival só foi distribuído na segunda semana do evento, comprometendo a estratégia de comunicação.

Ocupação dos teatros: Houve esvaziamento em algumas sessões, especialmente no OFF REC e espetáculos locais da mostra principal, contrastando com a lotação em apresentações com nomes consagrados como Marco Nanini e Othon Bastos.

Democratização do acesso: Foram levantadas questões sobre como atrair o público que compareceu à festa dos 20 anos do Grupo Magiluth (cerca de 2 mil pessoas) para dentro dos teatros durante o festival.

A questão dos pagamentos

Paralelamente aos debates artísticos, a cena teatral recifense tem enfrentado uma crise de confiança relacionada aos atrasos sistemáticos nos pagamentos de cachês por parte da Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo, diretor do espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife (destaque do OFF REC 2024), recorreu às redes sociais para cobrar publicamente o pagamento pela participação da peça que envolvia 20 artistas, seis meses após a apresentação.

Não é um caso isolado. Outros artistas também recorreram às redes sociais para fazer cobranças públicas de cachês em atraso, evidenciando um problema que afeta diversos profissionais da cena cultural recifense.

Desafios estruturais e propostas 

A precarização dos espaços teatrais foi outro tema central dos debates. Augusta Ferraz, com 51 anos de dedicação ao teatro recifense, lamenta a situação de equipamentos como o Teatro Barreto Júnior, considerado um “subteatro” na vida cotidiana dos profissionais, e espaços fechados como o Teatro Valdemar de Oliveira (fechado desde 2020 e atingido por incêndio em fevereiro de 2024).

Inês Franco Maia questionou se a cadeia produtiva do teatro em Recife realmente valoriza a cultura local, criticando a tendência de valorizar mais os trabalhos externos: “O Magiluth só conseguiu reconhecimento local após ser legitimado fora de Recife.”

Durante a avaliação, emergiram diversas propostas para fortalecer o festival e a cena teatral local: planejamento antecipado das contratações técnicas e logísticas, melhor distribuição de horários para evitar sobreposições entre espetáculos, parcerias estratégicas com secretarias de Saúde, Educação e Cidadania para formar novos públicos, expansão do “Palco da Aurora” (onde Sinapse Darwin, da Casa de Zoé foi apresentado) para outras áreas da cidade, criação de espaços de encontro e diálogo após os espetáculos e revitalização do Teatro do Sítio da Trindade.

Diante deste cenário complexo, que mistura conquistas artísticas com desafios estruturais e de gestão, a escuta pública de terça-feira representa uma oportunidade crucial para que a classe teatral recifense contribua efetivamente com a construção coletiva da próxima edição do festival.

Milu Megale, secretária de Cultura do Recife, André Brasileiro, coordenador do FRTN, e Alexandre Sampaio, coordenador de produção, estarão presentes para ouvir as demandas e propostas da categoria. A 24ª edição está marcada para 19 a 30 de novembro de 2025.

Serviço

Escuta pública do Festival Recife do Teatro Nacional
Quando: Terça-feira (29/07), às 18h30
Onde: Sala da Banda Sinfônica – Teatro do Parque
Entrada: Gratuita

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Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

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Recife do teatro nacional
11 dias de festival

Peça Traidor, com Marco Nanini, abre Festival Recife do Teatro Nacional. Foto: Annelize Tozetto / Divulgação

A 23ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional começa nesta quinta-feira, 21 de novembro, prometendo uma intensa maratona cultural até o dia 1º de dezembro. Este evento, que se firmou como um dos mais significativos no panorama teatral brasileiro, reúne 31 espetáculos de companhias pernambucanas e de outros estados, em diversos teatros e espaços públicos do Recife. A programação inclui apresentações gratuitas, oficinas e rodas de diálogo, com ingressos distribuídos mediante a doação de um quilo de alimento não perecível, promovendo uma ação solidária que beneficia a comunidade local.

Este ano, o festival presta homenagem a Marco Nanini e Ivonete Melo (in memoriam).

Marco Nanini é uma figura icônica no cenário artístico brasileiro, com uma carreira que se estende por mais de seis décadas. Nascido no Recife, Nanini se mudou ainda criança para o Rio de Janeiro, onde iniciou sua trajetória no teatro, televisão e cinema. Ele é amplamente reconhecido por sua versatilidade como ator, capaz de transitar entre o drama e a comédia com maestria. Nanini ganhou destaque nacional por seu papel na série de televisão A Grande Família, onde interpretou o personagem Lineu Silva, conquistando o carinho do público brasileiro.

