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A cidade é um corpo marginal , repleto de poesia
Crítica de Miró: Estudo nº 2

Estudo N°2 – Miró. Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Foto: Ivana Moura

O Grupo Magiluth, um dos mais atuantes do Brasil, está celebrando 20 anos de trajetória e, por isso, tem apresentado nos últimos meses algumas das peças de seu repertório no Recife. A trupe tem se notabilizado pelas experimentações e busca de uma linguagem que pulse as inquietações destes tempos. Em seus dois últimos trabalhos, Estudo N°1 – Morte e Vida e Estudo N°2 – Miró, enfatiza a importância de “concretizar” na cena o estudo da prática teatral, expandindo sua linguagem singular que combina jogo cênico e crítica social, ironia e humor, pesquisa e performance. Na peça-palestra Miró – Estudo N°2, a trupe investiga a tênue e complexa fronteira entre inteprerte e personagem.

Uma cena exemplifica a transformação de um coadjuvante em protagonista: durante uma abordagem policial violenta, três jovens da periferia são interpelados, e um deles é agredido com um tapa no rosto por um dos policiais. Esse ato de violência faz com que o jovem se torne o protagonista da cena. E o que dizer disso tudo? O Magiluth dá um curto-circuito para de uma apatia social e apontar para o público, que assiste passivamente, sem esboçar reação.

Miró: Estudo N°2 é o 12º trabalho desse grupo e estreou em abril de 2023, no Itaú Cultural, em São Paulo. Mais do que uma biografia cênica, o espetáculo é uma experiência sensorial e poética que nos convida a perceber a cidade como um corpo vivo, feito de carne e concreto, sonhos e escombros. 

Miró da Muribeca, nome artístico de João Flávio Cordeiro da Silva (1960-2022), foi um poeta marginal do Recife, que fez das ruas da cidade seu palco, vendendo seus livros nas pontes e praças, declamando versos que falavam da realidade dura da periferia. Sua poesia, inicialmente lírica, ganhou contornos políticos ao denunciar a violência, o preconceito e a desigualdade que marcam a vida dos pobres e negros nas grandes cidades brasileiras.

No palco, os atores Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera investigam o processo de criação de um personagem teatral, se revezam nos papéis de protagonista, antagonista, coadjuvante e figurante, numa estrutura que questiona as possíveis hierarquias do teatro e a relação entre arte, cidade e resistência, desestabilizando esses papéis com o protagonismo de um poeta que deu voz aos invisibilizados.

A encenação explora a linguagem híbrida que tem sido uma das marcas do Magiluth, conectando teatro, performance, música, vídeo e poesia. Essa pesquisa de linguagem do grupo é muito importante, e quem acompanha a trajetória dessa trupe percebe as tentativas de ampliar e aprofundar a linguagem própria do grupo. As cenas se sucedem num fluxo fragmentado, como lampejos de memória, evocando a trajetória de Miró e a história do Recife, com a cidade como personagem, revelando suas contradições e encruzilhadas.

Erivaldo Oliveira assume o papel de Miró, buscando uma comunhão com a essência inquieta e a criatividade febril do poeta, sem apagar o Erivaldo. Em cena, Miró ganha potência para denunciar a especulação imobiliária que destruiu o conjunto habitacional da Muribeca, onde viveu, para celebrar a palavra e para rir e chorar diante das grandezas e mazelas da vida na periferia.

O espetáculo nos provoca a repensar as relações entre centro e periferia, entre a cidade oficial dos cartões-postais e a cidade real dos becos e favelas. Miró é a encarnação poética dessa cidade à margem, ou dessa porção da urbe, feita de carne e sonho, que resiste e se reinventa a cada dia. Sua poesia é indissociável de que ele foi – poeta, negro, periférico, das ruas onde viveu e amou, das pontes onde declamou seus versos.

Giordano Castro. Foto: João Maria Silva Jr/ Divulgação

Com Miró, o Magiluth celebra a força da poesia como arma de combate num mundo cada vez mais prosaico e desencantado. 

A encenação fragmentada articula realidade e ficção, biografia e poesia. As rupturas e repetições na linguagem cênica podem ser lidas como metáforas dos ciclos de violência e resistência que marcam a experiência de quem vive à margem. Grita a dimensão política do espaço urbano e a necessidade de reinventá-lo a partir do periférico. 

Nesse sentido, a destruição do conjunto habitacional da Muribeca, onde Miró viveu, surge como símbolo dos processos de exclusão e apagamento que caracterizam o desenvolvimento urbano no Brasil. A especulação imobiliária aparece como força antagonista, que expulsa os pobres para os abismos da cidade e da cidadania, conectando-se com lutas históricas pelo direito à moradia e à cidade.

Conhecido por incorporar referências e citações de seus trabalhos anteriores em suas novas montagens, esse procedimento do Magiluth sugere uma compreensão do fazer teatral como um processo contínuo e interconectado, onde cada obra não é apenas uma resposta às questões e inquietações do mundo atual, mas também estabelece um diálogo com a própria trajetória artística do grupo. Ao revisitar e ressignificar elementos de suas obras passadas, o Magiluth cria uma narrativa metateatral,.

Na apresentação no Teatro do Parque, ontem, 20 de maio, durante o Festival Palco Giratório, no Recife, algumas falas dos atores foram perdidas, – seja por terem sido pronunciadas em volume baixo, sem projeção, ou por terem sido sobrepostas por músicas ou sons, ou por existir um problema de acústica no teatro -, o que dificultou o entendimento de algumas passagens. Como a poesia de Miró é um elemento central do espetáculo e deve ser ouvida pelo público, é importante que o grupo fique atento a essas questões pontuais para garantir a melhor experiência possível para a plateia.

Ficha Técnica:
Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

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Olé, olé, olá, Severino, Severino
Critica do espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida,
do Grupo Magiluth

Estudo-N°1- Morte e Vida. Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Estudo-N°1- Morte e Vida. Mário Sergio e Parmera, Erivaldo no chão. Fotos: Vitor Pessoa  / Divulgação

A montagem do Grupo Magiluth, com direção de Luiz Fernando Marques, o Lubi, explora muitas camadas. 

Giordano Castro, em primeiro plano na peça-palestra

Busco dialogar com o Estudo Nº1: Morte e Vida, espetáculo do pernambucano Grupo Magiluth. Esse desejo de interlocução traça um movimento contrário ao predomínio de intolerância, condenações e cancelamentos desses tempos. Minha vontade é sintonizar com as possibilidades de trocas, perseguindo delicadezas e ludicidade, mesmo para tratar de concretos de durezas, de barbarismos. Esperançando ampliar o círculo. Esse texto que me atravessa, é passado pelo rio Capibaribe, imagino que por outros rios: Tietê, Sena, Tejo, até o Riacho do Ipiranga (onde, conta a História oficial, foi gritada a independência do Brasil) e carrega muito da hidrografia soterrada. É um ensaio ansioso, repleto de incômodos, como o que sinto há semanas no braço direito de tendinite e outras dores de viver mais difíceis de traduzir.

O Grupo Magiluth – com seus atores Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral, Lucas Torres e Pedro Wagner – é uma trupe de homens, rapazes, meninos que fazem arte, que performam, que jogam cenicamente, posicionados (e movendo-se) de lugares para problematizar as masculinidades, o patriarcado, as questões estruturais que escamam de seus corpos, descontruindo. Observo esse universo, não o capto em sua plenitude movente, não só por ser mulher, mas por toda experiência interseccional de identidade. Somos subjetividades não totalmente decifráveis. E a arte faz um mergulho em águas profundas, oferece e desfaz os sentidos em sequência, em paralelo ou de maneira aleatória.

