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Ledores no breu
Crítica
Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
#5

Ledores no Breu foi apresentado no Teatro Dona Amélia. Foto André Amorim / Divulgação

Participação do público em Ledores no Breu. Foto André Amorim / Divulgação

Dinho Lima Flor é um ator intenso, visceral. Sua atuação é marcada pela entrega, pela emoção e pela sintonia fina com a plateia. Rebento do teatro Ventoforte, do saudoso Ilo Krugli, ele se doa apaixonante enquanto intérprete. Sua Cia. do Tijolo foi tramada na convivência com Krugli. Essa trupe faz teatro contemporâneo alimentado pela seiva da cultura popular. Da melhor mistura de ethos e pathos, que conjuga o epos e a lírica, a depender do contexto.

Já no início a trupe paulistana seguiu os passos de Patativa do Assaré nos repentes, na poesia, na vida do artista cearense para erguer o belo trabalho Concerto de Ispinho e Fulô.

Além do lirismo, Cantata para um Bastidor de Utopias está carregada da porção política de libertação. Para falar dos anônimos em busca por justiça, a peça junta três eixos históricos: o enforcamento – em 1831 – de Mariana Pineda, jovem heroína que desafiou o autoritarismo do Rei Fernando VII bordando uma bandeira para os liberais; o assassinato de Federico García Lorca em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola; e a ditadura militar brasileira (1964-1985) e suas repercussões.

Com O Avesso do Claustro o grupo leva ao palco a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, “emblemática personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, como dizem os artistas do Tijolo, numa montagem que junta simbioticamente poesia, música e teatro.

Dinho Lima Flor em Ledores no Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu participou da Aldeia do Velho Chico 2022. Foto: André Amorim / Divulgação

Ledores no Breu. Foto André Amorim /  Divulgação

Em Ledores no Breu – solo do pernambucano de Tacaimbó Dinho Lima Flor, sob direção de Rodrigo Mercadante – é o corpo do ator que conduz a plateia pela escuridão dos que não leem, uma espécie de cegueira para interpretar o mundo letrado e os feixes de luz que podem chegar com a alfabetização.

Paulo Freire, Patativa do Assaré, Frei Betto, Lêdo Ivo (com Os pobres na estação), Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Zé da Luz e mais recentemente Maria Valéria Rezende são convocades para a rede. E mais, sons e músicas de Cartola, Jackson do Pandeiro, Chico César, Manu Chao, Palavras, de Gonzaguinha e Samba da utopia, de Jonathan Silva (criado especialmente para a peça).

Canções, relatos, causos, episódios compõem essa teia dramatúrgica de descobertas emocionadas das letras – caso de Joaquim que compõe a primeira palavra, o nome da sua amada Nina, contada por Paulo Freire de sua experiência em sala de aula. E o lance da menina proibida pelo pai de estudar por ser mulher, que enfrenta a implacável ordem paterna e decide aprender a ler com a ajuda de uma amiga, com graveto na areia em vez de lápis e papel.

Ou a narrativa de Patativa do Assaré que diz que largou de ser “matador de passarinho”, que fazia por diversão como outros meninos da sua idade, e seguiu a imitar os cantos desses animais voadores.  

Como uma atuação ardente, Dinho Lima Flor passeia por vários estilos interpretativos, transita pela comicidade popular, vai ao exagero, testa a sutileza, comenta temas atuais, se avizinha do trágico. Muito habilmente cria seu jogo na relação com a plateia, assume a performance, convoca personagens, finge que encarna e sai. Cobra pelos índices de analfabetismo no Brasil em pleno século 21.

É uma exuberância de muitos teatros. Cumplicidade íntima com o público magnetizado na troca de afetos, danças e abraços carinhosos, materiais e simbólicos. Com a prosa/verso e o corpo desse ator, a palavra encanta.

O figurino branco vai sendo enodoado de carvão no decorrer da cena, o mesmo carvão que serve para escrever e provocar reações sensoriais. Carteiras escolares fazem parte da composição.  Rolos grandes de papel pardo são desenrolados para formar estradas e suportes para a escrita. A direção de Rodrigo Mercadante estimula ritmos, andamentos, revolucionando emoções do ator e agitando as sensibilidades do público.

Mulheres portam faixam com expressões como “Mais escolas e menos cadeias”, em um vídeo de manifestações.  Sabemos que o analfabetismo, o não letramento, é uma estratégia de subjugação dos governos não democráticos. Isso é um problema, diria até um crime, um confisco de direitos dos mais pobres – causa e consequência da falta de oportunidades; uma política de opressão, manutenção de privilégios muitas vezes associada a desvios de recursos.

Na Aldeia do Velho Chico, realizado em Petrolina no mês de agosto, no palco do Teatro Dona Amélia, do Sesc, com os espectadores também no tablado, magnetizados, a sessão não utilizou os recursos dos vídeos, mas eles fazem parte da obra.  