No teatro, Nanini é conhecido por sua dedicação e paixão pela arte cênica. Ele já participou de inúmeras produções teatrais, muitas delas ao lado de outros grandes nomes do teatro brasileiro. Sua contribuição para as artes cênicas é inestimável, e sua presença no Festival Recife do Teatro Nacional é uma celebração de suas raízes pernambucanas e de sua trajetória.

Ivonete Melo. Foto: Reprodução

Ivonete Melo é lembrada como uma das grandes referências do teatro pernambucano. Com uma carreira marcada pela militância e dedicação, Ivonete presidiu o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Pernambuco (SATED-PE) por mais de 20 anos. Ela foi uma figura central no grupo Vivencial, conhecido por sua atuação inovadora e provocativa no teatro entre as décadas de 1970 e 1980, frequentemente desafiando normas sociais e artísticas da época.

A influência de Ivonete Melo no teatro pernambucano é inegável, refletindo seu compromisso inabalável com a defesa dos direitos dos artistas e a promoção da cultura local. Admirada por sua habilidade em inspirar e liderar, ela desempenhou um papel crucial no fortalecimento da comunidade artística. A homenagem a Ivonete no festival celebra sua dedicação e militância, ao mesmo tempo em que reconhece o impacto duradouro de seu legado na cena teatral pernambucana.

Foto: Matheus José Maria / Divulgação

Traidor é uma peça que marca a abertura do Festival Recife do Teatro Nacional, estrelada por Marco Nanini e dirigida por Gerald Thomas.

Marco Nanini, em uma performance tour de force, encarna um náufrago da própria mente, isolado em uma ilha que é tanto física quanto metafórica. Seu personagem, batizado com seu próprio sobrenome, “Nanini”, navega por um mar de memórias fragmentadas e delírios vívidos, confrontando sua identidade como ator e a própria essência do que significa ser humano em um mundo cada vez mais desconexo.

A frase que norteia Traidor, citada várias vezes ao longo da peça, é justamente aquela que encerrava Um Circo de Rins e Fígados, outra parceria Nanini Thomas: “A gente se emociona, a gente se emociona sim.” Esta declaração ressoa como um manifesto da arte da interpretação, ecoando através do tempo e das obras de Gerald Thomas. Em Traidor, que estreou em novembro de 2023 em São Paulo, essa afirmação ganha novas camadas de significado, transformando-se em um farol que ilumina a jornada labiríntica de um ator perdido entre realidade e ficção.

A dramaturgia fragmentada de Thomas encontra em Nanini um intérprete capaz de dar corpo e voz às angústias e contradições de um artista acusado de um crime que não cometeu, mas que talvez tenha cometido em alguma de suas múltiplas personas teatrais. A peça trata de muitos assuntos, refletindo o caos contemporâneo, a ansiedade gerada pelo excesso de informações e o uso viciante das redes sociais, enquanto simultaneamente se apresenta como uma declaração de amor ao ofício da representação. 

Programação Diversificada

Édipo Rec. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Márcia Luz em Antígona – A Retomada. Foto: Divulgação

Othon Bastos em Não me entrego não. Foto: Beti Niemeyer/ Divulgação

Rei Lear. Foto: Mariana Chama / Divulgação

A programação diversificada do festival inclui 13 espetáculos nacionais e 18 locais na programação principal (ver programação completa abaixo), abrangendo desde peças infantis e sátiras até musicais e dramas. Entre as produções estão Édipo REC; Eu Não Me Entrego, Não; Antígona , Rei Lear.

Édipo REC, produção do grupo recifense Magiluth, é uma releitura contemporânea da tragédia grega de Sófocles. Ambientada em um imaginário Recife de 2024, a peça explora temas como o excesso de produção de imagens e a manipulação da realidade nas redes sociais. A direção de Luiz Fernando Marques traz elementos do cinema, com referências a filmes como Édipo Rex de Pasolini. O espetáculo brinca com a cronologia e questiona a noção de tempo no teatro. 

Solo da atriz pernambucana Márcia Luz, Antígona – A Retomada reinterpreta a clássica tragédia grega de Sófocles sob uma perspectiva contemporânea e afro-brasileira. A montagem radicaliza o protagonismo feminino já presente na obra original, entrelaçando a voz da personagem Antígona com as vivências da própria atriz como mulher negra. Dirigida por Quiercles Santana, a peça busca fazer reflexões sobre raça, gênero e poder na sociedade atual.