Os artistas do Magiluth, seu diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi, e o assistente de direção e diretor musical Rodrigo Mercadante, essa turma toda cria, de modo arbitrário, os recursos expressivos a partir da peça-poema Morte e Vida Severina – Um Auto de Natal, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) para compor um caleidoscópio das ruínas contemporâneas.

A palavra arbitrariedade vem determinada para falar de escolhas que não seguem réguas, testa outras possibilidades. Tem a ver com impacto da sonoridade da língua no corpo, na caixa preta, nas distorções de vozes da tecnologia digital. Convoca materialidade e seu oposto. Saussure sussurrando. Imagem acústica, representação da palavra. A partir das pontes do Recife desafia regras para desestabilizar certezas – de ideias, de soberanias, das cenas.

Percebo o trabalho do Magiluth erguido feito um ensaio como estimou o filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão Theodor W. Adorno: um jogo aberto de linhas temáticas que se cruzam a partir da ideia de migração, que expõe tensões e contradições do real. Tudo isso encarado de frente, sem o impulso de sublimação. Perguntas e provocações são expostas, num caldeirão que ferve naquele território.

E agora me vem fortemente a imagem da intensa Elis Regina (1945 – 1982), uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, cantando Aprendendo a jogar, uma música de Guilherme Arantes. [Dig dig dig dig dig dagá ah ah Dig dig dig dig dig dagá ah ah (…) Vivendo e aprendendo a jogar … / Nem sempre ganhando / Nem sempre perdendo / Mas, aprendendo a jogar (…) Água mole em pedra dura / Mais vale que dois voando (…)]. No show Saudade do Brasil, de 1980, Elis usava uma camiseta preta, com a imagem da bandeira do Brasil ao centro, escrito “Elis Regina”, no lugar de “ordem e progresso”. Como acontece com frequência nos regimes autoritários, a Ditadura Militar proibiu a intérprete de usar o figurino, numa demonstração feérica de Censura. Eita danou-se. Estou fazendo a minha dramaturgia. Tem vídeo na internet da cantora, que morreu há 40 anos num 19 de janeiro.

Parmera em primeiro plano e Má´rio Sergio ao fundo

Ao se arriscar, Estudo Nº1: Morte e Vida rejeita as formas bem-acabadas, dá um passo além em alguma direção, mas reaproveita antropofagicamente outros processos / estratégias de montagens anteriores da trupe e os atritos do real. O contato com o objeto disparador – a peça-poema de João Cabral – ganha diversas tessituras, amarrações, entradas, desenvolvendo uma rede que aponta para outras ressonâncias, ampliando alcances da obra cabralina.

Dito de outro jeito, a peça é uma transpiração de vitalidade cênica de artistas que sobreviveram / sobrevivem “agarrados a caixas de isopor” neste país afundado em tantas desgraças. É grito por dignidade, que segue de mãos dadas com poemas de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina e outros como O Rio (ou Relação da Viagem que faz o Capibaribe de Sua Nascente À Cidade do Recife) e O Cão Sem Plumas. É forte nos nexos com o real – de que somos muitos Severinos –, da uberização dos trabalhadores às consequências palpáveis do Antropoceno, essas ações destrutivas cometidas contra o planeta Terra.

O abraço com João Cabral é fato e ficção. Está no tom crítico nos vínculos aos problemas sociais, no mergulho no contexto humano e geográfico do Nordeste brasileiro, que espelha em estilhaços outros nordestes do mundo. As palavras que ressaltam o cotidiano de quem se vira com o mínimo compõem quadros inspirados e inspiradores. O inabalável trabalho artesanal cabralino é destacado pelo Magiluth em idas e vindas de significâncias. A abdicação do sentimentalismo lírico é valorizada pelo grupo.

A experiência de assistir ao espetáculo está plena de pequenos abalos sísmicos e da constatação no que se transformou o humano, do alto de sua arrogância. E vem numa construção de imagens de intensa plasticidade, sejam elas para os olhos, ouvidos ou outros sentidos.

Foto: Vitor Pessoa  / Divulgação

Publicado em 1955, Morte e Vida Severina é um poema de gênero lírico que traça o percurso de Severino, um migrante nordestino que sai do Serra da Costela, (local fictício, mas com características idênticas ao sertão pernambucano) em busca de uma vida menos “Severina” no Recife capital. Na seca região “magra e ossuda” onde a personagem morava, morre-se de “morte Severina”: “que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte; de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)”.

Sabemos que migrações existem desde sempre. Nas melhores hipóteses, por curiosidade, pela aventura, pela descoberta. Há outras, não tão prazenteiras. Situações de seca ou alterações climáticas graves e ausência de políticas públicas de enfrentamento dessas situações, a exclusão social e a falta de condições para a sobrevivência. As migrações, que são também movimentos, revelam múltiplas “geometrias do poder”. A montagem do Magiluth obliqua que as mobilidades dos sujeitos contemporâneos são desiguais e faz cintilar palavras como injustiça, miséria, fome, política, violência, fronteiras materiais e simbólicas, poder, uberização.

Pensado em fragmentos, que reflete de maneira multifacetada um painel de forma espiralar (salve Leda Maria Martins),– do cruzamento de ciclos do passado, presente e futuro – esse Ensaio nº 1 desmantela a obviedade do que se pode se entender como Severino, Morte e Vida, Nordeste, nordestino, artista nordestino, João Cabral de Melo Neto. De novo o farol de Adorno: para o filósofo o ensaio se situa na fronteira entre a filosofia e a arte. Rigor e representação não-idêntica, revelando na porosidade as contradições.

Em estudo publicado em 1950, que pensava a pintura de Joan Miró, João Cabral já disse que desaprender é fundamental, sair do automatismo da tradição. Quebrar com procedimentos e hierarquias de valor na arte e na vida. Desaprendo frente à cena do Magiluth.

No campo do poema, João Cabral traça uma constelação de elementos heterogêneos. Ao estudar a obra do poeta pernambucano, o filósofo Benedito Nunes detecta que nesta máquina do mundo, que é o poema, Melo Neto trabalha à maneira de um tear que tece num sentido e destece noutro os fios de diversas tramas complicadas. Em O dorso do tigre (1969) Nunes aponta que Cabral fabrica e destrói, agrega e desagrega, mediante operações diferentes, as várias peças da realidade social e humana. Enxergo essas ações cabralinas no palco.

Acompanhemos o curso do rio, o discurso-rio do Marigluth.

Os microfones, as projeções, o Magiluth joga com a ideia de peça-palestra

A bandeira de Kiribati e as mãos levantadas num pedido de socorro em referência a outro espetáculo do grupo

Na peça são explorados quatro marcos estilísticos: Metateatro, Épico, Documental e pós-contemporâneo, em acúmulos e partículas. Nessa dança estética, a correnteza traz memória de outras obras magiluthianas: Viúva, porém honesta; O ano que sonhamos perigosamente; Dinamarca; Aquilo que meu olhar guardou para você; 1 Torto. São muitas camadas, numa polifonia que aponta para dentro, como a cena do modo de viver hygge (um bem-estar tão acolhedor dos privilegiados) ou o foco de luz, uma reivindicação de Mário Sergio em outra encenação que agora chega tranquilo.

