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Em busca de um novo homem

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, do coletivo A Motosserra Perfumada. Foto: Jennifer Glass

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou, do grupo A Motosserra Perfumada.Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O peso da masculinidade imposta historicamente pode despedaçar os órgãos de um cabra. Diante de tanta pressão, o cara pode perder, junto com o paradigma tradicional de virilidade, seus pedaços pelo caminho. O prejuízo finde a identidade. Extravio ou privação de pernas, fígado, braços, pênis, olhos que foram arrebatados com força (ou astúcia). É de forma radical e poética que o grupo A motosserra perfumada trata dessas questões. O coletivo arrisca uma pesquisa nos limites entre o teatro a e performance. Na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a trupe estreou o primeiro espetáculo. A montagem Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou é um experimento híbrido, à beira da exaustão física e spoken word, essa palavra falada que ganhou força na cultura Hip Hop nos últimos tempos.

Depois da apresentação no Centro Cultural São Paulo, a peça começa nesta semana uma temporada no Subterrâneo Theatro Municipal, espaço underground paulistano e a moçada garante que lá o espetáculo vai proporcionar uma experiência mais radical, com a inserção de conteúdos mais fortes. A produção recomenda que o público use calçados fechados. Os personagens quebram coisas como vidros e tijolos.

Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou tem texto e direção de Biagio Pecorelli, que está no elenco do programa e é autor do livro de poemas Vários Ovários, publicado pela editora independente Edith. A peça é de uma verborragia apaixonante e questionadora dos desejos e explora as contradições dessa crise do masculino.

As performances são exibidas num longo corredor formado por espectadores dos dois lados. No centro, nesse tapete imaginário, os atores atuam. Uma banda, de um dos lados desse corredor toca rock, derrama poesia, fantasias, fragmentos de vidas.

Matheus, um homem despedaçado que persegue o que perdeu na vida, é defendido por vários atores. Ele quer recuperar seus olhos, entre outras partes do corpo, para conseguir chorar. Nesse percurso imaginário ele bate à porta de ex-namoradas, de garotos (de ou sem programa) que encontrou pelo caminho para matar o tédio.

Entre fios de recordações, estilhaços de mágoas, um quebra-cabeças é erigido nessa cidade “onde os fracos não têm vez”. A cena traz as sujeiras de cacos, de restos de consumo, a fragilidade de um homem frente a virilidade solicitada do vale-tudo do capitalismo da selva de pedra. Seus personagens caminham com suas incertezas desafiando os discursos de verdade e de opressão.

Banda de rock participa do espetáculo

Banda de rock participa do espetáculo

Uma mulher com uma preleção fascista encarna em sua fala aspectos retrógados que ameaçam a democracia. Seu discurso se posiciona contra mulheres libertárias, contra o aborto, as relações homoafetivas, as várias etnias, e defende uma arte absolutamente mercantil. Ela parece ter surgido do nada, como as vozes que ecoam pelo país em suas posições atrasadas.

Esse corpo masculino que padece é exposto em suas partes em ganchos de frigoríficos dispostos no cenário. As demandas contemporâneas produzem fragilidades no campo subjetivo. As relações efêmeras, a situação caótica, essa vida fragmentada produz instabilidade em todos. Mas esse masculino abalado em sua identidade viril abre espaço para essa investigação em Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou. Os atributos de coragem e valentia, do super-herói provedor, cede lugar a um mundo de sentimentos na peça, onde a fragilidade permite reflexões sobre guerras e violações, acidentes, condutas e sociais, atitudes sexuais.

O espetáculo reforça que feminilidade e masculinidade são construções culturais que sobrevivem em um determinado contexto. As tensões e conflitos podem gerar o desamparo. Como diz um trecho do texto, essas figuras correm sem cinto de segurança, usam aditivos para dar mais sentido à vida, procuram o amor com poesia, mas sem uma suposta caretice. Depois de tudo isso, alguém pode botar o pé no freio e chamar para a real.

O personagem Matheus é defendido por vários atores

O personagem Matheus é defendido por vários atores

A Motosserra Perfumada é formada por Alex Bartelli (ator e produtor), Biagio Pecorelli (poeta e ator), Camilla Rios (atriz), Felipe Vasconcelos (artista visual e performer), Hugo Cabral (pesquisador, cenógrafo e figurista), Jonnata Doll (ator e músico), Júlio Castilho – “Feiticeiro Julião” (músico) e Paula Micchi (atriz). Em outubro de 2014 o grupo foi contemplado pelo edita “PROAC – Primeiras Obras”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, para a montagem do texto inédito de Biagio Pecorelli.

