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A Insurreição Que Assombra
Sessão única de Ayiti,
com Marconi Bispo

 

Marconi Bispo desvela em Pernambuco a revolução haitiana que permanece silenciada nos livros de história. Foto: Arthur Canavarro

Existe uma lacuna imensa na educação brasileira. Uma ausência que não parece casual, mas estratégica. Enquanto aprendemos sobre diversas revoluções ao longo da formação escolar, uma permanece deliberadamente esquecida: a única insurreição escrava vitoriosa da história moderna, que aconteceu no Haiti entre 1791 e 1804. É exatamente essa ferida na memória coletiva que o experiente artista pernambucano Marconi Bispo decidiu confrontar.

Aos 30 anos de carreira — trajetória que o consolida como uma das vozes mais consistentes das artes cênicas pernambucanas —, Marconi apresenta Ayiti, a montanha que assombra o mundo, trabalho que inaugura em solo pernambucano um diálogo cênico com a Revolução Haitiana. A montagem retorna ao cartaz nesta terça-feira (14), às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo.

Descolonizando a Dramaturgia 

O projeto nasce de uma inquietação que indaga por que a primeira república negra da história mundial, que derrotou militarmente França, Espanha e Inglaterra, permanece ausente dos currículos escolares? Por que essa vitória extraordinária – que antecipou em décadas os ideais de igualdade racial — foi sistematicamente apagada da historiografia oficial?

Marconi Bispo, em parceria com o pesquisador Kamai Freire, constrói uma dramaturgia que vai além da reconstituição histórica. O espetáculo avança como arqueologia da resistência, escavando memórias soterradas e devolvendo dignidade a narrativas marginalizadas. A pesquisa, baseada em 13 obras sobre o tema e amadurecida durante residência artística em Portugal, revela conexões históricas surpreendentes entre Recife e Haiti.

“A ilha era chamada de Kiskeya — Mãe de Todas as Terras — pelo povo Taíno”, explica o artista. Essa recuperação da nomenclatura original exemplifica o método do espetáculo: desconstruir sistematicamente a linguagem colonial para assumir outras formas de compreender o mundo.

Além de Marconi, estão no elenco Brunna Martins, Kadydja Erlen e os músicos Beto Xambá e Thulio Xambá

A força da montagem resulta da articulação entre diferentes linguagens artísticas afro-pernambucanas. O elenco reúne Brunna Martins, Kadydja Erlen e os músicos Beto Xambá e Thulio Xambá, do respeitado Grupo Bongar. Essa formação processa a confluência de tradições culturais que dialogam diretamente com o universo revolucionário haitiano.

A percussão assume papel dramatúrgico central, ecoando os tambores que convocaram os escravizados para a insurreição. As batidas atuam como código ancestral, linguagem cifrada que atravessou o Atlântico e permanece viva nas manifestações culturais negras contemporâneas.

Mais que criação artística, Ayiti processa como dispositivo pedagógico, que assume dimensão política fundamental. Ele democratiza o acesso a conhecimentos que as instituições de ensino tradicionalmente negam às classes populares.

A produção independente e os ingressos a preços acessíveis (R$ 25 e R$ 50)) materializam essa vocação democrática. Marconi Bispo compreende que a arte deve circular entre as comunidades que mais se beneficiam dessas narrativas de empoderamento.

Espetáculo estabelece paralelos entre a luta anticolonial caribenha e as resistências negras em Pernambuco

O conceito de “contracolonização”, desenvolvido pelo filósofo Nego Bispo, permeia toda a construção dramatúrgica. O espetáculo pratica essa contracolonização ao recusar a vitimização dos povos escravizados e celebrar sua capacidade de auto-organização política e militar.

“A Revolução Haitiana não acabou”, defende Marconi Bispo. “Ela segue reverberando como o movimento mais impactante de todos os tempos.” Essa perspectiva transforma o Haiti de símbolo de miséria — como frequentemente aparece na mídia — em farol de dignidade e resistência.

A montagem conecta passado e presente. Ao estabelecer paralelos entre a luta anticolonial caribenha e as resistências negras em Pernambuco, o espetáculo fortalece genealogias de luta que nutrem as comunidades afro-brasileiras contemporâneas.

A pergunta que atravessa toda a encenação — “Qual revolução você ainda não fez?” — sintetiza esse potencial transformador. Ayiti convoca cada espectador a refletir sobre seu papel na construção de uma sociedade antirracista e verdadeiramente democrática.

Leia a outra matéria sobre Ayiti AQUI

Serviço

Ayiti, a montanha que assombra o mundo

14 de outubro de 2025 (terça-feira), 20h
Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, 142 – Recife Antigo)
Ingressos: R$ 25 (meia) / R$ 50 (inteira)
Vendas: bit.ly/3L5xPQg

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Resistência cultural e inovação em diversos espaços

Agrinez Melo em Histórias Bordadas em Mim

Uma programação diversificada abrange desde comédias autorais até espetáculos que resgatam a ancestralidade afro-brasileira. Entre os destaques, duas produções pernambucanas chamam especial atenção: Histórias Bordadas em Mim, pela sua trajetória de resistência e celebração da cultura negra, e Ayiti, a montanha que assombra o mundo, que marca os 30 anos de carreira de Marconi Bispo com um mergulho inédito na Revolução Haitiana.

Após nove anos de trajetória independente, o espetáculo solo Histórias Bordadas em Mim, da atriz pernambucana Agrinez Melo, reestreia no Espaço O Poste nos dias 10 e 11 de outubro, às 19h, marcando um importante momento de reconhecimento para a produção artística local.

A peça, que já percorreu mais de 50 apresentações entre Pernambuco, Ceará e São Paulo, chegando a um público de mais de 6 mil pessoas, agora conquista pela primeira vez o incentivo público através do edital Funcultura. 

Histórias Bordadas em Mim” é mais que um espetáculo teatral – é um ritual de acolhimento que se inicia com um banho de ervas oferecido ao público. A protagonista, coberta por retalhos e saias, marca os pontos riscados das encruzilhadas entre histórias reais e imaginárias, proporcionando um resgate orgânico da fé e da possibilidade de ressignificar experiências vividas.

A encenação baseia-se na Poética Matricial dos Orixás e Encantados, explorando narrativas teatrais que posicionam uma mulher negra, mãe, candomblecista e nordestina no centro da cena. As referências incluem a oralidade africana ancestral, os ensinamentos de sua mãe costureira e avós benzedeiras, além das trocas com terreiros de matriz afro-indígena.

