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Qualquer desatenção… Pode ser a gota d’água

Gota D’Água {PRETA} atualiza peça de Chico Buarque e Paulo Pontes para falar das complexidades do Brasil atual. Com Jussara Marçal no papel de Joana e Jé Oliveira (ao fundo), como Jasão. De graça, no Itaú Cultural. Foto: Evandro Macedo / Divulgação

Gota D’Água {PRETA} atualiza peça de Chico Buarque e Paulo Pontes para falar das complexidades do Brasil atual. Com Jussara Marçal no papel de Joana e Jé Oliveira (ao fundo), como Jasão.
De graça, no Itaú Cultural. Foto: Evandro Macedo / Divulgação

Jasão, personagem de Eurípides, trai a palavra dada a uma divindade de que seria leal a quem garantiu suas conquistas. Cansou de Medeia e encheu-se de ambição por mais poder. A tragédia grega termina em vingança da mulher abandonada e atingida por uma dor que não suporta. A peça Gota d’Água (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes foi baseada na Medeia de Eurípides e no Caso Especial para TV Medeia: uma tragédia brasileira, de Oduvaldo Vianna Filho. A protagonista não é mais a feiticeira que usa de poderes sobrenaturais e tem parentesco com deuses do Olimpo. Joana é uma mulher do povo; trabalhadora, sofrida e que ama com devoção o sambista mais jovem, boêmio e pais de seus filhos.

A atriz Bibi Ferreira compôs uma Joana arrebatadora na montagem de 1975, numa interpretação marcante que ainda hoje ocupa o imaginário da gente de teatro e seus fãs. (É possível encontrar trechos de áudio e vídeo da atuação de Bibi na internet; é de tirar o fôlego).

Gota d’Água {Preta} – em cartaz de 8 e 17 de fevereiro, no Itaú Cultural – carrega a trama para a atualidade brasileira, reforçando aspectos políticos de que a traição de Jasão também foi de raça e classe. A cantora Juçara Marçal, vocalista da banda Metá Metá (que faz sua estreia como atriz), assume o papel da protagonista Joana, ameaçada de despejo do conjunto habitacional em que mora com os dois filhos.

A situação fica mais difícil para o lado de Joana quando o “seu” homem, Jasão resolve abandoná-la para casar-se com a filha justamente do influente proprietário da vila. O sambista rompe não só com a mãe de seus filhos, mas também com suas raízes, encantado com a perspectiva de ascensão social.

Creonte (Rodrigo Mercadante), pai da noiva Alma, é dessas figuras de espírito torpe (que aparecem cada vez mais nos postos de comando do Brasil desses tempos), poderoso e corruptor que explora, não só economicamente, as casas da Vila do Meio-dia e os desejos de seus moradores.

A direção de Jé Oliveira, que também faz o papel do sambista Jasão, leva ao palco a pulsação cotidiana das periferias e investe na sonoridade do rap e da MPB. Jasão é autor do samba que dá título ao espetáculo e ganha popularidade. A peça trabalha os elementos musicais das religiões de matriz africana – do candomblé e da umbanda. além de danças como o jongo.

Jé Oliveira, um dos fundadores do Coletivo Negro, encenou anteriormente Farinha com Açúcar, tendo por base a música dos Racionais.

Com elenco predominantemente negro, a encenação de Gota D’Água {PRETA} faz da atualização uma restituição racial. E das tranças da opressão investiga as complexas camadas do Brasil atual.

SERVIÇO

Gota D’Água {PRETA}
Estreia: 8 de fevereiro (sexta-feira), às 20h
Temporada: de 9 a 10 (sábado e domingo) e de 14 a 17 de fevereiro
De quinta-feira a sábado, às 20h; domingo às 19h
Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, Estação Brigadeiro do Metrô)
Sala Itaú Cultural (piso térreo) – 224 lugares
Acesso para pessoas com deficiência e interpretação em libras
Entrada gratuita
Mais informações:www.itaucultural.org.br
Duração aproximada: 160 minutos, com intervalo]
distribuição de ingressos
público preferencial: uma hora antes do espetáculo (com direito a um acompanhante) – ingressos liberados apenas na presença do preferencial e do acompanhante
público não preferencial: uma hora antes do espetáculo (um ingresso por pessoa)
Classificação indicativa: 14 anos

