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Humor crítico sobre processo civilizatório

La Expulsion de Los Jesuitas, do grupo Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

La Expulsion de Los Jesuitas, do grupo Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Os efeitos lúdicos inscritos no jogo teatral do espetáculo La expulsión de los Jesuitas, percorrem, por meio do riso, uma crítica cáustica ao processo civilizatório no Chile – e em paralelo a outros países latino-americanos. O cômico, como sabemos, perturba e atiça reflexões. A galhofa de circunstâncias sinistras consente a crítica e, posteriormente, a ponderação. A companhia Tryo Teatro Banda, do Chile, opera um novo olhar sobre o próprio país e sua história em espetáculos que combinam música ao vivo, atuação, e arte dos menestréis, apelando para o humor com perspectiva satírica em relação a quem ocupa o poder. Uma poética perseguida pelo grupo em suas investigações. Com seus corpos e vozes, os integrantes buscam a expressão extrema, com habilidade nos truques e principalmente na execução de vários instrumentos musicais ao vivo.

Em La expulsión de los Jesuitas, com texto de Francisco Sánchez e Neda Brikic e direção de Andrés del Bosque, a chave bufonesca alcança a escala delirante. Na peça, os religiosos da Companhia de Jesus chegam ao Chile (1593) para catequisar índios, espanhóis e chilenos e acabar com a Guerra de Arauco. Mas o Rei da Espanha, a quem eles defendiam, expulsa os jesuítas em 1767. A peça é inspirada em várias fontes, inclusive o Tratado de Artes Cênicas (1727) do jesuíta alemão Franz Lang, considerado um verdadeiro tesouro. No elenco estão os atores Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez. Eles se multiplicam em alguns papeis e também tocam vários instrumentos com maestria.

O espetáculo perpassa por uma temática religiosa e explora, com seus personagens alegóricos, a doutrinação. A carnavalização, a partir dos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin, expõe os conflitos e interesse de vários segmentos que chegaram ao Chile para se aproveitar de suas riquezas. Com a carnavalização na cena, a trupe dá voz ao grotesco e ao obsceno, num tempo que não é trágico, nem épico, nem histórico. E provoca um riso profundamente ambivalente. O sério-cômico carrega a crítica da formação de povo. Os traços dos personagens também estão impregnados da ausência de enobrecimento em suas ações. A comicidade é explorada nos vícios de todos os personagens. A ética cristã é desmontada. Os representantes da Igreja Católica também estão em disputa por poder e a cena em que o jesuíta se arrasta aos pés do rei para exigir exclusividade perante outras congregações é emblemática.

Montagem trata com humor do processo civilizatório

Montagem trata com humor do processo civilizatório

La expulsión de los Jesuitas imprime um tratamento humorístico às questões mais cruciais desse processo colonizador, em tom vivo e alegre. Traz a excentricidade carnavalesca e explora o mundo com um grande teatro em que os personagens, sem psicologia aprofundada, resvalam para a caricatura. Mas esses tipos provocam atinada crítica não apenas dos episódios do passado, mas nas questões do presente, como advertências ferinas sobre o mundo contemporâneo. E conjugam idioma indígenas, com espanhol, e passagens em latim e inglês para promover uma vitalidade de linguagem. Todos são satirizados. Suas tiranias e pequenas desonestidades, a ambição, os desvios e as luxúria. Os desmandos da fé e de outros poderes.

A companhia trabalha de forma alucinante, eletrizante, a equação entre jogo e riso. As figuras da peça remetem ao trickster, herói cômico de mitos indígenas norte-americanos, transgressor que usa de trapaças para abiscoitar seus alvos. A noção trickster aponta atualmente, na antropologia, para uma pluralidade de personagens localizados em várias culturas. Segundo Renato da Silva Queiroz, em O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster[1]: “Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por consequência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro.”

Os personagens da montagem guardam o caráter irreverente, apresentam laços estreitos com o trickster, com seus desvios e o ridículo como dispositivo, que detona o riso crítico. Isso fica mais evidente no papel do Padre, mas se contamina nos outros personagens de forma mais densa ou diluída. Os artifícios do jogo começam pelo texto, ganham forma e força na interpretação do elenco que se vale de truques performáticos, gestuais e mímicas que remetem à licenciosidade como danças vulgares, de aproximações com santos da Igreja Católica. E principalmente porque deixam espaços par o exercício imaginativo do espectador.

[1] QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. In: Tempo Social; Revista Social, USP, São Paulo, Volume 1.

