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Tulio Carella por inteiro
em Orgia e compadrio

Biografia de Alvaro Machado resgata a memória do escritor e dramaturgo argentino que transformou o exílio no Recife em literatura transgressora. Na imagem, Carella em entrevista para a revista Qué, de Buenos Aires, 1956, no lançamento de seu livro Tango – mito y esencia. Foto: Autoria desconhecida. Acervo Mario Tesler

Capital pernambucana dos anos 1960: o Recife de Tulio Carella. Foto: Reprodução

Um das imagens do livro, com a legenda: Faixa com anúncio da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, com o Teatro de Arena de São Paulo, montagem apresentada no Teatro de Santa Isabel, em 1960, com apoio da Prefeitura do Recife e do MCP

A publicação de Orgia e compadrio. Tulio Carella, drama e revolução na América Latina, obra do jornalista e doutor em artes cênicas Alvaro Machado, constitui um esforço essencial para iluminar a vida e o legado do escritor argentino Tulio Carella. Nascido em 1912, e desde cedo de notável talento poético, o filho de emigrantes calabreses pobres logrou construir uma carreira de sucesso nos principais palcos de Buenos Aires, recebendo prêmios e aclamação de público e crítica. De outro lado, a trajetória literária de Carella foi permeada por uma audácia intelectual e pessoal que, muitas vezes, cobrou um alto preço. Após receber orientações diretas de Federico García Lorca, quando contava apenas 21 anos, o portenho deu início a uma produção vasta e variada, que começou com farsas teatrais e, com o tempo, voltou-se para a representação de figuras marginalizadas da sociedade, explorando patrimônios da cultura popular, como o lunfardo, o tango e o gênero teatral chamado sainete criollo.

O destino de Carella tomou um rumo decisivo em 1960, quando aceitou o convite dos dramaturgos Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho para lecionar teatro na Universidade do Recife. Essa mudança para a capital pernambucana representou, além de um deslocamento geográfico, uma imersão profunda de Carella em um universo sensorial e cultural completamente novo, nas palavras de Alvaro Machado. Longe dos bairros mais abastados, Carella optou por fixar residência no Recife Antigo, a área portuária repleta de vida e diversidade, habitada por população predominantemente negra e mestiça. Ali, ele encontrou um ambiente de liberdade e efervescência cultural que o cativou.

Durante sua intensa permanência no Brasil, que se estendeu por cerca de um ano e meio, Carella manteve diários íntimos detalhados. Neles, registrou suas experiências sexuais homoeróticas e centenas de perspicazes observações sobre a sociedade recifense. Essas anotações seriam a base de seu livro mais controverso, Orgia, publicado no Brasil em 1968. A obra, que descreve sem constrangimento encontros amorosos e aborda a sexualidade livre em um Brasil ainda bastante conservador, revelou um Carella que não hesitava em desafiar barreiras e questionar as normas sociais de seu tempo.

A coragem de Orgia trouxe consigo sérias consequências. Em um cenário político de crescente tensão e forte sentimento anticomunista, Carella, um estrangeiro que interagia abertamente com as camadas populares, foi erroneamente identificado como “traficante de armas de Cuba”. Em 1961, foi sequestrado, detido e torturado por militares brasileiros na ilha de Fernando de Noronha. Sua libertação veio após a descoberta, por policiais, de seus diários numa gaveta de quitinete alugada, com páginas que esclareciam a natureza sexual de seus encontros, dissipando a ideia de um complô político. Contudo, foi imediatamente dispensado da universidade e forçado a deixar o país.

O impacto de Orgia se fez sentir muito além de sua expulsão do Brasil. A publicação do livro conduziu a um verdadeiro “cancelamento” de Carella em sua terra natal, a Argentina, resultando em ostracismo social e profissional. Após sua morte, em 1979, seus manuscritos originais foram destruídos por sua ex-esposa e por suas sobrinhas, sob a justificativa de que “encerravam coisas tremendas”. No entanto, o tempo, como observa Machado, validou a relevância da obra. O que inicialmente foi estigmatizado como pornográfico, gradualmente conquistou reconhecimento como um documento histórico e literário crucial sobre a homossexualidade no Brasil dos anos 1960. A obra de Carella passou a inspirar artistas e pesquisadores, tornando-se uma referência para criações como o filme Tatuagem (2013), do cineasta Hilton Lacerda e o álbum Orgia (2022) do cantor Johnny Hooker.