A polifonia aponta para Kiribati (ou Quiribati), na real um arquipélago no Pacífico Central, com quase 120.000 habitantes. Assinala também os Severinos-Thiagos, Severinos-Galos, Severinas-Pretas. Dos rios que correm dentro de cada um de nós. De Kiribati, já em 1989, um relatório da ONU alertou, que esse seria o primeiro país a ser devorado, em decorrência da elevação do nível dos mares, ou seja pela mudança climática. Existem outras correspondências com o Severino saído da seca, como a escassez de água potável.

Um humor carregado da gozação pernambucana (irônico, sagaz, malicioso, diria autoimune, cruel, que manga inclusive de nossa impotência; talvez Roger de Renor possa traduzir melhor essa especificidade de humor), abarca o palco, em fluxos, mirando efeitos variados: gerar reflexões e críticas sociais, produzir jogos num cruzamento dos procedimentos cênicos das peças contemporâneas, desafiar qualquer método absolutista.

Quando navega nas águas épicas traça um paralelo ente a palavra fome como necessidade de comer e o estado de morrer de fome, defendido como um assassinato. O tom mais político lembra da montagem de Morte e Vida Severina, pelo TUCA, em 1965, que ganhou prêmio no festival de Nancy, na França. Esquadrinha que os privilégios de hoje são consequência da usurpação de antes.

Punk rock, hardcore, sabe onde é que faz?
Lá no alto José do Pinho. É do caralho!
Tem Devotos, 3° Mundo que botam pra fuder
Todo sentimento obtido em seu viver…

Quando chegar ao Recife essa cena deve explodir. O cenário é… Em 1988, Cannibal, Neilton e Celo Brown, formaram a banda de punk rock e hard-core Devotos do Ódio (tempos depois o ódio do nome foi suprimido), no Alto José do Pinho, bairro da zona norte do Recife. A atuação do grupo foi fundamental para a mudança do perfil do morro. Com a assinatura de contrato com a Gravadora BMG, e o lançamento do disco Agora tá valendo, de 1997, a banda chega ao sucesso. Mais de 20 anos depois, o Grupo Magiluth constata que os direitos e lucros desse disco estão reservados à gravadora Sony Music, que em 2004 comprou a BMG. O Magiluth assinala: “Nem tudo o que o trabalhador produz a ele pertence.”

É tudo muito engenhoso. A trupe convoca Marx, sem citar o Karl, expõe os paradoxos e contradições do capitalismo com os jogos do próprio teatro. Somos atingidos, alguns de nós, pela ave-bala. O ouro-azul do jeans vem problematizar a noção de independência econômica, de autonomia financeira.

O polo industrial de jeans, em Toritama, é uma espécie de China com um carnaval no meio. Esse ouro-azul está na roupa dos rapazes, e está repleto dos questionamentos levantados pelo documentário Estou me guardando para quando o Carnaval chegar, de Marcelo Gomes. O filme não é uma apologia ao empreendedorismo, ou não somente, nem um réquiem saudosista de uma Toritama mais rural. Seus produtores de jeans batem no peito com orgulho que são “donos do próprio tempo”, mesmo trabalhando 12 horas ou mais por dia. É… são muitas dobras.

Em uma potência assombrosa, o ouro-azul se congrega com os entregadores de aplicativo, entre eles Thiago Dias, que trabalhava 12 horas por dia e morreu durante uma entrega aos 33 anos, vítima de AVC. Fato que se conecta com as Ligas Camponesas e os assassinatos de seus líderes.

Essa cena do canavial, que cruza Michael Jackson com maracatu rural, vale muitas teses

Michael Jackson do Canavial, um vídeo que pode ser encontrado no Youtube, fornece rico material da cultura que se movimenta, sem abandonar totalmente a tradição, mas utilizando as possiblidades do presente. O Magiluth confronta o caboclo de lança com o vídeo, em que a voz do astro do pop anima o trabalhador rural a seguir seus passos na dança. Ele canta que “Billie Jean is not my lover”, ela é apenas uma garota e o menino não é seu filho. Mais uma questão das mulheres não reconhecidas, e essa e uma problemática muito complexa, que apenas pontuo.

O Estudo Nº1: Morte e Vida utiliza as tecnologias, as projeções, justaposições. Quebras de fronteiras se alimentam das práticas teatrais, subverte, testa combinações. É interessante saber que numa entrevista 1998, João Cabral disse que “gostaria de ter sido cineasta”. Sua composição poética aproxima-se das teorias da montagem do cineasta Eisenstein ou do teatrólogo Bertolt Brecht.

O Magiluth expõe dados de pesquisa da internet sobre refugiados e migrantes que tentam fugir de guerras e tentar asilo oficial em países europeus. Em botes e em embarcações superlotadas e sem as mínimos condições de segurança, esses humanos arriscam as próprias vidas (muitos barcos afundaram) sem nenhuma garantia de asilo oficial. Para outros, a travessia é um negócio altamente lucrativo, que pode render por embarcação US$ 1 milhão. São muitos tentáculos do capitalismo, em que a vida importa pouco. Ponte com Brecht.

Deslocamento é uma questão discutida na peça

Em uma cena, depois de anunciar que Kiribati sumiu do mapa, afundou e de já ter citado um trecho do poema O Rio (Para os bichos e rios / nascer já é caminhar), Giordano propõe um jogo a Mário Sergio e Parmera. Os dois, como representantes das duas maiores potências, terão que chegar a um acordo para salvar o mundo. É um diálogo surreal, em que nenhuma parte cede, e a conversa vai ficando cada vez mais insana, com proposta de matar populações inteiras de uma determinada região. Em um jogo de afrontamento direto, o coletivo expõe o esfacelamento da ética, as engrenagens de manutenção de poder e a guerra como saída para o impasse defendida sempre pelos capitalistas.

Todos os dias temos notícias de demonstrações de desumanidades. Em 24 de janeiro o congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, foi assassinado a pauladas por um grupo de homens, na barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Moïse teria ido cobrar o pagamento de diárias atrasadas no quiosque em trabalhava por comissão. No dia 19 de janeiro, o fotógrafo suíço René Robert morreu aos 84 anos de hipotermia, após longa exposição ao frio intenso. Ele desmaiou em uma rua de Paris e ficou sem ajuda por nove horas. Esses dois fatos não são citados na cena do Magiluth. Mas ecoa no ar como espirito desse tempo, sim. 

A humanidade está doente, não há dúvidas. Intolerância, racismo e xenofobia são sintomas dessa deterioração.

Mas apesar de todo esse quadro difícil, Estudo Nº1: Morte e Vida aponta para / e aposta na vida. No seu desejo de convívio, o grupo convoca o espectador a atuar no jogo cênico no entusiasmado grito dos grevistas. Severino está sinalizando alguma saída. Olé, olé, olá, Severino, Severino.

Depois de tantas palavras, o espetáculo prossegue reverberando de afetos.

 

* Assisti ao espetáculo Estudo Nº1: Morte e Vida na estreia, dia 28 de janeiro e no domingo, dia 30 de janeiro.
** Nessas duas sessões, o diretor-assistente/ diretor musical Rodrigo Mercadante substituiu Lucas, que estava positivado com Covid-19 naquela semana. 

