O Grupo Totem, um dos mais longevos e influentes coletivos de artes cênicas de Pernambuco, com 37 anos de trajetória, celebra sua história com o lançamento do projeto Totem Relicário. Este evento marca a disponibilização de um vasto acervo virtual que documenta as primeiras duas décadas de produção do grupo, oferecendo uma imersão na rica cena performática pernambucana e brasileira.
Fundado em 1988 por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, o Grupo Totem tem sido um laboratório contínuo de experimentação nas artes cênicas, explorando as fronteiras entre teatro, performance, dança e rituais. Desde sua origem no casarão da Rua de São Bento, em Olinda, onde funcionava o icônico bar Abraxas, o grupo se dedicou a uma poética singular, caracterizada pela intensidade corporal, pela exploração de arquétipos e mitos, e por uma perspectiva ritualística da cena.
Suas obras, como Signosimbolosícones, Ele, Artaud!, Ita e Mulheres marcaram época e influenciaram gerações de artistas. A longevidade do grupo, mantendo-se ativo e relevante por quase quatro décadas, é um testemunho da força de sua pesquisa artística.
A filosofia do Totem aposta na capacidade de transformar o corpo do performer em um discurso político e poético, explorando a subjetividade e a cultura caosmopolitana, como visto em Caosmopolita. A composição de referências, desde a psicologia arquetípica de Carl Gustav
Jung e James Hillman até a antropofagia cultural brasileira, demonstra a riqueza intelectual e criativa que permeia suas produções.
A Preservação da Memória Performática em Formato Digital
O lançamento do projeto Totem Relicário, neste 5 de julho de 2025, representa um marco na história do Grupo Totem e na cena artística brasileira. Trata-se de uma plataforma virtual que reúne e disponibiliza o vasto acervo histórico do grupo, compreendendo cerca de 600 itens de 38 criações realizadas entre 1988 e 2009. Este “relicário” digital é uma verdadeira viagem no tempo, oferecendo acesso a fotos, vídeos, material gráfico, manuscritos, clipagens, croquis, mapas técnicos de palco e luz, fichas técnicas e roteiros.
A iniciativa é de extrema importância para a preservação da memória da performance. A arte performática, por sua natureza efêmera e de acontecimento ao vivo, enfrenta o desafio intrínseco de sua documentação e arquivamento. Muitas obras se perdem no tempo, existindo apenas na memória dos espectadores e artistas. Ao digitalizar e organizar este acervo, o Grupo Totem garante a perenidade de sua própria história como também oferece uma valiosa fonte de pesquisa e inspiração.
Festivo e imersivo, o lançamento do Totem Relicário retorna ao local de origem do grupo em Olinda, no casarão da Rua de São Bento. A programação é um convite à revisitação e ressignificação das obras do Totem:
Reperformances
Integrantes, ex-integrantes e colaboradores convidados apresentarão cenas de seis performances históricas:
Duplo Faca Destino (2005),
com Juliana Nardin: Performance criada a partir da obra do artista visual Rinaldo Silva, explorando a dualidade da faca, do corte e do ferir.Signosimbolosícones (1991),
com Lau Veríssimo, Suzi Couto e Zoraya Brayner: Um teatro de imagem, uma paisagem humana, mixando personas de trabalhos anteriores do grupo e registros fotográficos.Ele, Artaud! (1997),
com Angélica e Luan Amim: Espetáculo ritualístico que antropofagicamente absorve o teatro Artaudiano, misturando-o com referências culturais brasileiras.Ita (1991) e Mulheres (1993),
com Jailson Oliveira: Solo que integra trechos dessas performances. Ita delineou a poética do Totem, enquanto Mulheres aborda o princípio feminino e arquétipos de deusas.Caosmopolita (2005),
com Gabi Cabral: Situa-se na fronteira do teatro físico, performático e dança, com o corpo do ator/performer como discurso político.Outras Atividades
Depoimentos e Documentário:
O evento inclui depoimentos em vídeo de artistas que passaram pelo grupo e a exibição do documentário Totem Retrospecto, de Taína Veríssimo.Roda de Conversa:
Uma discussão sobre a história do grupo e o site do acervo, com a participação de Fred Nascimento, Taína Veríssimo, Zé Diniz (web designer), Alexandre Figueirôa (jornalista/cineasta), e participações em vídeo de Alexandre Nunes e Inaê Veríssimo.Pocket Show:
Atual e ex-integrantes da banda do Totem, incluindo Fred Nascimento, Cauê Nascimento, Mário Sérgio, Mari Paiva, Patrício Rodrigues e Gustavo Vilar, apresentarão trilhas sonoras dos espetáculos.
O projeto Totem Relicário é realizado via Fundo de Incentivo à Cultura do Governo de Pernambuco – Funcultura, garantindo a gratuidade e acessibilidade do acervo. O site (grupototem.com.br) conta com ferramentas de acessibilidade comunicacional para pessoas com baixa visão, daltônicos, surdas e cegas, reforçando o compromisso do grupo com a inclusão e a democratização do acesso à cultura.
