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MITsp lança plataforma com programação inédita e de acervo

Réquiem, direção de Romeo Castellucci, abre programação. Foto: Pascal Victor/ArtComPress

 

Pensamento em Processo com elenco de Isto é um negro? está disponível na plataforma. Foto: Nereu Jr

O ano era 2014. Na plateia cheia do Auditório Ibirapuera, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, muita gente conhecida da cultura. Havia um burburinho, pairava um clima que era uma mistura de ansiedade e entusiasmo. Há muito tempo, talvez desde os festivais de Ruth Escobar, que o Brasil não tinha um festival internacional na dimensão que se projetava a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, sob a direção de Guilherme Marques e Antonio Araújo.

Naquele ano, além da abertura com Romeo Castellucci e o seu Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, vimos espetáculos de nomes como Mariano Pensotti, Guillermo Calderón, Rodrigo Garcia, Angélica Lidell, Marcelo Evelin. Só para citar alguns. Quem não tinha ingresso garantido, como era o nosso caso, já que estávamos contratadas para fazer críticas, enfrentava filas gigantescas, três horas de espera para conseguir o tíquete para ver os espetáculos.

Acompanhamos ainda, talvez o grande diferencial da MITsp desde aquele ano inicial, uma programação crítica e reflexiva com uma potência que era… incrível. Sei o peso do adjetivo, mas escolho usar com consciência, não encontro outro nome olhando para trás. Debates a partir dos espetáculos com pessoas de outras áreas que não o teatro, conversas com todos os encenadores, publicação de críticas diárias, um catálogo, com textos de vários acadêmicos.

Lembro que, depois daqueles dias, do tanto de troca que aconteceu naquele curto período, voltamos ao Recife com a sensação de que tinha rolado uma pós-graduação inteira. A cabeça fervilhava. Dali surgiu, por exemplo, a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

Nunca mais deixamos de acompanhar a MITsp como críticas e, durante alguns anos, como equipe de produção, já que eu assumi a coordenação de conteúdo editorial da mostra durante três edições: 2017, 2018 e 2019. Claro que sempre fizemos a propaganda do quão importante seria ter mais pernambucanos acompanhando a programação da MITsp. E voltávamos com as malas pesadas, carregadas de catálogo para quem pedia.

A distância, os custos financeiros, a disponibilidade de tempo para se ausentar da cidade por um período mais longo, sempre foram impeditivos para que tivéssemos mais pernambucanos vivendo essa experiência conosco.

Com a pandemia, o fechamento dos teatros, o suporte da internet, as coisas mudaram. A partir desta sexta-feira (12), começa a programação da MIT+ (www.mitmais.com), um dos braços do festival, que é uma plataforma virtual de conteúdo de arquivo e de outros inéditos. O acesso é gratuito, sendo necessário apenas um cadastro. Para as exibições de espetáculos, no entanto, há horários pré-definidos, assim como um festival tradicional. O acervo de encenações não fica disponível por todo tempo.

“Democratizar o acesso a todo esse arquivo era uma ideia de 2016. A gente também queria conhecer o público da MIT, uma informação muito importante, para saber onde estávamos chegando, para ter um canal mais direto”, explica Natalia Machiaveli, idealizadora e diretora da plataforma. “Queremos disponibilizar todo o acervo da parte reflexiva e pedagógica, porque os espetáculos temos sempre uma questão de direitos autorais. Essa disponibilização vai ser ao longo do tempo, porque estamos reeditando, fazendo legendas, dando a cara da MIT+, o que leva um tempo e tem um custo”, complementa.

A abertura dessa programação inicial é com Réquiem, versão de Romeo Castellucci para a missa fúnebre de Mozart, com orquestração do maestro Raphael Pichon. Depois do espetáculo, será exibida uma entrevista feita por Julia Guimaraes com o encenador italiano sobre sua trajetória.

A artista em foco da edição é a sul-africana Ntando Cele que, em 2018, apresentou Black Off. Imagina a imagem de uma negra, pintada de branco, peruca loura, como apresentadora de um talk show, querendo fazer piada com a plateia sobre racismo. Foi um dos principais destaques daquela edição, que será reexibido agora, ao lado do inédito Go Go Othello, onde a artista faz um paralelo com Otelo e intercala cenas de stand-up, videoarte, dança e música, perpassando a história de artistas negros, questionando os estereótipos racistas no mundo da arte. Ntando Cele vai conduzir ainda um workshop, uma residência e vai participar de uma conversa com a filósofa Denise Ferreira da Silva e a bailarina Jaqueline Elesbão.