A palavra escrita com carvão em Ledores do Breu. Foto: André Amorim

Ledores no Breu – Foto André Amorim

Marcas de tirania – O iletrado

Deixei para analisar por derradeiro o eixo da peça que tem por texto Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

Já escrevi outra crítica Ledores no Breu e segui o caminho da grandeza de Paulo Freire e da interpretação de Dinho Lima Flor, como faço até aqui. Mas tinha algo que me incomodava no espetáculo, que dessa vez ficou evidente.

Por não saber ler, um homem comete um crime contra sua companheira. Desde que foi publicado, o poema Confissão de Caboclo, de Zé da Luz, é reiteradamente lido / interpretado dessa forma. A ignorância aparece como a causadora da morte.

Mais além do analfabetismo que é apontado com o grande mal a ser combatido, o poema de Zé da Luz – um dos pilares do espetáculo – precisa de uma atualização crítica dentro da encenação.

A ignorância de uma determinada regra não é suficiente para inocentar quem a viola. As mulheres historicamente sofreram / sofrem opressões e violências de várias naturezas, em várias gradações.

É absolutamente insustentável que a cruel, odiosa e desumana tese de legítima defesa da honra tenha sido usada durante tanto tempo para proteger os homens acusados/autores de feminicídio. Foi sim usada como argumento por advogados que desdenharam os princípios da dignidade humana, da proteção à vida, da igualdade de gênero (que infelizmente ainda não existe em sua plenitude).

Muitos homens foram absorvidos com esse escudo após matar uma mulher, sob alegação do término ou traição em uma vinculação afetiva.

O poeta Severino de Andrade Silva, mais conhecido como Zé da Luz (1904 – 1965) foi um poeta popular paraibano, que publicava em forma de cordel. Escreveu entre outros Brasi Cabôco, A Cacimba, As Flô de Puxinanã, A Terra Caiu no Chão, Ai! Se Sêsse!…, Sertão em carne e osso.

Confissão de Caboclo encerra com a expressão “que crime não saber ler”, depois que o narrador descobre que Rosa Maria não o traiu, motivo que ele explica ao delegado de ter tirado a vida da mulher que ele diz que amava.

Alguns estudiosos apontam que o poema trata do analfabetismo como um crime social. É preciso mudar essa lente de leitura. Existe um crime de feminicídio. E o não letramento da personagem que mata não pode ser atenuante para o assassinato. Mulher não é objeto que pode ser descartada / assassinada quando não corresponde às expectativas.

No espetáculo Ledores no Breu o narrador confessa que matou Rosa Maria por suspeita que ela o traía com Chico Faria, seu antigo noivo. Não existe prova da traição. Apenas uma carta que o personagem-narrador não sabe decifrar. Por trás dessa carta é urdida a defesa dessa figura.

A personagem de Zé da Luz é apresentada como um homem bom, trabalhador e apaixonado por sua esposa.  

A questão que se apresenta é que o ator defende sua personagem como um homem que, que guiado por fortes emoções (“Cego de raiva e paixão”), assassina a mulher do poema com um facão. E isso é feito em camadas de envolvimento emocional com a plateia. Sua personagem é defendida com garra, recebendo os componentes mais humanizados, o que faz com que o feminicídio da ficção se torne um ato naturalizado dentro do contexto exposto.

Um feminicídio é um feminicídio. Falta essa dobra dentro do espetáculo. Pois todo o abraçamento em favor do autor da ação é narrado pelo ponto de vista do assassino. O espetáculo é composto de fragmentos e esse episódio da Confissão de caboclo está está dividido em dois momentos, entrecortados por outras situações e músicas.

Ledores no Breu é uma peça que estreou em 2014. Muitos avanços na esteira dos direitos da mulher ocorreram. E fica difícil receber o caboclo narrador apenas com o sofrimento que ele passa, sem fazer um giro de perspectiva desse pathos para a Rosa Maria assassinada. Algo de epos para problematizar a cena ou algum outro procedimento.

A cumplicidade amorosa, o envolvimento na peça não pode suplantar o fato de que uma mulher foi assassinada. Não existem motivos para uma mulher ser morta. E isso não está lá. A personagem marido não pode receber a indulgência da plateia enquanto o olhar para a mulher é de que essas coisas acontecem.

Então, creio que Ledores no Breu precisa de uma pequena revisão para honrar o que o grupo representa no cenário teatral e saudar os valores que são defendidos em seus espetáculos. O patriarcado continua ainda hoje, século 21, a naturalizar assassinatos de mulheres (cis e trans) feitos por homens rejeitados e desequilibrados, que encontram pretextos reais ou imaginários para suas terríveis atitudes. Mas não dá para deixar que arte comprometida com o humanismo faça romantização de um assassinato.

Não sei como isso poderá ser executado em cena. É contigo Mercadante. É contigo Lima Flor. É contigo Cia. do Tijolo. Romper com o que Paulo Freire chamou de “cultura do silêncio” e transformar os analfabetos em protagonistas de suas histórias é também expor a responsabilidade do relacionamento com o mundo ao redor.

 

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