FICHA TÉCNICA

Direção geral, concepção e idealização do projetoJé Oliveira
Elenco Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão
Assistência de direção e figurinos Eder Lopes
Direção musical Jé Oliveira e William Guedes
Concepção de dramaturgia musical Jé Oliveira
Texto Chico Buarque e Paulo Pontes
Banda Dj Tano (pick-ups e bases), Fernando Alabê (percussão), Gabriel Longhitano (guitarra, violão, cavaco e voz), Jé Oliveira (cavaco), Salloma Salomão (flauta transversal) e Suka Figueiredo (sax)
Canção original “Paó”, letra de Chico Buarque e Paulo Pontes, musicada por Juçara Marçal
Design e operação de luz Camilo Bonfanti
Design e operação de som Eder Eduardo e Keko Mota
Cenografia Júlio Dojcsar
Coordenação dos estudos teóricos Jé Oliveira, Juçara Marçal, Salloma Salomão e Walter Garcia
Design gráfico Murilo Thaveira
Assessoria de imprensa Elcio Silva
Fotos Evandro Macedo
Produção executiva Janaína Grasso
Realização Itaú Cultural
Produção geral Jé Oliveira

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Crítica: Ledores do Breu

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Quando assisti ao espetáculo Ledores do Breu em sessão na SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt, o deputado que jurou de pés juntos que era inocente ainda não dormia no xilindró. Era útil ao sistema e havia autorizado há poucos dias a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. O golpista começava a mostrar suas unhonas de traíra, ao enviar cartas à presidenta com um chororó de que era um “vice decorativo”. A situação política no Brasil era tensa. Tudo piorou. Direitos confiscados. Ensino sucateado. Do Planalto ao Cais do Recife a educação sofre duros golpes, incluindo o indisfarçável cárcere privado de professores sob o desapreço de Geju.

O solo Ledores do Breu já é em si e por si de grande potência, mas ganha amplitude na contraluz da realidade, como um foco de resistência e de lucidez.

O educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) – que criou o método de alfabetização de adultos que leva seu nome – alertava que “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

Entram como fatores que dificultam o processo de alfabetização o desemprego e os seus males, jornadas longas e estressantes e a falta de incentivo e até mesmo questões sexistas. Como é exibido na peça, uma menina que é proibida de estudar pelo próprio pai por ter nascido mulher. Ignorância terrível, mas que a personagem não acata e dá o seu jeito de aprender.

Então, não sejamos tolos. Mas Freire também martelava que “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”. E é nisso que pulsa Ledores do Breu.

Paulo Freire se junta a Patativa do Assaré, Zé da Luz, Jackson do Pandeiro, Lêdo Ivo, Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Cartola. Entre canções como Palavras, de Gonzaguinha, episódios, causos, relatos, a dramaturgia é costurada com afeto e cumplicidade da plateia. Seja na imitação dos passarinhos, nos abraços carinhosos e danças.

Dinho Lima Flor chega com sua atuação emotiva, por vezes barroca e experimenta vários estilos interpretativos, navegando inclusive pela comicidade popular. Sozinho em cena trafega por vários personagens, a expor situações extremas e cobrar responsabilidade de todos nós. Como pode, em pleno século 21 o Brasil ostentar um índice tão alto de analfabetismo nas suas mais variadas gradações? Uma pergunta que vejo como resposta uma tentativa de prosseguir com a opressão, com os privilégios de quem historicamente massacrou e desviou recursos e direitos dos mais pobres.

São muitos teatros que essa montagem Ledores do Breu leva para a cena. E esse ator generoso conduz o espectador a sentir a escuridão que cerca os que não sabem ler. É uma cegueira. Como a história do homem que matou a mulher que amava por não conseguir decifrar uma carta, narrado em Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

A Cia. do Tijolo transborda política na sua poética. Desde Concerto de ispinho e fulô, a mostrar a grandeza de Patativa do Assaré. Passando por Cantata para um bastidor de utopias, com seus anônimos na peleja para subverter as injustiças. Até a montagem O Avesso do Claustro, em que resgata a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, com discursos igualitários, projetos de educação e iniciativas de combate à miséria, que esteve no Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano.