Ficha técnica:
Criação e realização: Grupo Magiluth
Direção: Luiz Fernando Marques
Assistente de direção e direção musical: Rodrigo Mercadante
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
Produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite
Produção local: Roberto Brandão

Estudo Nº 1: Morte e Vida, com o grupo Magiluth
Quando: De 28 de janeiro a 6 de março de 2022, sextas e sábados às 21h, domingos, às 18h
Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP)
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Classificação indicativa: 16 anos

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Morte e Vida Severina na visão do Magiluth

Estudo1 Morte e vida. Foto: Vitor Pessoa / Divulgação

Pernambuco é um celeiro de escritores e poetas, com obras importantes para a literatura brasileira. João Cabral de Melo Neto (1920-1999) é um dos grandes, adverte de cara o ator Giordano Castro ao ser perguntado sobre a escolha do texto. O centenário do poeta pernambucano ocorreu em 2020 no auge do isolamento social. Se o mundo não tivesse parado, a montagem do Grupo Magiluth inspirada em Morte e Vida Severina – Um Auto de Natal teria estreado para celebrar os 100 anos do autor de O Cão Sem Plumas. Muita coisa pifou com a pandemia da Covid-19. O trabalho do Magiluth, que primeiro seria um espetáculo de rua, ganhou outras feições durante esse percurso. Chega ao palco do Teatro Ipiranga, em São Paulo, como Estudo Nº1: Morte e Vida.

Com encenação de Luiz Fernando Marques, Lubi, parceiro da trupe pernambucana desde 2012 e diretor dos espetáculos Aquilo que meu olhar guardou para você e Apenas o Fim do Mundo, esse último juntamente com Giovana Soar, essa quase “peça-palestra”, vale-se do livro como disparador para discussões das migrações contemporâneas, a questão climática, da seca, e a repercussão na vida de pessoas de várias partes do planeta. Perpassada pela política, a montagem expande a figura do Severino para fluxos mundiais de deslocamentos.

O estudo do título expõe elementos que muitas vezes ficam ocultos nas encenações, como os sistemas de som e luz. A direção musical é de Rodrigo Mercadante, que reforça a ideia dos ciclos de vida e morte da peça em sua trilha, com sonoridades originais e músicas de artistas do punk e do hardcore de Pernambuco.

O retirante Severino, protagonista da peça cabralina, se apresenta como sujeito individual e coletivo. Ao investigar as migrações forçadas, o Estudo Nº1: Morte e Vida cavouca as perspectivas geográficas, simbólicas e humanas dos impulsos que se deslocam.

Entrevista || Giordano Castro 

Por que João Cabral?

É importante levar em consideração que Pernambuco é um estado com muitos escritores, muitos poetas que têm uma obra importantíssima para a literatura brasileira. E de um caráter estético muito inovador e peculiar. Cada um tem uma identidade muito forte. Dentre eles, João Cabral é um dos que chama bastante atenção para a gente por causa da questão do rebuscamento da própria escrita. Algo que ele levava com muito cuidado e muita atenção. Ele é conhecido por ser um poeta que lapidava muito os seus trabalhos e que ainda assim conseguia manter uma dureza naquilo ele falava.

Para nós, Morte e Vida Severina – apesar de ser uma obra que João Cabral não era muito carinhoso por ela – guarda uma célula muito potente de apontamentos de caminhos para abrir discussões. É como se dentro daquele poema-peça ele abrisse muitas questões. Ele não fala apenas sobre um homem que se vê na necessidade de migrar por problemas naturais e da seca, o que não seria pouca coisa, mas ele coloca questões sobre o trabalho, sobre o próprio homem, sobre a característica desse homem, sobre a terra, sobre a reforma agrária. Enfim, são muitos apontamentos e talvez esse trabalho tenha chamado a atenção da gente por causa disso. E dentro do Magiluth cada um foi atravessado por algo diferente, então acaba sendo uma poesia muito plural de abordagem. E a própria palavra, a forma como ele, João Cabral, como escolhe as palavras dentro do seu poema e como aquelas palavras têm uma maneira de organizar aquela poesia. A escolha foi por uma questão estética mesmo e também por uma questão política.

As migrações e travessias são marcas de cada tempo, que traduzem colonizações e buscas por territórios. Como o Magiluth atualiza esses movimentos nesta montagem?

As questões de migração e de travessia como você fala, de fato, são coisas que continuam acontecendo. Desde a ideia da existência humana até os dias de hoje a necessidade de migrar se faz. A gente sempre entende isso como um movimento político. Nas migrações hoje temos encontros com outros Severinos. O Severino que João Cabral aborda, nordestino, ganha ares mundiais. A gente entende hoje que os Severinos não são somente outros sotaques, mas outras línguas. As questões climáticas que fizeram com que o Severino do Morte e Vida saísse da sua região, hoje atinge e vai continuar atingindo e piorando para cada vez mais outras pessoas. Serão outros Severinos saindo de Quiribati, que vão começar a sair das cidades mais baixas do mundo depois do aquecimento global, com o derretimento das geleiras e o aumento dos oceanos. Serão Severinos americanos, italianos, recifenses. E essas questões climáticas, elas estão – hoje e ontem – absolutamente ligadas às questões políticas – como o homem politicamente usa a natureza, como como tudo isso interfere em ganhos, na estrutura, está tudo interligado

O que essa pandemia trouxe para o trabalho de vocês?
A pandemia, o que a gente consegue falar em muitas camadas. Ela foi desesperadora no começo, forçar o Magiluth a uma série de situações, parar as atividades e tudo mais. Depois ela foi uma descoberta para gente, o que gerou os três trabalhos online – (uma trilogia de experimentos sensoriais em confinamento, composta pelas obras Tudo que coube numa VHS, Todas as histórias possíveis e Virá)

Mais especificamente falando do Estudo Nº1: Morte e Vida, a pandemia deu um molde poético para o trabalho. O trabalho começou a ser pensado no final de 2019, passou por muitas possibilidades. Esse espetáculo já foi pensado, por exemplo no princípio, de um espetáculo de rua; depois foi pensado para se fazer no palco; depois ele virou o estudo. E a cada retomada por causa da pandemia, a gente também se encontrava com uma nova proposta poética. E aí eu acho que o resultado é uma soma de todos os momentos. Eu acho que a gente conseguiu amontoar todos eles.

Ficha Técnica
Criação e realização: Grupo Magiluth
Direção: Luiz Fernando Marques
Assistente de direção e direção musical: Rodrigo Mercadante
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
Produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite
Produção local: Roberto Brandão

Estudo Nº 1: Morte e Vida, com o Grupo Magiluth
Quando: De 28 de janeiro a 6 de março de 2022, sextas e sábados às 21h, domingos, às 18h
Onde: Sesc Ipiranga )Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP)
Quanto: R$ 40(inteira) e R$ 20 (meia)
Classificação indicativa: 16 anos

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Crise e Insurreição, uma mostra de experimentos cênicos do Grupo XIX de Teatro

Feminino Abjeto 1. Foto: Laio Rocha / Divulgação

Plantar Cavalos. Foto: Giorgio D’Onofrio / Divulgação

Memórias de Cabeceira. Foto: Eduardo Figueiredo / Divulgação

O Projeto XIX Ano 19: Crise e Insurreição é uma mostra com os experimentos cênicos criados nos núcleos de pesquisa do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, orientados por Janaina Leite, Juliana Sanches, Luiz Fernando Marques, Rodolfo Amorim e Ronaldo Serruya. A trupe completa 19 anos neste estranho ano de 2020. Com a pandemia da Covid-19, o coletivo comemora com apresentações online, grátis, entre os dias 12 e 22 de novembro, por meio da plataforma Zoom. Cada espetáculo faz duas apresentações.