Eu Não Me Entrego, Não marca a estreia solo do veterano ator Othon Bastos. Escrita e dirigida por Flávio Marinho, a peça percorre os principais momentos da carreira de Othon, incluindo seu papel icônico em Deus e o Diabo na Terra do Sol. E utiliza um formato  descrito como “monólogo híbrido”, onde a atriz Juliana Medella atua como uma “memória” em cena, interagindo com Othon. 

Adaptação ousada da Cia. Extemporânea, Rei Lear traz a tragédia de Shakespeare para o universo das drags queens. Com um elenco composto inteiramente por artistas drag, o trabalho funde a estética drag com a poesia trágica shakespeariana. Dirigida por Ines Bushatsky e adaptada por João Mostazo, o espetáculo utiliza elementos como lipsync (Sincronia Labial) e performances de boate para reinterpretar cenas clássicas. A produção celebra a arte drag, destaca sua capacidade de expressar emoções complexas e desafiar normas de gênero, oferecendo uma visão contemporânea de Rei Lear.

Jéssica Teixeira em Monga. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

O evento também marca a estreia do OffREC, uma agenda dedicada a experimentos e espetáculos em processo, que ocorrerá no Teatro Hermilo Borba Filho, de 25 a 30 de novembro. Na programação estão a provocante peça Monga, da cearense radicada em São Paulo Jéssica Teixeira, o  espetáculo itinerante ONÁ DÚDÚ: Caminhos Negros no Bairro do Recife, com Marconi Bispo e Coletivos e a Roda de Diálogo Vedetes e Vivecas: Mulheres do Vivencial, uma homenagem a Ivonete Melo, com as atrizes Suzana Costa, Auriceia Fraga e Zélia Sales, com mediação de Hilda Torres. A curadoria do OffREC é assinada por Rodrigo Dourado.

Projeto Arquipélago de Crítica

Nesta 23ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional quatro profissionais ligados ao Projeto Arquipélago participam de uma ação de  prática da crítica. Kil Abreu, da Cena Aberta, Heloisa Sousa, da Farofa Crítica, Fredda Amorim (convidada) e Ivana Moura, do Satisfeita, Yolanda? tod_s com ampla experiência na produção de conteúdos críticos. 

O projeto arquipélago é uma iniciativa coletiva inovadora de fomento à crítica apoiado pela produtora Corpo Rastreado, de São Paulo, que surgiu em novembro de 2022 para fortalecer a crítica teatral independente no Brasil. Atualmente, seis casas virtuais participam do projeto: Guia Off, Farofa Crítica, ruína acesa, Satisfeita, Yolanda?, Tudo, Menos Uma Crítica, Cena Aberta e Horizonte da Cena.

Programação Principal

Quinta-feira (21 de novembro)

19h30 – Traidor, com Marco Nanini (direção: Gerald Thomas/RJ), no Teatro do Parque.

Sexta-feira (22 de novembro)

15h – Palhaçadas – História de um Circo sem Lona (Cia. 2 em Cena/PE), no Teatro Barreto Júnior.
18h – Cara do Pai (Coletivo Opte/PE), no Teatro Hermilo Borba Filho.
20h – Édipo REC (Magiluth/PE), no Teatro Luiz Mendonça.
20h – Traidor, com Marco Nanini (direção: Gerald Thomas/RJ), no Teatro do Parque.
20h – Eu no Controle (Cia da Baju/PE), no Teatro Apolo.

Sábado (23 de novembro)

17h – As Charlatonas (Trupe-Açu Cia. de Circo/TO), no Parque da Macaxeira.
18h – Sinapse Darwin (Cia. Casa de Zoé/RN), na Rua da Aurora.
18h – Antígona – A Retomada (Luz Criativa/PE), no Teatro Hermilo Borba Filho.
19h – 2 Mundos (Lumiato Formas Animadas/DF), no Teatro Apolo.
20h – Rei Lear (Cia. Extemporânea/SP), no Teatro de Santa Isabel.
20h – Traidor (RJ), no Teatro do Parque.
20h – Édipo REC (Magiluth/PE), no Teatro Luiz Mendonça.

Domingo (24 de novembro)

16h – Hélio, o Balão que não consegue voar (Coletivo de Artistas/PE), no Teatro do Parque.
17h – As Charlatonas (Trupe-Açu Cia. de Circo/TO), no Parque da Tamarineira.
17h – Frankinh@ (Coletivo Gompa/RS), no Teatro Apolo.
18h – Mulheres de Nínive (Nínive Caldas/PE), no Teatro Hermilo Borba Filho.
18h – Sinapse Darwin (Cia. Casa de Zoé/RN), na Rua da Aurora.
20h – Rei Lear (Cia. Extemporânea/SP), no Teatro de Santa Isabel.