O figurino branco vai sendo machado de carvão ao longo da peça. O carvão é usado para escrever em rolos imensos de papel e também como estrada e outros suportes. E nessa caminhada orquestrada que a direção de Rodrigo Mercadante vai indicando pulsações e andamentos, num jogo de sombra e luz, silêncio e som.

A imagem de mulheres expondo faixas com dizeres como “Mais escolas e menos cadeias” (de um vídeo de manifestações exposto na cena) indica que a ignorância, infelizmente, pode ser parte de uma engrenagem que a elite que odeia os diferentes faz questão de alimentar. Mas fiquemos com outra cena do espetáculo que enseja alguma esperança. A de um homem que ao escrever sua primeira palavra, um nome de mulher, se emociona e percebe como o mundo e o seu mundo podem ser ampliados.

Serviço:
Ledores do Breu – Cia do Tijolo (São Paulo-SP), no Circuito Nacional Palco Giratório.
Quando: Quarta (26/07), às 20h
Onde:Teatro Marco Camarotti (Sesc de Santo Amaro), Recife
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)

Ledores do Breu no 13º Festival Aldeia do Velho Chico
Quando: Segunda-feira (07/08), 20h30
Onde:Teatro Dona Amélia, Petrolina
Quanto: R$ 20 (Usuário), R$ 10

Ficha técnica
Atuação, cenário, figurino: Dinho Lima Flor
Direção: Rodrigo Mercadante
Assistente de direção: Thiago França
Dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Criação de luz: Milton Morales e Cia do Tijolo
Orientação corporal: Joana Levi
Produção: Cris Rasec e Cia do Tijolo
Produção e difusão: Thaís Teixeira – EmCartaz Empreendimentos Culturais
Registro: Bruta Flor Filmes
Câmeras registro: Bruna Lessa Cacá Bernardes e Mirrah Iañez

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No palco com Dom Helder

O Avesso do Claustro no Santa Isabel, no Recife. Foto: Wellington Dantas

O Avesso do Claustro no Santa Isabel, no Recife. Foto: Wellington Dantas

Nessa segunda-feira, 30, o compositor, cantor e escritor Chico Buarque foi celebrado com o prêmio de literatura Roger Caillois, em Paris, na França, pelo conjunto de sua obra. Ele foi escolhido na categoria literatura latino-americana. O que poderia ser motivo de orgulho virou mote para comentários hostis, carregados de ódio nas redes sociais nos últimos dias. Um absurdo, por tudo que o artista representa. Como já defendeu o escritor e jornalista Xico Sá: “O Brasil precisa voltar a amar Chico Buarque de Holanda. De todas as maneiras. Com tesão e com afeto”.

A esposa do ex-presidente Lula, que sofreu na última semana um Acidente Vascular Cerebral (AVC) hemorrágico, apontado como o tipo mais grave, também foi vítima da cólera e de demonstrações de desumanidade, selvageria e maldade.

O Brasil mostra sua face monstruosa e as respostas chegam na mesma moeda contra os que atacam. O Brasil está se tornando desumano. De uma perversidade que não tem pudor de alardear o desejo de fazer ou ver sofrer quem pensa diferente.

Nesse contexto adverso, e com os ingredientes da economia e da política da atual conjuntura, O Avesso do Claustro funciona como um antídoto a toda essa baba ácida. O drama musical revigora o nome de Dom Helder Camara (1909-1999), conhecido como bispo vermelho por sua atuação no tempo da ditadura militar brasileira. Baixinho, hábil comunicador e firme defensor dos direitos humanos, ele é inspiração para se tentar recuperar o humanismo, necessário e urgente. Incentivo para a devolução de sonhos e esperanças.

