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Tulio Carella por inteiro
em Orgia e compadrio

Biografia de Alvaro Machado resgata a memória do escritor e dramaturgo argentino que transformou o exílio no Recife em literatura transgressora. Na imagem, Carella em entrevista para a revista Qué, de Buenos Aires, 1956, no lançamento de seu livro Tango – mito y esencia. Foto: Autoria desconhecida. Acervo Mario Tesler

Capital pernambucana dos anos 1960: o Recife de Tulio Carella. Foto: Reprodução

Um das imagens do livro, com a legenda: Faixa com anúncio da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, com o Teatro de Arena de São Paulo, montagem apresentada no Teatro de Santa Isabel, em 1960, com apoio da Prefeitura do Recife e do MCP

A publicação de Orgia e compadrio. Tulio Carella, drama e revolução na América Latina, obra do jornalista e doutor em artes cênicas Alvaro Machado, constitui um esforço essencial para iluminar a vida e o legado do escritor argentino Tulio Carella. Nascido em 1912, e desde cedo de notável talento poético, o filho de emigrantes calabreses pobres logrou construir uma carreira de sucesso nos principais palcos de Buenos Aires, recebendo prêmios e aclamação de público e crítica. De outro lado, a trajetória literária de Carella foi permeada por uma audácia intelectual e pessoal que, muitas vezes, cobrou um alto preço. Após receber orientações diretas de Federico García Lorca, quando contava apenas 21 anos, o portenho deu início a uma produção vasta e variada, que começou com farsas teatrais e, com o tempo, voltou-se para a representação de figuras marginalizadas da sociedade, explorando patrimônios da cultura popular, como o lunfardo, o tango e o gênero teatral chamado sainete criollo.

O destino de Carella tomou um rumo decisivo em 1960, quando aceitou o convite dos dramaturgos Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho para lecionar teatro na Universidade do Recife. Essa mudança para a capital pernambucana representou, além de um deslocamento geográfico, uma imersão profunda de Carella em um universo sensorial e cultural completamente novo, nas palavras de Alvaro Machado. Longe dos bairros mais abastados, Carella optou por fixar residência no Recife Antigo, a área portuária repleta de vida e diversidade, habitada por população predominantemente negra e mestiça. Ali, ele encontrou um ambiente de liberdade e efervescência cultural que o cativou.

Durante sua intensa permanência no Brasil, que se estendeu por cerca de um ano e meio, Carella manteve diários íntimos detalhados. Neles, registrou suas experiências sexuais homoeróticas e centenas de perspicazes observações sobre a sociedade recifense. Essas anotações seriam a base de seu livro mais controverso, Orgia, publicado no Brasil em 1968. A obra, que descreve sem constrangimento encontros amorosos e aborda a sexualidade livre em um Brasil ainda bastante conservador, revelou um Carella que não hesitava em desafiar barreiras e questionar as normas sociais de seu tempo.

A coragem de Orgia trouxe consigo sérias consequências. Em um cenário político de crescente tensão e forte sentimento anticomunista, Carella, um estrangeiro que interagia abertamente com as camadas populares, foi erroneamente identificado como “traficante de armas de Cuba”. Em 1961, foi sequestrado, detido e torturado por militares brasileiros na ilha de Fernando de Noronha. Sua libertação veio após a descoberta, por policiais, de seus diários numa gaveta de quitinete alugada, com páginas que esclareciam a natureza sexual de seus encontros, dissipando a ideia de um complô político. Contudo, foi imediatamente dispensado da universidade e forçado a deixar o país.

O impacto de Orgia se fez sentir muito além de sua expulsão do Brasil. A publicação do livro conduziu a um verdadeiro “cancelamento” de Carella em sua terra natal, a Argentina, resultando em ostracismo social e profissional. Após sua morte, em 1979, seus manuscritos originais foram destruídos por sua ex-esposa e por suas sobrinhas, sob a justificativa de que “encerravam coisas tremendas”. No entanto, o tempo, como observa Machado, validou a relevância da obra. O que inicialmente foi estigmatizado como pornográfico, gradualmente conquistou reconhecimento como um documento histórico e literário crucial sobre a homossexualidade no Brasil dos anos 1960. A obra de Carella passou a inspirar artistas e pesquisadores, tornando-se uma referência para criações como o filme Tatuagem (2013), do cineasta Hilton Lacerda e o álbum Orgia (2022) do cantor Johnny Hooker.

A biografia de Alvaro Machado, Orgia e compadrio, representa um esforço grandioso para corrigir esse silenciamento. Machado vê Carella como um “perfil humanista no sentido renascentista do termo”, alguém que, ao mergulhar no cotidiano do Recife, destoava muito em aparência da população local, o que, segundo o biógrafo, “o deixava tão excitado quanto os populares seus interlocutores”. Embora por vezes desconcertante, o olhar de Carella sobre os corpos negros era, na visão do biógrafo, permeado por um “lirismo” que transformou as descrições eróticas “nas páginas mais bonitas do livro”.