Segunda-feira (25 de novembro)

20h – Instinto (Coletivo Gompa/RS), no Teatro Apolo.

Terça-feira (26 de novembro)

20h30 – Não me entrego não (Othon Bastos/RJ), no Teatro do Parque.

Quarta-feira (27 de novembro)

15h – Malassombros – Contos do Além Sertão (Grupo Teatro de Retalhos/PE), no Teatro Barreto Júnior.
20h30 – Não me entrego não (Othon Bastos/RJ), no Teatro do Parque.

Quinta-feira (28 de novembro)

20h – Kalash – Ensaio sobre a Extinção do Outro (Coletivo Opte/PE), no Teatro Apolo.

Sexta-feira (29 de novembro)

20h – Inacabado (Grupo Bagaceira/CE), no Teatro Luiz Mendonça.

Sábado (30 de novembro)

17h – Paraíso (Grupo Teatro Máquina/CE), no Teatro Apolo.
19h – Pequeno Monstro (Quintal Produções Artísticas, com Silvero Pereira/RJ), no Teatro do Parque.
20h – Inacabado (Grupo Bagaceira/CE), no Teatro Luiz Mendonça.
20h30 – Brás Cubas (Armazém Cia. de Teatro/RJ), no Teatro de Santa Isabel.

Domingo (1º de dezembro)

17h – Quatro Luas (O Bando Coletivo de Teatro/PE), no Teatro Apolo.
18h – Esquecidos por Deus (Cícero Belmar/PE), no Teatro Hermilo Borba Filho.
19h – Pequeno Monstro (Quintal Produções Artísticas, com Silvero Pereira/RJ), no Teatro do Parque.
20h30 – Brás Cubas (Armazém Cia. de Teatro/RJ), no Teatro de Santa Isabel.

Programação OffREC (25 a 30 de novembro, no Teatro Hermilo Borba Filho)

25 de novembro

16h às 18h – Roda de Diálogo Corporalidades e Estranhamentos, com Johnelma Lopes (UFPE), Ana Marques (UFPE) e Alexsandro Preto (Vale PCD). Mediação: Clara Camarotti.
20h – Espetáculo Monga, de Jéssica Teixeira (CE).

26 de novembro

9h às 12h – Vivência de Teatro Hip Hop, com o coletivo À Margem (PE) e Bento Francisco (PE).
15h às 17h – Espetáculo ONÁ DÚDÚ: Caminhos Negros no Bairro do Recife, com Marconi Bispo e Coletivos (PE). Espetáculo itinerante, com concentração no Teatro Apolo.
17h30 às 19h – Roda de Diálogo Teatro Negro em Perspectiva, com Marcos Alexandre (UFMG). Mediação: Jefferson Vitorino (Cia. Máscara Negra).
20h – Espetáculo Xirê, do Coletivo À Margem.

27 de novembro

9h às 12h – Vivência Criando Autoficções, com a Cia. Teatro da UFPE (PE).
16h às 17h30 – Roda de Diálogo Processos Criativos Autoficcionais, com Marcondes Lima (UFPE) e Rodrigo Dourado (UFPE). Mediação: Fátima Pontes (Escola Pernambucana de Circo).
18h – Espetáculo Não. Tá. Fácil, do Coletivo À Margem (PE).
20h – Espetáculo Palestra Babau, Pancadaria e Morte, com Marcondes Lima e Mão Molenga (PE).

28 de novembro

9h às 12h – Vivência Contornos do Tempo: Ensaio na Terceira Idade, com o grupo Memória em Chamas (PE).
16h às 18h – Roda de Diálogo Teatro, Memória e Envelhecimento, com Rodrigo Cunha (IFPB) e equipe do espetáculo Senhora. Mediação: Manu de Jesus, da Creative’se Cultural.
18h – Espetáculo Baba Yaga, da Cênicas Cia. de Repertório (PE).
20h – Espetáculo Senhora, de João Pedro Pinheiro (UFPE).

29 de novembro

9h às 12h – Vivência Dramaturgias Urgentes: Escritas e Cenas Negras, com Kléber Lourenço (PE).
18h – Espetáculo Poema – Desmontagem, da Cia do Ator Nu (PE).
20h – Espetáculo Negro de Estimação – Desmontagem, com Kléber Lourenço (PE).