A montagem, da Cia. do Tijolo, junta traços da biografia do clérigo com episódios de três personagens fictícios ancorados no Recife, Rio de Janeiro e São Paula. A peça tem direção partilhada entre Rodrigo Mercadante e Dinho Lima Flor, Dinho também no papel do protagonista.

Karen e Dinho

Lilian de Lima e Dinho Lima Flor

O Avesso do Claustro fez duas sessões no Recife no Teatro de Santa Isabel, sábado e domingo, (28/01) e domingo (29/01) dentro da programação do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos. Apresentações pulsantes, com a plateia participativa em intervenções, diálogos, vaias para os congressistas (não para o ator), fora Temer, risos, choros, muita emoção. Palmas para a memória de Frei Tito, que tem trechos de cartas e poemas expostos, inclusive um relato de torturas padecidas na Operação Bandeirante (Oban), em 1970, e do requinte de perversidade do delegado Fleury que aplicava choque em sua língua na intenção cruel de plagiar o rito da hóstia sagrada.

Foi muito além do que está já previsto no script da cena do lava-pés, sopas e vinho no palco, com o elenco se desdobrando para acolher os que sobem e irradiar bem-querer por todos que estão no teatro.

Essa peça reflete sobre a função da arte a partir dos sentidos; das imagens, dos sons (do batuque de raiz africana e trilha sonora original), do toque, do cheiro da sopa e seu compartilhamento junto com o vinho.

Com lágrimas nos olhos, do palco pude sentir de bem perto a doação proposta da pela Cia. do Tijolo para falar desse mundo perverso e de que até que ponto cada um é responsável pela inflamação desses sentimentos, ao som de Se Deus existe, eu não sei. Ai Rodrigo Mercadante, Dinho Lima Flor, Lilian de Lima, Karen Menatti e Flávio Barollo, que alegria indescritível estar no palco do Santa Isabel para comungar desse amor e também a luta que prossegue.

Cena do lava-pés

Cena do lava-pés, na primeira sessão do Santa Isabel, no Recife

Dom Helder era um homem subversivo, sim. E a peça enfatiza facetas antidogmáticas e anti-institucionais de forma bem-humorada; passagens em que o religioso dribla as regras do claustro com poesia e danças para a Lua; e em oposição clara à opulência do Vaticano.

O protagonismo de Dom Helder é dividido com outras três figuras localizadas em pontos geográficos distintos: um pesquisador que chega ao Recife para investigar o percurso do bispo, uma cozinheira que trabalha no projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de levantamento de uma edificação popular no bairro carioca do Leblon; e uma paulistana que mora numa quitinete de 15 m2, percorre estações da cidade e se depara com desvalidos num quadro de degradação do ser humano na maior metrópole do país.

Ao chegar à estação Santa Cecília e esbarrar com a frase “Deus não existe”, ela dá o gancho para o narrador interromper a cena e comentar: “Como Deus não existe? Deus nunca esteve tão presente nos adesivos de carros, em declarações públicas e, até mesmo, nas reuniões na Câmara dos Deputados!”.

Frei Tito que foi torturado pela ditadura militar brasileira

Frei Tito que foi torturado pela ditadura militar brasileira

Há depoimentos impressionantes, como aquele em que o bispo confessa ter desejado o incêndio do Vaticano e, com ele, a morte do Papa para diminuir a distância entre o poder religioso e os cristãos. A cozinheira carioca também revela que faz boas ações por interesse e rejeita o mal por medo da punição divina.

A peça faz um paralelo da trajetória engajada do bispo em prol dos despossuídos e defesa de perseguidos políticos nos anos de 60/70 e a Teologia da Libertação, os movimentos estudantis cristãos (JUC/JEC) e as Comunidades Eclesiais de Base.

Dom Helder gostava defrases de efeito. E a ele são atribuídas muitas: “o problema do Nordeste não é a seca, são as cercas”; “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão; se falo das causas da fome, me chamam de comunista”. E fica a pergunta: “Quem, mesmo dentre uma legião de anjos, poderá me ouvir?” 