Go Go Othello. Foto: Manaka Empowerment

A sul-africana Ntando Cele apresenta o inédito Go Go Othello. Foto: Manaka Empowerment

Janaina Leite, artista em foco na MITbr (braço com a programação nacional na mostra) no ano passado, abre o processo de Camming – 101 Noite. Janaina faz um paralelo entre o livro As Mil e umas Noites e as camgirls profissionais, que precisam garantir a atenção dos clientes. Depois das exibições, no dia 14 de março, vai acontecer também uma conversa sobre o processo de criação.

Da programação do acervo disponibilizada na plataforma e aberta a qualquer momento, há mesas e debates que fizeram parte dos eixos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas, como uma conversa com o elenco de Isto é um negro? e todas as edições da Revista Cartografias, catálogo da mostra, além de conteúdos inéditos.

PROGRAMAÇÃO:

ESPETÁCULOS

Réquiem
Em sua versão de Réquiem, o encenador italiano Romeo Castellucci faz da missa fúnebre de Mozart um espetáculo de celebração à vida. O espetáculo é conduzido pela orquestração do maestro Raphaël Pichon, que faz uma costura entre a composição original e outras peças sacras, menos conhecidas, do compositor austríaco.
Quando: 12, 13, 14 e 15 de março, às 19h
Duração: 1h40min

Ntando Cele apresentou Black Off na MITsp 2018. Foto: Guto Muniz

Black Off
A sul-africana Ntando Cele aborda e enfrenta estereótipos racistas. Na primeira parte do espetáculo, numa espécie de comédia stand-up, a performer assume o seu alter ego, Bianca White, uma comediante, viajante do mundo e filantropa. Depois, numa mistura de performance musical e vídeo, Ntando passa a destrinchar estereótipos de mulheres negras e tenta descobrir como o público a vê.
Quando: 13, 14, 15, 16 e 17 de março, às 21h
Duração: 1h40min

Go Go Othello
Para discutir o espaço do negro no meio artístico, Ntando Cele faz um paralelo com Otelo, o mouro de Veneza, um dos raros protagonistas negros da história do teatro. Ela intercala cenas de comédia stand-up, performance, videoarte, dança e música num ambiente que remete a uma casa noturna. A sul-africana perpassa a história de artistas negros e se transforma em personagens diversos para questionar estereótipos racistas no mundo da arte.
Quando: 16, 17, 18, 18, 20 e 21 de março, às 20h
Duração: 1h20min

Descolonizando o conhecimento
Na palestra-performance, Grada Kilomba faz um apanhado de seu próprio trabalho e utiliza vários formatos, de textos teóricos e narrativos a vídeo e performance, para questionar as configurações de poder e de conhecimento.
Quando: 17 e 18 de março, às 18h
Duração: 1h10min

Entrelinhas
Num diálogo entre o passado e o presente, a coreógrafa e intérprete Jaqueline Elesbão discute a violência contra a mulher e evidencia como a voz feminina, em especial a da mulher negra, é historicamente silenciada dentro de uma sociedade machista e de mentalidade escravocrata.
Quando: 19, 20, 21, 22, 23 e 24 de março, às 20h
Duração: 30min

O encontro. Foto: Stavros Petropoulos

O encontro, de Simon McBurney. Foto: Stavros Petropoulos

O Encontro
Por meio de tecnologias de som, o inglês Simon McBurney leva o espectador a uma imersão pela Amazônia brasileira. Inspirado no livro Amazon Beaming, de Petru Popescu, ele conta a história de um fotógrafo que, no fim dos anos 1960, se viu perdido em meio à terra indígena do Vale do Javari.
Quando: 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 de março, às 20h
Duração: 2h17min

sal., espetáculo de Selina Thompson, visto na MITsp 2018, está na programação. Foto: Guto Muniz

sal.
Em 2016, Selina Thompson embarcou em um navio cargueiro para refazer uma das rotas do comércio transatlântico de escravos: do Reino Unido à Gana e, de lá, à Jamaica. As memórias, questionamentos e sofrimentos desse percurso levaram a performer ao universo de um passado imaginário.
Quando: 26 de março, às 19h
Duração: 1h

