Arquivo da tag: O solo do outro

Na contracorrente do capitalismo

A Enchente, espetáculo dirgido por Flávia Pinheiro. Foto: Danilo Galvão

Talvez fosse preciso mais tempo para ruminar sobre A enchente, que assisti ontem no Teatro Hermilo Borba Filho. Mas é urgente que outros vejam, já que a curta temporada termina hoje (27). E talvez esse texto ajude. O espetáculo é inspirado em conto homônimo de Hermilo Borba Filho. É uma narrativa curta, com toques surrealistas, que trata da luta de uma mulher durante uma inundação. Ela, um morto no caixão, e os animais (cavalos, cachorro, ovelha) são surpreendidos com o dilúvio. A chuva cai incessantemente, enquanto cada um tenta sobreviver nesse provisório mundo líquido. As palavras evocam imagens potentes. A diretora Flávia Pinheiro materializa as sensações sugeridas pelo texto em gestos e movimentos, performance, vídeo e som em frenesi.

A montagem foi selecionada pelo projeto O solo do outro, uma iniciativa do Centro Apolo/ Hermilo. Além de Flávia, idealizadora do trabalho, estão envolvidos no espetáculo Leandro Oliván (desenho de imagem e som), Maria Paula Costa Rêgo (dramaturgista corporal), Pedro Vilela (desenho de luz), Guilherme Luigi (diretor de arte), e as três bailarinas/ performers Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe.

E aqui vale um parêntese. Ao final da apresentação as bailarinas reportaram ao público que o pagamento do valor de R$ 22.300 previsto no edital do projeto O Solo do Outro, só saiu na sexta-feira, 18 de março. O outro selecionado, A rã, da Cia. Aninatus Invictus, entrou e saiu de cartaz sem receber o dinheiro. Elas pontuaram que é preciso mais respeito e compromisso do poder público com os criadores. A verba deveria ter saído em outubro, segundo elas.

A enchente. Foto Ivana Moura

Jogo com um pedaço de madeira. Foto: Ivana Moura

Entre a correnteza do conto de HBF e a crise migratória na Europa são erguidas pontes de significados nos movimentos das bailarinas. O mundo enfrenta mal suas catástrofes naturais e humanas. O capitalismo faz o serviço sujo de categorizar, excluir e eliminar indivíduos. A enchente pulsa da revolta. Os procedimentos de criação amplificam restrições e obstruções de movimentos, utilizando jogos que se assemelham aos esportes de bola com as mãos (mas no caso são tábuas). Desses atritos entre corpos, o espetáculo reconstrói narrativas que abarcam a miséria do mundo. Ou traz o mundo para o corpo impregnado da própria linguagem.

Na cena inicial, os corpos traçam posições de obstáculos, que podem remeter para o sentido de represas, comportas para curso das águas volumosas do título ou para processo de contenção de gente nas fronteiras dos países desenvolvidos. Em alguns momentos, com o vídeo ao fundo, os movimentos de derrubada dos bailarinos remetem à barbárie, indiferença e intolerância.

As projeções mostram criaturas tentando ultrapassar muros e sendo derrubadas por soldados; soldados que observam indiferentes e enchentes destruidoras em várias camadas. De costas, nuas da cintura para cima, elas apresentam gestuais repetitivos e grande esforço de dorsos, que formam grafismos, como as posições perpendiculares e de queda. Depois elas animam o jogo com um pedaço de madeira.

O medo de uma mulher que enfrenta a força da água a move em busca de salvação. De transcender os próprios limites. Esse desejo segue entre a música de Leandro Oliván e o silêncio, o deslocamento agitado e breves movimentos de imobilidade. A iluminação de Pedro Vilela aquece as ações, preenchendo espaços ou abrindo para o vazio.

No palco, tábuas estão ancoradas nas paredes. Dispostas para construção de espaço que são derrubados. As bailarinas desenham um habilidoso jogo de contradições na composição do redemoinho. A Terra ferida grita de dor e reage com fúria. Os oprimidos do mundo são barrados nas fronteiras. Mas até quando eles serão contidos com essa violência sem sentido pelos países ricos?

Áudio e vídeo selecionados e reconfigurados por Leandro Oliván alcançam outras dimensões e circunstâncias de uma nova estupidez. Ele utilizada trechos de obras de cineastas experimentais como o lituano Jonas Mekas, a performer norte-americana Carolee Schneemann, o palestino Mustafa Abu Ali, o francês Chris Marker, a soviética Esfir Shub, o norte-americano Stan Brakhage. A escolha de trechos desses artistas para explosão de limites criativos já indica posições de Flávia Pinheiro e Leandro Oliván. Eles também se valeram de arquivos em vídeo tanto da Fundação Joaquim Nabuco quanto da Fundarpe, com cenas de inundações no Recife e no Interior.

A enchente é um espetáculo poderoso, rico de significados, com uma direção que investe na capacidade de pensar. Em que as bailarinas levam para seus corpos os questionamentos desses movimentos contemporâneos excludentes e perigosos. Em que usam técnica e força para criar beleza. Uma beleza nervosa por tudo que ela significa.

FICHA TÉCNICA
Concepção, direção e dramaturgia:  Flavia Pinheiro
Desenho de Imagem e  Som: Leandro Oliván
Performers: Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe
Dramaturgista Corporal: Maria Paula Costa Rêgo
Desenho de Luz: Pedro Vilela
Diretor de Arte: Guilherme Luigi
Duração: 45 minutos
Fotografia: Danilo Galvão

SERVIÇO
A enchente, de Flávia Pinheiro
Quando: 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26 e 27 de março, sempre às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: 3355-3320

Postado com as tags: , , , , , , , , ,

Transbordamentos contemporâneos

A Enchente, espetáculo inspirado no conto de Hermilo Borba Filho, com direção de Flávia Pinheiro

As inquietações do dramaturgo pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) reverberam nesses tempos conturbados, sombrios e de muitas exclusões do humano. Do conto A enchente, a artista Flávia Pinheiro criou um trabalho transdisciplinar pelo projeto O Solo do Outro. A peça articula o escrito de HBF, a performance e o vídeo.

Do texto, os artistas envolvidos erguem uma metáfora que expõe em escala maior os flagelos humanos atuais. Das correntes migratórias às vísceras do capitalismo globalizado, que não esconde sua faceta insensível frente aos acontecimentos.

O espetáculo cumpre sua segunda e última semana no Teatro Hermilo Borba Filho, de hoje até domingo, às 20h.