Ficha técnica
O avesso do claustro
Dramaturgia: Cia. do Tijolo
Direção: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção Musical: William Guedes
Com: Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo
Orientação teórica: Frei Betto
Músicos: Maurício Damasceno,William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart
Figurinista: Silvana Marcondes
Concepção e construção de cenário: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Assistentes e aderecistas: Alexandra Deitos e Isa Santos
Rede e bonecos de pano: Silvana Gorab
Bonecões: André Mello e Cleydson Catarina
Cenotécnica: Julio Dojcsar e Majó Sesan
Costureira: Atelier Judite de Lima e Cecília Santos
Desenho de luz: Aline Santini
Operadora de luz: Laiza Menegassi
Assistente de luz: Pati Morim
Operação de som: Emiliano Brescacin
Orientação cênica: Joana Levi e Fabiana Vasconcelos Barbosa
Orientação vocal: Fernanda Maia
Composição de trilha sonora original: Caique Botkay e Jonathan Silva
Produção executiva: Cris Raséc
Assistente de produção: Lucas Vedovoto
Designer gráfico: Fábio Viana
Fotos: Alécio Cezar

 
 
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Peça sobre Dom Helder Camara vem ao Janeiro

Foto: Alecio Cezar

O Avesso do Claustro fecha o Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Alecio Cezar

A memória de Dom Helder Camara (1909-1999) está talhada no coração da dramaturgia de O Avesso do Claustro, espetáculo da Cia. do Tijolo. A peça encerra a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos versão 2017, no Recife, com sessões nos dias 28 e 29 do mês que vem, no Teatro de Santa Isabel. A encenação é construída enquanto missa profana e poema, celebração da utopia e da canção, na definição dos criadores.

Assisti ao Avesso do Claustro na quarta edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que ocorreu em setembro deste ano.  Escrevi uma crítica sobre a montagem para o site do Sesc, promotor do festival que pode ser acessado pelo link  DOM DA LIBERDADE .

É uma encenação urgente e necessária, calorosa e inteligente, que acolhe nossas fragilidades diante do mundo, que “traça paralelos da luta do Dom Helder durante o regime militar brasileiro e essa outra Idade Média que encaramos sem tantos eixos de sustentação”, como escrevi para o MIRADA. E incentiva a obstinar na justiça.

Dinho Lima Flor, que interpreta Dom Helder Camara, é pernambucano de Tacaimbó. Ele divide a direção do espetáculo com o mineiro de Belo Horizonte Rodrigo Mercadante. A vontade da Cia. do Tijolo de vir ao Recife com a peça era tanta que o grupo entrou para a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos em condições bem especiais, dividindo os custos. Os ingressos para as sessões de O Avesso do Claustro terão preços diferenciados para complementar as despesas. Serão R$ 60 e R$ 30.

O festival ocorre de 12 a 29 de janeiro e conta com um orçamento super reduzido: R$ 400 mil, contra cerca de R$ 900 do ano passado que já era apertado.

Dinho Lima Flor interpreta o bispo no espetáculo O avesso do Claustro. Foto: Alecio Cezar

Dinho Lima Flor interpreta Dom Helder Camara. Foto: Alecio Cezar

Rememorar a história do bispo vermelho nesses tempos incertos reforça o ânimo para a boa luta. A trupe paulistana de oito anos de existência leva para a cena a trajetória do cearense que se tornou arcebispo de Olinda e Recife.

Os episódios da vida e da militância do religioso católico progressista são narrados a partir de três personagens que tentam se conectar com ele: Rodrigo Mercadante faz um pesquisador que busca investigar as trilhas do bispo no Recife; uma paulistana interpretada por Lilian de Lima, que vive numa quitinete de 15 me perambula pelo centro de São Paulo de estação em estação dando socorro aos mais desvalidos e Karen Menatti assume o papel de uma cozinheira que está aos pés do Cristo Redentor e assiste o projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na construção do conjunto habitacional Cruzada São Sebastião no bairro carioca do Leblon.

Essas três figuras cheias de questionamentos e perplexidades diante da realidade brasileira dialogam com Camara em encontros inusitados quase 20 anos após sua morte. Elas ouvem de novo a voz do religioso, seus lampejos e sua lira de poeta. Nessas conversas, eles chegam a questionar o bispo.