Participam da mostra os espetáculos Acorda, Alice! Através Da Tela, com direção geral de Juliana Sanches; Memórias de Cabeceira, com direção de Rodolfo Amorim; Plantar Cavalos Para Colher Sementes, com direção, concepção e pesquisa de Ronaldo Serruya; Feminino Abjeto 1, com direção e concepção de Janaina Leite; Feminino Abjeto 2, também com direção de Janaina Leite. Além da Mostra Abjeta III, com vários trabalhos estreados em ou processo, entre eles Tudo é Lindo em Nome do Amor, de Bruna Betito e Debora Rebecchi, um percurso irônicopelo mito do amor romântico.

Desde sua criação, o Grupo XIX de Teatro faz investigações importantes e ousa avançar nas possibilidades da cena como exercício estético e micropolítico. O espaço histórico da cidade de São Paulo guiou algumas produções, como o premiado Hysteria, que explora as complexas relações sociais da mulher brasileira na virada do século XIX. Uma viagem no tempo para questionar os mecanismos do poder. Hygiene, que trata dos trabalhadores que habitavam os cortiços do Rio no século XIX segue a mesma pisada.

Outras peças que são resultado da pesquisa autoral do grupo são Arrufos, Marcha Para Zenturo (em parceria com o Grupo Espanca), Nada Aconteceu, Tudo Acontece e Tudo Está Acontecendo, Estrada do Sul (em parceria com o Teatro Dell’Argine) e Teorema 21.

Com a pesquisa sobre habitação e moradia no Brasil a turma chegou à Vila Operária Maria Zélia. Da primeira residência até hoje, foram muitas ações, uma troca permanente com a comunidade e a inserção definitiva da Vila Maria Zélia no mapa cultural da cidade de são Paulo.

A criação colaborativa, o uso de espaços não-convencionais e a relação próxima ao público são marcas dessa trajetória. A “Vila” é hoje um espaço de pesquisa, difusão e formação que abriga projetos como os Núcleos de Pesquisa que acolhem anualmente cerca de cem artistas, além de diversos espetáculos e oficinas.

MOSTRA DE EXPERIMENTOS CÊNICOS

De 12 e 22 de novembro, por meio da plataforma Zoom.
Ingressoshttps://www.sympla.com.br/grupoxixdeteatro

Acorda Alice. Foto Anoca Freitas / Divulgação

ACORDA, ALICE! ATAVÉS DA TELA!
Dias 12 e 14 de novembro – Quinta-feira, às 21h, e Sábado, às 19h

O tempo atravessa o encontro dessas mulheres, das que chegam e das que já estavam lá. A passagem das horas gera insegurança. Como o tempo marcou a carne de cada uma delas? O espetáculo percorre os ciclos femininos, da menina, adolescente, adulta e anciã. Com o apoio uma das outras, elas seguem fazendo perguntas, numa dança de cumplicidade e sororidade em que a experiência de estarem juntas, valorizando cada uma delas é o que mais importa.

Ficha Técnica
Dramaturgismo: Juliana Sanches.
Texto: Acorda Coletivo.
Montagem audiovisual, edição e finalização: Val Hidalgo.
Direção Geral: Juliana Sanches.
Assistência de Direção Audiovisual: Alice Stamato.
Figurino: Juliana Sanches e Acorda Coletivo.
Iluminação: Acorda Coletivo.
Elenco: Alice Stamato, Cacau Fonseca, Carol Andrade, Ericka Leal, Jaqueline Beatriz, Joice Tavares, Juliana Roberta, Larissa Alves, Leticia Stamatopoulos, Lídia Engelberg, Lidi Seabra, Ligia Fonseca, Mahê Machado, Mariela Lamberti, Priscilla Nina, Rebecca Leão, Renata Dalmora, Rita Damasceno, Samira Aguiar e Victória de Paula.
Atrizes que estiveram no processo: Lorena Barreto, Paloma Dantas e Vanusa Di Santi.
Produção: Acorda Coletivo.
Realização: Acorda Coletivo.
Fotos: Anoca Freitas, Gabriela Burdmann, Giorgio D’Onofrio e Marília Apolônio.
Classificação: 14 anos.
Duração: 50 minutos.

MEMÓRIAS DE CABECEIRA
Dias 13 e 15 de novembro – Sexta e domingo, às 20h

Memórias de Cabeceira. Foto: Jonatas Marques / Divulgação

A memória dos atores sobre seus avós conduz essa experiência cênica, que propõe vasculhar os espaços de saudade também do público. Os atores investigam suas lembranças preciosas dos avós, desses netos-atores que visitam arquivos de um passado que aciona espaço/tempo de afeto comum a muitos de nós.

Ficha Técnica:
Direção: Rodolfo Amorim.
Elenco: Bruno Canabarro, Cleuber Gonçalves, Natália Ribeiro e Vinícius Titae.
Dramaturgia, Figurinos e Cenografia: Coletivo Analógico de Teatro.
Duração: 50 minutos.
Classificação: Livre.

PLANTAR CAVALOS PARA COLHER SEMENTES
Dias 14 e 15 de outubro – Sábado, às 21h30, e Domingo, às 18h

Plantar Cavalos. Foto: Jonatas Marques / Divulgação

Plantar Cavalos Para Colher Sementes é uma peça-manifesto de caráter performativo livremente inspirada no manifesto Falo Por Minha Diferença, do ativista chileno Pedro Lemebel. É a denúncia de um corpo que está morrendo, e que precisa gritar para se manter vivo. O trabalho dirigido por Ronaldo Serruya promove uma espécie de confronto para abalar a perversa estrutura que engendra discursos e mecanismos racistas, homofóbicos, misóginos e transfóbicos, e tensionar em nós o que é reprodução da norma e incapacidade de desprogramar o previsto.

Ficha técnica:
Direção, concepção e pesquisa: Ronaldo Serruya.
Assistente de direção: Bruno Canabarro.
Manifestantes: Ailton Barros, Ana Vitória Prudente, Be Gonzales, Camila Couto, Carlos Jordão, Gabi Costa, Ericka Leal, Mateus Menezes, Patrícia Cretti, Tatiana Ribeiro.
Iluminação: Dimitri Luppi Slavov.
Fotos e vídeos: Jonatas Marques.
Produção: Gabi Costa, Mateus Menezes e Tatiana Ribeiro.
Realização: Grupo XIX de Teatro.
Agradecimento especial: Vana Medeiros.
Classificação: 16 anos.
Duração: 50 minutos.

FEMININO ABJETO 1 + bate-papo com diretora e performers
Dia 20 de novembro – Sexta-feira, às 20h

Feminino Abjeto. Foto Jonatas Marques / Divulgação

O conceito de “abjeção” proposto por Julia Kristeva para investigar as representações do feminino e a a obra da artista espanhola Angélica Liddell são as inspirações do trabalho, orientado por Janaina Leite. Performado por mulheres e duas pessoas não-binárias, o espetáculo, tomou por eixo principal a figura de uma mãe “mais arcaica que real”, como campo de recusa, mas também identificação em relação a certa “transmissão da feminidade”. O espetáculo estreou em 2017.