Espetáculo problematiza e amplia a catástrofe natural. Foto:Danilo Galvão/ Divulgação

Espetáculo problematiza e amplia a catástrofe natural. Foto:Danilo Galvão/ Divulgação

O comunismo fracassou! O socialismo fracassou! E o capitalismo? Esse sistema que anula pessoas, transforma gente em números, concebe hierarquia de valores para os seres baseada na capacidade de acumular bens ou de exercer a mais valia. O espetáculo A Enchente busca problematizar e ampliar no palco a catástrofe natural.

Para compor a peça, a diretora utiliza imagens de arquivo pessoal, trechos  de obras de cineastas experimentais como Jonas Mekas, Carolee Schneemann, Mustafa Abu Ali, Chris Marker, Esfir Shub, Stan Brakhage e cenas das inundações na cidade do Recife e dos engenhos no interior do estado, dos aquivos de vídeo da Fundaj e da Fundarpe.

As três bailarinas/ performers Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe exploram contenções e obstruções de movimentos e jogos com regras e materiais. As imagens de corrente, água subindo, redemoinho, o medo do fim estão lá. Essa luta do indivíduo com o mundo líquido, em que tenta nadar, flutuar, e se possível, voar é pescada do conto de Hermilo para transformar em princípios de movimento.

A música é assinada por Leandro Oliván, que utiliza a voz de Hermilo em uma entrevista para criar texturas e sonoridades. A infância do escritor no Engenho Verde é ficcionalizada, a partir de trechos do livro Margem das lembranças.

FICHA TÉCNICA
Concepção, direção e dramaturgia:  Flavia Pinheiro
Desenho de Imagem e  Som: Leandro Oliván
Performers: Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe
Dramaturgista Corporal: Maria Paula CostaRêgo
Desenho de Luz: Pedro Vilela
Diretor de Arte: Guilherme Luigi
Duração: 45 minutos
Fotografia: Danilo Galvão

SERVIÇO
A enchente, de Flávia Pinheiro
Quando: 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26 e 27 de março, sempre às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: 3355-3320

Postado com as tags: , , , , , , ,

Prêmio de pesquisa com textos de Hermilo

Os projetos O Aprendiz em Cena e O Solo do Outro devem adaptar peças do teatrólogo de Palmares

Os projetos O Aprendiz em Cena e O Solo do Outro devem adaptar peças do teatrólogo de Palmares

Voltados para artistas iniciantes de teatro e de dança, respectivamente O Aprendiz em Cena e O Solo do Outro, estão com inscrições abertas até o dia 30 de julho. Esses dois Prêmios de Pesquisa estão focados Neste ano na obra do teatrólogo, diretor e crítico literário Hermilo Borba Filho. A proposta é da Prefeitura do Recife, através da Secretaria de Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife, e o Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo Hermilo.

O interessado em participar da seleção deve escolher um dos quatro contos do escritor: A Rã, Anunciação, A Enchente e Lindalva. Para cada categoria será escolhido um vencedor, que receberá ajuda no valor de R$ 22.300,00 para viabilizar o projeto. um profissional do Centro Apolo-Hermilo acompanhará a execução da proposta.

O programa prevê a estreia da montagem de O Solo do Outro durante o Festival Internacional de Dança do Recife, que ocorre no mês de outubro. Já o espetáculo de O Aprendiz em Cena deverá será apresentado durante o Festival Recife do Teatro Nacional no mês de novembro. Isso quer dizer que a Secretaria de Cultura do Recife sinaliza a realização do festival de teatro neste ano. Então já está na hora de apresentar os critérios.

A publicação dos projetos vencedores está prevista para o dia 6 de agosto.

SERVIÇO
Inscrição até o dia 30 de julho.
Centro Apolo-Hermilo, na Rua do Apolo, s/n, Bairro do Recife
www2.recife.pe.gov.br/sites/default/files/edital_solo_e_aprendiz_02_de_julho_de_2015_1.pdf

Edital do Prêmio de Pesquisa O Aprendiz em cena e O Solo do Outro/2015.

 Contos de Hermilo Borba Filho

Os contos aqui disponibilizados deverão ser apreciados pelos proponentes, escolhido apenas um, e a partir deste elaborar o projeto destinado ao Solo do outro ou para O Aprendiz em Cena.

hermilo_maqConto 01. A Enchente.

Marulhou, gorgolejou, ela sentiu mais que ouviu a corrente, gorgolou, estava nos pés, ela na beira da cama, e o defunto?, pulou, espadanou água na altura dos joelhos já, se guiava na penumbra, sozinha, talvez ilha, a corrente subindo e a chuva caindo, quando balançou os tamboretes que apoiavam o caixão viu que estavam bambos, pensou em sair com o esquife, o morto dentro, nos braços, atravessando o rio, chegou a rir com a ideia, rir-se de tudo, afastou-se um pouco, ficou parada no meio da sala invadida pela preguiça dos fósforos e do candeeiro, tinha nada não, que tinha?, ficava mesmo ali, atenta, a quê?, atenta, foi tão ligeiro que quando ela viu foram os joelhos frios e Ra frieza da água, bem meio metro calculou, mas sabia que cálculos não iriam adiantar nada, só ficou imaginando o fim, de tudo menos o dela, nadaria, voaria, sairia.

Quando os cavalos na estrebaria se levantaram e se moveram nos beiços um di outro, aos coices as tábuas voaram, o cão ergueu as orelhas, na espera, a cabeça deitada ainda e sobre ela, à procura de calor, a ovelha, isto no mais alto, a chuva caindo, a água nos gorgolejos de corrente, os bichos atentos, mas somente atentos, havia um olho que os espiava e era o olho de quem não se sabia, no mundo líquido uma volta que dava já formava um redemoinho, o funil na velocidade maior arrastando o que ia de cambulhada: panelas, copos de ágata, quadro de santo, flores de contas de mulungu, as riquezas da casa.

Na sala, a mulher tirou a roupa, toda a roupa, sentia que devia estar nua quando chegasse o fim, o fim para tudo menos para ela, continuava pensando, preparava-se, água nas coxas, os pés quase sem apoio no escorrego, já para um metro de andada os braços faziam o movimento do nado, com mais um pouco era abandonar tudo, teria forças, acreditava, água no horizonte e ela mais além do horizonte, era forte já nadava ao derredor da sala, foi quando  olhou em volta e viu: o defunto metido na fatiota nova e nos sapatos de verniz boiava, satélite do caixão, em movimentos lentos, dir-se-iam medidos, graciosos, rodeados pelas borbulhas, bolhas e barulhos de água cada vez mais crescente, ela nadou junto dele procurando uma saída, abrira uma janela e água emendara com água, um lençol na noite cinzenta, a mesma chuva. O mesmo céu fechado, luz nenhuma, ilha mesmo afinal, todos no nado.