Em Ayiti, Marconi Bispo celebra 30 anos de arte com peça sobre revolução haitiana. Foto: Arthur Canavarro 

Em um marco histórico para o teatro pernambucano, Marconi Bispo apresenta no dia 14 de outubro, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho, o espetáculo Ayiti, a montanha que assombra o mundo – a primeira produção em Pernambuco dedicada exclusivamente à Revolução Haitiana.

O espetáculo, que marca os 30 anos de carreira do artista, representa um mergulho profundo nas conexões históricas entre o Haiti e as insurgências pernambucanas, questionando por que sabemos tão pouco sobre a revolução que fundou a primeira nação negra de ex-escravizados a derrotar o invasor europeu e abolir a escravidão.

Ayiti une história, performance, percussão, poesia e dança em uma experiência cênica única, com dramaturgia assinada por Marconi Bispo e Kamai Freire. A apresentação conta com a participação de artistas locais como Thulio Xambá e Beto Xambá (musicistas do Grupo Bongar), Brunna Martins e Kadydja Erlen (atrizes), criando uma ponte entre a resistência haitiana e a cultura afro-pernambucana.

FETEAG: 34ª Edição Propõe Diálogos entre Arte e Urgências Sociais

Germaine Acogny encerra programação do Feteag com Un endroit du début

O Festival de Teatro do Agreste (FETEAG), dirigido por Fabio Pascoal, estabelece em sua 34ª edição diálogos diretos entre criação artística contemporânea e as urgências sociais do nosso tempo. Entre 9 e 26 de outubro, o evento reúne 21 espetáculos nacionais e internacionais, todos com entrada gratuita, em teatros de Caruaru e Recife.

À mon seul désir, de Gaëlle Bourges (França), abre o festival nos dias 9 e 10 de outubro no Teatro Luiz Mendonça. A coreógrafa francesa parte da tapeçaria medieval A Dama e o Unicórnio para reavaliar construções históricas sobre feminilidade, examinando como a cultura europeia associou mulheres ao mundo vegetal e animal, perpetuando ideais de virgindade através de imagens aparentemente poéticas.

A investigação coreográfica expõe violências simbólicas embutidas nessas representações românticas, utilizando movimento e voz para evidenciar como tapeçarias medievais funcionavam como dispositivos de controle sobre corpos femininos, conectando-se com debates contemporâneos sobre representação e autonomia.

Les Sans (Os Sem), do coletivo Les Récréâtrales-ELAN de Burkina Faso, investiga a questão dos sem-teto e excluídos sociais através de linguagem que combina tradições orais africanas com teatro político contemporâneo. A obra adapta o pensamento de Frantz Fanon para o teatro através do reencontro de dois ex-companheiros de luta, interrogando se a libertação formal constitui verdadeira descolonização.

L’Opéra du villageois, da Compagnie Zora Snake de Camarões, manifesta resistência através de performance-ritual que ressuscita a potência das máscaras africanas roubadas pelos museus europeus, questionando a pilhagem cultural colonial através de rituais com ouro e sal.

Germaine Acogny, lenda da dança contemporânea nascida no Senegal em 1944, encerra o festival no Teatro Santa Isabel com Un endroit du début. Aos 81 anos, ela segue ativa como pesquisadora corporal, tendo fundado a primeira escola de dança contemporânea da África Ocidental em 1977 e desenvolvido técnica própria que combina danças tradicionais africanas com metodologias ocidentais.

A apresentação de La Cocina Pública, do grupo chileno Teatro Container, no Assentamento Normandia em Caruaru estabelece uma das escolhas mais incisivas da curadoria. O espetáculo transforma o preparo coletivo de uma refeição em ritual de reflexão sobre direitos básicos, ganhando ressonâncias particulares sobre soberania alimentar em território conquistado pelo MST.

Édipo REC, do Grupo Magiluth (PE), com direção de Luiz Fernando Marques e dramaturgia de Giordano Castro, constrói releitura não-linear da tragédia sofocliana onde Tebas se transforma no Recife fantasmagórico. O Corifeu é representado pela câmera, espelhando a produção excessiva de imagens das redes sociais e câmeras de segurança.

Neva, montagem de Marianne Consentino (PE), ambienta-se no Domingo Sangrento de 1905 em São Petersburgo, friccionando arte e política através de três atores refugiados em teatro durante massacre nas ruas. A peça de Guillermo Calderón questiona a serventia do teatro através de Olga Knipper, viúva de Tchekhov.

Fábulas de nossas fúrias (Coletivo Atores à Deriva, RN) articula contação de histórias com afirmação política da raiva como elemento transformador, inspirando-se em Paulo Freire para questionar hierarquias conservadoras através de narrativas que invertem lógicas de poder.

Dancemos… que o mundo se acaba!, da BiNeural-MonoKultur (Argentina), propõe áudio-obra interativa que transforma público em dançarinos, questionando coreomanias e epidemias de dança através de jogo que reflete sobre sedução, pandemia e medo de dançar sozinho.

Sonho de uma noite de verão, da Trupe Ave Lola (PR), revisita Shakespeare através de encenação popular com tradução de Bárbara Heliodora, reunindo nove artistas em cena com música original executada ao vivo, criando atmosfera festiva que convida o público a testemunhar momentos de paixão, magia e loucura.

As criações francófonas constroem considerações convergentes sobre precariedade através de perspectivas diversificadas. Le Quai de Ouistreham, da Compagnie la Résolue (França), adapta investigação jornalística sobre mulheres que trabalham em empregos precários e invisíveis, especialmente na limpeza, vivendo à sombra da crise econômica.

La Vérité vaincra / A Verdade Vencerá, da Cie KastôrAgile (França), desenvolve palestra-performance baseada no livro homônimo de Luiz Inácio Lula da Silva, adaptando entrevistas concedidas à editora Ivana Jinkings em janeiro de 2018, transformando documento político em teatro de resistência.

Barbixas e a arte da improvisação

Barbixas: trio formado por Anderson Bizzochi, Daniel Nascimento e Elidio Sanna,

No fim de semana dos dias 11 e 12 de outubro, o Teatro RioMar recebe Improvável, espetáculo de improvisação teatral da Cia Barbixas. O trio formado por Anderson Bizzochi, Daniel Nascimento e Elidio Sanna, com mais de duas décadas de parceria artística, cria cenas inteiramente a partir de sugestões da plateia.

A companhia, que sacudiu o teatro de improviso no Brasil, trabalha com diferentes formatos cênicos incluindo musicais, westerns, novelas e até óperas, sempre mantendo o humor inteligente e a interação constante com o público. Cada apresentação é única, pois depende inteiramente da criatividade coletiva entre artistas e espectadores. No sábado (11), há duas sessões às 18h30 e 21h, enquanto domingo (12) apresenta sessão única às 20h.