Espetáculo tem dramaturgia e direção de Biagio Pecorelli

Espetáculo tem dramaturgia e direção de Biagio Pecorelli

ATUALIZAÇÃO:
Infelizmente, a temporada do espetáculo foi cancelada. No último domingo (15), o local onde aconteceriam as apresentações, a passagem subterrânea da Rua Xavier de Toledo, no Anhangabaú, foi invadido por integrantes de um movimento de ocupação intitulado Coletivo Laboratório Compartilhado TM13. De acordo com o grupo A Motosserra Perfumada, que prestou queixa na delegacia, os cadeados do local foram arrombados, os camarins foram revirados, sumiram objetos cênicos, figurinos, dinheiro, além da bebida que estava estocada para ser vendida durante a temporada. O dinheiro da bilheteria e da venda da bebida serviria para manter as apresentações, já que o grupo não teve apoio para temporada.

Confira aqui a carta aberta do grupo A Motosserra Perfumada.

Ficha Técnica
Criação: A Motosserra Perfumada
Dramaturgia e direção: Biagio Pecorelli
Elenco: Alex Bartelli, Biagio Pecorelli, Camilla Rios, Felipe Vasconcellos, Bruno Caetano, Jonnata Doll e Paula Micchi
Banda ao vivo: Jonnata Doll, Feiticeiro Julião, Edson Van Gogh e Augusto Coaracy
Direção de arte e figurinos: Hugo Cabral
Desenho de luz: Marcelo Lazzaratto
Trilha composta: Jonnata Doll e Biagio Pecorelli
Ilustração: Mozart Fernandes
Adaptação e operação de luz: Marcela Katzin
Técnico de som: Bruno de Castro
Fotos de cena: Marcos Lobo
Vídeo de divulgação: Saulo Tomé
Direção de produção: Alex Bartelli
Produção executiva: Leandro Brasilio e Marie Auip (Sofá Amarelo Produção e Arte)
Produção geral: AzAyAh P&C

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Construção de sentidos e verdades

Fidel-Fidel. Conflicto en la prensa, do grupo argentino El Bachín Teatro. Foto: Jennifer Glass

Fidel-Fidel. Conflicto en la prensa, do grupo argentino El Bachín Teatro. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O grupo El Bachín abraça o “fidelismo”. E é desse lugar que a trupe portenha arquiteta os enunciados para discutir a construção da subjetividade, tendo como ponto de ancoragem as articulações da mídia e suas versões de fatos em progressão descolada de veracidade. “Que é a verdade?, disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta”, registrou Sir Francis Bacon em seu Ensaio sobre a Verdade. Séculos depois, Jean Baudrillard (entre outros teóricos), aplica outra voltagem à representação de realidades expostas e embaralhadas pelos meios de comunicação.

No espetáculo Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa o grupo argentino, que participou da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, investiga como o senso comum é erigido, produzido como fator da classe dominante. Então, averigua a relação do jornalismo, ou os mass mídia no sentido mais amplo, com a política, a verdade, o poder, e o simulacro de “giro linguístico”. Mas a peça também sinaliza que corre subterrâneo uma outra peleja cultural, em chave dialética, que busca construir outros sentidos.

A ação de Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959, na redação de um jornal argentino. Naquela noite, entre máquinas de escrever e notícias captadas em ondas curtas, telefonemas sobre questões pessoais e coletivas, cinco indivíduos convivem com a expectativa e a previsão do futuro. O dia irá amanhecer com o triunfo da Revolução Cubana.

As informações a conta-gotas que chegam ao jornal estabelecem uma crise na redação. Esse tal de Fidel Castro é o detonador de uma mudança que ocorrerá no mundo e uma metáfora. Manuel Santos Iñurrieta assina a direção e o texto. O grupo percorre um caminho de ideias não convencionais, argumentos com engajamento ético e militância política, mirando o “vale tudo” pós-moderno.

Os personagens adotam posições divergentes quanto ao que ocorre naquela desconhecida ilha do Caribe e exacerbam suas posições políticas, desde a manutenção do colonialismo às utopias de libertação. É um dia histórico, a noite anterior da tomada de poder, no Palácio de Moncada. O grupo de jornalistas espera com ansiedade por notícias; um deles faz aniversário, uma entra em trabalho de parto, outro busca prever o futuro com sua bola de cristal.

A ação da peça se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959

A ação da peça se passa na véspera do dia 1º de janeiro de 1959

Esse procedimento de adivinhar o amanhã também faz um paralelo com os fenômenos como os “simulacros” – que se tornam mais sedutores ao espectador do que o próprio objeto reproduzido – e uma mutação que conduz o real ao hiper-real. E principalmente a manipulação dos meios de comunicação.