Conversamos com Alvaro Machado sobre essa jornada de resgate e a profunda conexão que ele estabeleceu com o autor argentino ao longo de quinze anos de pesquisas.

Entrevista: Alvaro Machado

Jornalista, pesquisador, doutor em Artes Cênicas Alvaro Machado. Foto: Juliana Kase / Divulgação

“Após tantos anos de pesquisa,
ouso dizer que Tulio Carella sou eu”

Alvaro Machado

Ao longo de sua extensa pesquisa sobre Tulio Carella, desde antes da edição de Orgia, os Diários do Recife (ed. Opera Prima) em 2011, até Orgia e compadrio, sua compreensão do personagem e da obra passou por uma notável transformação. Para além de um aprofundamento, essa biografia crítica representa uma revisão da sua interpretação inicial sobre o significado político e literário de Carella? E, ousaria perguntar, em que medida você se tornou, metodologicamente, um “Carella contemporâneo”, transgredindo fronteiras disciplinares da mesma forma que ele transgredia fronteiras sexuais e nacionais? 

Alvaro Machado – O aprofundamento é natural pela metodologia científica que a gente é obrigado a adotar nos cursos de pós-graduação, na defesa de tese. Então, a partir da minha experiência de leitura do Orgia, fui tocado pelo registro do cotidiano do Recife, dos muitos tipos, das relações afetivas e sexuais, todas muito bem descritas. Pela sinceridade inicial do escritor, eu fui ler toda a obra dele, que não é pequena, a obra publicada é razoável. E li todos os livros, a fim de fazer o que eu me propunha, que era sua biografia.

Uma biografia mais ou menos completa, apesar da grande ausência de fontes com as quais eu me deparei inicialmente. Mas, enfim, com os depoimentos de Buenos Aires, do Recife, de Leda Alves, de Antonio Cadengue, de Luís Reis, do Anco Márcio, e de todo esse pessoal que estuda teatro, e principalmente de um amigo dele remanescente em Buenos Aires, Mário Tesler, bibliófilo, bem como do filho de um colaborador dele, Ral Veroni, filho do gravador Raul Veroni. Então passei a coletar documentos e me aprofundei no conhecimento do personagem. Mas, principalmente pelas obras que li – tem também obras autobiográficas que eu abordo no livro, como As portas da vida –, e pelas cartas que a senhora Leda Alves me forneceu acesso, que são cerca de 300 cartas enviadas. E aí eu entendi que ele era realmente um grande escritor, obliterado pelo escândalo causado pelo livro Orgia, tanto no Brasil como na Argentina. E isso embora ele tenha pertencido a muitos círculos literários e teatrais argentinos importantes. Comecei a entender a posição dele nesse cenário e achar cada vez mais injusta a falta de pesquisa no próprio país dele, que até hoje se observa. O Orgia só foi publicado neste ano lá, agora há um mês, em espanhol, a partir da tradução do Hermilo Borba Filho, com revisão crítica da tradução, introdução e minhas notas.

Seu trabalho transborda uma evidente paixão intelectual por Carella, um sentimento que, como você já expressou, foi crucial para se debruçar sobre a figura dele. Como você equilibra o rigor acadêmico com esse envolvimento afetivo tão particular? E, provocativamente, será que a crítica literária não deveria ser, em sua essência, também um ato de amor?

Alvaro – Eu não teria me debruçado sobre a vida do Tulio Carella se eu não tivesse um mínimo de identificação com esse personagem, desde o início. E, após tantos anos de pesquisas e reflexões, posso dizer que “Tulio Carella sou eu”. Eu endosso praticamente todas as posições dele; são raras as posições que eu não endossaria, que eu não tento compreender, ou que não compreendo, quando muita gente deixou de compreender, então tenho uma tolerância grande em relação às atitudes dele por me identificar desde o começo, desde o princípio. E… se eu vou ser marginalizado não sei, mas mesmo na universidade, a partir do objeto de estudo não foi muito fácil conseguir interlocução.

Eu tive de explicar bastante a posição dele para os orientadores, porque partia de um escândalo sexual, mas as pessoas começaram a entender a trajetória, e a compreender que ele tem um aspecto político muito importante, por isso fui fazer o doutorado com o professor, Sérgio de Carvalho, que é especializado, digamos, em orientar teses históricas. E deu muito certo, mas confesso a você que cheguei a ser visto assim como um pássaro fora do ninho.

Mas continuamos, e eu acho que deu certo de fato agora, com a publicação, com muitas fotos históricas e desenhos artísticos, com Carella contextualizado completamente na história do Recife e de Buenos Aires. Então agora não tem mais por que existir essa prevenção.

A formação cultural argentina de Carella, marcada pelo criollismo, pela imigração europeia e pelo tango, indubitavelmente moldou sua sensibilidade para as margens sociais. Em que medida o Brasil, especificamente o Recife, funcionou como um “laboratório” que validou ou expandiu as teorias que ele já vinha desenvolvendo sobre as dinâmicas sociais de Buenos Aires?