A biografia de Alvaro Machado, Orgia e compadrio, representa um esforço grandioso para corrigir esse silenciamento. Machado vê Carella como um “perfil humanista no sentido renascentista do termo”, alguém que, ao mergulhar no cotidiano do Recife, destoava muito em aparência da população local, o que, segundo o biógrafo, “o deixava tão excitado quanto os populares seus interlocutores”. Embora por vezes desconcertante, o olhar de Carella sobre os corpos negros era, na visão do biógrafo, permeado por um “lirismo” que transformou as descrições eróticas “nas páginas mais bonitas do livro”.

Conversamos com Alvaro Machado sobre essa jornada de resgate e a profunda conexão que ele estabeleceu com o autor argentino ao longo de quinze anos de pesquisas.

Entrevista: Alvaro Machado

Jornalista, pesquisador, doutor em Artes Cênicas Alvaro Machado. Foto: Juliana Kase / Divulgação

“Após tantos anos de pesquisa,
ouso dizer que Tulio Carella sou eu”

Alvaro Machado

Ao longo de sua extensa pesquisa sobre Tulio Carella, desde antes da edição de Orgia, os Diários do Recife (ed. Opera Prima) em 2011, até Orgia e compadrio, sua compreensão do personagem e da obra passou por uma notável transformação. Para além de um aprofundamento, essa biografia crítica representa uma revisão da sua interpretação inicial sobre o significado político e literário de Carella? E, ousaria perguntar, em que medida você se tornou, metodologicamente, um “Carella contemporâneo”, transgredindo fronteiras disciplinares da mesma forma que ele transgredia fronteiras sexuais e nacionais? 

Alvaro Machado – O aprofundamento é natural pela metodologia científica que a gente é obrigado a adotar nos cursos de pós-graduação, na defesa de tese. Então, a partir da minha experiência de leitura do Orgia, fui tocado pelo registro do cotidiano do Recife, dos muitos tipos, das relações afetivas e sexuais, todas muito bem descritas. Pela sinceridade inicial do escritor, eu fui ler toda a obra dele, que não é pequena, a obra publicada é razoável. E li todos os livros, a fim de fazer o que eu me propunha, que era sua biografia.

Uma biografia mais ou menos completa, apesar da grande ausência de fontes com as quais eu me deparei inicialmente. Mas, enfim, com os depoimentos de Buenos Aires, do Recife, de Leda Alves, de Antonio Cadengue, de Luís Reis, do Anco Márcio, e de todo esse pessoal que estuda teatro, e principalmente de um amigo dele remanescente em Buenos Aires, Mário Tesler, bibliófilo, bem como do filho de um colaborador dele, Ral Veroni, filho do gravador Raul Veroni. Então passei a coletar documentos e me aprofundei no conhecimento do personagem. Mas, principalmente pelas obras que li – tem também obras autobiográficas que eu abordo no livro, como As portas da vida –, e pelas cartas que a senhora Leda Alves me forneceu acesso, que são cerca de 300 cartas enviadas. E aí eu entendi que ele era realmente um grande escritor, obliterado pelo escândalo causado pelo livro Orgia, tanto no Brasil como na Argentina. E isso embora ele tenha pertencido a muitos círculos literários e teatrais argentinos importantes. Comecei a entender a posição dele nesse cenário e achar cada vez mais injusta a falta de pesquisa no próprio país dele, que até hoje se observa. O Orgia só foi publicado neste ano lá, agora há um mês, em espanhol, a partir da tradução do Hermilo Borba Filho, com revisão crítica da tradução, introdução e minhas notas.

Seu trabalho transborda uma evidente paixão intelectual por Carella, um sentimento que, como você já expressou, foi crucial para se debruçar sobre a figura dele. Como você equilibra o rigor acadêmico com esse envolvimento afetivo tão particular? E, provocativamente, será que a crítica literária não deveria ser, em sua essência, também um ato de amor?

Alvaro – Eu não teria me debruçado sobre a vida do Tulio Carella se eu não tivesse um mínimo de identificação com esse personagem, desde o início. E, após tantos anos de pesquisas e reflexões, posso dizer que “Tulio Carella sou eu”. Eu endosso praticamente todas as posições dele; são raras as posições que eu não endossaria, que eu não tento compreender, ou que não compreendo, quando muita gente deixou de compreender, então tenho uma tolerância grande em relação às atitudes dele por me identificar desde o começo, desde o princípio. E… se eu vou ser marginalizado não sei, mas mesmo na universidade, a partir do objeto de estudo não foi muito fácil conseguir interlocução.