Ficha Técnica:
Direção e concepção: Janaina Leite.
Performers/autorXs: Bruna Betito, Cibele Bissoli, Débora Rebecchi, Emilene Gutierrez, Flo Rido, Gilka Verana, Juliana Piesco, Letícia Bassit, Maíra Maciel, Oli Lagua, Ramilla Souza e Sol Faganello.
Assistência de direção: Tatiana Caltabiano.
Dramaturgismo: Janaina Leite e Tatiana Ribeiro.
Preparação Stiletto: Kaval.
Preparação Haka: Allan Melo.
Iluminação: Afonso Alves Costa.
Operação de som: Marina Meyer.
Fotografia: Laio Rocha.
Câmera: Roberto Setton, Camila Couto e Vinicius Vitti.
Edição: Sol Faganello.
Classificação: 18 anos.
Duração: 90 minutos.

FEMININO ABJETO 2
Dia 22 de novembro – Domingo, às 19h

Feminino Abjeto 2. Foto: André Cherri / Divulgação

Em 2018, Janaina Leite propôs uma nova investigação a partir da figura da mãe, agora em um núcleo de pesquisa composto por 34 homens e duas pessoas não-binárias. Se o masculino se constrói como “reatividade ao feminino”, como propõe Safiotti, em Feminino Abjeto 2, analisou as relações com as figuras arcaicas de pai e mãe, a fim de encontrar a gênese de uma virilidade que se confunde com violência e autoritarismo. O espetáculo estreou em dezembro do mesmo ano, cumpriu duas temporadas na Vila Maria Zélia, no Teatro de Container da Cia Mungunzá́ (Luz/São Paulo) e se apresentou no Sesc Belenzinho na mostra Dramaturgias 2.

Ficha técnica:
Direção e dramaturgismo: Janaina Leite.
Performers/autores: Alexandre Lindo, André Medeiros Martins, Andrea Sá, Carlos Jordão, Chico Lima, Dante Paccola, Diego Araújo, Eduardo Joly, Filipe Rossato, Guilherme Reges, Gustavo Braunstein, Jeffe Grochovs, João Duarte, João Pedro Ribeiro, Leonardo Vasconcelos, Lucas Asseituno, Marco Barreto, Nuno Lima, Thompson Loiola.
Assistência de direção e dramaturgismo: Ramilla Souza.
Iluminação: Maíra do Nascimento e Marcus Garcia.
Criação e operação de som e trilhas: Eduardo Joly.
Fotografia: André Cherri, Michel Igielka, Liz Dórea, Flaviana Benjamin, Carol Rolim, Mateus Capelo.
Vídeos: André Cherri; Diego Araújo, Guilherme Dimov, Victor Rinaldi; Filipe Rossato, Gabriel Pessoto, Fernanda Wagner, Marina Rosa, Juba Bezerra (Poro Produções).
Arte original: Miguel Sanchez; Andrés Nigoul (Duo Dinâmico).
Núcleo de Comunicação: Thompson Loiola (99 Comunicação) e Alexandre Lindo.
Núcleo de Produção e Projetos: João Pedro Ribeiro, Thompson Loiola, Ramilla Souza, Lucas Asseituno, André Medeiros Martins.
Classificação: 18 anos.
Duração: 90 minutos.

MOSTRA ABJETA III
Dia 21 de novembro – Sábado, das 14h às 18h

Feminino Abjeto. Mostra Núcleos de Pesquisa 2017 Foto Jonatas Marques / Divulgação

Já realizada no Teatro de Contêiner e no Teatro Centro da Terra, a Mostra Abjeta junta cenas autorais desdobradas a partir ou em relação à experiência de Feminino Abjeto 1. Entre trabalhos em processo ou já estreados, essa mostra propõe uma versão on-line desses experimentos, revelando a apropriação singular de cada artista a partir das questões originais, mas desdobradas em trabalhos que exploram performance e gênero no teatro.

Ilariê, de Ramilla Souza: Ramilla tem um obsessão pela Xuxa dos anos 90. Ela revisita suas memórias de infância e a construção da própria subjetividade a partir dessa referência.
Duração: 20 minutos.

Chef Psi – Como Comer Como Como, de Maíra Maciel: Chef psi é uma estranha psiquiatra e chef de cozinha que tenta preparar o prato perfeito. Nessa preparação, ela traz memórias e pensamentos sobre o processo de transformação do animal na comida e da comida no corpo das pessoas.
Duração: 35 minutos.

Corpo Errado, de Florido Fogo: Abrir os buracos da corpa para negar a entrada das expectativas cisgêneras koloniais. Imagens de horror, deboches, delírios e monstruosidades para acessar dramaturgias da trans-fisicalidade ancestro/futura e eufórica.
Duração: 40 minutos

Não Ela: O Que é Bom Está Sempre Sendo Destruído, de Oliver Olívia e Lucas Miyazaki: Um retrato de um casal que começou a morar junto ao mesmo tempo em que um deles começou seu processo de transição de gênero: um homem cisgênero que percebe seu então companheiro trans masculino. É a exposição de um texto-depoimento-carta inteiro de autoria do dramaturgo cisgênero. Uma peça sobre transfobia, machismo, misoginia e amor.
Duração: 25 minutos.

Tudo é lindo em nome do amor, com Debora Rebecchi e Bruna Betito

Tudo é Lindo em Nome do Amor, de Bruna Betito e Debora Rebecchi: É uma travessia cênica através do mito do amor romântico. Para essa versão remota, duas atrizes invocam clichês do nosso imaginário amoroso e compartilham com o público uma festa de casamento virtual. A experiência pretende abrir caminhos para questionar papéis de gênero e os modos como fomos ensinados a amar.
Duração: 40 minutos

Salivas, de Emilene Gutierrez: O trabalho parte de uma escavação individual onde a carne-gordura-baba-vísceras tomam o espaço central, pornograficamente explícitos, do processo. É tentativa de tornar corpo uma espécie de subjetividade feminina, buscando encontrar possíveis caminhos/espaços entre a origem e o fim das coisas, dos desejos, dos abismos.
Duração: 35minutos

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Magiluth vasculha política nos laços afetivos

Apenas o Fim do Mundo, com o Grupo Magiluth, estreou no Sesc Avenida Paulista e celebra os 15 anos da trupe. Fotos: Cacá Bernardes / Divulgação

A ação se passa num domingo

Dormi, e sonhei, envolta nas pulsações de Apenas o Fim do Mundo, espetáculo do Grupo Magiluth, a partir do texto Juste la Fin du Monde, do francês Jean-Luc Lagarce. Esses sonhos atravessados por pesadelos sinistros ocorreram ontem, semana passada ou durante todo o ano. As irrupções temporais embaralham essa narrativa complexa e propõe uma experiência rica de sensações no espaço, na memória, na ficção.

O amor em sua plenitude, o que inclui camadas feias, deterioradas, todas as vulnerabilidades desse sentimento – que não cabe em si e por isso mesmo precisa do outro para circular – ronda a temática dessa peça. É uma montagem dura e terna, libertadora, mas dolorida. E nos empurra a um mergulho profundo para enxergar os rastros, os reflexos, os sinais que imprimimos nos mais chegados. É assustador o que as palavras e os silêncios podem causar.