Alvaro – Ele conheceu uma evolução de pensamento muito grande desde os anos 1940, onde ele estava no criollismo e na herança da cultura barroca espanhola, inserido na elite de Buenos Aires, dos governantes de origem hispânica, ou pelo menos na cultura criolla. Porque em 1940, Buenos Aires já era uma metrópole bastante heterogênea. A população de imigrantes compunha um panorama bem diferente daquele do século XIX. Mas ele cultivou essa tradição antiga. De início, com as farsas dele levadas no Teatro Nacional Cervantes, que foram seus maiores sucessos. Criollismo que provinha, de certa forma, culturalmente, do chamado Século de Ouro espanhol, dos grandes dramaturgos de então, mas logo ele começou a perceber outras perspectivas na cena teatral de Buenos Aires, até mesmo as do teatro de revista, do teatro político e do cabaré teatral, e aos poucos enveredou por uma linha política mais amplamente nacional. Nacional e ao mesmo tempo crítica do nacionalismo, sabe?, porque contemplou as margens, as franjas sociais ostensivamente ignoradas no panorama nacional “oficial”. Depois de viajar para a Europa em 1956, a fim de conhecer alguns países e as suas origens itálicas, ele assumiu a mudança radical de adotar uma perspectiva latino-americana, com raízes culturais indígenas. E quando Carella veio para o Brasil, ele ampliou esse olhar com a cultura negra. Realmente, o Brasil significou uma ampliação dessa perspectiva latino-americanista ou pan-americanista, mas não no sentido bolivariano, que é beligerante, mas no sentido humano e cultural. O Bolívar é derivado das lutas armadas na América e ele não tinha essa propensão. Ele era um pacifista.

Foto de Tulio Carella de junho de 1956. Autoria desconhecida

Uma das dimensões mais fascinantes de Carella é o caráter performático de suas ações. Observando sua trajetória, há a impressão de que a performance se dava não apenas nos palcos, mas em sua própria vida cotidiana – desde a escolha de morar no Recife Antigo até a forma como registrava suas experiências íntimas. O que suas investigações revelaram sobre essa teatralidade existencial de Carella? Ele era, de certa forma, o personagem mais original que criou?

Alvaro – Acredito que essa sua afirmação sobre ele ter criado no Recife um personagem original a partir de si mesmo corresponda à verdade. Sim, a partir da escolha de morar em quitinete na avenida Sete de Setembro e dos passeios e derivas diárias pela porção histórica da cidade, ele passou a estabelecer com muito gosto uma espécie de diálogo cênico – composto tanto de olhares e gestos como de palavras – com os tipos populares que manifestavam curiosidade por sua figura corpulenta de dois metros de altura, sua pele alva e suas roupas de tecidos e cortes diferentes. Não se negava a qualquer diálogo, com quem quer que o abordasse. Praticou esse intercâmbio com tanta intensidade e com tamanha ausência de censuras que isso se tornou, de fato, como uma  performance teatral pública, como observou, por exemplo, o pesquisador alagoano Severino J. Albuquerque, professor emérito da Universidade de Wisconsin (Madison), em ensaios que publicou sobre o portenho. Antes de dedicar-se ao ensino da Literatura, Severino formou-se em Medicina no Recife, portanto conhece muito bem a cidade.   

Em sua biografia, você escreve que Carella “confrontou-se com um meio intelectual de difícil penetração, fomentador de intrigas e vassalagens” tanto no Recife quanto em Buenos Aires. Essas “cortes culturais” parecem ter sido um obstáculo constante na trajetória do escritor argentino. A partir de seus levantamentos, como essas disputas de poder intelectual se manifestavam concretamente no Recife? E como você compreende essas dinâmicas de poder?

Alvaro – Em 1960-61, quando Carella esteve entre nós, existia no Recife uma aguda polarização política, e o estado de Pernambuco era como uma ponta de lança dos debates e lutas sociais travadas nos anos seguintes no Brasil e que desembocaram na tragédia do golpe civil-militar de 1964 e do progressivo solapamento da democracia a partir de então, por longos 25 anos. Os militares e os policiais da região jamais aceitaram os governos do socialista declarado Miguel Arraes na prefeitura da capital e no governo do estado. Assim, todo o setor militar e policial, a maior parte do Judiciário a cabresto de latifundiários e senhores de engenho, parte da imprensa e mesmo instituições criadas especialmente para minar a organização de movimentos pela Reforma Agrária, alfabetização, voto popular etc. conduziram à prisão e à tortura do dramaturgo argentino – contratado por parceiros de Arraes –, após um diálogo vigiado que ele manteve com o artista e líder comunista Abelardo da Hora numa cantina de repartição pública. Em outro polo de intrigas, mais tarde, já no final dos anos 1960, a primeira esposa de Hermilo Borba Filho, Débora Freire, espalhou amplamente, no Recife, boatos de que o argentino teria sido amante de seu ex-marido.