Eu tive de explicar bastante a posição dele para os orientadores, porque partia de um escândalo sexual, mas as pessoas começaram a entender a trajetória, e a compreender que ele tem um aspecto político muito importante, por isso fui fazer o doutorado com o professor, Sérgio de Carvalho, que é especializado, digamos, em orientar teses históricas. E deu muito certo, mas confesso a você que cheguei a ser visto assim como um pássaro fora do ninho.

Mas continuamos, e eu acho que deu certo de fato agora, com a publicação, com muitas fotos históricas e desenhos artísticos, com Carella contextualizado completamente na história do Recife e de Buenos Aires. Então agora não tem mais por que existir essa prevenção.

A formação cultural argentina de Carella, marcada pelo criollismo, pela imigração europeia e pelo tango, indubitavelmente moldou sua sensibilidade para as margens sociais. Em que medida o Brasil, especificamente o Recife, funcionou como um “laboratório” que validou ou expandiu as teorias que ele já vinha desenvolvendo sobre as dinâmicas sociais de Buenos Aires?

Alvaro – Ele conheceu uma evolução de pensamento muito grande desde os anos 1940, onde ele estava no criollismo e na herança da cultura barroca espanhola, inserido na elite de Buenos Aires, dos governantes de origem hispânica, ou pelo menos na cultura criolla. Porque em 1940, Buenos Aires já era uma metrópole bastante heterogênea. A população de imigrantes compunha um panorama bem diferente daquele do século XIX. Mas ele cultivou essa tradição antiga. De início, com as farsas dele levadas no Teatro Nacional Cervantes, que foram seus maiores sucessos. Criollismo que provinha, de certa forma, culturalmente, do chamado Século de Ouro espanhol, dos grandes dramaturgos de então, mas logo ele começou a perceber outras perspectivas na cena teatral de Buenos Aires, até mesmo as do teatro de revista, do teatro político e do cabaré teatral, e aos poucos enveredou por uma linha política mais amplamente nacional. Nacional e ao mesmo tempo crítica do nacionalismo, sabe?, porque contemplou as margens, as franjas sociais ostensivamente ignoradas no panorama nacional “oficial”. Depois de viajar para a Europa em 1956, a fim de conhecer alguns países e as suas origens itálicas, ele assumiu a mudança radical de adotar uma perspectiva latino-americana, com raízes culturais indígenas. E quando Carella veio para o Brasil, ele ampliou esse olhar com a cultura negra. Realmente, o Brasil significou uma ampliação dessa perspectiva latino-americanista ou pan-americanista, mas não no sentido bolivariano, que é beligerante, mas no sentido humano e cultural. O Bolívar é derivado das lutas armadas na América e ele não tinha essa propensão. Ele era um pacifista.

Foto de Tulio Carella de junho de 1956. Autoria desconhecida

Uma das dimensões mais fascinantes de Carella é o caráter performático de suas ações. Observando sua trajetória, há a impressão de que a performance se dava não apenas nos palcos, mas em sua própria vida cotidiana – desde a escolha de morar no Recife Antigo até a forma como registrava suas experiências íntimas. O que suas investigações revelaram sobre essa teatralidade existencial de Carella? Ele era, de certa forma, o personagem mais original que criou?

Alvaro – Acredito que essa sua afirmação sobre ele ter criado no Recife um personagem original a partir de si mesmo corresponda à verdade. Sim, a partir da escolha de morar em quitinete na avenida Sete de Setembro e dos passeios e derivas diárias pela porção histórica da cidade, ele passou a estabelecer com muito gosto uma espécie de diálogo cênico – composto tanto de olhares e gestos como de palavras – com os tipos populares que manifestavam curiosidade por sua figura corpulenta de dois metros de altura, sua pele alva e suas roupas de tecidos e cortes diferentes. Não se negava a qualquer diálogo, com quem quer que o abordasse. Praticou esse intercâmbio com tanta intensidade e com tamanha ausência de censuras que isso se tornou, de fato, como uma  performance teatral pública, como observou, por exemplo, o pesquisador alagoano Severino J. Albuquerque, professor emérito da Universidade de Wisconsin (Madison), em ensaios que publicou sobre o portenho. Antes de dedicar-se ao ensino da Literatura, Severino formou-se em Medicina no Recife, portanto conhece muito bem a cidade.   