Ópera com sotaque regional: La Serva Padrona

 La Serva Padrona: ópera italiana com humor

O Teatro Hermilo Borba Filho recebe, de 8 a 11 de outubro, às 19h30, uma montagem especial da ópera cômica La Serva Padrona, de G. B. Pergolesi. Esta versão recifense é resultado de um trabalho criativo audacioso que ressignifica a obra setecentista italiana através de elementos nordestinos, como expressões vocais.

A direção cênica de Luiz Kleber Queiroz e a direção musical da maestrina Maria Aida Barroso criaram uma proposta que mantém a estrutura musical original – com as árias preservadas em italiano – enquanto transpõe os recitativos para o português carregado de regionalismo pernambucano. Esta escolha artística permite que o público local se conecte diretamente com a narrativa sem perder a essência operística da obra.

A produção de Matheus Soares (25 Produções) inova na cenografia e figurinos, incorporando elementos como algodão cru, cestos de palha, tapioca e o icônico chapéu de vaqueiro. O elenco se alterna entre diferentes solistas, acompanhado por um sexteto de câmara que executa a partitura original de Pergolesi, criando um diálogo entre a tradição operística europeia e a cultura popular nordestina.

A trama cômica, baseada na Commedia dell’arte, acompanha as estratégias da esperta criada Serpina para conquistar seu patrão Uberto, numa comédia de costumes que ganha novos contornos quando ambientada no universo cultural pernambucano.

Duas Conversas com Ítalo Sena 

No dia 14 de outubro, às 20h, o Teatro Luiz Mendonça recebe Duas Conversas, o mais recente trabalho de Ítalo Sena, conhecido nacionalmente como o “rei das pegadinhas”. Após o sucesso de Mostrando Meu Trabalho, que percorreu o Brasil, o humorista retorna com uma proposta renovada, resultado de nove meses de intensa preparação artística e física.

Duas Conversas mostra um mergulho nos dois lados da vida artística de Ítalo Sena, explorando aspectos nunca antes revelados ao público. O espetáculo conta com texto desenvolvido pelo próprio humorista, em colaboração criativa com Maurício Meireles.

O destaque fica por conta do cenário digital interativo, que busca surpreender a plateia com elementos tecnológicos integrados à narrativa. A preparação artística de Diógenes De Lima, a produção de Laura Ithamar, a iluminação de Jathyles Miranda e as artes para o cenário virtual assinadas pelo VJ Koala Brito buscam elevar produção a um patamar técnico diferenciado.

Traidor: Marco Nanini e Gerald Thomas revisitam parceria histórica

Nanini em Traidor. Foto: Annelize Tozetto

Traidor, com Marco Nanini sob direção de Gerald Thomas, ocupa o Teatro Luiz Mendonça entre 17 e 19 de outubro. O espetáculo reflete as transformações profundas que o mundo sofreu desde o começo do século: o trauma pós-pandêmico, a revolução digital que substitui o real pelo virtual, e as rupturas democráticas que marcam o cenário político global. Gerald Thomas criou o texto sob influência deste “caldeirão contemporâneo”.

Em Traidor, Marco Nanini está isolado em uma ilha, acusado de algo que não cometeu, dialogando com a própria consciência, seus fantasmas e reflexões sobre passado, presente e futuro. Estes elementos são materializados no elenco formado por Hugo Lobo, Ricardo Oliveira e Wallace Lau. A ação transcorre como se toda a narrativa se passasse dentro da mente do protagonista.

Gerald Thomas define a obra como “um cruzamento entre Kafka e Shakespeare, uma espécie de híbrido entre o Joseph K, de O Processo, e Próspero, de A Tempestade, cuja mente renascentista olha para o futuro da civilização, perdoa seus detratores e os absolve”.

A equipe técnica reúne iluminação de Wagner Pinto, cenografia de Fernando Passetti, figurinos de Antonio Guedes, direção musical e trilha sonora de Alê Martins, direção de movimento de Dani Lima e assistência de direção de Samuel Kavalerskid.

Drama e intensidade: As Bruxas de Salem e Imorais

As Bruxas de Salem na montagem da Cobogó das Artes, com produção executiva de Adriano Portela

Imorais do Bando de Nada – Grupo de Teatro, com texto de Cristiano Primo e direção de Emmanuel Matheus

A terceira semana de outubro (15 e 16) traz duas montagens teatrais de forte apelo dramático. No Teatro Apolo, As Bruxas de Salem apresenta adaptação livre da obra clássica de Arthur Miller, dirigida por Anthony Delarte. A montagem da Cobogó das Artes, com produção executiva de Adriano Portela, ambienta a trama numa pequena vila puritana onde fé e medo se confundem, questionando verdade, manipulação e a coragem necessária para questionar autoridades.

Simultaneamente, o Teatro Hermilo Borba Filho recebe Imorais do Bando de Nada – Grupo de Teatro. O texto de Cristiano Primo, com adaptação e direção de Emmanuel Matheus e produção da Lynda Produções, propõe uma experiência cênica intensa sobre uma família e suas relações complexas. O elenco formado por Aline Santos, Cristiano Primo, Lynda Morais, Felipe Nunes e Tarcila Nunes conduz a narrativa que questiona se sempre temos direito à escolha, em espetáculo classificado para maiores de 18 anos.

Grupo Corpo: Cinco Décadas de Dança Brasileira

Grupo Corpo celebra 50 anos com turnê pelo Brasil

Nos dias 17 e 18 de outubro, o Teatro Santa Isabel recebe o Grupo Corpo de Belo Horizonte em apresentações gratuitas que celebram os 50 anos da companhia. A programação inclui dois espetáculos distintos que demonstram a evolução artística ao longo de cinco décadas desde a fundação em 1975.

Parabelo, coreografia clássica de 1997 de Rodrigo Pederneiras, com música de Tom Zé e Zé Miguel Wisnik, celebra aspectos da vida sertaneja. Já Piracema representa a constante renovação do repertório através de novas parcerias criativas. A criação tem parceria coreográfica entre Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches, com trilha inédita de Clarice Assad que transita do tribal ao eletrônico. A cenografia de Paulo Pederneiras utiliza 82 mil tampas de latas de sardinha para evocar escamas de cardumes, inspirando-se na jornada dos peixes que enfrentam a correnteza para desovar.

Teatro de Rua: Ilha: Dois leva urgência climática para o centro da Cidade

Grupo Bote de Teatro faz apresentações na Praça do Sebo

O Bote de Teatro, em parceria com a Cia. Toda Deseo de Minas Gerais, leva às ruas do centro do Recife uma provocação urgente sobre a crise climática. Nos dias 18 e 19 de outubro, às 19h, a Praça do Sebo se transforma em palco para Ilha: Dois, espetáculo gratuito que confronta a cidade com uma realidade alarmante.