Em Legítima Defesa
A performance, encenada em meio à plateia, logo após alguns espetáculos da MITsp 2016, traz discursos históricos entrelaçados a depoimentos pessoais, músicas e poesias. Em suas falas, os artistas do Coletivo Legítima Defesa remetem à diáspora negra e a seus desdobramentos históricos, numa ação que busca resistir à narrativa hegemônica e dar voz à própria história.
Quando: 28, 29 e 30, às 19h
Duração: 20min

ABERTURAS DE PROCESSO

Camming – 101 Noites
Janaina Leite faz um paralelo entre o livro As Mil e uma Noites – no qual Sherazade precisa entreter o rei – e as camgirls profissionais, que têm que garantir a atenção dos clientes, num trabalho que vai além do sexual, passando também pela narrativa imaginária, dramatúrgica e até terapêutica.
Quando: 12 e 13 de março, às 23h
Duração: 1h
Bate-papo: 14 de março, às 16h

Ué, Eu Ecoa Ocê’ U É Eu?
Celso Sim, Cibele Forjaz e Manoela Rabinovitch abrem o processo da performance audiovisual, que dialoga com a pandemia e o caos político. Os artistas apresentam dois ritos: um de antropologia funerária, em homenagem aos indígenas mortos em decorrência da Covid-19, e outro de canibalismo guerreiro, uma reação de caça ao inimigo. A performance tem duas versões, uma censurada (ela precisou receber cortes para ser apresentada em Brasília, em dezembro de 2020) e outra sem censura. Ambas serão transmitidas na sequência.
Quando: 22, 23 e 24, às 22h
Duração: 45min (as duas versões)

Um Jardim para Educar as Bestas
O ator Eduardo Okamoto, a diretora Isa Kopelman e o músico Marcelo Onofri realizam abertura de processo de duo para piano e atuação. A encenação alterna dança, música e a história de Seu Inhês, um sertanejo de olhos apertados que, como forma de evitar uma predição de morte da esposa, decide construir um jardim de pedras em meio ao sertão.
Quando: 26, 27 e 28 de março, às 18h30
Duração: 20min

WORKSHOPS

Petformances
A performer Tania Alice e a veterinária Manuela Mellão propõem aos participantes realizar práticas artísticas diversas (performances, escrita, fotografia, pintura etc.), sempre permeadas pelo afeto, ao lado de seus pets.
Quando: 18 de março, das 15h às 17g, e 19 de março, das 15h às 18h
Número de vagas: 20 (os participantes serão escolhidos por ordem de inscrição)

Curando a Branquitude
A sul-africana Ntando Cele propõe um trabalho em conjunto na tentativa de sanar traumas de uma sociedade marcada pela hegemonia da branquitude. A artista busca sabedorias ancestrais e pré-colonialistas na tentativa de reimaginar um futuro e criar um espaço não violento, em que se possa enfrentar a crise global de maneira coletiva.
O workshop será ministrado em inglês, com tradução para o português.
Quando: 20 de março, das 10h às 13h

RESIDÊNCIA

Inter Pretas
A residência virtual é voltada a mulheres artistas e ativistas, em especial pessoas não brancas, que queiram trabalhar com materiais biográficos. Nos encontros, a sul-africana Ntando Cele foca o autocuidado na prática artística e algumas estratégias de empoderamento, além de propor um espaço não violento para “sonhos coletivos”. Ela se alterna entre atividades em grupo e conversas individuais com as participantes.
Quando: de 25 a 28 de março, das 10h às 13h. Os horários dos atendimentos individuais serão combinados com as participantes
Número de vagas: 12

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Críticas: Sobre o conceito de rosto no filho de Deus

Espetáculo de Romeo Castellucci abriu a MITsp. Foto: Lígia Jardim

Espetáculo de Romeo Castellucci abriu a MITsp. Foto: Lígia Jardim

Cada espetáculo da MITsp será criticado por pelo menos dois dos veículos que integram o Coletivo de Críticos (Teatrojornal (SP), Horizonte da cena (MG), Questão de crítica (RJ), Antro Positivo (SP) e Satisfeita, Yolanda?). Os textos serão encartados na programação distribuída nos teatros e também publicados no Facebook, para que todo mundo possa comentar e repercutir as ideias traçadas sobre os espetáculos.