Do defunto foi separada por um peixe escamoso que mexia as nadadeiras e fazia pequenas ondas dentro das maiores, num volteio ela bateu com o braço na cadeira de balanço que vogava, sentiu-se dormente quando mais precisava dele, lá fora já nadavam sem destino cavalos, cães, ovelha, o olho continuava fixo na observação aquática, na vida fluvial, na latomia pluvial, no tempo e no gesto, na espera e na ânsia, no nado e no nada, nadavam e se esbofavam e voltavam ao mesmo lugar, aos bichos se juntaram o defunto e o caixão, tudo num rodopio para o funil, para o cone, na descida verticatiginosa, ali seria definitivamente o Abreu, a mulher o olho viu no exato momento em que uma trave, caindo, alcançava-a na altura dos olhos jogando-a na escuridão total, o sangue jorrando e água absorvendo-o, os peixes bicando-o, quase nenhum vermelho, e já a mulher, entre a vida e a morte, perdida a certeza, ia para o funil. No alto do frontal, na escuridão e sob a chuva, o carneiro de pedra branca, sentado, montava guarda.

hermilo_maqConto 02. Lindalva

Obra de uns seis para oito anos durava o namoro: sabonete Dorly nas segundas-feiras, brilhantina Flor de Amor nas terças, colônia Royal-Briar nas quartas, talco Ross nas quintas, esmalte para as unhas nas sextas, nos sábados uma lata de goiabada marca Peixe e nos domingos um pão-de-ló feito por sua tia, com quem morava desde que órfão ficara, Antônio Periquito das Neves Cândido, mais conhecido como Candinho-das-Amas, especializado em aventuras domésticas para satisfação do corpo, mas par constante de Lindalva, moradora na Rua da Ponte, quase em terras do Engenho Japaranduba, em cuja janela se debruçava todas as noites às sete, saindo às dez, antes entregando-lhe o presente do dia, sem contar os das quatro festas do ano, no carnaval uma caixa de Vlan, pelo São João fogos-de-bengala, na festa da padroeira gravuras da santa, pelo Natal um bolo-de-bacia, isto sem levar em conta as frutas da estação e outras bugigangas tais como biliros, fitas,meias,batons,ruges,marrafas, anéis de feira, pulseiras de vidro, brincos de fantasia, até mesmo um corte de fazenda.

Desusados esforços envidava Candinho-das-Amas para o presente do dia, já que empregado nas redação do tempo azeitando o eixo do sol, nos conformes dos dizeres da tia, ditos de bondade, incapaz de alevantar a voz para o seu menino,indo ele desde o pedido à tia, emérita boleira, aos pequenos roubos, à venda de frutas do quintal, magros mil-réis, suores frios, dias havia em que chegava a boca-da-noite, o comércio fechando e ele sem presente, dia de azar no víspora de Nenê Milhaço ou na fiche de Guará, sempre por artes mágicas os caraminguás apareciam e o presente saia, nunca falhara uma só noite nos todos os dias que se decorreram em bem seis ou oito anos, conforme já se disse e se reafirma agora. Desassossego maior era no dia do aniversário de Lindalva quando a prenda deveria ter mais valia, podendo ser um par de sapatos ou mesmo um anel de alguns quilates dourados comprados a Doroteu, quase sempre à prestação, está-se a ver, o que desequilibrava completamente o plano orçamentário de Candinho-das-Amas, as próprias domésticas, às vezes, contribuindo com uma propina pós-coito, dada a sua perícia técnica, tudo servindo para o mealheiro dos presentes.

Sete da noite, Pirangi batendo no sino do mercado, ele apontava na esquina e ao soar a última badalada estava estendendo a mão para Lindalva que justo naquele momento debruçava-se na janela e estendia a sua para, antes, receber o presente, muito agradecida, colocando-o num canto, novamente estendendo a mão que Candinho-das-Amas aninhava nas suas, contemplando o generoso decote, mas jamais avançava um centímetro além da mão, seria sua esposa um dia, tinha empregos prometidos, aventuras de corpo ficavam para as amas, nem sequer despertava fisicamente para Lindalva por enquanto, dizia, era o respeito, ficaria para a noite nupcial, Lindalva parece que ficava muito satisfeita com todos aqueles propósitos de castidade, mas curvava-se à devoção e aos presentes. E conversavam sobretudo sobre os afazeres domésticos dela, a retreta do domingo, os achaques da mãe e o reumatismo do pai, o tempo com a chuva ou sol, as perspectivas da safra, o filme do Cine-Apolo, das sete às dez, longas pausas de entremeio, as mãos suadas sem se mexerem, Candinho-das-Amas de pescoço doído de olhar para cima e de baço dormente da posição, Lindalva de cotovelos escalavrados, mas firmes na noite, das sete às dez, todas as abençoadas noites estivais ou invernosas, nestas Candinho-das-Amas metido num capote de baeta, suando em bicas, mas enxuto, somente os pés molhados, a chuça martelando e ele agarrado nas mãos de Lindalva, das sete às dez.

No primeiro de dezembro deu-lhe o estalo: a oleografia da santa na sala de visitas da tia era o presente ideal para Lindalva no dia oito, festa da padroeira, festividade maior, quando da janela ouviriam os sons da banda de música, dos pregões do leilão, do bruaá que ali chegava, já que nunca os dois, juntos ou acompanhados, passearam pela praça, foram ao cine, compareceram a um baile. Dali da janela não saiam, tudo era ali, nas mãos dadas, das sete às dez; e tome uma santa, a santa, sua imagem de santa em azul e róseo, em brancos e carmins, em violáceos, mas a tia não lhe dava a santa, não abria a mão da padroeira, fora presente do falecido, balançava a cabeça, negava, obtemperava firme, ele juro que não ia fazer isto que fará eu, Candinho-das- Amas menino dengoso no dia dois, adulador no dia três, amuado no dia quatro, os dias se passando, o dia se aproximando, fora de casa na noite do dia cinco, lacrimoso no dia seis, tentando suicídio de mentira no dia sete. Ameaçando de morte na tarde do oito, na noite do dia oito às quinze para as sete com a padroeira debaixo do braço, embrulhada em papel celofane, em direção à Rua da Ponte.