A escolha do espaço urbano não é casual: tratando-se de uma cidade considerada geograficamente uma ilha e que, segundo relatórios da ONU, figura entre as mais vulneráveis ao aumento do nível do mar – ocupando a 16ª posição entre as cidades que podem desaparecer -, a montagem busca provocar reflexões diretas com a população sobre as mudanças climáticas.

Sob direção de Rafael Bacelar, reconhecido nacionalmente e indicado a diversos prêmios, e dramaturgia de David Maurity, o espetáculo mescla poesia, crítica social e resistência. A cantora e atriz Nega do Babado enriquece a trama com intervenções musicais, criando uma linguagem híbrida que dialoga diretamente com o público.

A montagem integra o projeto colaborativo Cidade Líquida e garante acessibilidade completa, oferecendo tradução em Libras e transporte acessível através do programa PE Conduz.

Instituto Ploeg: Encontro Radical entre Clássicos do Teatro

O Instituto Ploeg propõe no dia 11 de outubro um encontro singular entre dois retratos radicais do desejo e da ferida humana através de leituras dramáticas. O ATO apresenta Navalha na Carne, de Plínio Marcos, e Closer, de Patrick Marber, duas obras de tempos e contextos distintos, mas unidas pela mesma intensidade na busca por contato humano, mesmo quando ele causa dor.

Navalha na Carne, clássico do teatro brasileiro escrito em 1967 e censurado à época, encena a tensão brutal entre três personagens à margem da sociedade, num embate visceral de poder, corpo e sobrevivência. A obra continua ecoando como um grito urgente e contemporâneo.

Closer, conhecida pela adaptação cinematográfica de 2004, foi originalmente uma peça de enorme sucesso no teatro britânico. Com diálogos afiados, a obra revela o jogo de sedução e crueldade que sustenta as relações amorosas contemporâneas.

Sonho Encantado de Cordel: Fusão entre Nordeste e Contos de Fadas

Sonho Encantado de Cordel – O Musical

No último fim de semana do mês (25 e 26 de outubro), o Teatro Luiz Mendonça encerra a programação de outubro com Sonho Encantado de Cordel – O Musical. A produção de Thereza Falcão cria uma mistura entre a cultura nordestina e os contos de fadas de Hans Christian Andersen, resultando numa celebração da arte, poesia e poder dos sonhos.

O espetáculo conta com cenários e figurinos assinados por Rosa Magalhães e Mauro Leite, que dialogam com projeções de Batman Zavareze e coreografias de Renato Vieira, visando um universo visual que junte tradição popular e fantasia universal.

A trilha sonora é um dos grandes destaques da produção, contando com 10 músicas inéditas compostas especialmente para o espetáculo por três grandes nomes da MPB: Paulinho Moska, Chico César e Zeca Baleiro, sob direção musical de Marcelo Alonso Neves. Esta colaboração musical promete criar uma linguagem sonora que honra tanto as raízes nordestinas quanto a universalidade dos contos de fadas.

As apresentações acontecem no sábado (25) às 17h e no domingo (26) com duas sessões, às 15h e 17h, permitindo que diferentes públicos tenham acesso a esta produção especial.

CAIXA Cultural: Frankenstein em Dose Dupla

Frankenstein do Grupo Gompa, do Rio Grande do Sul

A CAIXA Cultural Recife apresenta entre 25 de outubro e 1º de novembro uma temporada especial do premiado Coletivo Gompa, do Rio Grande do Sul. O grupo apresenta duas montagens inspiradas no clássico de Mary Shelley: Frankenstein (para público adulto) e “Frankinh@ – Uma história em pedacinhos” (infantil).

Frankinh@, vencedor do Prêmio SESC de Artes Cênicas, já circulou por 18 cidades brasileiras e foi apresentado na Rússia e em Cuba. A peça infantil mescla narração, teatro, dança e artes visuais para despertar o imaginário das crianças através da história de Victor Frankenstein, jovem que cria alguém para lhe fazer companhia.

A versão adulta Frankenstein cria paralelos entre o corpo feminino e a Amazônia, explorando questões como pertencimento, violência e identidade com uma narrativa decolonial.

Espaço O Poste: Território de Resistência 

Fabíola Nansurê em Barro Mulher

Stephany Metódio com Luanda Ruanda: Histórias Africanas. Foto tatá costa

Urubatan Miranda com Negaça 

O Espaço O Poste se consolida como um dos principais centros de produções autorais e experimentais do Recife, funcionando como laboratório de criação e plataforma de visibilidade para artistas que desenvolvem pesquisas continuadas sobre identidade, memória e resistência. A programação de outubro reflete essa vocação curatorial, reunindo quatro trabalhos que abordam questões centrais da contemporaneidade através de linguagens cênicas diversificadas.

Além de Histórias Bordadas em Mim, recebe Fabíola Nansurê com Barro Mulher (24 de outubro), Stephany Metódio com Luanda Ruanda: Histórias Africanas (25 de outubro, gratuito) e Urubatan Miranda com Negaça (31 de outubro).

Fabíola Nansurê, reconhecida por suas pesquisas sobre corpo e território, constrói uma dramaturgia sensorial que utiliza barro como elemento cênico central, explorando texturas, plasticidade e simbolismo do material para questionar padrões estéticos e sociais impostos aos corpos femininos. A montagem propõe uma reflexão sobre resistência, autoconhecimento e reconexão com elementos primordiais da natureza.

A encenação dialoga com tradições ceramistas nordestinas e práticas rituais ancestrais, criando pontes entre saberes populares e linguagem cênica contemporânea através de uma experiência imersiva que convida o público a repensar relações entre humanidade e ambiente.

Stephany Metódio apresenta no dia 25 de outubro, às 16h, uma sessão gratuita de Luanda Ruanda: Histórias Africanas, espetáculo que resgata narrativas africanas através de contação de histórias que conecta tradições orais do continente com experiências da diáspora no Brasil.

A artista, especializada em culturas africanas e afro-brasileiras, desenvolve uma dramaturgia que articula contos tradicionais de diferentes regiões da África com reflexões sobre identidade, pertencimento e resistência cultural. Luanda Ruanda utiliza música, dança e elementos visuais para criar atmosfera envolvente que transporta o público para universos narrativos ricos em simbolismo e ensinamentos ancestrais.

A montagem tem particular relevância educativa e cultural, funcionando como instrumento de valorização da herança africana e combate ao racismo através da arte. Stephany Metódio incorpora instrumentos musicais tradicionais, adereços e gestualidade específica para honrar a autenticidade das tradições apresentadas, criando ponte entre continentes e gerações.

