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Auto do salão do automóvel

Cena da montagem pernambucana Auto do salão do automóvel. Fotos: Divulgação

A montagem de Auto do salão do automóvel integra o projeto Transgressão em 3 atos, produzido pela atriz e jornalista Stella Maris Saldanha em parceria com Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra. A ideia do projeto é ótima e foca em três grupos teatrais de Pernambuco e suas encenações. São eles o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Grupo Vivencial (Vivencial Diversiones era o nome da casa de espetáculos, em Olinda, e não o nome da trupe). A primeira peça montada foi Os fuzis da senhora Carrar, de Bertolt Brecht, que foi levada em 2010, como homenagem ao THBF.

A primeira encenação do Auto foi feita pelo TPN, em 1970. A direção seria de Hermilo Borba Filho, mas ele ficou doente e o médico o proibiu de fazer grandes esforços; então a tarefa foi repassada para o jovem diretor José Pimentel. Osman assistiu ao ensaio geral da peça e não gostou do resultado. Isso está registrado em cartas trocadas entre Osman e Hermilo, documentos que a produção teve acesso.

É uma ousadia montar Osman Lins, pela dificuldade que o texto impõe. E a produção merece admiração por isso.

Peça de Osman Lins foi encenada em 1970 pelo TPN

O cenário é o que mais se destaca. Formado por peças de veículos, carcaças de carros, o cenário está distribuído nos vários cantos do palco e isso já determina a encenação. Os atores também ocupam seus lugares em cinco pontos distintos e a partir disso fazem suas movimentações ora no centro ou em outro lugar do palco.

O elenco é formado pelos atores Alexandre Guimarães, Evandro Lira, Roger Bravo, Stella Maris e Zé Ramos, que fazem vários personagens, entre guardas de trånsito, motoristas e outros. A direção é assinada por Kleber Lourenço.  A montagem fez cortes no texto e deu agilidade a alguns fragmentos, com a utilização do diálogo. Mas esse ajuste não se opera a contento no todo da peça. Então é irregular a interferência na dramaturgia osmaniana.

O sempre bom José Ramos dá seu recado, mas permanence numa zona de conforto de tudo que já conquistou como ator. Lógico que é bom vê-lo no palco, pela força e vitalidade de intérprete. Mas poderia ir além. Roger Bravo cresce nos vários papeis que interpreta, levando em consideração o seu trabalho em Os fuzis da Senhora Carrar. A sempre linda em cena Stella Maris continua bela com sua postura cênica. Mas não há muitas variações entre os personagens que interpreta. Um pouco menos daquela postura professoral, assumida principalmente na voz, daria flexibilidade nas várias figuras que ela defende no palco. O quadro Cruzamentos me pareceu com indicações errôneas para que a atriz empreendesse o grande voo da encenação.

Roger Bravo e José Ramos estão no elenco

O texto de Lins é difícil de se instalar no palco. E mais de 40 anos após sua escritura pegar o caminho do trânsito caótico e da mobilidade urbana parece um reducionismo. Também não consigo perceber a força da mão da direção. O elenco como um todo não arrisca, pega o beco mais fácil, inclusive com alguns vícios. Não vejo transgressão na encenação. E chego à conclusão que esse Auto do Salão do automóvel não alcançou a grandeza de Osman Lins.

Stella Maris Saldanha

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Tempo de vida

Aquilo que meu olhar guardou para você, do grupo Magiluth, no Trema! Foto: Cecília Gallindo

“Teatro significa um tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que respiram juntos daquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente a frente”. Essa definição de Hans-Thies Lehmann no prólogo do seu necessário Teatro pós-dramático ficou martelando depois da sessão de Aquilo que meu olhar guardou para você, no festival Trema, ontem à noite. Tempo de vida em comum. Vida que se entrelaça. Vida que pode ser real ou ficção, mas que é verdade, como diz o ator-personagem Pedro Vilela. Vida que emerge não só do palco, mas da plateia.

Geralmente digo isso quando escrevo sobre o Magiluth: como é bom vê-los em cena. Porque eles fazem por completo. São inteiros, se jogam sem rede de proteção. São fieis ao que defendem, não abrem concessões. E assumem as consequências disso.