A performance, por sua natureza transitória, sempre representou um desafio para a historiografia da arte. O Totem Relicário encara diretamente essa questão, transformando a efemeridade em um legado acessível. Ao digitalizar e contextualizar seu vasto material, o grupo contribui para a construção de uma memória viva da performance brasileira, permitindo que obras que aconteceram uma única vez ou em poucas ocasiões possam ser estudadas, revisitadas e compreendidas por novas gerações.
Isso se alinha a discussões contemporâneas sobre a “arquivabilidade” da performance e a importância dos acervos digitais como ferramentas de pesquisa e difusão cultural. Como aponta a teórica Diana Taylor em seu livro O Arquivo e o Repertório, existe uma tensão produtiva entre o arquivo (documentos, textos, vídeos) e o repertório (práticas corporais, conhecimentos incorporados). O Totem Relicário cria uma ponte entre essas duas dimensões.
A programação do evento, com as “reperformances”, é um exemplo prático da teoria da reencenação na arte contemporânea, que pensa numa ressignificação das obras originais no contexto atual, com novos corpos e perspectivas. Isso demonstra a vitalidade da performance como linguagem, capaz de se adaptar e gerar novos sentidos ao longo do tempo.
A reperformance celebra a continuidade e a evolução de uma linhagem artística. Este conceito dialoga com as práticas de artistas como Marina Abramović e seu projeto Seven Easy Pieces, onde ela reperformou obras icônicas suas e de outros artistas.
A longevidade do Grupo Totem e a participação de ex-integrantes e colaboradores no evento de lançamento sublinham seu papel como um polo de formação e irradiação artística. Muitos artistas que passaram pelo Totem seguiram suas próprias trajetórias, levando consigo a experiência e a filosofia do grupo.
O Totem Relicário, ao disponibilizar o histórico de criações e processos, torna-se uma “escola” aberta, um repositório de metodologias e inspirações para jovens artistas e pesquisadores que buscam compreender as raízes e as evoluções da performance no Brasil. Esta função pedagógica é fundamental em um país onde o ensino formal das artes performáticas ainda enfrenta desafios estruturais.
A atuação contínua do Grupo Totem em Pernambuco, e a visibilidade que o Totem Relicário trará, reforça a importância das cenas artísticas regionais para o panorama cultural brasileiro. Em um cenário muitas vezes centralizado no Rio-São Paulo, o Totem demonstra a riqueza e a capacidade de produção artística de outras regiões, contribuindo para a diversidade e a pluralidade das expressões performáticas nacionais.
O projeto, financiado pelo Funcultura, também evidencia a relevância do apoio público para a sustentabilidade e o desenvolvimento da cultura local. Em tempos de escassez de recursos para a cultura, iniciativas como esta reafirmam a importância das políticas públicas para a preservação da memória artística.
Em quase quatro décadas de existência, o Grupo Totem construiu uma das mais consistentes e inovadoras trajetórias artísticas do Brasil, reinventando constantemente as fronteiras da performance, do teatro ritual e da experimentação corporal em Pernambuco. Apesar de sua metodologia singular, que mescla referências antropológicas, mitológicas e políticas, e de ter formado gerações de artistas que hoje atuam em diversas frentes da cena cultural brasileira, o Totem permanece um tesouro parcialmente oculto no panorama artístico nacional. Como tantas iniciativas culturais surgidas fora do trânsito Rio-São Paulo, o grupo carrega o paradoxo de ser simultaneamente reverenciado por quem conhece sua obra e invisibilizado nos grandes circuitos e narrativas oficiais das artes cênicas brasileiras, raramente recebendo o reconhecimento proporcional à sua contribuição estética e cultural.
O projeto Totem Relicário surge, portanto, como um arquivo digital e como um ato de justiça histórica e resistência cultural. Ao disponibilizar virtualmente seus 600 itens documentais e registros de 38 criações realizadas entre 1988 e 2009, o grupo ultrapassa as barreiras geográficas que tradicionalmente limitaram seu alcance, permitindo que pesquisadores, artistas e entusiastas de qualquer parte do mundo possam descobrir e estudar esta produção única. Esta plataforma representa a democratização da memória performática pernambucana e a possibilidade de reescrita de uma história das artes cênicas brasileiras mais plural e descentralizada. O Totem Relicário honra não apenas o passado do grupo, mas aponta para um futuro onde iniciativas artísticas de todas as regiões do Brasil possam ser devidamente reconhecidas, estudadas e celebradas, inscrevendo definitivamente o Grupo Totem no lugar que sempre mereceu: o de referência fundamental da performance contemporânea brasileira.
SERVIÇO
Lançamento do Acervo Virtual do Grupo Totem
Local: Rua de São Bento, 344 – Olinda-PE
Dia: SÁBADO, 05 de julho de 2025
Horário: 17h às 20h
Entrada: gratuita
Mais informações: @grupototemrecife
Site do acervo: grupototem.com.br
FICHA TÉCNICA
Acervo Virtual do Grupo Totem
Direção/coordenação: Fred Nascimento
Pesquisadoras: Lau Veríssimo, Juliana Nardin, Taína Veríssimo e Íris Campos
Web designer e programação: Zé Diniz
Editor gráfico: Luan Amim
Produtora: Taína Veríssimo