Em seu trabalho, você notou uma transformação na perspectiva sobre Carella, inclusive por parte de Leda Alves, uma fonte importante, no Recife, para seus estudos. Poderia nos detalhar essa mudança na forma como Carella é percebido? E, na sua opinião, o que motivou essa alteração de atitude ou de visão sobre ele?

Alvaro – Desde antes de 2011, quando eu comecei a conversar com Leda Alves, que foi, por tanto tempo, secretária da cultura do Recife etc., foi uma odisseia esse contato, porque ela era refratária a tratar do assunto, não tinha interesse, sabe? Havia um claro tabu. Mas, devido à minha insistência, e ao pagamento de um valor razoável para o contrato de republicação do Orgia na tradução do Hermilo Borba Filho (revisada), principalmente porque ela andava precisando de dinheiro, estava operando a vista, ela concordou. Desde então passei a conversar com ela. Era obrigatório. Ela conheceu bastante meu personagem. E, com o tempo, Leda  mudou a postura dela, até um ponto que eu diria radicalmente, em seus três últimos anos de vida. Inclusive assinou contrato para a realização de um filme a partir de Orgia, que seria feito pelo Karim Aïnouz e pelo Marcelo Gomes. Durou sete anos esse contrato, mas a produtora do João Júnior Vieira, do Recife, não conseguiu levantar o dinheiro para um filme de época. Esse filme ainda pode ser feito, já que Karim está lendo a biografia que publiquei agora.

Então, a Leda foi mudando nas conversas telefônicas, ela assinou o contrato não só para o livro, mas para o filme, sabe? E conversando comigo no telefone, ela foi mudando a postura, foi valorizando o Carella, o contato pessoal que ela teve com ele e as coisas boas da relação. Por quê? Porque ela tinha um trauma que está contado no livro, que era o da fofoca detonada no Recife inteiro após o desquite, ou o divórcio, não sei, na época acho que era desquite, do Hermilo da primeira mulher dele, a Débora Freire, que ficou maluca de Hermilo assumir a Leda Alves, a atriz, ex-atriz do grupo… ex-secretária dele… ficou maluca e começou a dizer no Recife que o ex-marido e Carella tinham sido amantes… E isso apavorou Leda… Ela não queria tratar desse trauma… e Débora chegou a escrever cartas com ofensas para Carella… como também está registrado em meu livro. Então, com os anos Leda ela foi mudando. E me afirmava que ele tinha sido um sujeito muito legal… que tinha as suas idiossincrasias… os seus gostos… e “fazia escondido”… como ela dizia… entre aspas… sem incomodar ninguém… e que era muito discreto na sua vida pessoal… e que principalmente ele influenciou a conversão de Hermilo ao catolicismo, à Igreja Católica. Inclusive com o casamento dela celebrado por Dom Helder Camara, extraoficialmente, porque não podia, o Hermilo já era casado, já tinha sido casado. E até o final, um ano antes da morte dela, mais ou menos, ela falava coisas muito legais do Carella, mudou totalmente a cabeça.

Meu livro é pelo menos vinte por cento sobre o Hermilo. Porque  eles influenciaram muito um ao outro, sabe? Isso é muito importante. 

Chegada ao Recife em 1961. Foto na coluna Diário Artístico, de Joel Pontes, do Diario de Pernambuco 

Seu livro surge em um período de recrudescimento conservador na América Latina. Diante disso, que conexões você estabelece entre este cenário e a trajetória de Carella?? 

Pois é, sobre essa questão de ideologia de gênero, do momento político atual:  realmente assume agora uma grande importância a posição pan-americanista dele e do Hermilo, que era uma ideologia almejada pelos dois,  em especial neste momento de retrocesso de posições, de enfraquecimento da esquerda política em toda a América Latina. Também por isso ele foi para o Recife, por isso se estabeleceu na cidade e pretendia permanecer nela até morrer, se não tivesse sido expulso. Porque ele dividia essa ideologia, esse ideal mais que ideologia, porque partilhava esse ideal com o Hermilo e com outros brasileiros. Assim, o Orgia se tornou o mais importante de todos os livros do Carella, e o mais estudado.

E então se tornam agora ainda mais importantes os livros dele, como o também autobiográfico Las puertas de la vida [As portas da vida], muito citado em minha biografia por essa posição de abertura e valorização das culturas autóctones da América, dos indígenas dos dois países e dos escravizados que começaram a ser trazidos no século XVI e se estabeleceram aqui para tomar parte da brasilidade. Mas Carella também possuía a sua herança cultural específica. Então a valorização desses elementos é uma coisa na qual ele foi pioneiro. E também o seu repúdio à cultura europeia. E se ele não discutia propriamente ideologias de gênero,  assumiu a bissexualidade ao publicar Orgia em 1968 a pedido do Hermilo. E mais ainda no começo de 1969, ao distribuir mais de trinta cópias desse livro em Buenos Aires, orgulhosamente, sem medo. Isso acarretou a separação de sua mulher, que não aguentou essa revelação da bissexualidade, e ele passou a viver sozinho, ficou muito na dele, muito tranquilo, muito no pensamento estoico e cínico que perseguia, com uma certa pobreza de meios, num bairro pobre de Buenos Aires, que é o Congreso, ainda hoje é pobre, não é um bairro abastado, mas feliz, tranquilo, em paz, de bem com a vida, sem ressentimentos de ninguém, só o forte desejo de voltar para o Recife, que não realizou, infelizmente. Mesmo no final da vida ele teria voltado.