Nessa montagem, que surgiu a partir de uma troca de fotografias com o grupo Teatro do Concreto, de Brasília, o ponto de partida até poderia ser a memória do lugares pelos quais eles passaram; seja a boate Metrópole ou a Estação Central do metrô do Recife. Essas referências estão lá. Mas são meros detalhes para uma colcha de retalhos; várias cenas curtas que vão compondo um dramaturgia fragmentada, não-linear, que se apoia no episódico e na ação daquele momento.

A dramaturgia é formada por várias cenas curtas

Pode ser um encontro, um desencontro, as partidas, o afeto imediato, a perda, a ilusão de completude, a memória da infância, a música que me traz tanta coisa à mente. Não é novela. Não precisa ter início-meio-fim.

No jogo teatral que se instala no palco e na plateia há cumplicidade. Tudo ali pode ser teatro (ou não, esse é o jogo) – mas é como se ainda houvesse, por parte do público, uma necessária busca pela ficção, por um história a ser contada. E aí nem sempre esses nós se amarram em Aquilo que meu olhar guardou para você. Talvez não fosse necessária a obrigatoriedade de usar o nome dos atores em cena. Pra quê eu preciso saber que aquele personagem é Giordano, Pedro, Erivaldo? Sim, em determinados momentos, quando o jogo se coloca mais declaradamente e eles até trocam de lugar, sim. Mas logo no começo da montagem, já que não é pra ter personagem tradicional, também não preciso de um nome. Seja um nome ficcional ou real.

Também não é sempre que as cenas conseguem convencer. Que o público consegue esquecer do jogo e, numa linha muito tênue, se entregar. Senti isso ontem no abraço entre Pedro Vilela e Giordano Castro; e, mais uma vez, na briga fake no meio do espetáculo. É como se descolasse da dramaturgia. E nesse espetáculo especificamente (senti isso bem menos no mais recente, Viúva, porém honesta, por exemplo) o elenco está em níveis diferentes. Pedro Wagner e Giordano Castro dão um salto na montagem quando estão em primeiro plano. Há ainda no elenco Pedro Vilela, Lucas Torres e Erivaldo Oliveira. A direção é de Luiz Fernando Marques, do grupo XIX.

Talvez o maior mérito da montagem é o que ela consegue fazer com o público. As surpresas que pode causar. A ida ao palco nos faz ver as coisas sob outro ângulo – mesmo que talvez isso pudesse ser melhor resolvido. (É preciso ser convidado a ir ao palco? Ou já estou no palco? Tenho que me predispor a levantar e a aceitar um convite? Ou poderia já estar lá de qualquer maneira? Não tenho nenhuma certeza sobre isso!). Mas ouvir a música predileta, ler uma carta endereçada a alguém da plateia, ter a oportunidade de estar no meio da dramaturgia – tudo isso encanta muito. E ver todo aquele público no Teatro Apolo numa terça-feira para um festival de teatro de grupo é muito, muito bom.

Pedro Vilela

Notes – Já vi Aquilo que meu olhar guardou pra você três vezes. No Hermilo Borba Filho, no Joaquim Cardozo e agora no Apolo. O melhor lugar é definitivamente o Hermilo. O público ganha muito com a proximidade maior com o espetáculo. Ontem a iluminação – que é linda; não funcionou como geralmente funciona. Talvez por problemas técnicos e do teatro mesmo.

Ficha técnica – Aquilo que meu olhar guardou para você

Direção: Grupo Magiluth e Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Atuação: Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Pedro Wagner e Pedro Vilela
Direção de arte: Guilherme Luigi e Thaysa Zooby
Iluminação: Pedro Vilela
Sonoplastia: Grupo Magiluth e Luiz Fernando Marques

Serviço:
Aquilo que meu olhar guardou para você
Trema! Festival de Teatro de Grupo do Recife
Quando: quinta-feira (11), às 21h
Onde: Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)

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Na vertigem do real em 900 frases

Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases. Fotos: Rogério Alves/divulgação

“Certa vez ouvi de Roberto Alvim que ele só faz o teatro que faz porque está em São Paulo. Porque lá tem público para esse tipo de teatro – cabeção, hermético, contemporâneo pra caralho”, lembra o diretor Rodrigo Dourado. Depois de montar em 2009 um fracasso de público e, segundo ele mesmo, de crítica também – o texto Chat, do venezuelano Gustavo Ott -, Rodrigo Dourado decidiu que queria agradar o público pernambucano. Mas sem desagradar a si mesmo. Primeiro, precisava de um espetáculo mais intimista – dois atores, de preferência – para que ele pudesse realmente se debruçar sob o trabalho do intérprete. Foi quando Dourado, que adora cascavilhar textos contemporâneos; tem mais de 200 no computador, descobriu Les drôles (algo como ‘os engraçados’).