E quando chegou no princípio da rua olhou, com o coração batendo, a janela iluminada, tal-e-qual como nas outras noites, só que naquela o coração lhe dizia que alguma coisa de maior haveria de acontecer, foi andando e andando se aproximando com o coração aos pulos, aos pulos chego era estender a mão na batida das sete e Lindalva estender a sua, receber a santa, e as sete baterem e a janela vazia estava vazia ficou, de primeiro sentiu uma tonteira, coisa de pouca duração que apareceu uma mulher, a mulher era a empregada que tinha visto raras vezes, a empregada lhe disse algo, nada ouviu, somente a mão estendida da empregada com um papelito, poderia ser uma dose de sal amargo mas não era, talvez farinha-de-castanha mas também não era não, bicarbonato de sódio e o tal não era, era papel de bilhete, desdobrou-o, com a lua que vinha da sala, a santa debaixo do braço, conseguiu lê-lo, as letras trêmulas: Candinho, resolvi depois de muito pensar e de muito sofrer acabar com o nosso namoro da sua amiga Lindalva e a da santa caiu e o vidro quebrou, deixou-la lá, abaixou-se e tirou os sapatos, deu um nó nos enfiadores, enfiou-os no dedo, os sapatos numa mão e o bilhete na outra, atravessou a rua, entrou na bodega confronte, balcão, disse para o bodegueiro uma bicada, tomou-a, estendeu-lhe o bilhete, veja, Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva, saiu sem pagar e o bodegueiro deixou-o ir; atravessou o ria, foi bater na casa-grande do Engenho Paul, veio o vigia, meu compadre Lauro Paiva, quero falar com o meu compadre Lauro Paiva, veio o compadre Lauro Paiva, estendeu-lhe o bilhete, veja, Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva, não esperou resposta, desfez o caminho, mesmo de noite foi envolvido por uma nuvem e nela andou, voou, reatravessou o ria, subiu a ladeira da estação, entrou sem pedir licença na  do Doutor Bertoldo, mostrou-lhe o bilhete, Lindalva, Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva. Doutor Bertoldo deu-lhe um conhaque e um charuto, tomou o conhaque e acendeu o charuto, foi em direção à pensão de Quiterinha, de puta em puta com o bilhete, veja, Lindalva é mina amiga, minha amiga Lindalva; e no fuá parou a orquestra, aos músicos foi, de bilhete em punho, mostrando e falando Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva; e deixou-se ficar num canto, bebendo e babando, só murmurando Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva; invadiu a casa paroquial e tirou o padre Abílio da conversa com os magníficos, ao padre mostrou, aos magníficos mostrou e para todos falou Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva; e no Pátio do Mercado chegou e a todos foi: ao homem do tivoli, ao bedegueba do pastoril, ao leiloeiro, ao homem da roleta, ao capitão do bumba e ao vassoura do fandango, ao presidente do Clube Literário e ao prefeito, todos leram o bilhete e ouviram sua afirmativa dolorida: Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva; e quando subiu as escadarias da igreja viu-a, dedo mindinho com o dedo mindinho com o caixeiro-viajante da fábrica Bordalo, ela se escolheu, o caixeiro-viajante que é que há meu bem, ela nada, encolhida, só encolhida, Candinho-das- Amas na frente dos dois e de costa para os dois se postou, os sapatos pendurados no dedo, o bilhete na ponta dos outros, a camisa fora das calças e a gravata torta, o chapéu fora do prumo, bem junto, quase colado no casal, o olhar atravessando o pátio, falando e eles ouvindo, falando: Quem chupou minhas laranjas-cravo é só pagar;Quem recebeu meus biliros, minhas brilhantinas, meus extratos meus pós-de-arroz as barraquinhas estão aí mesmo; e continuou falando mesmo muito depois que o casal já não estava mais às suas costas, saindo à sorrelfa, e quando olhou de soslaio e viu que era lugar limpo, mesmo assim, em tom de discurso, continuoua relembrar os presentes dados e recebidos durante os seis para oito de janela das sete às dez, juntando gente, a multidão formada, e ele na falação, até que chegou o Cabo Luiz e o levou pelo cós das calças até a beira do rio, mergulhou profundamente sua cabeça dentro d´água para tirar as fumaças de bebedeira, mas bebedeira era outra, foi o que ele disse à autoridade, bebedeira de amor, senhor cabo, bebedeira de corno, e lhe nasceram chifres e pelas ruas correu, e pega daqui e pega dali, Lindalva já estava na barraca das prendas quando ele subiu à torre da igreja e deu um brado Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva, e foi ela olhar para o alto e ele ir-se, adejou, passou por cima do Cine-Apolo, de chifres e asas, gritando até se perder, o eco cada vez mais fraco, Lindalva é minha amiga, minha amiga Lindalva, e noticias dele não se teve, não foi pescado no rio nem encontrado na mata, deu-se como perdido e não se falou mais nele, nem mesmo Lindalva.

hermilo_maqConto 03. A Rã

No Coaxo, ela, na coaxada tardes e noites, a rã, já deveria estar acostumada, ela, a mulher, na beira do riacho corredor, só que nunca via a rã, nunca quase, quando a via tinha um nojo de arrepiar a pele, era uma ou eram mais?, dizer não saberia, só o coaxo dobrava com o vento, pior ainda na cruviana da noite, embora de mesmo de noite ao riacho só tivesse ido em caso de necessidade da mais premente, qual?: lençol co diarreia de menino novo, lençol com vômito de marido, lençol na primeira pancada do boi, coisas raras, anuais até, riacho era coisa para de dia e de dia podia ver a rã, só que raramente já se disse, mas de noite era de ouvi-la na coaxação, que animal coaxante a rã nascera, da sua condição.

Vai na manhã de roupa na cabeça, vai, ao riacho, pensamentos nenhum, brisa fresca e sol acabado de nascer, florzinhas pelas beiradas do caminho, amarelas, brancas, róseas, essa coisa de passarinhos e insetos e bichinhos rastejantes e corredores, manhã já se disse, e na picada vai, vai ao riacho, sozinha, aquele fio-d´água é só para ela, aguada maior fica muito mais embaixo, lá onde as lavadeiras mourejam, ela não é lavadeira, lava o da tua casa, do seu homem de cama e mesa e dos outros:irmãos e filhos taludos, todos já na touceira da cana, nas várzeas e nas chãs, só de tardinha chegariam; e lá vai para o riacho, vai, se disse, se repete, é necessário insistir nessa caminhada, vai lá, ó mulher, acocorada já, a saia arrepanhada para dentro das coxas, à mostra joelhos reluzentes, e sobre a pedra, no vuco-vuco do sabão, os panos, os timões, as ceroulas, as anáguas, os corpinhos, calças e camisas de saco de farinha-de-trigo, peixinhos na ronda, bicando e repudiando o sabão forte, ela lá, sol se levantando, tudo ao derredor e na pedra ao lado, sem saber como, a rã, pequenina, quase confundida com o cinzento da pedra, ela mas se apercebeu, quando viu a rã, arrepiou-se, afastou p arrepio, uma coisinha dessa resmungou, convenceu-se:não PE medo, é nojo.