A decadência física dele foi um tanto rápida, em um ano ele estragou a saúde… fumava muito… e tinha outros problemas também, de próstata etc.. 

Como você imagina que Carella reagiria aos debates contemporâneos sobre identidade de gênero e diversidade sexual na América Latina?

Alvaro – Acho que se ele estivesse vivo hoje, ele não participaria desse debate todo que a gente vive, racial e de gênero. Eu acho que ele ia preferir realmente atuar literariamente. Ele nunca deu esse tipo de palestra durante a vida dele e eu acho que ele se isentaria, se ausentaria mesmo. E preferiria uma luta, uma trincheira, de fato, literária, ou na crítica. Penso que nem seria explícita, porque, apesar de ter escrito Picaresca porteña, esse livro é composto de ensaios sobre características históricas da cultura argentina, e não atualidades, não debate político atual. 

Após uma imersão tão profunda, o que, porventura, ficou por ser dito sobre Carella neste livro? Você sente que esgotou as possibilidades interpretativas dessa figura tão complexa, ou ainda há territórios a explorar?

Alvaro – Eu não considero que esgotei o Carella, não, de forma nenhuma. É um personagem rico demais e merece ainda muitas pesquisas. Mandei essa biografia há um mês para a Biblioteca do Congresso Nacional, em Buenos Aires, e ela foi aceita no acervo, para que outras pessoas possam pesquisar a obra dele, porque apesar de o livro ser extenso, com 360 páginas, existem muitas facetas e textos dele muito bons, desconhecidos, porque tudo que ele  fazia era com alto nível de excelência na escrita. Então acredito que foi uma pesquisa até inaugural.

 

 

 

Orgia e compadrio :
Tulio Carella, drama e revolução na América Latina
Autor: Alvaro Machado
Editora: Cosac
R$ 132,00

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Correspondência de artista, Brasil de hoje, teatro documental e urgente

Espetáculo Cartas foi montado com o apoio do Aprendiz em Cena. Foto: Coletivo Caverna

Intensos 11 anos, entre 1965 e 1976. O Brasil enfrentava os primeiros tempos de uma ditadura militar, enquanto os escritores, dramaturgos, homens de artes, Hermilo Borba Filho e Osman Lins se relacionaram por meio de cartas. Uma troca que não acontecia de maneira esporádica: às vezes, era só o tempo de chegar uma, que a devida resposta já era prontamente escrita e enviada. Desde que tomou conhecimento da existência dessas cartas, Luiz Manuel, que estreou como diretor justamente com A Rã, espetáculo baseado no conto homônimo de Hermilo Borba Filho, idealizou levá-las ao palco. Cartas estreia neste sábado (27), encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo Borba Filho, que este ano também homenageou Osman.

O projeto foi montado com o suporte de “O Aprendiz em Cena”, projeto que oportuniza o trabalho de um diretor iniciante com um elenco já mais experiente. Fabiana Pirro, Paulo de Pontes e Claudio Lira conduzem o espectador por uma dramaturgia construída como se fosse realmente uma carta. Além das conversas entre Hermilo e Osman, a obra Guerra sem Testemunhas, de Osman, também serve como base para o texto; “Lendo a correspondência, eu me fascinei sobre o quanto eles trocavam com relação à vida profissional. Editamos as cartas, escolhemos alguns trechos, mas são as palavras dos dois, além dessa adaptação de Guerra sem Testemunhas, que fala sobre a guerra que é escrever, o quanto ele escreve em guerra com si mesmo, com a sociedade, com o editor”, explica Luiz Manuel.

Osman foi aluno de Hermilo no Recife, mas pela correspondência profícua os dois realmente se tornariam amigos, testemunhas íntimas das trajetórias literárias um do outro. De acordo com Nelson Luís Barbosa, que estudou esses escritos, “(…) as cartas foram exclusivamente um espaço de discussão de questões relacionadas essencialmente aos projetos literários de cada um, seus embates com o mercado editorial e a dificuldade de conseguir editores conscienciosos que efetivamente respeitassem as obras e pagassem justamente por elas”, explica em artigo.

Apesar da centralidade das discussões sobre as próprias obras, há também menções à situação política do país e às vidas pessoais dos dois. Eles falam, por exemplo, sobre suas separações, os  novos casamentos, a relação com os filhos. “Cada carta que lia, eu me emocionava. Quanta intimidade. Eu tinha a sensação de estar invadindo a vida deles. Por mais que nas cartas eles falem muito do trabalho, das angústias, dos editores, o pouco que eles falam da intimidade é muito pesado, muito significativo”, conta Fabiana Pirro.