O texto é da francesa Elizabeth Mazev e é autobiográfico; conta a história dela, que é atriz e dramaturga, e de Olivier Py, também ator, dramaturgo e diretor. Os dois cresceram juntos, viveram as mais diversas experiências, se apaixonaram pelo teatro na mesma época. A escrita, no entanto, não é tradicional. Ou ao menos não era na época em que o texto foi escrito – quando o Twitter e os seus 140 caracteres ainda não faziam parte da nossa vida. A história não tem personagens tradicionais. São frases narrativas, na terceira pessoa; como um diário. Tanto é que Rodrigo enfatiza que poderia ter montado com vários atores.

Quando foi fazer a tradução, o diretor se deparou com um desafio que marcou os rumos que tomaram a encenação: havia muitas referências à França dos anos 1970 e 80. Nomes de programas de tv, por exemplo. Foi aí que a memória – que já estava no espetáculo, claro, porque o texto é autobiográfico – e a mistura entre realidade e ficção se espalharam de forma irrevogável.

É assim que quem for conferir o espetáculo vai conhecer não só a história de Olivier e Lili; mas também a de Leidson Ferraz e Fátima Pontes. É o que Rodrigo chama de “vertigem do real e do ficcional”. Para problematizar – não sei se essa seria a melhor palavra, já que o espetáculo é leve – ainda mais, o diretor decidiu colocar em cena, através do vídeo, Olivier e Lili, ‘os verdadeiros’. Foi um processo de amadurecimento para os atores; de esquadrinhar as próprias histórias. Para Leidson uma mudança marcante: pintou os cabelos e perdeu a barba. Já Fátima, terá em cena, por exemplo, objetos do pai falecido – e a história de quando o perdeu.

O que era Les drôles virou Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases (no original, na realidade, são mil frases). Leidson Ferraz aposta que a montagem Olivier e Lili vai abocanhar não só o público mais velho, de teatro, que já tem referências do trabalho do trio, mas também um público jovem. É pop, divertido, engraçado – ele faz a propaganda. Sem deixar de lado, claro, a pegada contemporânea e performática que Rodrigo Dourado tanto gosta. Tem tudo pra dar certo.

Espetáculo traz memória, ficção e realidade

Ficha técnica:
Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases
Texto: Elizabeth Mazev
Direção e tradução: Rodrigo Dourado
Dramaturgismo: Wellington Júnior
Preparação de elenco: Marianne Consentino
Videomaker: Márcio Andrade
Iluminação: Játhyles Miranda
Direção musical: Marcelo Sena
Preparação vocal/corpo: Carlos Ferrera
Maquiagem: Gera Cyber
Direção de arte: Júlia Fontes

Serviço:
Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases
Quando: estreia quinta-feira (30). Temporada: de quinta-feira a domingo, às 20h, até 9 de setembro. Depois a temporada dá um intervalo e retoma no dia 26 de setembro, ficando em cartaz de quarta a sexta-feira, às 20h, até 12 de outubro.
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Avenida Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife)
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
Informações: (81) 3222-0025

Rodrigo Dourado e os atores de Olivier e Lili

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Ói Nóis Aqui Traveiz ficou para a próxima…

Ivonete Melo falando na coletiva de imprensa do anúncio da programação. Foto: Val Lima/Divulgação

“Porque a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz não veio ao festival?” Essa foi a minha primeira pergunta ontem, na coletiva de imprensa do anúncio da programação do Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Hermilo Borba Filho. Nós vimos o novo espetáculo do grupo, Viúvas – performance sobre a ausência, no festival Porto Alegre em Cena. E ficamos felizes em saber que o grupo provavelmente voltaria ao Recife para apresentar a montagem em Peixinhos, que foi onde esse projeto começou a ser idealizado. Lá em Porto Alegre, a encenação era numa ilha.