A redação se torna também a toca de resistência peronista. Fidel-Fidel. Conflicto em la prensa exalta o jornalismo “militante” contra o cinismo dos que defendem o simulacro vazio de realidade. Eles advogam o lema “Jornalistas recusam a mentir”. No jogo dramático a obra adota uma postura um pouco extremista. Os personagens proferem a frase “periodista que miente que se quite la vida”. Verdades e mentiras se misturam nos jogos teatrais. A peça cita as figuras Rodolfo Walsh e Jorge Masetti, dois jornalistas argentinos que se envolveram diretamente no espírito revolucionário, fundaram a agência de notícias Prensa Latina e se tornaram referências para seus pares.

O tom farsesco adota a política como algo indissociável da atuação humana. Nos quinze anos de trajetória (2001-2015), o bando sofreu e lutou contra os processos sociais e culturais do pós-neoliberalismo na Argentina. Os atores da El Bachin – Manuel Santos, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón fazem da política a poética do palco, apontando para as contradições do capitalismo.

A companhia trabalha a partir do dramaturgo alemão Berltod Brecht e seu teatro político. E em Fidel Fidel. Conflicto en la prensa hibrida com a pop teatralidade, realismo crítico, o expressionismo, o hiper-realismo, o absurdo, a história e a metateatralidade. Humor e ironia escorrem entre gestos e falas.

Personagens estão na expectativa da Revolução Cubana

Personagens estão na expectativa da Revolução Cubana

Os personagens elaborados a partir da caricatura, do grotesco, dos velhos cômicos, formam seres absurdos, acelerados, que parecem manipuláveis em seus gestos como os bonecos do teatro de mamulengo, figuras atravessadas pela teatralidade máxima. Com suas perucas pretas diferentes de cabelo, seus figurinos de tonalidade cinza, inclusive para o Papai Noel. A iluminação joga com o contraste, com a semiescuridão, promovendo recortes como ocorrem nas edições no jornalismo.

Entre diálogos disparatados, o grupo refaz as dobras da história e utiliza fontes de áudios conhecidos, fotos e gravações e vídeos, traçando ligações também com mundo em que vivemos. Nesses tempos chamados pós-utópico, a El Bachín revê as utopias. Se algumas falharam, como a utopia socialista de gerar sociedades justas e sem classes, parece que o grupo aponta para o que Paulo Freire chamou de utopias minimalistas, aquelas que realizam o “possível viável”.

Ficha técnica
Texto, encenação e direção geral: Manuel Santos Iñurrieta
Elenco: Manuel Santos Iñurrieta, Carolina Guevara, Jerome Garcia, Julieta Grinspan, Marcos Peruyero e Federico Ramón
Música original: Juliet Grinspan e Paul Grinspan
Arranjos e interpretação: Paul Grinspan
Figurino: Agustina Filipini
Perucas: Alejandra Maria Alonzo
Cenografia: Marcos Peruyero – o Bachin teatro
Iluminação: o teatro Bachin
Áudios e vídeos: Jerónimo García
Assistência técnica: Marina Garcia e Diego Maroevic
Fotografia: Nicholas F. Branco
Imprensa: Deborah Lachter

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Humor crítico sobre processo civilizatório

La Expulsion de Los Jesuitas, do grupo Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

La Expulsion de Los Jesuitas, do grupo Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Os efeitos lúdicos inscritos no jogo teatral do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, percorrem, por meio do riso, uma crítica cáustica ao processo civilizatório no Chile – e em paralelo a outros países latino-americanos. O cômico, como sabemos, perturba e atiça reflexões. A galhofa de circunstâncias sinistras consente a crítica e, posteriormente, a ponderação. A companhia Tryo Teatro Banda, do Chile, opera um novo olhar sobre o próprio país e sua história em espetáculos que combinam música ao vivo, atuação, e arte dos menestréis, apelando para o humor com perspectiva satírica em relação a quem ocupa o poder. Uma poética perseguida pelo grupo em suas investigações. Com seus corpos e vozes, os integrantes buscam a expressão extrema, com habilidade nos truques e principalmente na execução de vários instrumentos musicais ao vivo.