No elenco, Claudio Lira, Fabiana Pirro e Paulo de Pontes. A direção é de Luiz Manuel

Além disso, mesmo que as correspondências tenham se dado nas décadas de 1960 e 1970, as similaridades com o país de hoje são incontestáveis. “É o Brasil de agora, do fascismo, da censura, a falta de dinheiro, a falta de espaço para os artistas. Caminhamos ou estamos andando para trás? E por serem pessoas políticas no caráter, na forma de vida, de encarar o ofício, eles nos encantam. Eu sou muito apaixonada por Hermilo, já era. Ele diz que enquanto tiver máquina e papel, vai continuar protestando. E Cartas é nosso manifesto político para esse tempo”, complementa a atriz.

A encenação utiliza dispositivos do audiovisual e dialoga com montagens de grupos como Agrupación Señor Serrano (coletivo espanhol que apresentou Uma casa na Ásia no Janeiro de Grandes Espetáculos em 2016), o colombiano Mapa Teatro e o potiguar Carmin. “Na realidade, fui buscar referências do teatro ibero-americano desde os anos 2000. Chegamos a trocar e-mails com os integrantes do Agrupación”, revela Luiz. No espetáculo, os atores se filmam em cena, há projeção de imagens e vídeos pré-gravados. O grupo também enviou uma carta, escrita pelo próprio coletivo para algumas pessoas, e vai ler respostas escolhidas.

Cartas, que tem a assinatura do Coletivo Caverna, faz duas sessões encerrando a Semana Hermilo; e uma curtíssima temporada com mais duas sessões em dois domingos de agosto, 11 e 18.

Ficha técnica
Dramaturgia: Dramaturgia coletiva, a partir das correspondências entre Hermilo Borba Filho e Osman Lins e do livro Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins
Direção: Luiz Manuel
Elenco: Fabiana Pirro, Claudio Lira e Paulo de Pontes
Assistente de direção: Gabriel de Godoy
Iluminação: João Guilherme e Alexandre Salomão
Trilha Sonora/Desenho de som: Lara Bione
Figurinos: Giselle Cribari
Assistente de figurino: Fabiana Pirro
Identidade visual: Aurora Jamelo
Assessoria de imprensa: Tatiana Diniz
Direção de Produção: Naruna Freitas

Serviço
Cartas
Quando: 27 e 28 de julho, sábado e domingo, às 20h (encerrando a 17ª edição da Semana Hermilo), e nos dias 11 e 18 de agosto, às 19h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, 142, Recife)
Quanto: As sessões dos dias 27 e 28 têm ingressos gratuitos; as senhas serão distribuídas com uma hora de antecedência. Para as sessões dos dias 11 e 18 de agosto, os ingressos custam R$ 30 e R$ 15
Informações: (81) 3355-3321

 

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Política no sangue de um sapateiro

 

Mario Miranda (de camisa vermelha) interpreta Zumba

A Gloriosa Vida e o Triste Fim de Zumba sem dente é uma peça política. Sobre sonhos que valem pouco, homens que valem muito, e manobras descaradas para sufocar a liberdade. “Na tortura toda carne se trai”, diz uma velha canção entoada por Zé Ramalho. Se trai? Cada vez mais frágil essa contextura humana. Mas o nosso Zumba, ou melhor o Zumba recriado por Carlos Carvalho das letras de Hermilo Borba Filho é um ser fincado num passado, nem tão esplendoroso assim.

Essa encenação diminui a voltagem política da trama. O encenador exagera nas alegorias, dialoga com a farsa e permite aos atores improvisações criativas. A peça encerra temporada nesta última terça-feira de agosto, às 19h30, no Teatro Hermilo Borba Filho, que fica no Bairro do Recife, com entrada franca ao público.

Baseada no texto O Traidor, de Hermilo expõe as escolhas do sapateiro bolchevista, candidato a prefeito na cidade de Palmares e que foi sequestrado e morto. A montagem tem adaptação também de Carlos Carvalho, e direção musical de Juliano Holanda. No elenco estão Mario Miranda, Andrezza Alves, Flávio Renovatto e Daniel Barros.

É a segunda versão de Carvalho sobre esse texto de HBF. A primeira leitura, de 2000, era mais pesada. Do elenco anterior, apenas Andrezza Alves permanece. Mario Miranda defende o personagem título e quem conhece a trajetória sabe que o ator sempre dá um jeitinho de colocar uma pilhéria, um gracejo, um caco.

A democracia é naquele palco uma senhora que precisa ser defendida. Mas seus algozes são cruéis. A encenação busca a simplicidade para contar essa história e no talento dos atores. Passa seu recado, em um ou outro momento pode suscitar aquele sentimento de revolta na plateia, quando os direitos de gente humilde são espezinhados, quando a manipulação cega a possibilidade de discernimento.

Atores utilizam poucos objetos cênicos

Atores utilizam poucos objetos cênicos

Com o palco nu, a montagem utiliza vídeos – com desenhos ou depoimentos reais – mas não contextualiza uma época. Justapõe ocasiões de barbárie contra figuras que lutaram por um mundo mais justo. E é inevitável fazer conexões com o Brasil atual.