Viúvas - Performance sobre a ausência começou a ser idealizado no Recife

Postei uma foto de Viúvas e uma legenda dizendo que o espetáculo não vinha por conta de agenda. Mas o curador do festival Valmir Santos fez um comentário no post dizendo que “é improcedente a informação de que a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz não vem ‘por conta de agenda’. Foram nove meses de articulação junto a esses artistas. Eles sempre tiveram empenhados para que Recife recebesse a residência com oficina em seis regiões mais as sessões, numa delas, de Viúvas – Performance sobre a Ausência. Infelizmente, o Festival não teve condições de acolher o projeto como idealizado”. Valmir ainda está em São Paulo e, portanto, não participou da coletiva de imprensa.

Então resolvi transcrever exatamente o que foi dito pelo coordenador do festival Vavá Schön-Paulino – para esclarecer (ou suscitar mais dúvidas):

“Infelizmente, o Viúvas não vem. É uma dor, mas são os problemas da produção e da tentativa de harmonização de um festival que tem tempo definido e com as agendas dos grupos. Nesse sentindo, da nossa tabela original, nós perdemos dois grupos: o Ói Nóis Aqui Traveiz que viria com Viúvas e com uma oficina que seria voltada para a descentralização, para as RPA’s e também perdemos o Teatro Máquina, do Ceará. O Teatro Máquina perdemos assim de última hora, há uma semana. E Valmir teve que correr para substituir, foi quando entrou o Olodum. Então, o Ói Nóis Aqui Traveiz não pode vir por conta de problemas da agenda deles com as nossas datas e também ficou muito imprensado, porque também haveria uma demanda muito grande para a produção da oficina e eles assumiram também um compromisso lá com o estado do Rio Grande do Sul. Apareceu para eles uma atividade para ser feita no interior, o que impossibilitava eles estarem aqui. Porque para fazer o Viúvas e a oficina eles tinham que chegar aqui em Recife 15 dias antes do festival começar, no início de novembro e só ir embora depois. Então não dava para cobrir esses compromissos que apareceram lá no Rio Grande do Sul. Para quem não sabe, o Ói Nóis tem mais de 30 anos de vida. É um grupo de teatro que tem um compromisso político, eu diria mesmo, usando o jargão da história do teatro, eles fazem um teatro engajado, um teatro político e eles ainda hoje lutam muito no Rio Grande do Sul, tanto na capital Porto Alegre quanto no estado. Então era super importante para eles fazerem isso e aí isso impossibilitou a presença deles aqui, infelizmente. Porque o Viúvas é uma coisa linda, lá eles fazem numa ilha e aqui seria no Nascedouro, aproveitando as ruínas”.

Espetáculo Viúvas foi apresentado em Porto Alegre numa ilha que serviu como cadeia

Ah….faltam apenas cinco dias para o festival começar e o site http://www.frtn.com.br/ainda está com a programação do ano passado. Como o festival pretende agregar mais público, se comunicar, se uma ferramenta tão importante não tem a merecida atenção? Parece que esse ano a avaliação do festival começou um pouco mais cedo….

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Essa febre contagia

Ceronha Pontes e Hermila Guedes. Fotos: Ivana Moura

À primeira vista, o que liga os quadros de Essa febre que não passa são as tensões de mulheres em acertos de contas com o passado, com o presente e com o futuro. Criaturas em situações-limite, transbordando de afetos.

É a quarta montagem do Coletivo Angu de Teatro, depois de Angu de sangue, texto de Marcelino Freire; Ópera, texto de Newton Moreno e Rasif – Mar que arrebenta, também texto de Freire. Desta vez cena é ocupada só por mulheres.

As atrizes Ceronha Pontes, Hermila Guedes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim e Nínive Caldas se desdobram em criaturas inventadas pela jornalista e escritora Luce Pereira.

O resultado é tocante, ora suave, ora irônico, ora cortante. Sempre belo.

Dos 17 contos que compõem o livro homônimo, o Coletivo escolheu cinco para encenar: Clóvis, Nomes, Talvez já fosse tarde, Um tango com Frida Kahlo e Dora descompassada. Entre eles como uma liga orgânica, as passagens com breves depoimentos criados pelas próprias atrizes, sobre suas vidas pessoais: a relação com a irmã, com a velhice, com o mundo.