A ação da moradora da maior metrópole da América Latina ao aportar na estação Santa Cecilia e se deparar com o aviso “Deus não existe”, abre para um debate sobre o uso indevido do nome de Deus na atualidade. O narrador questiona: “Como Deus não existe? Deus nunca esteve tão presente nos adesivos de carros, em declarações públicas e, até mesmo, nas reuniões na Câmara dos Deputados!”.

O mundo cada vez mais conservador, a mentalidade retrógrada pulverizada no cenário brasileiro foram motivações para o grupo erguer o espetáculo. A Cia. Do Tijolo quis fazer um contraponto ao papel político exercido atualmente pelas igrejas evangélicas. Dom Helder Camara é o personagem ideal: de ideologia alinhada à esquerda, que se projetou internacionalmente por suas ações de combate à miséria e discursos igualitários. A montagem dá uma resposta estética e política à atuação da chamada BBB do Congresso Nacional, a bancada da Bíblia, do Boi e da Bala.

Elenco de O Avesso do Claustro

Elenco de O Avesso do Claustro.  Foto: Alecio Cezar / Divulgação

Dom Herder Camara é um personagem de luta, das históricas lutas de resistência política durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Defensor da não-violência e de uma Igreja Católica voltada aos pobres, por sua militância pela defesa dos direitos humanos, o clérigo foi indicado quatro vezes ao prêmio Nobel da Paz. E por denunciar internacionalmente os crimes de tortura pelo regime militar no Brasil ele foi impedido pelo AI-5, a partir de 1986, de ter seu nome citado pela imprensa brasileira.

Já no início do espetáculo temos o batuque a evocar nossas raízes africanas. Na última cena, grandes bonecos carnavalescos representam Patativa do Assaré, Paulo Freire, Dom Hélder e García Lorca. Essas figuras já foram celebradas em outros espetáculos da Cia do Tijolo. O mestre da cultura popular Patativa do Assaré (1909-2002) foi protagonista da montagem Concerto de Ispinho e Fulô. A peça Ledores do Breu foi inspirada no texto Confissão de Caboclo, de Guimarães Rosa, e no pensamento e prática do educador Paulo Freire. Cantata para um bastidor de utopias tem por base num texto de Federico García Lorca: Mariana Pineda.

Os personagens de O Avesso do Claustro (interpretados por Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo, além dos músicos Aloísio Oliver, Maurício Damasceno, William Guedes e Leandro Goulart) ousam imaginar novos horizontes para esses tempos tenebrosos. No território profano, utópico e poético do teatro se cozinha o alimento da esperança e tonifica o espírito para a batalha.

SERVIÇO
O Avesso do Caustro, com a Cia. do Tijolo, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos
Quando: 28 e 29 de janeiro de 2017
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 60 e R$ 30

Ficha técnica
O avesso do claustro
Dramaturgia: Cia. do Tijolo
Direção: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção Musical: William Guedes
Com: Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo
Orientação teórica: Frei Betto
Músicos: Maurício Damasceno,William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart
Figurinista: Silvana Marcondes
Concepção e construção de cenário: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Assistentes e aderecistas: Alexandra Deitos e Isa Santos
Rede e bonecos de pano: Silvana Gorab
Bonecões: André Mello e Cleydson Catarina
Cenotécnica: Julio Dojcsar e Majó Sesan
Costureira: Atelier Judite de Lima e Cecília Santos
Desenho de luz: Aline Santini
Operadora de luz: Laiza Menegassi
Assistente de luz: Pati Morim
Operação de som: Emiliano Brescacin
Orientação cênica: Joana Levi e Fabiana Vasconcelos Barbosa
Orientação vocal: Fernanda Maia
Composição de trilha sonora original: Caique Botkay e Jonathan Silva
Produção executiva: Cris Raséc
Assistente de produção: Lucas Vedovoto
Designer gráfico: Fábio Viana
Fotos: Alécio Cezar

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O Teatro Ventoforte e suas muitas chaves

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Ilo Krugli, criador do Teatro Ventoforte. Foto: Pollyanna Diniz

Quem entra no meio de uma apresentação do Teatro Ventoforte – grupo criado há 40 anos pelo diretor, dramaturgo, ator, poeta e artista plástico Ilo krugli – , pode não entender nada. Dependendo do momento em que esteja a encenação, quem sabe imagine até que a peça já terminou e os atores agora recebem o afago do público.