O formato de entrada gratuita reforça o compromisso do Espaço O Poste com a democratização cultural e o acesso da comunidade a produções que abordam questões de identidade e representatividade, especialmente relevantes no contexto da educação antirracista.

Urubatan Miranda encerra a programação mensal do espaço no dia 31 de outubro, às 19h, com Negaça, solo que explora construções de masculinidade no contexto nordestino através de autobiografia cênica que articula memória pessoal com questões coletivas sobre identidade de gênero e afetividade.

O artista, reconhecido por trabalhos que abordam questões LGBTQIA+ e regionalismo, desenvolve uma dramaturgia que questiona estereótipos sobre homens nordestinos, explorando sensibilidades, vulnerabilidades e formas de amar que escapam aos padrões heteronormativos dominantes. Negaça utiliza humor, poesia e crítica social para desconstruir imagens cristalizadas sobre masculinidade sertaneja.

A montagem incorpora elementos da cultura popular nordestina – como cordel, música regional e gestualidade característica – para criar linguagem cênica que celebra diversidade sexual e afetiva. Urubatan Miranda propõe um diálogo franco sobre preconceito, aceitação familiar e construção de identidade em contextos conservadores.

Festival de Circo: Novembro Promete

Le Bruit des Pierres do Collectif Maison Courbe da França

O mês de novembro será marcado pelo Festival de Circo do Brasil, que já tem pelo menos três espetáculos confirmados, prometendo dar continuidade à efervescência cultural iniciada em outubro.

Vermelho, Branco e Preto traz Cibele Mateus de São Paulo em solo que mescla riso, poesia e encantamento popular nos dias 5 e 6 de novembro às 19h30 no Teatro Apolo. A artista apresenta a figura cômica “Mateu”, inspirada no tradicional Cavalo-marinho pernambucano, em espetáculo-brincadeira que celebra identidade e ancestralidade.

No dia 6 de novembro, o Teatro Santa Isabel recebe O Vazio é Cheio de Coisa da Cia Nós No Bambu de Brasília. O espetáculo apresenta dança acrobática minimalista que explora a relação entre corpo humano e bambu, criando uma profusão de imagens e significados em dramaturgia poética onde simplicidade e complexidade se encontram.

A programação inclui ainda Le Bruit des Pierres do Collectif Maison Courbe da França, nos dias 8 e 9 de novembro no Teatro Santa Isabel. A criação híbrida combina circo coreográfico e teatro físico, com duas mulheres que encarnam a ganância ocidental pelo ouro através de coreografias realizadas com pedras, questionando a relação entre homem e ambiente.

SERVIÇO COMPLETO

FETEAG À mon seul désir
📅 Datas: 9 e 10 de outubro
📍 Local: Teatro Luiz Mendonça (Av. Boa Viagem, s/n, Boa Viagem)
🎫 Entrada: Gratuita
🎭 Criação: Gaëlle Bourges (França)

La Serva Padrona
📅 Datas: 8, 9, 10 e 11 de outubro
🕘 Horário: 19h30
📍 Local: Teatro Hermilo Borba Filho
🎫 Entrada: Gratuita (ingressos na bilheteria do teatro)
🎭 Direção: Luiz Kleber Queiroz | Direção Musical: Maria Aida Barroso

Histórias Bordadas em Mim
Datas: 10 e 11 de outubro (sexta e sábado)
🕘 Horário: 19h
📍 Local: Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista)
🎫 Ingressos: R15(meia)∣R 30 (inteira) | R$ 10 (estudantes UFPE/Escola O Poste)
♿ Acessibilidade: Sessão de 11/10 com Libras e audiodescrição

Leituras Dramáticas – Navalha na Carne e Closer
📅 Data: 11 de outubro (sábado)
🕘 Horários: Abertura às 15h | Navalha na Carne às 16h | Closer às 18h
📍 Local: Instituto Ploeg (Rua de Santa Cruz, 190, Boa Vista)
🎫 Informações: Consultar @institutoploeg

Improvável – Cia Barbixas
📅 Datas: 11 e 12 de outubro (sábado e domingo)
🕘 Horários: Sábado: 18h30 e 21h | Domingo: 20h
📍 Local: Teatro RioMar
🎫 Informações: Consultar bilheteria do teatro

Duas Conversas com Ítalo Sena
📅 Data: 14 de outubro (terça-feira)
🕘 Horário: 20h
📍 Local: Teatro Luiz Mendonça (Av. Boa Viagem, s/n, Boa Viagem)
🎫 Ingressos: R50aR 100
🎭 Colaboração: Maurício Meireles | Cenário Digital: VJ Koala Brito

Ayiti, a montanha que assombra o mundo
📅 Data: 14 de outubro (terça-feira)
🕘 Horário: 20h
📍 Local: Teatro Hermilo Borba Filho
🎫 Ingressos: R$ 25 e R$ 50 (Sympla)

Dancemos… que o mundo se acaba!
Data: 15 de outubro
🕘 Horário: 19h
📍 Local: Estação Ferroviária (Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: Livre
🎭 Cia: BiNeural-MonoKultur (Argentina)

Édipo REC
Data: 15 de outubro
🕘 Horário: 20h
📍 Local: Teatro Lycio Neves (Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: 18 anos
🎭 Grupo: Magiluth (PE)

As Bruxas de Salem
📅 Datas: 15 e 16 de outubro (quarta e quinta-feiras)
📍 Local: Teatro Apolo
🎫 Informações: Consultar bilheteria do teatro
🎭 Direção: Anthony Delarte | Produção: Cobogó das Artes

Imorais
Datas: 15 e 16 de outubro (quarta e quinta-feiras)
📍 Local: Teatro Hermilo Borba Filho
🎫 Informações: Consultar bilheteria do teatro
📊 Classificação: +18 anos | Direção: Emmanuel Matheus

Fábulas de nossas fúrias
📅 Data: 16 de outubro
🕘 Horário: 20h
📍 Local: Teatro Lycio Neves (Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: 16 anos
🎭 Cia: Atores à Deriva (RN)

Neva
📅 Data: 17 de outubro
🕘 Horário: 20h
📍 Local: Teatro Lycio Neves (Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: 16 anos
🎭 Direção: Marianne Consentino (PE)

Grupo Corpo – Parabelo e Piracema
📅 Datas: 17 e 18 de outubro (sexta-feira e sábado)
📍 Local: Teatro Santa Isabel
🎫 Entrada: Gratuita
🎭 Celebração: 50 anos da companhia