O tempo é embaralhado. A viúva de Zumba dá um depoimento após o sumiço do sapateiro. Passa para a casa do protagonista que ensina a prática do esquerdismo para dois jovens pupilos. Como numa câmara de zoom e planos abertos, a encenação trabalha com esses movimentos. Do público e do privado.

Zumba quer ser candidato a prefeito. E quando começa sua estruturação para isso, a repressão chega sob forma de delegado, de polícia. Essa opção pela alegoria atenua a complexidade da situação.

O diretor simplifica com a utilização de mamulengos. E enriquece com os passos do cavalo-marinho, a ciranda, o frevo.

São emblemáticas as cenas da prisão de Zumba e a inocência que é associada ao analfabetismo. Lembra o famoso poema Confissão de Cabôco, de Zé da Luz, que cometeu um desatino porque não sabia ler. É uma cena síntese do espetáculo.

Andrezza Alves e Daniel

Andrezza Alves e Daniel Barros

Carvalho experimenta as ideias Hermilo e as questões que são caras ao escritor pernambucano, como justiça e liberdade no teatro. Já ergueu as montagens Mucurana, o Peixe, a partir do conto O Peixe, com Azaias Rodrigues (Zaza) e O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados, elaborado com base em O Palhaço, com Gilberto Brito como protagonista.

Serviço
A Gloriosa Vida e o Triste Fim de Zumba sem Dente
Quando: Nas terças-feiras de agosto, às 19h30
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho, Av. Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife
Quando: Grátis
Informações: (81) 3355-3318

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Na contracorrente do capitalismo

A Enchente, espetáculo dirgido por Flávia Pinheiro. Foto: Danilo Galvão

Talvez fosse preciso mais tempo para ruminar sobre A enchente, que assisti ontem no Teatro Hermilo Borba Filho. Mas é urgente que outros vejam, já que a curta temporada termina hoje (27). E talvez esse texto ajude. O espetáculo é inspirado em conto homônimo de Hermilo Borba Filho. É uma narrativa curta, com toques surrealistas, que trata da luta de uma mulher durante uma inundação. Ela, um morto no caixão, e os animais (cavalos, cachorro, ovelha) são surpreendidos com o dilúvio. A chuva cai incessantemente, enquanto cada um tenta sobreviver nesse provisório mundo líquido. As palavras evocam imagens potentes. A diretora Flávia Pinheiro materializa as sensações sugeridas pelo texto em gestos e movimentos, performance, vídeo e som em frenesi.

A montagem foi selecionada pelo projeto O solo do outro, uma iniciativa do Centro Apolo/ Hermilo. Além de Flávia, idealizadora do trabalho, estão envolvidos no espetáculo Leandro Oliván (desenho de imagem e som), Maria Paula Costa Rêgo (dramaturgista corporal), Pedro Vilela (desenho de luz), Guilherme Luigi (diretor de arte), e as três bailarinas/ performers Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe.

E aqui vale um parêntese. Ao final da apresentação as bailarinas reportaram ao público que o pagamento do valor de R$ 22.300 previsto no edital do projeto O Solo do Outro, só saiu na sexta-feira, 18 de março. O outro selecionado, A rã, da Cia. Aninatus Invictus, entrou e saiu de cartaz sem receber o dinheiro. Elas pontuaram que é preciso mais respeito e compromisso do poder público com os criadores. A verba deveria ter saído em outubro, segundo elas.

A enchente. Foto Ivana Moura

Jogo com um pedaço de madeira. Foto: Ivana Moura

Entre a correnteza do conto de HBF e a crise migratória na Europa são erguidas pontes de significados nos movimentos das bailarinas. O mundo enfrenta mal suas catástrofes naturais e humanas. O capitalismo faz o serviço sujo de categorizar, excluir e eliminar indivíduos. A enchente pulsa da revolta. Os procedimentos de criação amplificam restrições e obstruções de movimentos, utilizando jogos que se assemelham aos esportes de bola com as mãos (mas no caso são tábuas). Desses atritos entre corpos, o espetáculo reconstrói narrativas que abarcam a miséria do mundo. Ou traz o mundo para o corpo impregnado da própria linguagem.

Na cena inicial, os corpos traçam posições de obstáculos, que podem remeter para o sentido de represas, comportas para curso das águas volumosas do título ou para processo de contenção de gente nas fronteiras dos países desenvolvidos. Em alguns momentos, com o vídeo ao fundo, os movimentos de derrubada dos bailarinos remetem à barbárie, indiferença e intolerância.

As projeções mostram criaturas tentando ultrapassar muros e sendo derrubadas por soldados; soldados que observam indiferentes e enchentes destruidoras em várias camadas. De costas, nuas da cintura para cima, elas apresentam gestuais repetitivos e grande esforço de dorsos, que formam grafismos, como as posições perpendiculares e de queda. Depois elas animam o jogo com um pedaço de madeira.