As 4 Chaves, por exemplo, espetáculo apresentado no Aldeia Yapoatan – II Mostra de Artes em Jaboatão dos Guararapes, quebra quaisquer limites entre atores e plateia, só que de uma forma bastante orgânica. Talvez porque as crianças tenham mesmo pouco pudor em se entregar a uma experiência ou porque é simplesmente outra maneira de pensar a encenação, sem que seja uma imposição subir ao palco ou que você tenha a lucidez de pensar, como tantas vezes acontece: “ok, chegou a hora da interação com o público. Podemos pular? Qual o próximo passo da cartilha mesmo?”.

Parte do público assistiu à peça no palco

Parte do público assistiu à peça no palco

Se para quem foi assistir à peça, a mudança é significativa, isso também acontece com o ator. A maneira fluida de pensar a encenação de As 4 Chaves exige outro estado de energia e de atenção. É como se todo o treinamento físico e preparação não fossem suficientes para dar conta dos estímulos e da efetividade das relações que podem ser construídas. A obra, embora com as amarrações e delimitações do grupo, de fato se estabelece quando há não só o encontro, mas a participação do outro.

O elenco conta com, além de Ilo lrugli, Ana Maria Carvalho, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Juan Velásquez, Alexandre Lavorini, Valquíria Rosa Elaine Duarte, Leandro Alma, Vanessa Carvalho, Thiago França e os músicos-atores Anderson Areias, Flávia Cunha e Bruno Lavorini. Os destaques vão para Juan Velásquez, que é o narrador da história; Rodrigo Mercadante e Karen Menatti, esses dois últimos também integrantes da Cia do Tijolo.

No enredo, quatro personagens e seus desejos: Joana quer engravidar; o Gigante sonha com um coração; Zé precisa de pão; e o Desconhecido seria tão mais feliz com uma namorada! Nada muito complicado – mas o que a partir daí pode surgir, é sempre uma surpresa. E assim lá se vão duas horas de peça.

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

Crianças ajudam a realizar o sonho de Joana

A musicalidade é um dos pilares da encenação proposta por Ilo Krugli: os atores tocam e cantam, numa encenação completamente pontuada pelas canções. Outra base de trabalho é a cultura popular, que pode se evidenciar na escolha do repertório, no figurino, no cenário.

É um espetáculo lúdico, que vai funcionar ainda mais à medida em que as respostas do público são dadas. E essa construção não é um caminho fácil: por vezes, por exemplo, nos perguntamos se o enredo tem mesmo a força para segurar a proposta da encenação; é como se a história ficasse tão pulverizada que perdesse em potência. O texto aqui é visto como um elemento de composição nessa colcha de retalhos. Mas a impressão é que a experiência poderia ser alavancada pelo texto e isso não necessariamente acontece.

Outra questão que se mostra prioritariamente por conta da estrutura da montagem é a dificuldade em cortar e se livrar dos excessos da encenação. Aparar as arestas não é nada fácil. O espetáculo se mostra longo e da mesma forma que é uma maratona para os atores, é para o público. Quando, inclusive, todos imaginam que a montagem está resolvida, uma nova questão se estabelece e a peça parece recomeçar, mas já sem o fôlego inicial.

Ainda assim, mesmo com ponderações, a criatividade de Ilo Krugli e a competência do elenco que ele reuniu em As 4 Chaves são indiscutíveis. É mesmo emocionante ver um homem com mais de 80 anos no palco e nos mostrando que é possível pensar além de uma forma já estabelecida, nos fazendo enxergar possibilidades, nos abrindo horizontes de percepção.

*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

Espetáculo foi encenado na lona de circo montada no Sesc Piedade

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