Em La expulsión de los Jesuitas, com texto de Francisco Sánchez e Neda Brikic e direção de Andrés del Bosque, a chave bufonesca alcança a escala delirante. Na peça, os religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Chile (1593) para catequisar índios, espanhóis e chilenos e acabar com a Guerra de Arauco. Mas o Rei da Espanha, a quem eles defendiam, expulsa os jesuítas em 1767. A peça é inspirada em várias fontes, inclusive o Tratado de Artes Cênicas (1727) do jesuíta alemão Franz Lang, considerado um verdadeiro tesouro. No elenco estão os atores Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez. Eles se multiplicam em alguns papeis e também tocam vários instrumentos com maestria.

O espetáculo perpassa por uma temática religiosa e explora, com seus personagens alegóricos, a doutrinação. A carnavalização, a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, expõe os conflitos e interesse de vários segmentos que chegaram ao Chile para se aproveitar de suas riquezas. Com a carnavalização na cena, a trupe dá voz ao grotesco e ao obsceno, num tempo que não é trágico, nem épico, nem histórico. E provoca um riso profundamente ambivalente. O sério-cômico carrega a crítica da formação de povo. Os traços dos personagens também estão impregnados da ausência de enobrecimento em suas ações. A comicidade é explorada nos vícios de todos os personagens. A ética cristã é desmontada. Os representantes da Igreja Católica também estão em disputa por poder e a cena em que o jesuíta se arrasta aos pés do rei para exigir exclusividade perante outras congregações é emblemática.

Montagem trata com humor do processo civilizatório

Montagem trata com humor do processo civilizatório

La expulsión de los Jesuitas imprime um tratamento humorístico às questões mais cruciais desse processo colonizador, em tom vivo e alegre. Traz a excentricidade carnavalesca e explora o mundo com um grande teatro em que os personagens, sem psicologia aprofundada, resvalam para a caricatura. Mas esses tipos provocam atinada crítica não apenas dos episódios do passado, mas nas questões do presente, como advertências ferinas sobre o mundo contemporâneo. E conjugam idioma indígenas, com espanhol, e passagens em latim e inglês para promover uma vitalidade de linguagem. Todos são satirizados. Suas tiranias e pequenas desonestidades, a ambição, os desvios e as luxúria. Os desmandos da fé e de outros poderes.

A companhia trabalha de forma alucinante, eletrizante, a equação entre jogo e riso. As figuras da peça remetem ao trickster, herói cômico de mitos indígenas norte-americanos, transgressor que usa de trapaças para abiscoitar seus alvos. A noção trickster aponta atualmente, na antropologia, para uma pluralidade de personagens localizados em várias culturas. Segundo Renato da Silva Queiroz, em O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster[1]: “Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Os personagens da montagem guardam o caráter irreverente, apresentam laços estreitos com o trickster, com seus desvios e o ridículo como dispositivo, que detona o riso crítico. Isso fica mais evidente no papel do Padre, mas se contamina nos outros personagens de forma mais densa ou diluída. Os artifícios do jogo começam pelo texto, ganham forma e força na interpretação do elenco que se vale de truques performáticos, gestuais e mímicas que remetem à licenciosidade como danças vulgares, de aproximações com santos da Igreja Católica. E principalmente porque deixam espaços par o exercício imaginativo do espectador.

[1] QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Tempo Social; Revista Social, USP, São Paulo, Volume 1.

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Um autêntico documento ficcional*

Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador. Foto: Jennifer Glass

Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Atores trabalham com diversas linguagens no espetáculo

Atores trabalham com diversas linguagens no espetáculo

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Ficha Técnica:
Autor: Arístides Vargas
Direção: Arístides Vargas, Maria Del Rosário Francés e Gerson Guerra
Elenco: Maria Del Rosario Francés e Arístides Vargas
Iluminação: Gerson Guerra

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*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Não permitam que a voz de Juana Borrero se perca

La Virgen Triste, da Compañia Galiano 108. Foto: Jennifer Glass

La Virgen Triste, da Compañia Galiano 108. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

A cubana Juana Borrero (1877-1896) foi uma artista precoce. Aos cinco anos começou a pintar de forma autodidata; dois anos mais tarde, iniciou aulas de pintura e escreveu seu primeiro poema. Considerada um dos nomes mais importantes na pintura e na poesia modernista cubana, Juana teve dois envolvimentos amorosos que marcaram profundamente a sua obra. Tanto Julián del Casal (1863-1893) quanto Carlos Pío Uhrbach (1872-1897), esse último considerado o grande amor de Juana, eram poetas. Juana Borrero morreu dois meses antes de completar 19 anos, vítima de uma tuberculose. A acadêmica cubana Susana Montero (1952-2004), que era especialista em estudos de gênero, escreveu que a obra de Juana “comporta uma novidade e uma rebeldia contra os princípios estabelecidos da educação da mulher, que se mostram coerentes com as outras manifestações de modernidade em sua obra: literária, pictórica, ética, filosófica e política, essa última entendida como uma manifestação precoce de suas ideias emancipatórias” (tradução própria).