Essa febre que não passa tem uma comunicação fácil e contagiante. Tira o prosaico do cotidiano e nos fala de coisas muito caras que podem atingir a qualquer um, como dores de amores e separações. Os recalques voltam furiosos ou apaziguados com o tempo, mas não com o esquecimento. As feridas reabertas fazem tremer o corpo visível e o invisível também.

A montagem do Angu insiste em algumas características investigativas do coletivo, com o ator-narrador. Mas traz algumas variações, tem uma tonalidade mais feminina, às vezes mais frágil noutras de uma fortaleza insondável.

Os contos de Luce Pereira já expõem os nervos das personagens. E cativam na sua aparente simplicidade para falar do fim de relacionamento entre duas mulheres (e que poderiam ser quaisquer dois), com sua curva que vai da empolgação pelo desejo do duradouro no início à desatenção com as pequenas coisas, tempos depois. Clóvis como promessa de felicidade salienta na chegada sinais de desgaste da relação.

Noutro, a personagem se debate contra seu próprio nome, como se fosse um ferro de marcar gado, condenatório. Nomes para ela definem tudo. E essa figura com manias de grandeza adora os bonitos. Com criativas frases de efeito, um humor irônico e uma pontinha de crítica social, a autora vai alinhavando a vida dos vizinhos, do prédio, do bairro.

Mayra Waquim na cena Nomes

Dívidas de afeto com uma tia pouco afeita a carinhos são contabilizadas no conto Talvez já fosse tarde. É o mais duro, mais triste, mais cortante dos textos escolhidos para a montagem. E vai crescendo numa onda em que autocondenação é confessada pelo bem que deixamos de fazer aos nossos queridos. Como a negação de um beijo, abraço ou coisa parecida.

Marcia Cruz e Hilda Torres no quadro Talvez já fosse tarde

Um café com a irmã e a explosão de memórias, do desejo de crescer que não passou quando acabou a adolescência. As reminiscências compartilhadas com a mana que nunca a entendeu perfeitamente. E entre incompreensões de uma e as revelações da outra a vontade de partir. “Queria ter a alma de Frida Khalo, expulsar cores, escancarar porões, viver todas as minhas heresias sem culpa, não fazer maldades com rapazes e misses”. Elas riem por um momento cúmplices com histórias de crueldade. A ironia fina se instala.

Ceronha Pontes e Mayra Waquim em Um tango com Frida Kahlo

No conto que fecha o espetáculo, Dora descompassada, o desespero, a dor, o desânimo, são maiores que a vontade de prosseguir o caminho sozinha. Quando descobriu que eles -enquanto casal – já não se pertenciam, ela faz um balanço da relação e não suporta a perspectiva de futuro. Desistir de tudo no fim de ano traz uma carga dramática para abrir as feridas não cicatrizadas do público.

Enfim, um punhado de contos que percorrem estados de espírito. Pode predominar uma melancolia, mas todos inquietam e fazem pulsar vida em suas múltiplas possibilidades. De que é possível seguir em frente, de superação, de renúncia.

Esse material textual foi respeitado e valorizado na cena dirigida por André Brasileiro e Marcondes Lima. Os outros três espetáculos do grupo, dirigidos por Marcondes, são mais masculinos. Essa febre tem um tônus mais feminino.

Além das atrizes Ceronha Pontes, Hermila Guedes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim e Nínive Caldas, está em cena a violoncelista Josi Guimarães, que integra a cena e faz de seu instrumento, seu amado.

Cortinas compõem o cenário, representando camadas, ora revelando, ora escondendo, ora abrindo em fendas para essas mulheres contarem suas histórias.

Feito ninfas elas aparecem despindo-se ou recompondo-se para anunciar as personagens que estão por vir.

Ceronha Pontes, Hermila Guedes protagonizam o casal de Clóvis, o gato. Duas fortes atrizes explorando a cumplicidade de amor, seus recônditos insondáveis, num arco que vai da alegria, da euforia do encontro ao à tristeza da separação. Feito um bailado esse percurso é desenhado com beleza, num jogo lúdico de amorosidades que vão se diluindo. O treinamento no chamado método Viewpoints, ministrado pela paulista Amanda Lira como certeza deu sustentação para o trabalho físico.

Quadro Clovis questiona como manter acesa a chama da paixão

Nesse quadro, a promessa de felicidade já desmoronou quando o bichano é convidado a entrar. A representação do gato é bem resolvida. Hilda Torres faz o primeiro gato, o do pesadelo. E Nínive Caldas faz Clóvis lindamente, dengoso, esperto, cúmplice, mas acima de tudo felino.