Para começar, as críticas de Daniele Avila Small, da Questão de crítica, e de Valmir Santos, do Teatrojornal, para Sobre o conceito de rosto no filho de Deus:

Sobre a abertura do olhar nas imagens de arte
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica

O espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho.

Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movi-mento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito.

A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas, se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha.

A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.

No Brasil, a montagem só tinha sido vista em Porto Alegre

No Brasil, a montagem só tinha sido vista em Porto Alegre

A fisionomia do olhar
Por Valmir Santos – Teatrojornal

A face onisciente de Cristo no pé-direito do palco, do queixo aos fios de cabelo, justapõe as escalas do sagrado, do humano e do espaço cênico em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A imagem de forte carga simbólica e de construção histórica evidente redundaria o título da obra não fosse ela mesma convertida em dispositivo seminal da companhia Socìetas Raffaello Sanzio. Seu diretor, Romeo Castellucci, enquadra apenas a cabeça em vez do gesto e parte do torso da pintura do renascentista Antonello da Messina que o inspira. O enigma dessa fisionomia estabelece um campo autônomo ao observador que para ela desviará em muitas passagens do espetáculo em busca de significações ou ressignificações talvez menos exasperantes do que aquela que enreda pai e filho. Em vão.

No plano realista, eles acabaram de acordar. O velho interpretado por Gianni Piazzi senta para assistir à televisão enquanto o filho, por Sergio Scarlatella, já com o figurino do executivo prestes a sair para o trabalho, lhe prepara o café da manhã. Esse fragmento de cotidiano sai dos eixos com a prostração do pai, sem controle sobre as necessidades fisiológicas, e a consequente impotência do filho diante do estado primitivo do ser e da iminência da finitude. Alegoria dos embates divino e humano.

Ao retratar a compaixão em circunstâncias limítrofes (a limpeza das fezes e a colocação da fralda geriátrica ocorrem na cadência factual), Castellucci cuida em contrapor a presunção teatral. Ela está dada desde os primeiros longos minutos em que rastreamos a casa de móveis assépticos, de sofá, mesa, cadeiras, carpete e tudo mais tomado pelo branco, exceto o aparelho de TV de costas para o público e uma planta num vaso. Eis o set. Corpo arqueado, andar titubeante, o pai surge carregado por dois contrarregras vestidos de preto, feito manipuladores de bonecos. A partitura do filho que congela o gesto da mão estendida nas costas do pai na hora de limpá-lo ou um galão com o composto que sugere os excrementos em cena são indícios do artifício da arte ao vivo a sustentar o fio das presenças e dos mal-estares.

No segundo movimento do espetáculo a relação pai e filho, até então permeada pela parábola do sagrado, converte-se em instalação. A casa é desmontada aos olhos do espectador, menos a cama em que o pai está sentado, abatido, cabisbaixo, com o rosto entre as mãos. A narrativa ganha o contorno moral, ou seja, pertence ao domínio do espírito do homem. Crianças atiram objetos contra o Cristo de traços humanizados lá na Renascença (Kurt Cobain seria um bom modelo para encarná-lo), justamente quando a arte ganha perspectiva, dá margem para interpretações. A ação das criaturas imberbes despejando objetos de suas mochilas e atirando-os na direção da criatura icônica pode ser lida como um levante, à maneira de Jó, ou como uma figura de retórica contra as gradações do fundamentalismo na ordem global. É o futuro confrontando o passado arcaico aqui e agora.

A iconoclastia irrompe de vez no movimento final da apresentação, quando a imagem se faz verbo. Entre as razões de conduzir ou se deixar conduzido paira “o ser ou não ser” shakespeariano, reafirmando que a teatralidade é o que suporta essa aventura do olhar que desde a cultura grega atinava com o pensar e hoje padece do excesso de imagens a ver. Ver é passagem. O olhar adere e transforma. É sensorial.
Assim como os demais espetáculos que trouxe ao Brasil, a longeva Socìetas Raffaello Sanzio segue impactando nas composições plásticas e sonoras dos sentidos vitais.

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Publicamos uma crítica do espetáculo na época em que ele foi apresentado no Porto Alegre em Cena. Quem colaborou para o Yolanda foi Nayara Brito, jornalista e mestranda do PPGAC/UFRGS.

Um trecho de Sobre o conceito de rosto no filho de Deus:

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