Em sua biografia, você escreve que Carella “confrontou-se com um meio intelectual de difícil penetração, fomentador de intrigas e vassalagens” tanto no Recife quanto em Buenos Aires. Essas “cortes culturais” parecem ter sido um obstáculo constante na trajetória do escritor argentino. A partir de seus levantamentos, como essas disputas de poder intelectual se manifestavam concretamente no Recife? E como você compreende essas dinâmicas de poder?

Alvaro – Em 1960-61, quando Carella esteve entre nós, existia no Recife uma aguda polarização política, e o estado de Pernambuco era como uma ponta de lança dos debates e lutas sociais travadas nos anos seguintes no Brasil e que desembocaram na tragédia do golpe civil-militar de 1964 e do progressivo solapamento da democracia a partir de então, por longos 25 anos. Os militares e os policiais da região jamais aceitaram os governos do socialista declarado Miguel Arraes na prefeitura da capital e no governo do estado. Assim, todo o setor militar e policial, a maior parte do Judiciário a cabresto de latifundiários e senhores de engenho, parte da imprensa e mesmo instituições criadas especialmente para minar a organização de movimentos pela Reforma Agrária, alfabetização, voto popular etc. conduziram à prisão e à tortura do dramaturgo argentino – contratado por parceiros de Arraes –, após um diálogo vigiado que ele manteve com o artista e líder comunista Abelardo da Hora numa cantina de repartição pública. Em outro polo de intrigas, mais tarde, já no final dos anos 1960, a primeira esposa de Hermilo Borba Filho, Débora Freire, espalhou amplamente, no Recife, boatos de que o argentino teria sido amante de seu ex-marido.

Em seu trabalho, você notou uma transformação na perspectiva sobre Carella, inclusive por parte de Leda Alves, uma fonte importante, no Recife, para seus estudos. Poderia nos detalhar essa mudança na forma como Carella é percebido? E, na sua opinião, o que motivou essa alteração de atitude ou de visão sobre ele?

Alvaro – Desde antes de 2011, quando eu comecei a conversar com Leda Alves, que foi, por tanto tempo, secretária da cultura do Recife etc., foi uma odisseia esse contato, porque ela era refratária a tratar do assunto, não tinha interesse, sabe? Havia um claro tabu. Mas, devido à minha insistência, e ao pagamento de um valor razoável para o contrato de republicação do Orgia na tradução do Hermilo Borba Filho (revisada), principalmente porque ela andava precisando de dinheiro, estava operando a vista, ela concordou. Desde então passei a conversar com ela. Era obrigatório. Ela conheceu bastante meu personagem. E, com o tempo, Leda  mudou a postura dela, até um ponto que eu diria radicalmente, em seus três últimos anos de vida. Inclusive assinou contrato para a realização de um filme a partir de Orgia, que seria feito pelo Karim Aïnouz e pelo Marcelo Gomes. Durou sete anos esse contrato, mas a produtora do João Júnior Vieira, do Recife, não conseguiu levantar o dinheiro para um filme de época. Esse filme ainda pode ser feito, já que Karim está lendo a biografia que publiquei agora.

Então, a Leda foi mudando nas conversas telefônicas, ela assinou o contrato não só para o livro, mas para o filme, sabe? E conversando comigo no telefone, ela foi mudando a postura, foi valorizando o Carella, o contato pessoal que ela teve com ele e as coisas boas da relação. Por quê? Porque ela tinha um trauma que está contado no livro, que era o da fofoca detonada no Recife inteiro após o desquite, ou o divórcio, não sei, na época acho que era desquite, do Hermilo da primeira mulher dele, a Débora Freire, que ficou maluca de Hermilo assumir a Leda Alves, a atriz, ex-atriz do grupo… ex-secretária dele… ficou maluca e começou a dizer no Recife que o ex-marido e Carella tinham sido amantes… E isso apavorou Leda… Ela não queria tratar desse trauma… e Débora chegou a escrever cartas com ofensas para Carella… como também está registrado em meu livro. Então, com os anos Leda ela foi mudando. E me afirmava que ele tinha sido um sujeito muito legal… que tinha as suas idiossincrasias… os seus gostos… e “fazia escondido”… como ela dizia… entre aspas… sem incomodar ninguém… e que era muito discreto na sua vida pessoal… e que principalmente ele influenciou a conversão de Hermilo ao catolicismo, à Igreja Católica. Inclusive com o casamento dela celebrado por Dom Helder Camara, extraoficialmente, porque não podia, o Hermilo já era casado, já tinha sido casado. E até o final, um ano antes da morte dela, mais ou menos, ela falava coisas muito legais do Carella, mudou totalmente a cabeça.