A rã pulou para outra pedra, oi, cresceu um pouquinho ou é outra, intrigou-se ela, besteira, a mesma, não pode crescer num pulo, estirou as perninhas, foi isso, só, baixou a cabeça e voltou aos panos vendo o sabão formar correntezas brancas, lavou e enxaguou até ver tudo alvo e sentir os braços doídos, ergueu-se no sol a pino estendeu os panos nas pedras para quarar, iria ao almoço, voltaria ao de tardinha para apanhar a roupa, ajuntou os seus apetrechos, um sapo?, bem reparado não, uma rã, do tamanho sim, a mesma não podia ser, rã nenhuma vai crescendo assim na vista da gente, arrepiou-se mas deu um muxoxo, afastou a rã da cabeça e pôs-se a caminhar na picada, para casa, ainda teria que fazer o almoço dela e do dos homens, na picada seguia, uns baques fofos no capim, parou, olhou para trás, a rã, ela, crescera para o tamanho de um sapo-boi, não podia ser, gritou, dessa vez, grito em vão, começou a correr, pulos fofos continuavam perto, avistou a casa, correu mais, adentrou a casa, trancou a porta, trancou as janelas, quando se sentou no tamborete, arfante, em cima da mesa, papo batendo, a rã, grande, de olhos pulados, ela e a rã na casa fechada, correu para o quarto, passou a tramela na porta, na cama, maior ainda, comparado o tamanho a um peru-de-escova, dos grandes, a rã, papo batendo, boca rasgada.

E lá se foi a mulher para os campos, a rã atrás, sempre crescendo, voltou à cas, a rã maior, cansou a mulher, ficou derreada a um canto, todas as portas e janelas fechadas, a rã crescendo, a s duas, a rã e a mulher, já eram do mesmo tamanho, estavam juntas agora, o medo da mulher se fora, só faz mesmo fechar os olhos e esperar.

Quando, de tardinha, os homens chegaram para o descanso e o de-comer, com portas e janelas trancadas gritaram e mais que gritaram e nada de nada, abaixo foi uma das portas, vasculharam toda a casa e não encontraram a mulher, foram aos campos, nada, no riacho as roupas continuavam quarando com pedrinhas em cima por causa do vento, voltaram à casa, nada, somente em cima da mesa uma rã, uma pequena rã, uma rã de parece que um dos homens, impaciente, afastou com um piparote.

hermilo_maqConto 04. A Anunciação

Pirangi nem viu nem nada. Devia ter sido posto depois que badalara as quatro, quer dizer, quando os profissionais da madrugada já circulavam e o dia ameaçava romper, os profissionais no inquérito negando de pés juntos ter visto sequer sombra do capataz que se esquivava nos altos da Casa Almeida Tecidos Ferragens Secos e Molhados: MINHA VIDA É VERBENA, um cartaz daqueles comumente usados pelo Cine-Apolo, papel branco sobre sarrafos entrelaçados, tinta azul, as letras mal feitas, mas Fanhim Deixa-que-eu-chuto, que percorria os pontos estratégicos da cidade carregando-os, botando-os e trocando-os, conforme a fita, chamado para o inquérito, tudo negou com maneios de cabeça e resmungos, dele só se ouvindo claramente uma frase: Eu termino tomando na jatobá. O que intrigava mais mundo naquele sovaco da região – frase somente dita uma vez pelo recém-advindo promotor Tertuliano Braga de Caldas, recém-egresso dos bancos acadêmicos, somente dita uma vez porque jamais teve oportunidade de repeti-la, embora garantisse e soluçasse depois que fora uma brincadeira trêfega, já que removido imediatamente pelo governador em exercício, a pedido do prefeito em exercício – era como diabo de cão aquele cartaz tão grande podia ter sido içado e amarrado a arame no pára-raios.

E começaram as especulações e os cochichos, os murmúrios e os disses, os ouvi dizer, os segredinhos, as intenções, os dedos apontados, houve quem primeiro pensasse nas artimanhas do vizinho município de Catende, cujo time de futebol fora lavado no último domingo, depois debaixo de tudo quanto pedra encontrada numa redondeza de dois quilômetros para bombardear o trem que levara de volta os vencidos, uma das pedras recocheteantes acertando em cheio nos cornos do tabelião apelidado de Chico Viperino, casado com a matrona Inácia Lambe-Lambe, sobejadamente conhecidos e reconhecidos como os maiores papadores da vida alheia, e em cuja casa acudiam as comadres e os compadres para pensarem em tão magno enigma, Chico Viperino ainda de gaze na cabeça, Lambe-Lambe recebendo as visitas, ele está completamente quase bom, o tabelião na espreguiçadeira mais ouvia do que falava para significar i pesaroso do seu estado, mas quando falava era na chincha, e abria perspectivas imensas de assombro nos olhos quando a compreensão chegava, dele partindo a ideia de que a mulher do prefeito, uma das da roda, falasse sem petição ou requerimento, na intimidade, ao seu emérito marido no sentido de que congregasse todas as forças para elucidação do enigma que tanto vinha inquietando a vida da cidade: os membros da Associação Comercial, os da Sociedade União Humanitária, os do Recreio Familiar, os do Clube Literário, entre eles juízes e o promotor e o delegado, sobretudo estes três, responsáveis diretos pela tranqüilidade di vale, afirmando com muita seriedade, rosto preocupado, sábado faz quinta-feira que botaram o cartaz e ninguém ainda não sabe de nada.

A mulher do edil sentiu-se feliz por ter outra ocupação na vida que não a de levar bolachas Maria santinhos coloridos e rapé, uma vez por mês, para os três trancafiados crônicos na cadeia pública: Goguéia, Bole-Bole e Bole-sem-Tempo, e pôs-se a galopar no campo das suas amizades, com ordem do marido, a sessão tendo lugar na sala de audiências do Paço Municipal, o beletrista Costinha, arauto dos sentimentos de toda a população, apelando para as autoridades constituídas no sentido de elucidação do mistério, a primeira providência consistindo na retirada do acintoso cartaz, coisa primária na qual ninguém havia pensado; a segunda como sugestão, mandando que o funcionário competente verificasse nos livros de licença se licença fora concedida e a qual ente e vivente, para aposição do cartaz em pauta, ausente a qual se caracterizaria a culpa; e terceira e última, porém não menos importante, uma missa campal ao mesmo tempo de agravo e desagravo pela audácia de inquietar a heroica cidade.