Traidor com Marco Nanini
📅 Datas: 17 a 19 de outubro (sexta, sábado e domingo)
🕘 Horários: Sexta e sábado às 20h | Domingo às 19h
📍 Local: Teatro Luiz Mendonça (Av. Boa Viagem, s/n, Boa Viagem)
Ingressos: R100aR 200
🎭 Direção: Gerald Thomas | Elenco: Hugo Lobo, Ricardo Oliveira, Wallace Lau

Sonho de uma noite de verão
📅 Datas: 18 e 19 de outubro
🕘 Horário: 17h
📍 Local: Teatro Rui Limeira Rosal (Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: 12 anos
🎭 Cia: Trupe Ave Lola (PR)

La Cocina Pública
Datas: 18 e 19 de outubro
🕘 Horário: Encontro 16h na Estação Ferroviária
📍 Local: Centro de Formação Paulo Freire (Assentamento Normandia, Caruaru)
🎫 Entrada: Gratuita
📊 Classificação: Livre
🎭 Cia: Teatro Container (Chile)

Ilha: Dois
Datas: 18 e 19 de outubro (sábado e domingo)
🕘 Horário: 19h
📍 Local: Praça do Sebo (Centro do Recife)
🎫 Entrada: Gratuita
♿ Acessibilidade: Tradução em Libras e transporte via PE Conduz

Barro Mulher
📅 Data: 24 de outubro (sexta-feira)
🕘 Horário: 19h
📍 Local: Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista)
🎫 Ingressos: R15(meia)∣R 30 (inteira)

Luanda Ruanda: Histórias Africanas
📅 Data: 25 de outubro (sábado)
🕘 Horário: 16h
📍 Local: Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista)
🎫 Entrada: Gratuita

Sonho Encantado de Cordel – O Musical
📅 Datas: 25 e 26 de outubro (sábado e domingo)
🕘 Horários: Sábado: 17h | Domingo: 15h e 17h
📍 Local: Teatro Luiz Mendonça (Av. Boa Viagem, s/n, Boa Viagem)
🎫 Informações: Consultar bilheteria do teatro
🎭 Produção: Thereza Falcão | Músicas: Paulinho Moska, Chico César, Zeca Baleiro

Frankinh@ – Uma história em pedacinhos
📅 Datas: 25 e 26 de outubro e 1º de novembro
🕘 Horários: 17h (sábado) | 11h (domingo)
📍 Local: CAIXA Cultural Recife (Av. Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife)
🎫 Ingressos: R15(meia)∣R 30 (inteira)
♿ Acessibilidade: Sessão de 26/10 com Libras
⏱️ Duração: 50 minutos

Frankenstein
📅 Datas: 30 de outubro a 1º de novembro
📍 Local: CAIXA Cultural Recife (Av. Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife)
🎫 Ingressos: R15(meia)∣R 30 (inteira)

Negaça
📅 Data: 31 de outubro (sexta-feira)
🕘 Horário: 19h
📍 Local: Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista)
🎫 Ingressos: R15(meia)∣R 30 (inteira)

FESTIVAL DE CIRCO (Novembro)
Vermelho, Branco e Preto
📅 Datas: 5 e 6 de novembro
🕘 Horário: 19h30
📍 Local: Teatro Apolo
🎭 Artista: Cibele Mateus (SP)

O Vazio é Cheio de Coisa
Data: 6 de novembro
📍 Local: Teatro Santa Isabel
🎭 Cia: Nós No Bambu (Brasília)

Le Bruit des Pierres
📅 Datas: 8 e 9 de novembro
📍 Local: Teatro Santa Isabel
🎭 Cia: Collectif Maison Courbe (França)

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Ayiti: o espetáculo da revolução

Ayiti, a montanha que assombra o mundo se desenvolve em um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Foto: Marina Cavalcante / Divulgação

A Revolução Haitiana (1791-1804) foi uma insurreição que desafiou as bases ideológicas do colonialismo europeu e demonstrou a falência moral do sistema escravocrata. Contudo, permanece sistematicamente marginalizada nos currículos escolares das elites acadêmicas e dos Estados nacionais. Neste sábado, 2 de agosto, Marconi Bispo apresenta no Teatro Solo Gens, no Recife Antigo, a pré-estreia de Ayiti, a montanha que assombra o mundo. O espetáculo resgata essa memória silenciada e marca os 30 anos de carreira de desse artista,  uma voz coerente e lúcida do teatro político que fala a partir de Pernambuco e do Nordeste brasileiro.

O ator confronta diretamente o cânone historiográfico ocidental ao colocar em cena o que o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot definiu como “o evento impensável da modernidade” – uma revolução que a mentalidade colonial não conseguia nem mesmo conceber como possibilidade histórica. A montagem questiona por que uma revolução tão impactante permanece ausente dos sistemas educacionais globais.

Enquanto a Revolução Francesa (1789-1799) ocupa lugar central nos estudos históricos mundiais, poucos conhecem o movimento simultâneo que, nas Antilhas, superou em radicalidade os próprios jacobinos parisienses. Esta disparidade não é acidental: revela o caráter eurocêntrico da produção do conhecimento histórico.

A revolução haitiana foi mais radical porque os escravizados de Saint-Domingue (atual Haiti) levaram os ideais iluministas às suas consequências lógicas finais. Enquanto os revolucionários franceses mantiveram a escravidão nas colônias e excluíram mulheres e pobres dos direitos políticos, os insurgentes haitianos aboliram simultaneamente escravidão, colonialismo e hierarquias raciais. Entre 1791 e 1804, aproximadamente 500 mil africanos escravizados derrotaram militarmente França, Espanha e Inglaterra, expulsaram os colonizadores e fundaram a primeira república negra independente das Américas.

Pernambucano Marconi Bispo leva aos palcos a insurreição que apavorou impérios e inspirou liberdades. Foto: Inês Costa / Divulgação 

Michel-Rolph Trouillot, autor de Silencing the Past: Power and the Production of History (1995), argumenta que “a Revolução Haitiana é o acontecimento mais revolucionário na história das revoluções” precisamente porque representa uma ruptura ontológica – isto é, uma quebra fundamental na própria concepção de realidade – no pensamento ocidental. Trouillot, professor de antropologia na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, Estados Unidos) até sua morte em 2012, demonstra como essa revolução foi sistematicamente apagada por contradizer as bases ideológicas da supremacia branca – sistema de poder que estabelece a superioridade racial europeia como fundamento natural da organização social.