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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“Santa” Tryo Teatro Banda: pela glória da ironia

La Expulsión de Los Jesuitas, do grupo chileno Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

La Expulsión de Los Jesuitas, do grupo chileno Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

As escolhas da companhia chilena Tryo Teatro Banda no processo de montagem de La Expulsión de Los Jesuitas, impulsionadas pela competência da direção e do elenco, garantiram como resultado uma peça que consegue estabelecer uma empatia direta com o público. O espetáculo está na programação da X Mostra Latinoamericana de Teatro de Grupo, realizada em São Paulo até o dia 8 de novembro. Decididos a enveredar pela história da Companhia de Jesus no Chile, um capítulo, ao que se consta, pouco contado na história do país, a Tryo Teatro Banda, companhia criada no ano 2000 em Santiago do Chile, optou pelo caminho da bufonaria e da música. O bufão traz em si a comicidade, a paródia, a crítica, a ironia e o sarcasmo, elementos incorporados perfeitamente aos cinco personagens principais desse enredo: um jesuíta, um espanhol, um criolo, um mapuche e uma mulher.

Acontecia a Guerra de Arauco, em 1593, quando os jesuítas chegaram ao Chile na tentativa de ajudar a minimizar os conflitos entre os colonizadores espanhóis, os criolos e os índios. Os criolos sofriam com a dominação dos espanhóis, mas eram os índios que terminavam escravizados pelos europeus. Os jesuítas aprenderam a língua dos mapuches e realmente conseguiram fazer uma mediação que acarretou mudanças efetivas, como o reconhecimento de uma fronteira entre o território do Chile e dos índios. Cada momento dessa intervenção dos jesuítas é contado a partir da veia cômica, histriônica. O corpo desses atores está impregnado pelos gestos largos, caras e bocas, trejeitos e estratégias da técnica do bufão, além do ritmo rápido, quase eletrizante no qual se desenrolam os fatos.

Atores tocam diversos instrumentos em cena

Atores tocam diversos instrumentos em cena

Para completar, como menestréis, uma referência da Idade Média aos trovadores que cantavam e contavam histórias, os atores tocam instrumentos os mais diversos em cena. Há, por exemplo, lira, arpa, flauta, cavaquinho, mas também uma guitarra e um acordeon. Os instrumentos servem ainda como amostra do quanto a montagem mistura referências e consegue com isso realizar uma cena que foge completamente ao esperado, como a cena da “Santa Clorofila”, um ritual de devoção a uma santa vestida com malha de palhaça, que toca e canta em inglês; ou a cena de uma reunião com o rei da Espanha, com personagens que utilizam chapéus de animais e remetem praticamente ao cenário de estábulo.

A montagem dirigida por Andrés del Bosque, com dramaturgia de Francisco Sánchez e Neda Brikic, e tendo no elenco Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez, vai até 1767, quando depois de conspirações e diante de uma crise financeira que havia quebrado a Espanha, o rei decidiu prender e expulsar todos os jesuítas que estavam no Chile, levando-os exilados para a Espanha. A questão é que os jesuítas eram fundamentais para a estabilidade da paz – numa das cenas, por exemplo, o padre consegue mediar o conflito entre o espanhol, que havia trazido de volta a mulher que estava cativa no território indígena e, com ela, outras duas índias -; e o resultado dessa expulsão é somente sugerido ao final da montagem.

Abordando um momento histórico através da comicidade, A Tryo Teatro Banda aproxima o público de um episódio fundamental para a formação da identidade do povo chileno de maneira muito mais fluida e eficaz. Se a montagem não traz uma crítica direta à atuação dos jesuítas, reafirmando muito mais as benfeitorias, a tentativa dos padres de acabar com a escravidão dos mapuches, de estabelecer seus territórios e incentivar a educação, há espaços e lacunas para que o público se pergunte se as coisas aconteceram mesmo daquela forma e quais os outros pontos de vista dessa história. Até que ponto tudo foi em nome da glória de Deus? Essa parece ser também uma das intenções da montagem, que mesmo baseada em documentos e acontecimentos históricos ocorridos entre os anos de 1593 a 1767, consegue ultrapassar limites temporais, colocando possibilidades e levantando faíscas de questões que servem muito bem aos dias de hoje.

Ficha Técnica
Dramaturgia: Francisco Sánchez e Neda Brikic
Direção:Andrés Del Bosque
Assistente de direção: José Araya
Música: Tryo Teatro Banda
Elenco: Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez
Sonoplastia: Julio Gennari
Iluminação: Tomás Urra
Produção: Carolina González

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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