Foi a partir, pois, da manhã seguinte a esta tarde, quando as autoridades houveram por bem acatar as sugestões do poeta Costinha, futuro camisa-verde, que a cidade começou a viver em pé-de-guerra, na inquietação maior. Para começar, às oito horas, mas o comércio abrindo as suas portas, chegaram os próceres e a banda de musica Siri-na-Lata, bem defronte da Casa Almeida tecidos Ferragens Secos e Molhados, a banda atacando um dobrado lento de enterro ou procissão de sexta-feira santa, Fanhim Deixa-que-eu-Chuto subiu como um macaco, sem escada nem nada, pelas anfractuosidades da parede principal do estabelecimento comercial, amarrou o cartaz criminoso a uma corda e ele desceu rodando para os braços do Cabo Luís, dali diretamente para a fogueira preparada para tal fim, que o engoliu em dois tempos, alguns mais temerosos receando papocos, mas nada aconteceu, pelo que a Siri-na-Lata atacou um dobrado vibrante e todos voltaram ais quefazeres. O mesmo Cabo Luís, acompanhado por três praças, de ordem do excelentíssimo senhor doutor juiz de direito desta comarca, aos trinta do mês de março, varejou os hotéis de Dona Quitéria, Boca-de-rã, Doroteu e os Familiar, convocando, melhor dito intimando todo e qualquer caixeiro-viajante que lá estivesse aboletado para comparecer no prazo de trinta minutos à sala do júri no intuito de ser submetido a um interrogatório destinado a apurar, no respectivo inquérito, o responsável pela colocação do cartaz nos altos da Casa Almeida Tecidos Ferragem Secos e Molhados, sob pena de arcar com rigores da lei, que iam desde os previstos no Código Penal aos aplicados nas caladas e gritadas da noite: cinco, os que estavam na cidade, compareceram, declarando que sem coação, mas nenhuma de suas representações se ligava, embora remotamente, a qualquer produto de beleza, suposição primeira das damas dos próceres, tendo em vista a palavra verbena. Um vendia produtos farmacêuticos altamente especializados em sífilis, blenorragia, mula, quarta-venérea, afogagem, crista-de-Galo, cavalo, cancro-mole; outro se dedicava unicamente à disseminação dos produtos regeneradores das forças vitais como o Reconstituinte Silva Araújo, o Biotônico Fontoura (cada frasco acompanhado pelo Jeca Tatu de Monteiro Lobato), o Gluconato de Cálcio Alemão; o terceiro aos xaropes contra as tosses, fossem coqueluche, piado de gato, seca, bronquite, catarral: Bromil, Rum Creodotado, Creosoto de Faia, Fimatosan: o penúltimo se especializara em medicamentos para o aparelho digestivo: Elixir de Inhame, Bicarbonato de Sódio Cooper, Gotas-Amargas do Doutor Gilvan; e o derradeiro aos problemas da escassez ou da abundância feminina nos seus fluxos mensais: saúde da Mulher e Regulador Gesteira (N° 1 e N°2). Absolvidos e aliviados reuniram-se à noite no café de Nenê Milhaço, beberam dúzias de cerveja alternada com goles de Genebra Foquim, vomitaram no salão, quebraram algumas mesas e terminaram dormindo no xilindró, por castigo na mesma cela de Bole-Bole que fedia mais do que nunca, já que a digníssima do prefeito, afobada, atarefada e tonteada pela campanha anticartaz, lá se esqueceu de ir e insistir para que ela tomasse o seu banho mensal de leco-leco.

No segundo dia das diligencias o promotor teve uma intuição condoreira: Só podem ter sido os bolchevistas. Foi o quanto bastou para que o juiz expedisse de boca a ordem de prisão e o delegado chamasse o Cabo Luís com os seus praças para cumpri-la, o Cabo indo direto à Rua da Ponte onde o único intelectual bolchevista da cidade morava com a sua mulher fazedora de bolo-de-gome, entala-gato, batintope, bolas de cambará, vendidos em tabuleiro dos dois: Zumba-Dentão, que assim chamado porque nas centenas de prisões por que passara arrancando-lhe as unhas e todos os dentes menos o grandão da frente, jamais nada se provando porque coisa nenhuma existia, mas ele pagando por qualquer malfeito impune na cidade, seria mais uma vez, podia ser tudo maneiro ou não, na verdade já se fazia muito tempo que era só protocolar, na faz-de-conta, no arremedo, não tinha mais graça; mas se precisava esgotar todos os recursos na elucidação do mistério, uma vez seria a primeira, e Zumba-Dentão poderia ter se fingido de morto por todo esse tempo; foi chegando na delegacia e para início das conversações, por ordem do delgado, levou um tapa-olho do Cabo Luís que viu tudo rodar, tombou, caiu, quando se levantou: se mal pergunto, por que motivo?, levou outro que achanou o pé da goela, procurando ar, nas pontas  dos pés, como se o ar estivesse acima dele, foi se aquietando, calado estava calado ficou, então lá vai pergunta, chovia pergunta de todo o lado, o triunvirato – juiz, promotor, delegado – só observando, quem interrogava era Costinha, o vate langoroso das valsas dançadas no Clube Literário recitando, entredentes, para a dama nunca morrer assim, num dia assim, ágil na inquirição, em funções de escrivão da polícia, se Zumba-Dentão suava ele suava mais ainda, pulava na ponta dos pés, tomava goles de gasosa de bolinha, arrotava fofo, incansável, perquiridor, quer perder o dente?, e o interrogado só sabia dizer não sai da minha casa; pararam para almoçar, os quatro, posso ir embora?, de tão espantados se engasgaram, bateram uns nas costas dos outros, borrifos, goles, admirações, continuaram pela tarde adentro, não saí da minha casa, no fim da tarde o vate chamou o Cabo Luís e disse arranque , Zumba-Dentão abriu a boca, o Cabo chegou com a torquês, houve um suspense, segurou no pé do dente e puxou, quase nem saiu sangue, quase também que nem doeu, a noite já estava chegando, o juiz na calçada se encontrando com o doutor Bertoldo se lembrou que no dia, melhor na noite assinalada  o bolchevista estava mesmo de cama com uma disenteria dos diabos, ele lá estivera, o quarteto riu, o doutor se afastou balançando a cabeça, uma semana depois era Zumba-sem-Dente para todos os efeitos.