Sob a liderança de figuras extraordinárias como Toussaint Louverture (1743-1803) – ex-escravizado que se tornou autodidata em latim, francês, história militar e filosofia política –, Jean-Jacques Dessalines (1758-1806) – general que proclamou a independência haitiana e se tornou o primeiro governante do país livre –, e Henri Christophe (1767-1820) – que construiu fortalezas monumentais ainda hoje patrimônio da UNESCO –, os revolucionários haitianos derrotaram os exércitos de Napoleão Bonaparte e proclamaram a abolição total da escravidão 64 anos antes do Brasil.

O impacto global foi imediato e aterrorizante para as potências escravistas. Thomas Jefferson, terceiro presidente americano e proprietário de mais de 600 escravizados, conforme documenta a obra Master of the Mountain (2012) do historiador Henry Wiencek, impôs embargo comercial total ao Haiti e se recusou a reconhecer sua independência. A França, por sua vez, exigiu uma indenização de 150 milhões de francos (equivalente a cerca de 21 bilhões de dólares atuais) pela “perda de propriedade” – os próprios ex-escravizados –, dívida que estrangulou economicamente o país até 1947.

Por que essa revolução permanece ausente dos currículos escolares brasileiros e mundiais? A resposta encontra-se na própria natureza transformadora radical do episódio – sua capacidade de romper completamente com as estruturas de poder estabelecidas. Como explicar que africanos “primitivos” – segundo a ideologia colonial – derrotaram a “civilizada” Europa? Como justificar a manutenção da escravidão após escravizados demonstrarem sua capacidade revolucionária e organizativa?

Cyril Lionel Robert James (1901-1989), autor de The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution (1938), obra considerada pioneira nos estudos pós-coloniais, demonstra magistralmente como os revolucionários haitianos aplicaram os princípios da Revolução Francesa com uma coerência que os próprios franceses não tiveram. Enquanto Robespierre guilhotinava aristocratas mas mantinha a escravidão colonial, Toussaint abolia a escravidão e estabelecia igualdade racial absoluta.

A Perspectiva Decolonial de Marconi Bispo

Bispo tem 45 produções cênicas na trajetória. Foto: Leandro Lima / Divulgação

Dramaturgia entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual. Foto: Lucas Emanuel / Divulgação

Ayiti, a montanha que assombra o mundo nasce de um contexto de crescente questionamento às narrativas históricas hegemônicas. Marconi Bispo constrói uma dramaturgia que entrelaça performance corporal, percussões de matriz africana, poesia oral e dança ritual, estruturando o espetáculo como o que a teórica Leda Maria Martins denomina “oralitura” – conceito que reconhece as tradições orais africanas como epistemologias legítimas, desenvolvido em obras como Afrografias da Memória (1997).

“Por que sabemos tão pouco sobre a revolução que fundou a primeira nação negra de ex-escravizados a derrotar invasores, expulsar colonizadores, abolir escravidão e proclamar soberania absoluta?”, questiona Bispo. A pergunta funciona como fio condutor dramatúrgico porque sua resposta revela os mecanismos de apagamento que ainda operam na contemporaneidade.

O artista estabelece conexões históricas concretas entre Haiti e Pernambuco através de uma metodologia que denomina “cartografia afroatlântica”. Ambos territórios compartilham heranças iorubás, experiências quilombolas e tradições de resistência que atravessaram o Atlântico. A Revolução Haitiana ecoou diretamente no Quilombo dos Palmares (século XVII, Serra da Barriga/AL), na Revolta dos Malês (1835, Salvador/BA) – insurreição de escravizados muçulmanos que planejavam tomar o poder na Bahia –, e na Cabanagem (1835-1840, Pará) – revolta popular que chegou a controlar a província paraense por quase um ano.

A Colaboração Acadêmica Internacional

A dramaturgia compartilhada com Kamai Freire adiciona rigor acadêmico internacional ao projeto. Freire, maestro e sacerdote de candomblé que desenvolve pesquisa doutoral sobre música e espiritualidade na Revolução Haitiana pela Universidade HfM Franz Liszt Weimar – instituição alemã especializada em música fundada em 1872 na cidade de Weimar –, traz perspectivas que conectam sonoridades africanas, liturgias haitianas e cosmogonias afro-brasileiras.

Esta colaboração interliga diferentes tradições acadêmicas e saberes ancestrais, criando uma obra que dialoga simultaneamente com a pesquisa universitária europeia, as tradições orais africanas e as experiências diaspóricas contemporâneas. No final de 2024, entre os meses de outubro e dezembro, o artista pernambucano desenvolveu uma residência artística no Porto, Portugal, viabilizada através de uma parceria institucional que envolveu a Circolando Cooperativa Cultural, Central Elétrica, Programa InResidence e Câmara Municipal do Porto. Esta imersão investigativa na cidade portuguesa aprofundou sua pesquisa sobre as reverberações atlânticas da insurreição haitiana e suas conexões com o imaginário colonial luso-brasileiro.

Três Décadas de Arte Política Consistente

Marconi Bispo completa 30 anos de carreira em 2025, consolidando três décadas de teatro político. Sua trajetória de 45 produções cênicas evidencia uma consistência artística construída sobre compromissos éticos com as questões raciais e territoriais. Ao longo dessas três décadas, o artista desenvolveu um conceito de transformação artística permanente baseado na constante renovação das formas estéticas como instrumento de mudança social – perspectiva que encontra eco na pedagogia teatral de Paulo Freire e nas propostas de democratização cultural de Augusto Boal.

Formado pela UFPE em 1999, Bispo desenvolveu uma metodologia que articula teatro brechtiano, ritualística afro-brasileira e pedagogia freiriana. Como sacerdote iniciado para Ìyémọjá e Ọbàlùfọ̀n (2004) e Ọrúnmìlà Bàbá Ifá (2023), sua criação artística funciona como canal de ancestralidade e ferramenta de cura coletiva – conceito fundamentado nos estudos de Muniz Sodré sobre a “ciência social afro-brasileira” (Pensar Nagô, 2017), que demonstra como as tradições iorubás operam processos terapêuticos comunitários.

A pré-estreia reúne importantes nomes da cultura pernambucana: Thulio Xambá e Beto Xambá, do Grupo Bongar, trazem percussões que conectam Recife às sonoridades da resistência haitiana. Os tambores desempenharam papel fundamental na comunicação entre insurgentes durante a revolução.

Brunna Martins, Kadydja Erlen e Arthur Canavarro integram um elenco que representa a diversidade geracional do teatro negro nordestino. Esta aliança materializa redes de solidariedade artística que espelham as próprias redes clandestinas que sustentaram a comunicação entre diferentes regiões de Saint-Domingue durante a revolução. 