O medo de uma mulher que enfrenta a força da água a move em busca de salvação. De transcender os próprios limites. Esse desejo segue entre a música de Leandro Oliván e o silêncio, o deslocamento agitado e breves movimentos de imobilidade. A iluminação de Pedro Vilela aquece as ações, preenchendo espaços ou abrindo para o vazio.

No palco, tábuas estão ancoradas nas paredes. Dispostas para construção de espaço que são derrubados. As bailarinas desenham um habilidoso jogo de contradições na composição do redemoinho. A Terra ferida grita de dor e reage com fúria. Os oprimidos do mundo são barrados nas fronteiras. Mas até quando eles serão contidos com essa violência sem sentido pelos países ricos?

Áudio e vídeo selecionados e reconfigurados por Leandro Oliván alcançam outras dimensões e circunstâncias de uma nova estupidez. Ele utilizada trechos de obras de cineastas experimentais como o lituano Jonas Mekas, a performer norte-americana Carolee Schneemann, o palestino Mustafa Abu Ali, o francês Chris Marker, a soviética Esfir Shub, o norte-americano Stan Brakhage. A escolha de trechos desses artistas para explosão de limites criativos já indica posições de Flávia Pinheiro e Leandro Oliván. Eles também se valeram de arquivos em vídeo tanto da Fundação Joaquim Nabuco quanto da Fundarpe, com cenas de inundações no Recife e no Interior.

A enchente é um espetáculo poderoso, rico de significados, com uma direção que investe na capacidade de pensar. Em que as bailarinas levam para seus corpos os questionamentos desses movimentos contemporâneos excludentes e perigosos. Em que usam técnica e força para criar beleza. Uma beleza nervosa por tudo que ela significa.

FICHA TÉCNICA
Concepção, direção e dramaturgia:  Flavia Pinheiro
Desenho de Imagem e  Som: Leandro Oliván
Performers: Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe
Dramaturgista Corporal: Maria Paula Costa Rêgo
Desenho de Luz: Pedro Vilela
Diretor de Arte: Guilherme Luigi
Duração: 45 minutos
Fotografia: Danilo Galvão

SERVIÇO
A enchente, de Flávia Pinheiro
Quando: 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26 e 27 de março, sempre às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: 3355-3320

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Transbordamentos contemporâneos

A Enchente, espetáculo inspirado no conto de Hermilo Borba Filho, com direção de Flávia Pinheiro

As inquietações do dramaturgo pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) reverberam nesses tempos conturbados, sombrios e de muitas exclusões do humano. Do conto A enchente, a artista Flávia Pinheiro criou um trabalho transdisciplinar pelo projeto O Solo do Outro. A peça articula o escrito de HBF, a performance e o vídeo.

Do texto, os artistas envolvidos erguem uma metáfora que expõe em escala maior os flagelos humanos atuais. Das correntes migratórias às vísceras do capitalismo globalizado, que não esconde sua faceta insensível frente aos acontecimentos.

O espetáculo cumpre sua segunda e última semana no Teatro Hermilo Borba Filho, de hoje até domingo, às 20h.

Espetáculo problematiza e amplia a catástrofe natural. Foto:Danilo Galvão/ Divulgação

Espetáculo problematiza e amplia a catástrofe natural. Foto:Danilo Galvão/ Divulgação

O comunismo fracassou! O socialismo fracassou! E o capitalismo? Esse sistema que anula pessoas, transforma gente em números, concebe hierarquia de valores para os seres baseada na capacidade de acumular bens ou de exercer a mais valia. O espetáculo A Enchente busca problematizar e ampliar no palco a catástrofe natural.

Para compor a peça, a diretora utiliza imagens de arquivo pessoal, trechos  de obras de cineastas experimentais como Jonas Mekas, Carolee Schneemann, Mustafa Abu Ali, Chris Marker, Esfir Shub, Stan Brakhage e cenas das inundações na cidade do Recife e dos engenhos no interior do estado, dos aquivos de vídeo da Fundaj e da Fundarpe.

As três bailarinas/ performers Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe exploram contenções e obstruções de movimentos e jogos com regras e materiais. As imagens de corrente, água subindo, redemoinho, o medo do fim estão lá. Essa luta do indivíduo com o mundo líquido, em que tenta nadar, flutuar, e se possível, voar é pescada do conto de Hermilo para transformar em princípios de movimento.

A música é assinada por Leandro Oliván, que utiliza a voz de Hermilo em uma entrevista para criar texturas e sonoridades. A infância do escritor no Engenho Verde é ficcionalizada, a partir de trechos do livro Margem das lembranças.

FICHA TÉCNICA
Concepção, direção e dramaturgia:  Flavia Pinheiro
Desenho de Imagem e  Som: Leandro Oliván
Performers: Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe
Dramaturgista Corporal: Maria Paula CostaRêgo
Desenho de Luz: Pedro Vilela
Diretor de Arte: Guilherme Luigi
Duração: 45 minutos
Fotografia: Danilo Galvão

SERVIÇO
A enchente, de Flávia Pinheiro
Quando: 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26 e 27 de março, sempre às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: 3355-3320

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