No terceiro dia, por denúncia estrita e anônima, só que todo mundo sabia que quem escrevia carta-anônima ali era Lambe-Lambe, foi chamado o conhecido herbanário e homeopata Alfredinho-Bom-de- Cheiro, mais amarelo que nunca via de cãibra de medo, interrogado com meticulosidade, tartamudeantemente respondendo às questões, negando, jamais, juro, lidei com as verbenas, da família das verbanáceas, conhecidas vulgarmente por camaradinhas, recitando pois o verbete do Dicionário da Língua  de Jaime Seguier, aqui só encontradas nos mais provectos jardins das mais ilustres casas das mais ilustríssimas damas, como poderia eu? , nunca fiz estudos de tal delicadeza tamanha, repito, ameaças mil não surtira, efeito, Alfredinho-Bom-de-Cheiro, de cara com a maldade e a tortura (tinham um odor dos mais estranhos, asseverou depois, uma mistura de sovaco de soldado com merda de urubu diluída em mijo de vaca prenhe) , já passava do amarelo, para o verde pálido, depois em verde mais carregado, cor de folha mesmo, parecia um calango vestido de fraque. Vai então o excelentíssimo senhor doutor juiz de direito dos nascimentos casamentos e óbitos desta comarca aos tantos interrompeu a mão na cara de Alfredinho-bom-de-Cheiro, a mão gordinha quase escura da vate Costinha, com uma pena recôndita, homem de bons sentimentos, e mandou parar, estou convencido de que esse pobre diabo nada ter a ver com a coisa. Foi o que mais insultou o herbanário, que de lá saiu furioso, daí em diante, quando podendo, com as maiores precauções, insultando a autoridade, tenho a minha personalidade, sou homem pra agüentar repuxo, não fujo da parada, só não admito insultos à minha personalidade nem nome de mãe.

Diabo de uma merda de cidade desse tamanho, já se vasculhou tudo, não se sabe mais o que se faça, afirmava o doutor juiz de direito numa partida de gamão com Santos Lafaeite, ao entardecer do dia, não se encontra o criminoso que tanto tem agitado a ordeira população com aquele seu cartaz estúpido sem pé nem cabeça. Isto por haver passado grande parte do dia anterior e toda a tarde desse inquirindo com palavras, quirisadas, chapuletadas bem distribuídas os marginais do burgo. Vieram Mateus de bumba-meu-boi, bedeguebas de pastoril, capitães da fandango, mamulengueiros, mestre de samba-de- baque e ninguém sabia nada, ninguém, jamais tivera notícia de autor de tal proeza que um deles, porta – voz da ralé afirmou como sendo a mais ignóbil já perpetrada naquelas cercanias. Assinaram um termo se comprometendo a delatar o infrator, indo até mais além, assinaram um termo se comprometendo a sindicar nas camadas baixas em que viviam os falatórios que pudessem levar à elucidação daquele mistério de Paris no dizer de Lelé o fotógrafo. Mas se fosse esperar por isso, sabiam, iriam esperar sentados, pois aquela gente não tem nenhum pudor, nenhum pejo, nenhum sentido social de solidariedade humana, sou eu quem diz, eu Costa Andrada, interrogador.

Foi o caso que favoreceu o Cabo Luís, sem estar no seu cumprimento do dever nem nada, não era direito, foi o que os bengala-fumengas disseram depois, não valia, cogitaram até de mandar o Cabo desta vida para a outra, desistindo da ideia somente porque não sendo tempo de eleição nenhum babaquara os protegeria do castigo da justiça, que invocada seria e alcançaria a todos, justiça não faz distinção de raça, religião e posição social: o cabo Luís estava sentado no botequim de Guará, toando de graça as suas habituais cachaças de raiz, quando chegou Dorotéia-Rabo-Peludo de maletinha na mão, foi uma alegria de todos, como se foi de Gameleira?, demorou muito, tome um guaraná Fratelli, conte as festas, e La vai palavras, lá vai risada, lá vão ditos e negaças, lá vai piadinhas,e entrelinhas, elá vai coisa, e no meio de um daqueles silêncios que se fazem em toda a reunião, alto e bom som Doroteia-Rabo-Peludo perguntou com a maior naturalidade do mundo onde está Verbena que faz ponto aqui toda noite a essa hora? As línguas pronunciaram palavras jamais pensadas na ânsia de fazer barulho para abafar a interrogação por demais comprida aliás e eram todas ao mesmo tempo mais aos gritos do que às falas e de repente foi um grito maior que fez voltar o silêncio e La estava o Cabo Luís de olhos injetados olhando nos olhos de cada um, era só escolher, avançou e abecou Guará, arrastando-o por cima do balcão, você vai comigo, Doroteia-Tabo-Peludo não entedia o que estava passando, quis intervir, puxaram-na para um canto, calma mulher, depois eu explico, não se meta agora, deixe que Guará sabe o que pode fazer.

Guará sabia o que podia fazer mas não aguentou mais de quarenta e oito horas. Que aguentou, aguentou: pau na marra, pau na bunda, cacetada nos penduricalhos, cacete no ventoso, extração de dentes e de pentelhos, arranco da unha do indicador da desta e quebra do dedo mínimo da sinistra, novamente cacete na panasqueira. Na noite do segundo dia, sem querer, o Cabo Luís acertou com o fraco de Guará que jamais comera comida quente em sua vida desde que a mãe lhe contara todas as noites durante cinco anos, para dormir e lhe trazer pesadelos, a estória de água meu netinho azeite senhora avó: felá da puta, se você não abrir o focinho eu lhe meto um ovo quente na boca e costuro com arame. Guará ainda pensou que fosse somente ameaça, mas quando viu o dito referido numa colher de sopa, pegando fogo, engasgou-se e obrou tudo:  diz que Verbena deixou a vida de puta para amigar-se com Otoniel, o filho de Odin; diz que sim, aquele mesmo que vive fazendo novenas contra as ordens do Padre Alípio e que é devoto de São Sebastião; diz que amor à primeira vista, que Otoniel jamais conhecera mulher vivendo das bem tocadas gloriosas, aqui estou livre de pegar doença feia, aqui estou livre de roubar mulher alheia; diz que em dois dias Verbena se apaixonou Poe ele, que foram morar juntos numa casinha no Alto do Matadouro, que de tão alegre Otoniel escrevera ele mesmo aquele cartaz e de madrugada colocara-o no altos da Casa Almeida Tecidos Ferragens Secos e Molhados com a maior inocência sem saber de posturas municipais e segurança nacional, somente para anunciar o amor; diz que o infrator de nada está sabendo, pois além de nada entender afora santos e agora amor, ninguém quis incomodá-lo durante esse período. Diz mais que são as mulheres e os jogadores do Alto do Lenhador que estão sustentando o casal e que quando passar a tesão original Otoniel era trabalhar com ele depoente, Verbena podendo fazer a vida até a hora de irem para casa; e o que disse mais estava fora das tábuas da lei pelo que foi na palavra casa lido e achado conforme assino a presente declaração por livre e espontânea vontade Menelau Alves da Silva vulgo Guará.