30 de novembro

10h às 12h – Abertura de Processo Senhora dos Sonhos, com Ceronha Pontes e Gonzaga Leal (PE).
14h às 17h – Roda de Diálogo Teatro e Comunicação na Era Digital: por e para onde caminhamos, com Aline (Vendo Teatro), Fernanda (Teatralizei), Ricardo Maciel (Palco Pernambuco). Mediação: Márcio Bastos.
18h – Performance O Problema é a Cerca, com Renna Costa (PE).
20h – Roda de Diálogo Vedetes e Vivecas: Mulheres do Vivencial, uma homenagem a Ivonete Melo, com Suzana Costa, Auriceia Fraga e Zélia Sales. Mediação: Hilda Torres.

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

 

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Vivência contra preconceitos

Espetáculo autobiográfico toca nas feridas do racismo, da homofobia e dos fundamentalismos religiosos

“Quando você descobriu que era negro?”, questiona o ator Marconi Bispo no espetáculo Luzir é Negro, do coletivo Teatro de Fronteira, com direção de Rodrigo Dourado. Pergunta carregada de história de discriminação e preconceito racial de um Brasil hipócrita e desigual. Luzir é Negro faz uma sessão especial de despedida da temporada deste ano no Espaço O Poste, neste domingo (04/12), às 17h.

De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE em 2014, 53% dos brasileiros se afirmaram como negros e pardos, num acréscimo de 5 pontos porcentuais em analogia com pesquisa idêntica feita há dez anos.

O geógrafo brasileiro Milton Santos (1926 –2001), em uma palestra lembrou que os professores Florestan Fernandes e Otavio Ianni, escreveram “que os brasileiros, de um modo geral, não têm vergonha de ser racista, mas têm vergonha de se dizer que são racistas”. Essa tese provoca uma reflexão pertinente sobre discursos e aparências, sentimentos que mobilizam e processos de exclusão.

Marconi Bispo sentiu na pele a segregação no ambiente de trabalho, a desconfiança sobre suas guias ritualísticas do candomblé e a rejeição na vida afetiva.  O ator partiu para investigar essas cicatrizes do corpo e da alma a partir de sua própria vivência. E foi justamente o insucesso (?) na vida amorosa o gatilho para transformar suas experiências em  material dramatúrgico da montagem.

Marconi Bispo em Luzir é Negro

Marconi Bispo em Luzir é Negro. Fotos: Ricardo Maciel / Divulgação

A mentalidade misógina, homofóbica e racista e o fundamentalismo religioso e político são interrogados na montagem Luzir é Negro, a partir das experiências do intérprete, das violências simbólicas (e físicas) a que está exposto como homem negro, homossexual e do candomblé. Para traduzir a dimensão das ofensas e mágoas, a peça utiliza os procedimentos do biodrama e do teatro documental.

A dramaturgia é complementada por referências a textos como Os Negros, de Jean Genet, de Arena Conta Zumbi, musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, Gota D’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Além de referências a acontecimentos como o que envolveu o diretor Cláudio Botelho, gravado em um rompante racista e em outras matrizes documentais: redes sociais, matérias e artigos de jornal, documentos históricos, etc.

Marconi, também cantor, é acompanhado em cena pelos músicos Kiko Santana e Basílio Queiroz.

O racismo mata. Das mortes físicas, o relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, deste ano, aponta que 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados: 63 por dia, um a cada 23 minutos.

Mas há muitas outras formas de apagamento. Também cruéis. Luzir é Negro trata um pouco disso tudo a partir das histórias e memórias de um homem negro de 39 anos – destes, 21 dedicados ao teatro – situado no Pernambuco do Recife, no Nordeste do Brasil, um país que vem dando macha a ré nas conquistas pelos direitos e cidadania.

FICHA TÉCNICA
Atuação: Marconi Bispo.
Direção: Rodrigo Dourado.
Dramaturgia: Marconi Bispo e Rodrigo Dourado.
Preparação Corporal: Pollyanna Monteiro.
Direção de Arte: Marcondes Lima (figurinos) e Plínio Maciel (elementos cenográficos e adereços).
Coreografias: Edson Vogue.
Iluminação: João Guilherme de Paula.
Edição de trilha: Rodrigo Porto.
Assessoria de Imprensa: Cleyton Cabral.
Músicos: Kiko Santana (guitarra e direção musical) e Basílio Queiroz (contrabaixo).
Fotos e vídeos: Ricardo Maciel.
Identidade Visual: Arthur Canavarro.
Assistência de Produção: Rodrigo Cavalcanti.
Realização: Teatro de Fronteira.

SERVIÇO
Luzir é Negro, do Teatro de Fronteira
Quando: Sessão especial neste domingo (04/12), às 17h.
Onde: Espaço O Poste (rua da Aurora, 529, Boa Vista)
Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia)

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