O espetáculo La Virgen Triste, monólogo apresentado durante a X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, assinado pela Compañia Galiano 108, criada em Cuba, explica logo no início de sua sinopse que não é um texto biográfico sobre Juana Borrero, mas uma peça inspirada em sua poesia. Apesar disso, deixa claro a importância de saber quem é a personagem. As próximas linhas da sinopse são gastas justamente explicando quem foi Juana: “uma menina prodígio e, por direito, uma das figuras mais fascinantes do modernismo americano”. A contradição da sinopse, infelizmente, não se mostra no palco: realmente, a montagem é baseada na obra de Juana, nas suas cartas, nos seus poemas; mas o resultado prático disso é que, quem não conhecia Juana previamente, entra e sai do teatro sem poder falar muito sobre a artista. Parece uma incoerência; mas, de fato, a obra revela pouco da artista e essa é uma das fragilidades do espetáculo.

No palco, a atriz Vivian Acosta tem a responsabilidade de encenar o monólogo – defende a montagem, de acordo com algumas pesquisas rápidas na internet, há duas décadas. Vivian encarna duas personagens: Juana e uma velha – o texto não deixa muito claro se é a própria mãe da poeta ou uma babá, uma dama de companhia. Mesmo que as duas personagens se diferenciem pela voz e pelo corpo de Vivian, ambas são baseadas numa composição exagerada, que beira o caminho da caricatura. É a dor levada ao extremo, em vozes e gestos de figuras fantasmagóricas, de mortalha e rosto branco. Ainda que o texto seja inspirado pela obra de Juana, o que poderia gerar um lirismo em cena, a encenação não conseguiu transmitir poesia, nem sustentar a atenção do público do Centro Cultural São Paulo.
As personagens caem na monotonia do exagero continuado e as palavras de Juana ficam como que pairando, não alcançam efetivamente a plateia. No mesmo sentido, não há um tratamento dramatúrgico que demonstre quem foi Juana, quais eram as suas dores, o que a levou a morte e, mesmo que essas não fossem questões para a direção, que obra é essa, construída por essa “menina prodígio”. O ponto não é ser autobiográfico, mas conseguir estabelecer razões, pertinências, conexões, pertencimentos.

Espetáculo é inspirado na vida e obra de Juana Borrero

Espetáculo é inspirado na vida e obra de Juana Borrero

Pelas poesias e textos escolhidos, Juana é uma menina que sofria de amor, sofria com a perda dos seus amantes, não uma artista efetivamente; nada se vê da mulher que, como aponta o texto de Susana Montero, trazia em sua obra muita rebeldia. Ao contrário, o espetáculo não empodera a voz de Juana, inclusive seguindo uma tendência que parece ser a mesma da literatura, dar muita importância à influência dos amantes na obra de Juana. É sintomático, por exemplo, que o título do espetáculo seja o mesmo de um poema que Julián del Casal escreveu, dizem os estudiosos, inspirado em Juana.

Se a atuação se mostra exagerada e baseada em cacoetes interpretativos, o cenário e a iluminação vão na mesma direção. Muitas velas espalhadas no palco, um candelabro e uma mala com uma foto de Juana e papeis amarelados, esmaecidos pelo tempo, para simular as cartas de Juana. De tempos em tempos, gelo seco; e a construção de uma cena pouco criativa. Logo depois de citar a lua, em determinado momento, lá vem a luz azul; ou quando fala-se em enterro, mais gelo seco e música de sofrimento. O texto segue a mesma trilha… “ouço vozes”, diz em determinado momento a personagem.

Para quem está na plateia, fica a impressão de que a atriz e o diretor, Rogério Tarifa, se agarraram a uma forma ultrapassada de encenação, que pouco consegue estabelecer conexão com o público. Soa falso, forçado, cansativo. Ainda assim, quando conhecemos um pouco mais de Juana Borrero, logo percebemos os motivos que levaram a companhia a se dedicar tanto tempo a essa empreitada. Há muita potência e muito ainda por dizer a partir da obra dessa cubana tão pouco conhecida no Brasil. Fica a expectativa de que a montagem tenha conseguido despertado a curiosidade do público.

Ficha Técnica
Autora: Elizabeth Mena
Direção e encenação: José A. González
Elenco: Vivian Acosta
Figurino: Raúl Martin
Iluminação: Carlos Repilado
Música: Juan A. Leyva
Diretor Técnico: Pedro Balmaseda

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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