Mayra Waquim faz a artista plástica que errou no nome desde o nascimento e prossegue nas suas escolhas erradas e na inveja por nomes bonitos. Na frente da televisão fazendo ginástica, ou pintando seus quadros que não vendem mais nem na feirinha, ela desfia suas mágoas, pela imensa falta de sorte desde o batismo. E sua ojeriza por coisa de gente pobre, ela mesma instalada no prédio decadente. Ela mostra domínio dessa personagem com sutilezas de detalhes. Como fazem todas as atrizes em algum momento do espetáculo.

Mayra Waquim no papel da artista plástica

Marcia Cruz incorpora não apenas uma velha, mas toda a velhice do mundo, de quem foi perdendo tudo e agora vive agregada na família da irmã. Hilda Torres faz a sobrinha que narra a história de Bernarda e de sua inabilidade com os afagos. Ela só consegue traduzir os gestos amorosos nas lembranças de datas e em qualquer mimo para os sobrinhos e sobrinhos-netos e quem mais vier. Talvez já fosse tarde dá um nó na garganta em sua poesia delicada para expor caminhos de negações, de economias de afeto, de interdições de amor.

Márcia Cruz, como Bernarda, ao fundo, e Hilda Torres

Em Um tango com Frida Kahlo Ceronha Pontes volta à cena para se digladiar com Mayra Waquim, esta no papel de Sofia. “Mas como é que pode, dois pares de olhos nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, olhar na mesma direção e ver coisas tão diferentes?”, pergunta a atriz-narradora. Nas reminiscências, quase uma vida inteira, entre crueldades com rapazes e misses e a incompreensão da irmã.

O encontro pulsa de vida, transbordante desde o primeiro cigarro aos 14 anos, do conselho do professor Otaviano Cruz para que partisse quando a asa botasse a última pena. A narradora fala. Sofia ouve sem dizer palavras. O tom muda de acordo com as lembranças. E elas dançam belamente um tango.

Acerto de contas entre irmãs

Uma dor de amor pode ser fatal. Dora descompassada anuncia isso tristemente. Hermila Guedes faz essa mulher desesperada que ainda brinca de aparências de fortaleza e dignidade. O homem que se foi é representado por um par de sapatos. As outras atrizes compõem a cena. Uma banheira branca é instalada no meio do palco e define um quadro belíssimo de Dora na banheira tentando afogar as dores.

Hermila Guedes, em primeiro plano, interpreta Dora descompassada

A direção foi muito feliz ao criar pequenos monólogos de passagem com depoimentos das atrizes sobre algo que tenha a ver com um dos contos. A montagem também forjou uma ligação entre personagens, mudando nomes, e fazendo referências a outras histórias.

A trilha sonora e direção musical são de Henrique Macedo que ajudar a expandir ou comprimir os tempos e dar as atmosferas dos contos.

Como nos espetáculos anteriores, as projeções são grandes aliadas da montagem, estabelecendo fortes ligações com o cinema e a memória. Essa memória é salientada por fotos “reais” das atrizes e de outras pessoas da equipe de momentos importantes de suas vidas. Esse trabalho está associado a luz que salienta as camadas dessas histórias e dessas mulheres.
Os figurinos trazem uma tonalidade pastel que às vezes incomoda nesse apagamento que dá as personagens.

No fundo Essa febre que não passa é um espetáculo sobre o amor, o amor idealizado que não tem correspondência na vida e precisa da morte, desse perigoso, frágil e obscuro sentimento que nos move ou imobiliza.

A encenação é toda feita de cuidados e detalhes que o espectador vai descobrindo aos poucos. E encantando-se cada vez mais.

Parabéns a todos os envolvidos com essa febre. Muito boa a estreia na direção de André Brasileiro, com seu olhar que capta as belezas e num transbordamento ou numa repetição desesperadora como faz Dora ao ouvir ad infinitum My way como Frank Sinatra.

O elenco afinado, talentoso e competente fertiliza a cena com emoção.

Espetáculo fica em cartaz aos sábados e domingos


Serviço:
Essa febre que não passa, do Coletivo Angu de Teatro
Quando: temporada aos sábados, às 21h e domingos, às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)

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