Apenas o Fim do Mundo, em cartaz no 13º andar do Sesc Avenida Paulista até 5 de maio, maximiza o risco, essa ousadia que a trupe recifense se impõe paulatinamente nos 15 anos de trajetória. O Magiluth iniciou as comemorações dos 15 anos com uma “ocupação” no Sesc Avenida Paulista. Foram apresentadas as montagens do repertório Aquilo Que Meu Olhar Guardou para Você (2012) e Dinamarca (2017). Além de oficinas e uma roda de conversa sobre o teatro nordestino (com Fernando Yamamoto e eu, Ivana Moura) .

Com o texto de Lagarce, a palavra comanda o desafio. O dito e o não-dito com sua dor acumulada ao longo dos anos na teia de uma família. De uma escrita delicada e sofrida, de uma economia lírica e avassaladora.

Eu entendi que esta ausência de amor de que me queixo e que foi para mim sempre a única razão das minhas covardias,
sem que nunca até então a tivesse percebido,
que esta ausência de amor fez sofrer sempre mais os outros do que eu. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

Entendo que o Magiluth não renuncia ao aspecto político de suas investigações anteriores. Vislumbro um deslocamento de rota, uma escavação rumo à formação do núcleo duro do poder, o treinamento dessa atuação política – a estrutura familiar. Longe de ser o paraíso na Terra, a família é uma coisa assombrosa, prodigiosa, impregnada de sentimentos que vão dos mais sublimes aos mais sórdidos.

É na essência da família onde tudo começa e prossegue em movimentos sem trégua. A peça convoca para investigações do que é família. De que laços emotivos e de compromisso estão repletas essas ideias. A concepção psicanalítica de família concebida por Freud postula-a como uma instituição humana duplamente universal. Lacan atribui à família a responsabilidade de agenciar o procedimento de humanização do indivíduo, pela invenção da subjetividade.

É evidente que os novos contextos fazem composições de famílias bastante diferentes em questões de estrutura e dinâmica – homoparentais; transparentais, monoparentais, famílias instituídas pela ciência.

Cena simultânea em dois planos

“… diante de um perigo extremo, imperceptivelmente, sem
querer fazer barulho ou cometer um gesto muito violento que acordaria o inimigo e que te destruiria imediatamente,

assumindo o risco e sem nunca ter esperança de sobreviver,
apesar de tudo,
no ano seguinte,
eu decidia voltar a vê-los, voltar atrás,
voltar sobre os meus passos e fazer a viagem,
para anunciar, lentamente, com cuidado, com cuidado e precisão

a minha morte próxima e irremediável…”  Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo                                                                                                                            

Enquanto outras produções do grupo estão impregnadas de preocupações políticas explícitas, da militância ou de referências a movimentos espalhados pelo mundo, em Apenas o Fim do Mundo esse caráter escorre pelas brechas de uma possível política que atinge corpos individuais nas guerras executadas contra alguns.

Jean-Luc Lagarce morreu jovem, aos 38 anos, em 1995, vítima da Aids. Há, possivelmente, qualquer coisa de autobiografia em Apenas o Fim do Mundo. O protagonista da peça – Luiz – está doente, com uma perspectiva de morte próxima, mas que nunca é nomeada no texto.

Luiz (Pedro Wagner) volta à casa materna, depois de uma dúzia de anos fora, para contar que tem uma doença terminal. Ele nos conta – a nós espectadores – mas não fala para a família. Dá pra conjecturar sobre a parábola do filho pródigo.

A Mãe (Erivaldo Oliveira) utiliza todas as estratégias para que Luiz se sinta bem-vindo. O irmão Antônio, guarda mágoa pelo que considera abandono, e reage com pequenas explosões de violência. A irmã Suzana, uma quase desconhecida para Luiz, oscila entre a mágoa e a excitação. Para completar o quadro, Catarina, a atenta mulher de Antônio, que também não conhecia o cunhado.

Erivaldo Oliveira faz A Mãe

Pedro Wagner faz Luiz

Em Necropolítica (N-1 Edições), o filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe segue o pressuposto de “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.”

Então “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.” Nessa visada “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”

Mas o que isso tem a ver com Apenas o Fim do Mundo, uma peça escrita por um francês em 1990, traduzida para o português por Giovana Soar, em 2005, sobre um filho que retorna à casa materna para anunciar sua morte próxima? O que uma reunião familiar que fala sobre o amor diz sobre quem importa e que não importa?

Projeção no começo da peça

No início das apresentações são projetadas poucas frases. Uma diz respeito à Aids e aos riscos atuais.

Na página da Fiocruz, do Ministério da Saúde, está exposta uma linha do tempo sobre a epidemia da Aids.

Alguns tópicos:
1977/78 – Estados Unidos, Haiti e África Central apresentam os primeiros casos da infecção, definida em 1982;
1982 – Confirmação do primeiro caso de Aids no Brasil e identificação da transmissão por transfusão sanguínea. Adoção temporária do termo Doença dos 5 H – Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável), Hookers (profissionais do sexo em inglês).
1983 – Uma reportagem publicada no jornal Notícias Populares traz como manchete: Peste-Gay já apavora São Paulo. É a pior e a mais terrível doença do século – dois brasileiros mortos.
1986 – Criação do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde.
1989 – Pressionada por ativistas, a indústria farmacêutica Burroughs Wellcome reduz em 20% o preço do AZT no Brasil.
1990 – Cazuza morre aos 32 anos. Mais de 6 mil casos de Aids são registrados no país.
1991 – O Ministério da Saúde dá início à distribuição gratuita de antirretrovirais. A OMS anuncia que 10 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV no mundo. No Brasil, 11.805 casos são notificados
1997 – Morre o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
1999 – O Governo Federal divulga redução em 50% de mortes e em 80% de infecções oportunistas, em função do uso do coquetel anti-Aids. O Ministério da Saúde disponibiliza 15 medicamentos antirretrovirais.
2003 – O Programa Brasileiro de DST/Aids recebe prêmio de US$ 1 milhão da Fundação Bill & Melinda Gates em reconhecimento às ações de prevenção e assistência no país, que abriga 150 mil pacientes em tratamento.
2004 – Recife reúne quatro mil participantes em três congressos simultâneos: o V Congresso Brasileiro de Prevenção em DST/Aids, o V Congresso da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids e o I Congresso Brasileiro de Aids. Mais de 360 mil casos de Aids são registrados no país.

O Programa Nacional de HIV/Aids do Brasil é reconhecido, até o ano passado, como exemplo no mundo inteiro. Entidades do setor receiam retrocessos nos direitos conquistados e na prevenção à doença no governo de Jair Bolsonaro. Acendeu o sinal vermelho sobre o futuro das políticas de saúde no país.

Parece-me que o Magiluth também fala sobre isso. Dos corpos ameaçados, do que estão na mira para serem destruídos, apagados. E as políticas públicas definem muitos desses caminhos. Para os alvos preferencias, as lutas são incessantes. E suponho que tudo começa na família.

Numa das conversas da família de Apenas o Fim do Mundo, Catarina, a cunhada, conta sobre os filhos. O menino carrega o nome de Luiz.

CATARINA – Ele tem o nome do pai de vocês,
eu acho, nós achamos, nós achávamos, eu acho que é bom,
isso era do gosto do Antônio, era uma coisa, uma coisa que ele, que ele fazia questão,

Na minha família há o mesmo tipo de tradição, …
o nome dos pais ou do pai do pai do filho macho, o primeiro rapaz, essas histórias todas.
E depois,
e já que você não tinha filhos,

o Antônio diz que você não vai ter
já que você não tem nenhum filho,
é sobretudo por isso,
já que você não vai ter nenhum filho,

parecia lógico,
foi o que nos dissemos, que nós o chamássemos Luiz,
como o seu pai, e, portanto, como você.