SERVIÇO
🎭 ESPETÁCULO “AYITI, A MONTANHA QUE ASSOMBRA O MUNDO”
📅 2 de agosto (sábado) | ⏰ 19h
📍 Solo Gens – Rua do Apolo, 70, Recife Antigo
🎫 R$ 20 (meia) | R$ 40 (inteira)
📧 marconibispo77@gmail.com | 📱 @marconi.bispo

🔥 FICHA TÉCNICA
Concepção e Interpretação: Marconi Bispo
Dramaturgia: Marconi Bispo e Kamai Freire
Coordenação de Pesquisa: Kamai Freire
Audiovisual: Arthur Canavarro, Diego Amorim, Fernando Camaroti, Hassan Santos
Projeção e Iluminação: João Guilherme de Paula
Assessoria de Imprensa: Daniel Lima
Participações: Arthur Canavarro, Beto Xambá, Brunna Martins, Kadydja Erlen, Thulio Xambá

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Escuta pública para discutir
o Festival Recife do Teatro Nacional

 

Sinapse Darwin, da Casa de Zoé, esteve na programação do 23º FRTN. Foto: Marcos Pastich/PCR

Evento acontece terça-feira (29), às 18h30, no Teatro do Parque

A Secretaria de Cultura do Recife convocou uma escuta pública para construir coletivamente a 24ª edição do Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN), que acontecerá em novembro. Na próxima terça-feira (29/07), às 18h30, artistas, produtores e demais profissionais da cena teatral recifense são chamados para se reunir na sala da Banda Sinfônica do Teatro do Parque para contribuir com a programação do festival.

“O Festival Recife do Teatro Nacional sobe aos palcos da cidade em novembro. Mas, nos bastidores, a programação já começou. E todos os cênicos da cidade estão convidados a se engajar na produção da próxima edição do festival”, destaca a convocatória oficial.

A iniciativa busca que o festival consiga “apresentar e representar esperanças e necessidades da eloquente cena recifense”, mas enfrenta um desafio que tem se repetido: a baixa participação da classe artística nestes momentos de construção coletiva.

Embora seja comum ouvir reclamações e sugestões da classe teatral recifense nas redes sociais e nas mesas de bares da cidade, a presença física nas escutas públicas tem sido decepcionante. Em 2023, apenas 20 pessoas compareceram. Em 2024, o número caiu para 15 participantes – um quórum que preocupa os organizadores, especialmente considerando que o Recife possui uma cena teatral vibrante e numerosa.

“A hora da grita é essa, mas elas preferem as redes sociais e as mesas dos bares”, observa um integrante da organização, refletindo sobre a contradição entre as críticas virtuais e a ausência nos espaços formais de discussão.

Principais pontos críticos apontados na última avaliação pública 

O encontro de terça-feira ganha ainda mais relevância diante das questões levantadas na avaliação pública da 23ª edição, realizada em dezembro de 2024. Durante três horas de discussão na mesma sala da Banda Sinfônica, artistas, produtores e a avaliadora contratada Giovana Soar debateram os acertos e problemas enfrentados pelo festival.

Infraestrutura e equipe técnica: A avaliação revelou o esgotamento das equipes técnicas dos teatros, especialmente no Centro Apolo-Hermilo. Nathalie Revoredo, iluminadora com 11 anos de experiência no local, alertou: “Temos espaços exaustos e um corpo exausto não consegue realizar muito.” O atraso de uma hora e meia na apresentação de Mulheres de Nínive exemplificou os limites da infraestrutura atual.

Comunicação e divulgação: A avaliadora Giovana Soar identificou a comunicação como “um dos pontos mais delicados”, destacando a necessidade de melhorar a divulgação para alcançar públicos mais amplos. O programa do festival só foi distribuído na segunda semana do evento, comprometendo a estratégia de comunicação.

Ocupação dos teatros: Houve esvaziamento em algumas sessões, especialmente no OFF REC e espetáculos locais da mostra principal, contrastando com a lotação em apresentações com nomes consagrados como Marco Nanini e Othon Bastos.

Democratização do acesso: Foram levantadas questões sobre como atrair o público que compareceu à festa dos 20 anos do Grupo Magiluth (cerca de 2 mil pessoas) para dentro dos teatros durante o festival.

A questão dos pagamentos

Paralelamente aos debates artísticos, a cena teatral recifense tem enfrentado uma crise de confiança relacionada aos atrasos sistemáticos nos pagamentos de cachês por parte da Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo, diretor do espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife (destaque do OFF REC 2024), recorreu às redes sociais para cobrar publicamente o pagamento pela participação da peça que envolvia 20 artistas, seis meses após a apresentação.

Não é um caso isolado. Outros artistas também recorreram às redes sociais para fazer cobranças públicas de cachês em atraso, evidenciando um problema que afeta diversos profissionais da cena cultural recifense.

Desafios estruturais e propostas 

A precarização dos espaços teatrais foi outro tema central dos debates. Augusta Ferraz, com 51 anos de dedicação ao teatro recifense, lamenta a situação de equipamentos como o Teatro Barreto Júnior, considerado um “subteatro” na vida cotidiana dos profissionais, e espaços fechados como o Teatro Valdemar de Oliveira (fechado desde 2020 e atingido por incêndio em fevereiro de 2024).

Inês Franco Maia questionou se a cadeia produtiva do teatro em Recife realmente valoriza a cultura local, criticando a tendência de valorizar mais os trabalhos externos: “O Magiluth só conseguiu reconhecimento local após ser legitimado fora de Recife.”

Durante a avaliação, emergiram diversas propostas para fortalecer o festival e a cena teatral local: planejamento antecipado das contratações técnicas e logísticas, melhor distribuição de horários para evitar sobreposições entre espetáculos, parcerias estratégicas com secretarias de Saúde, Educação e Cidadania para formar novos públicos, expansão do “Palco da Aurora” (onde Sinapse Darwin, da Casa de Zoé foi apresentado) para outras áreas da cidade, criação de espaços de encontro e diálogo após os espetáculos e revitalização do Teatro do Sítio da Trindade.

Diante deste cenário complexo, que mistura conquistas artísticas com desafios estruturais e de gestão, a escuta pública de terça-feira representa uma oportunidade crucial para que a classe teatral recifense contribua efetivamente com a construção coletiva da próxima edição do festival.

Milu Megale, secretária de Cultura do Recife, André Brasileiro, coordenador do FRTN, e Alexandre Sampaio, coordenador de produção, estarão presentes para ouvir as demandas e propostas da categoria. A 24ª edição está marcada para 19 a 30 de novembro de 2025.

Serviço

Escuta pública do Festival Recife do Teatro Nacional
Quando: Terça-feira (29/07), às 18h30
Onde: Sala da Banda Sinfônica – Teatro do Parque
Entrada: Gratuita

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Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

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