Meu livro é pelo menos vinte por cento sobre o Hermilo. Porque  eles influenciaram muito um ao outro, sabe? Isso é muito importante. 

Chegada ao Recife em 1961. Foto na coluna Diário Artístico, de Joel Pontes, do Diario de Pernambuco 

Seu livro surge em um período de recrudescimento conservador na América Latina. Diante disso, que conexões você estabelece entre este cenário e a trajetória de Carella?? 

Pois é, sobre essa questão de ideologia de gênero, do momento político atual:  realmente assume agora uma grande importância a posição pan-americanista dele e do Hermilo, que era uma ideologia almejada pelos dois,  em especial neste momento de retrocesso de posições, de enfraquecimento da esquerda política em toda a América Latina. Também por isso ele foi para o Recife, por isso se estabeleceu na cidade e pretendia permanecer nela até morrer, se não tivesse sido expulso. Porque ele dividia essa ideologia, esse ideal mais que ideologia, porque partilhava esse ideal com o Hermilo e com outros brasileiros. Assim, o Orgia se tornou o mais importante de todos os livros do Carella, e o mais estudado.

E então se tornam agora ainda mais importantes os livros dele, como o também autobiográfico Las puertas de la vida [As portas da vida], muito citado em minha biografia por essa posição de abertura e valorização das culturas autóctones da América, dos indígenas dos dois países e dos escravizados que começaram a ser trazidos no século XVI e se estabeleceram aqui para tomar parte da brasilidade. Mas Carella também possuía a sua herança cultural específica. Então a valorização desses elementos é uma coisa na qual ele foi pioneiro. E também o seu repúdio à cultura europeia. E se ele não discutia propriamente ideologias de gênero,  assumiu a bissexualidade ao publicar Orgia em 1968 a pedido do Hermilo. E mais ainda no começo de 1969, ao distribuir mais de trinta cópias desse livro em Buenos Aires, orgulhosamente, sem medo. Isso acarretou a separação de sua mulher, que não aguentou essa revelação da bissexualidade, e ele passou a viver sozinho, ficou muito na dele, muito tranquilo, muito no pensamento estoico e cínico que perseguia, com uma certa pobreza de meios, num bairro pobre de Buenos Aires, que é o Congreso, ainda hoje é pobre, não é um bairro abastado, mas feliz, tranquilo, em paz, de bem com a vida, sem ressentimentos de ninguém, só o forte desejo de voltar para o Recife, que não realizou, infelizmente. Mesmo no final da vida ele teria voltado.

A decadência física dele foi um tanto rápida, em um ano ele estragou a saúde… fumava muito… e tinha outros problemas também, de próstata etc.. 

Como você imagina que Carella reagiria aos debates contemporâneos sobre identidade de gênero e diversidade sexual na América Latina?

Alvaro – Acho que se ele estivesse vivo hoje, ele não participaria desse debate todo que a gente vive, racial e de gênero. Eu acho que ele ia preferir realmente atuar literariamente. Ele nunca deu esse tipo de palestra durante a vida dele e eu acho que ele se isentaria, se ausentaria mesmo. E preferiria uma luta, uma trincheira, de fato, literária, ou na crítica. Penso que nem seria explícita, porque, apesar de ter escrito Picaresca porteña, esse livro é composto de ensaios sobre características históricas da cultura argentina, e não atualidades, não debate político atual. 

Após uma imersão tão profunda, o que, porventura, ficou por ser dito sobre Carella neste livro? Você sente que esgotou as possibilidades interpretativas dessa figura tão complexa, ou ainda há territórios a explorar?

Alvaro – Eu não considero que esgotei o Carella, não, de forma nenhuma. É um personagem rico demais e merece ainda muitas pesquisas. Mandei essa biografia há um mês para a Biblioteca do Congresso Nacional, em Buenos Aires, e ela foi aceita no acervo, para que outras pessoas possam pesquisar a obra dele, porque apesar de o livro ser extenso, com 360 páginas, existem muitas facetas e textos dele muito bons, desconhecidos, porque tudo que ele  fazia era com alto nível de excelência na escrita. Então acredito que foi uma pesquisa até inaugural.