ANTÔNIO: Mas você continua sendo o mais velho, não há dúvida nenhuma em relação a isso.

Não há luta política confessada no texto de Lagarce. As conspirações, boicotes e desejos inconfessáveis de vingança vêm pela via do afeto, dessa ligação mais íntima com os parentes, nutridos por um cromatismo de amor.

A cidade de São Paulo entra pelas vidraças

(o que eu quero dizer)
«no fim das contas»
como que por desencorajamento, como que por cansaço de mim,
que eles me abandonaram sempre porque eu peço o abandono
Eu acordava com a ideia estranha e desesperada e indestrutível também
de que me amavam vivo como gostariam de me amar morto
sem nunca poder nem saber me dizer nada. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

A direção compartilhada entre Giovana Soar – que traduziu o texto para uma montagem da Companhia Brasileira de Teatro em 2005, e Luiz Fernando Marques, Lubi, do grupo XIX maximiza competências. Giovana traz um olhar denso para o texto, uma atenção sutil aos detalhes periféricos, o cuidado com a fala e as inflexões, ampliando as possibilidades de leitura desse peça complexa e profunda. Lubi tratou da encenação, da ocupação do espaço cênico, inventou ambientes da cena naquela sala multiuso com uma criatividade impressionante. As cenas – nascem e desaparecem – em cada canto, com os solilóquios das personagens. Eles desenvolvem uma direção envolvente, compõem com seus atores cenas admiráveis.

A disposição das situações nos cômodos fechados de uma casa e as dinâmicas entre as cenas são bem solucionados na apropriação da sala multiuso do Sesc Avenida Paulista. A varanda iluminada se abre para a cidade, remetendo ao confronto Metrópole/província e de suas articulações e projeções de desejos das personagens. É uma das paisagens mais icônicas de São Paulo e isso remete a muitas reflexões sobre poder, capitalismo, máquinas desejantes. O espetáculo foi erguido a partir da ideia de site specific, segundo o grupo.

Site specific é um termo utilizado há décadas para designar obras traçadas de acordo com o espaço na sua concepção e execução, transformando ou incorporando o espaço ao trabalho. Atualmente pode ser qualquer trabalho cênico que ocorra fora de um teatro tradicional.

No fundo, a solidão de tudo

A trajetória do Magiluth está pontuada por criações de dramaturgias próprias, montagens irreverentes de textos consagrados, com direito ao improviso, aos exageros, a expansões de teatralidades. Em Apenas o Fim do Mundo o risco passa pela contenção. É na moderação que reside o desafio. “A dramaturgia de Lagarce é poderosa, preponderante, quase insuportável”, escreve Giovana Soar no programa.

A palavra é um olho d’água que o elenco trata com sensibilidade para facilitar o rio caudaloso. Os atores fazem o jogo da presença com sutileza nas minúcias, nas ondulações. A violência interna das personagens garante uma dimensão profunda e dolorosa.

Espaço mínimo cria sensação de sufocamento

Após muitos anos longe da casa materna, sem contato com seus parentes, o escritor Luiz volta a sua cidade natal, para um almoço em família. Ele iria falar sobre morte iminente. É um domingo, mas poderia ser a vida inteira, porque os procedimentos são os mesmos. Ao encarar o peso da figura materna, sua – praticamente desconhecida – irmã mais nova Suzana, seu ciumento irmão Antônio, e sua cunhada Catarina, ressentimentos vem à tona.

Todos os artistas brilham: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner. Todos usam roupas do cotidiano, inclusive os que defendem personagens femininas. As palavras reverberam no corpo e no espaça. Esse texto não realista, inspirado em analogias realistas permite que os artistas potencializem a presença.

Pedro Wagner carrega um Luiz contido, que emana ondas de sentimentos em seus silêncios, em sua concentração. O motor do seu “ganhar o mundo” não fica claro – o abandono de que os parentes falam. Talvez o fato de ser homossexual tenha sido decisivo para a partida. Enquanto o prestígio do dramaturgo crescia, lá fora, a família acompanhava suas vitórias através do noticiário. O escritor só enviava cartões postais nos aniversários com duas ou três frases.

o que a gente espera,
é que o resto do mundo desapareça com a gente,
que o resto do mundo poderia desaparecer com a gente,
se apagar, se devorar e não mais sobreviver à mim.

Na cena 10, Luiz quase silente abre as comportas das palavras:

Que vão fazer de mim quando eu não estiver mais aqui?
A gente gostaria de mandar, de reger, de aproveitar mediocremente da perturbação deles e conduzi-los um pouco mais.
A gente gostaria de ouvi-los, eu não os ouço,
obrigá-los a dizer besteiras definitivas
e saber enfim o que eles pensam.

A figura materna suporta um peso, do conflito do amor / ódio dessa família. Erivaldo Oliveira trabalha as contradições dessa Mãe, que tenta controlar as relações humanas nessa casa, vislumbrar os segredos, entender os silêncios, as meias-verdades, as omissões.

Há diálogos incríveis e solilóquios arrebatadores para todos os papéis.

Acerto de contas entre os irmãos Antônio (Mário Sergio, em pé) e Luiz (Pedro Wagner, de costas)

Bruno Parmera faz a irmã Suzana

Mário Sergio Cabral é irmão de Pedro Wagner e são também manos na ficção. Na pele de Antônio, Mário Sérgio eleva o grau da emoção nas cenas de desabafos, que jorram de uma fonte profunda.

Suzana, a irmã, é feita por Bruno Parmera, que idealiza e deseja a vida do mais velho da prole. Giordano Castro aproveita bem o nervosismo e a submissão da cunhada, Catarina, com nuances interessantes. Giordano também investe no contraponto mais humorado em algumas cenas, para dar um respiro a tanta tensão. Lucas Torres não dispõe de nenhum papel, mas cuida das mudanças de cenas, deslocando objetos, respondendo pela contrarregragem e tocando bateria na banda.

Mesmo o fato do elenco tocar mal os instrumentos da banda parece uma camada a mais. Enquanto a trilha sonora gravada assume a função de criar ambientes, a música tocada bate em outro lugar. Esse som causa ruído… desconforto… como os insuportáveis incômodos que famílias de LGBTS provocam nos encontros que deveriam ser festivos. Aqueles vigilantes mais próximos do desejo alheio… esses seres que trafegam freneticamente entre a intimidade e a estranheza.

Na peça experimentamos estados de desconforto, nervosismo, sensação de sufocamento. Claustrofobia que vem deles e atinge o público. Os monólogos na tentativa de diálogos são fulminantes. O estranho familiar, de que fala Freud, produz esse sentimento de ultrapassagem, como o atropelamento de um estranho nem tão desconhecido assim.

Carregando o desassossego desse corajoso e implacável espetáculo intuo que a melhor opção ainda seja o amor, mesmo em segredo, mesmo que não pareça justo, mesmo que machuque.

Ficha técnica

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Apenas o fim do mundo
Quando: de 11 de abril a 5 de maio, de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 18h. Sessões extras: 1º/05 (quarta-feira), às 18h; 2/5 (quinta), 3/5 (sexta) e 4/5 (sábado), às 17h. Até 05/05
Onde: Sesc Avenida Paulista– Arte II (13º andar)
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h40 min

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