Foi por iniciativa própria que o Cabo Luís agiu daquela maneira, conforme ficou provado no inquérito que se seguiu, nem mesmo chegando a ir a júri, muito menos cadeia, afastado do cargo durante uma semana enquanto juiz, promotor e delegado verificavam a melhor maneira de tirar a pobre autoridade subalterna daquela enrascada. Foi assim: deixando Guará aos tombos quebrados dirigiu-se à moradia do casal lá para as onze da noite, sem chamar nem moço botou a porta abaixo com a coronha do rifle, arrastou Otoniel de olhos redondos de cima de Verbema de olhos mortos até o quintal e lá deu-lhe uma coronhada bem aplicada para começar a brincadeira mas a brincadeira terminou ali na mesma hora subitamente espoucada sem ais e quando o Cabo constatou aquilo não fez mais que lançar um suspiro, não ia divertir-se, do que ele fez depois não há testemunhas visuais ou auriculares, nem mesmo Verbena testemunha da primeira parte que desmaiou durante horas até ser socorrida pelas ventoinhas outras.

Quando a barra do dia ia quebrando aqueles que passavam no Cruzeiro podiam distinguir um vulto nele pregado e os que tiveram a coragem demasiada de aproximar-se reconheceram Otoniel, filho de Odin, um facão rabo-de-galo enfiado no peito, Entre o peito e o cabo da lâmina um cartaz: O REI DOS FRESCOS. Mas quando o dia clareou de vez, Otoniel na estava mais lá. Em casa do juiz bebiam-se os últimos cálices de Quinado Constantino, enquanto os notáveis da cidade preparavam-se para regressar à paz.

Postado com as tags: , , , , ,

Mais Janeiro!

O pranto de Maria Parda. Foto: Rui Pitaes

Teatro Adulto

Caetana – Texto: Weydson Barros Leal e Moncho Rodriguez. Direção: Moncho Rodriguez e Walter Nascimento. Elenco: Lívia Falcão e Fabiana Pirro. Benta, uma rezadeira, após indicar o caminho do além para várias almas perdidas, se depara com a própria morte. Hoje, às 20h30, no Teatro Barreto Júnior. Ingresso: R$ 10. Informações: (81) 3355-6398.

Caetana. Foto: Daniela Nader

O pranto de Maria Parda – Texto: Gil Vicente. Direção: Moncho Rodriguez. Elenco: Gilberto Brito. Comédia luso-nordestina. Um fusão de linguagens, sonoridades, memórias, safadezas e picardias, transpondo a personagem portuguesa de Gil Vicente para o universo dos poetas e repentistas do Nordeste brasileiro. Sexta, sábado e domingo, às 20h, no Teatro Capiba, no Sesc Casa Amarela. Ingressos: R$ 10. Informações: (81) 3267-4400.

A mulher sem pecado. Foto: Eliane Torino

A mulher sem pecado – Com a Cia. Arlecchino de Teatro (Belo Horizonte). Texto: Nelson Rodrigues. Direção: Kalluh Araújo. Olegário, um homem ciumento compulsivo, consegue poluir a cabeça da mulher com fantasias sexuais e luxúria. Lídia é pura e fiel, mas tomará uma atitude que mudará a vida do casal. Sábado, às 21h; e domingo, às 19h, no Teatro de Santa Isabel. Ingressos: R$ 10. Informações: (81) 3355-3322.

Niñas araña – Da Compañía CIT / Centro de Investigación Teatral (Santiago/Chile). A história de três adolescentes que se tornaram conhecidas porque subiam no mais alto dos edifícios perguntando se, assim, alguém as iria notar. Sábado e domingo, às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Informações: (81) 3355-3321.

Flor de macambira. Foto: Anderson Silva

Flor de macambira – Do grupo Ser tão teatro (João Pessoa/PB) – A bela e jovem Catirina sucumbe aos vícios e tentações mudanas e tem que mergulhar nas profundezas da sua alma para salvar a si e a seu amado, o pobretão Mateus. Sábado, às 20h, na Praça Laura Nigro, na Ribeira, em Olinda. Gratuito.

Estar aqui ou ali? – Do Visível Núcleo de Criação. Criação, pesquisa e elenco: Kleber Lourenço. O intérprete-criador busca diálogo entre corpo e espaço urbano, processando em si a experiência do trânsito e suas diferentes paisagens. Sábado, às 18h, no Alto da Sé. Gratuito.

Dança

Sobre mosaicos azuis. Foto: Camila Sérgio

O solo do outro – Realização do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo. Helijane Rocha, Jefferson Figueirêdo e Januária Finizola são os três bailarinos que mostram suas criações em dança contemporânea (respectivamente Ela sobre o silêncio, abordando as limitações impostas ao feminino; A face da falta, tocando no sentimento da recordação; e Sobre mosaicos azuis, questionando a linha tênue que separa as patologias psiquiátricas da loucura cotidiana. Hoje, às 22h, na Casa Mecane (Av. Visconde de Suassuna, 338, Boa Vista). Ingresso: R$ 10. Indicação: 16 anos. Informações: (81) 3423-6562.

Horas possíveis…enquanto seu lobo não vem – Do Camaleão Grupo de Dança (BH). A obra rata de termas urbanos como o espaço privado, a individualidade excessiva e a falta de comunicação. Sábado e domingo, ás 16h, no Alto da Sé, em Olinda. Gratuito.

Diálogos sobre Nijinsky. Foto: Marcelo Zamora

Diálogos sobre Nijinsky – Com a Virtual Companhia de Dança, de São José do Rio Preto (SP). Livremente inspirado na biografia do bailarino e coreógrafo Vaslav Nijinsky, com concepção cênica minimalista. Teatro Barreto Júnior (Rua Jeremias Bastos, Pina). Sábado e domingo, às 20h30. Ingressos: R$ 10 (único). Informações: (81) 3355-6398.

Teatro para Infância e Juventude

Algodão doce – Com o Mão Molenga Teatro de Bonecos. Direção: Marcondes Lima. Texto: Carla Denise. Bonecos com textura de algodão ajudam a contar três histórias de assombração, partindo do universo açucareiro. Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro). Domingo, às 16h. Ingressos: R$ 10 (único). Informações: (81) 3216-1728.

Algodão doce. Foto: Ivana Moura

O pássaro de papel – Direção: Moncho Rodriguez. Pássaro cor de mel aprende a voar, mas é rejeitado por seus pares por ser diferente. Teatro Luiz Mendonça (Parque Dona Lindu). Sábado, às 16h. Domingo, às 18h. Ingresso: R$ 10 (único). Informações: 3355-9821.

Valentim e o Boizinho de São João – Da Cia. Máscaras de Teatro. Direção: Sebastião Simão Filho. Valentim é um viajante que tenta ajudar Mateus e Catirina no resgate de um boizinho fujão. Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro). Sábado, às 16h. Ingresso: R$ 10 (único). Informações: (81) 3216-1728.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , ,