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Um bufão grotesco no poder
Crítica do espetáculo Ubu, O Rei do Gado

Versão da texto do dramaturgo Alfred Jarry ganha contornos da realidade nacional. Foto: Shann / Divulgação

Peça é inspirada no bufão e no grotesco e o expressionismo nos elementos visuais. Foto: Luan Amim / Divulgação

Pai Ubu não é exatamente um humano, mas uma figura monstruosa. Com essa personagem estúpida, cruel e burlesca, o dramaturgo Alfred Jarry anunciou na vanguarda o Teatro do Absurdo, em dezembro de 1896, com a estreia de Ubu Rei, no Teatro de l’Oeuvre, em Paris. O espetáculo atiçou a ira dos burgueses e conservadores e foi cancelado logo após a segunda apresentação. Mas a influência dessa peça de Jarry, instaurando um novo jeito de fazer teatro, renova-se nos palcos, na filosofia, na política, nos desenhos animados.

A contemporaneidade da dramaturgia é estarrecedora ao retratar aquele tirano bufão, que se aparenta de personas bem vivas. Oficial de confiança do Rei Venceslau, Pai Ubu é instigado por  Mãe Ubu, a assassinar o rei da Polônia e tomar o poder. Faz promessas ao povo, que não cumpre, e liquida a oposição.

Fred Nascimento, diretor do Laboratório de Aprofundamento cênico – LAC, da Escola Municipal de Arte João Pernambuco (EMAJPE) quis falar desses “tempos de gado”. Os atores trabalharam junto com o encenador uma livre adaptação da peça de Alfred Jarry, que chegou a Ubu, O Rei do Gado.

Personagem foge da Europa e pretende fundar um império em Pernambuco. Foto: Luan Amim / Divulgação

Único liceu público de artes do Norte e Nordeste, a Escola Municipal de Arte João Pernambuco (EMAJPE) movimenta o bairro da Várzea, Zona Oeste da capital pernambucana, e oferece por semestre cerca de 1.100 vagas gratuitas em Artes Visuais, Canto Coral, Dança Brasileira, Dança Contemporânea, Música e Teatro para crianças (na modalidade iniciação às artes), jovens e adultos.

Mas de forma recorrente, alunos, funcionários, professores e pais dos estudantes reclamam da manutenção na estrutura do prédio, reivindicam concurso para novos docentes, aquisição de materiais e instrumentos musicais. A João Pernambuco é forjada na luta.

Se as condições do prédio estão sempre precisando de um reparo, o empenho, a dedicação e a qualidade técnica dos professores são apontados pelos aprendizes como o diferencial dessa usina formativa, que já realizou mais de 20 versões da Mostra de Artes Cênicas A Porta Aberta, composta pela produção dos alunos da instituição e companhias convidadas.

Durante uma live do Palavração sobre Experiências de Ensino de Teatro na Escola (evento da programação do JGE), a direção do João Pernambuco anotou nos comentários que 30 professores estavam em processo de contratação para este ano. Que assim seja!

A gravação foi realizada no palco da EMAJPE, entre o Natal e o Ano Novo. Foto: Luan Amim/ Divulgação

Nos letreiros da gravação da peça produzida para participar do Janeiro de Grandes Espetáculos, (feita entre o Natal e o Ano Novo, no palco da EMAJPE), podemos ler que Pai Ubu e Mãe Ubu são nobres do baixo clero da Polônia. Ele, um ex-militar e político de quinta categoria, tosco e covarde. Ela uma megera infiel. 

A peça original tem cinco atos e diversos personagens. Ubu, O Rei do Gado investe nas narrativas individuais de Mãe Ubu e do Pai Ubu, que contam os preparativos do golpe, a tomada do poder, as reformas implantadas, a insurreição, a fuga pela Europa e a chegada ao Brasil, onde pretendem dominar com a ajudar do “seu” gado.

A montagem com os atores do LAC-EMAJPE foi erguida durante a pandemia do Coronavírus, com trabalhos remotos, de leituras, estudos, discussões e a adaptação do texto coletivamente. Essa versão aplica força na utilização de frases e palavras de efeitos proferidas pelo senhorzinho Jair Messias.

“Ai, que papelão Pai Ubu”, instiga Mãe Ubu para que o marido não se contente com o papel de chefe de milícias de Rio das Pedras. O discurso de um e de outro já foram motivos de raiva e de riso quando articulado pelo mandatário do Brasil. “Bando de doutrinados e nós somos filhos de Deus” diz ela. “Grandes esquemas, porque rachadinha não é coisa de rainha”. Ou quando ele fala da simples gripezinha, Amazonas, Pantanal pegando fogo. “Se eu fosse rei cortaria a cabeça de todos que defendem o que eu não defendo”.

Essas histórias ocorrem em Lugar Nenhum. O protagonista, como já foi dito, é um ser ignóbil. Por isso mesmo é arquétipo dos ditadores cruéis e covardes espalhados pelo mundo. Com grandes ou pequenos poderes. Personificação do bizarro, esse cômico truculento propicia o riso decorrente do ridículo da situação.

A interpretação está calcada no bufão, com marcas do grotesco, do exagero e do deboche. São três Pais Ubu: Luan Amin, Leonardo Marinho e Franklin Menezes. E três Mães Ubu: El Maria, Simone Santos e Nicole Lima. Cada ator trabalha um pequeno episódio da trajetória dos protagonistas. A caricatura se repete em ações e risos de desprezo, sem grandes alterações ou movimentações. 

Possivelmente, a gravação não traduz a riqueza do processo de construção do espetáculo. A filmagem é precária e se soma a uma escolha pela pobreza da cena.  Faltam camadas. Até porque a exploração da vilania do comandante ganha todos os dias memes, quadros em programas, protestos. Outras propriedades são necessárias. Mesmo sendo a palavra no espetáculo mais afiada que o gesto.

A professora Tatiana Pedrosa levou o expressionismo para os elementos visuais da montagem – maquiagem exagerada, peruca para Mãe Ubu, malha para todos. Mas o efeito não é pescado na gravação. A iluminação promove um efeito claustrofóbico e projeta sombras nas paredes. Mas também é muito difícil captar na filmagem o impacto dessa iluminação feita para o teatro. 

Pai Ubu, a personificação do grotesco. Foto: Luan Amim / Divulgação

Poder ubuesco foi um conceito forjado por Michel Foucault nas primeiras aulas do livro Os Anormais (Curso no Collège de France 1974-1975), ao analisar os dossiês dos peritos psiquiátricos com especialidade penal.

O termo “ubuesco” remete ao caráter que junta deformação jocosa, cinismo, caricatura, brutalismo, absurdo. A Presidência da República do TáOK? é ocupada por uma personagem assim.

Entre a perversão e o perigo, o discurso ubuesco é utilizado como mecanismo de controle, mesmo que esse poder utilize a desqualificação do próprio discurso para dominar, como salientou Foucault. “Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos de poder”. Nós, brasileiros, infelizmente, vivemos isso.

Ubu, O Rei do Gado expõe insultos em tom de deboche tanto da Mãe Ubu, quanto do Pai Ubu. A canalhice expressa em cena amplifica as imbecilidades do real, que podem até causar o riso da audiência. As estratégias de jogar decisões importantes como chistes ao vento servem de cortina de fumaça para esconder pontos importantes.

Com uma fala muito colada aos desmandos da vida brasileira, com elementos de cena propositalmente toscos (chão de plástico, uma mesa com tecido vermelho), interpretações bem exacerbadas do cinismo do comandante, a ridicularização dessa cena medonha que não conseguimos nos livrar, provoca um sentimento de impotência. Da bestialidade sem limites que assusta o país. Pois o pior de tudo é que essa figura de carne e osso detém o poder de vida e de morte. Merdre!.

Ficha Técnica:

Ubu, O Rei do Gado
Baseado na obra de Alfred Jarry, com dramaturgia coletiva de livre licença poética.
Direção e coordenação: Fred Nascimento
Elenco: El Maria, Luan Amim, Simone Santos, Leonardo Marinho, Nicoli Lima, Franklin Menezes
Design de maquiagem e figurino: Tatiana Pedrosa Leal
Gravação e edição: Luan Amim
Agradecimentos: Bel Corina, Eli Yon, Ronaldo Pereira, Shann

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