 

 

 

Orgia e compadrio :
Tulio Carella, drama e revolução na América Latina
Autor: Alvaro Machado
Editora: Cosac
R$ 132,00

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Amor trágico no Sertão
Crítica de Uma mulher vestida de Sol

Miguel Marinho  e Bruna Alves em Uma Mulher Vestida de Sol. Foto: Eric Gomes

No Sertão imaginário projetado no palco, o Grupo Grial reescreve sua própria história. Com Uma Mulher Vestida de Sol, a trupe pernambucana inaugura uma nova fase em sua trajetória de 26 anos. Essa produção reafirma seu compromisso estético, mas abre canais para novas possibilidades, após cinco anos afastada da cena.

Desde sua fundação por Maria Paula Costa Rêgo e Ariano Suassuna em 1997, o Grial tem sido um farol da dança armorial, mesclando as chamadas raízes profundas da cultura nordestina com a linguagem contemporânea. Esta montagem se conecta às pulsações destes tempos, articulando reflexões sobre temas urgentes, como o feminicídio, através da junção de dança, poesia sertaneja, canto ao vivo e teatro.

Em espetáculos anteriores, o Grial chegou a contar com 18 artistas em cena, criando um apelo imediato e uma exuberância próxima às manifestações populares que conquistavam o público instantaneamente. Agora, com apenas quatro intérpretes, há um notável deslocamento na concepção coreográfica. Esta nova configuração traz uma sutileza e uma forma diferente de ocupar o palco.

Emerson Dias e Aldene Nascimento, veteranos do grupo, carregam em seus corpos a memória viva do frevo, do maracatu, do cavalo-marinho e de outras danças tradicionais nordestinas. Ao mesmo tempo, a interação com os novos integrantes propicia uma dinâmica mais íntima, abrindo espaço para experimentações. Esta sinergia conduz a produção a um quase minimalismo cênico, valorizando o processo como uma arte em permanente construção. 

A participação de Miguel Marinho incorpora camadas significativas à performance. Como poeta e músico, ele traz a poesia sertaneja improvisada, conhecida como glosa, que adiciona imprevisibilidade e frescor ao espetáculo. Suas palavras dançam no ar, criando um contraponto com os movimentos dos bailarinos. Além de sua contribuição poética, Marinho assume a direção musical da montagem, trazendo uma sonoridade única com seu pandeiro. 

Mas é Bruna Alves, cantora com deficiência visual, que traz uma dimensão única à encenação. Sua presença é simultaneamente um ato de inclusão e um convite para pensar sobre nossa percepção da dança e da vida. Com Bruna em cena, somos desafiados a experienciar o movimento de uma maneira incomum, questionando nossas noções convencionais sobre espaço e expressão corporal. Sua voz, elemento central de sua arte, enriquece a paisagem sonora da obra.

O espetáculo, em sua totalidade, investe em temas complexos e relevantes. A ideia da luta por terra, um assunto de grande importância social e política no Brasil, é explorada de maneira poética. 

Paralelamente, a força nefasta do patriarcado é outro elemento crucial da narrativa. O espetáculo examina criticamente as estruturas de poder baseadas no gênero, expondo como essas dinâmicas afetam profundamente a sociedade. A presença de Bruna, como uma mulher artista com deficiência visual, adiciona uma camada extra de significado a esta discussão, desafiando estereótipos e expectativas de gênero.

Emerson Dias e Alden Nascimento. Foto: Eric Gomes / Divulgação

A coreografia, fruto de um processo colaborativo inédito no Grial, é um testemunho da abertura artística do grupo. Ao compartilhar o processo criativo, Maria Paula Costa Rêgo incentiva que diversas vozes artísticas se entrelacem, resultando em um mosaico de movimentos rico e polifônico. Os gestos fluem entre a precisão técnica das danças tradicionais e a liberdade da dança contemporânea, criando um vocabulário corporal bem instigante. Esta composição coreográfica em camadas amplia os horizontes do Grial, subvertendo convenções e assumindo novos riscos criativos. 

Musicalmente, o espetáculo apresenta uma composição sonora diversificada. A criação de Miguel Marinho e do grupo Em Canto e Poesia se torna um elemento narrativo próprio, construindo uma estrutura acústica que abrange o canto do aboio, os ritmos do maracatu e momentos de silêncio significativo. A inclusão de sons típicos do Sertão – como o sino da cabra e o vento – cria uma atmosfera que evoca vividamente o ambiente sertanejo.

Para materializar essa atmosfera, o grupo optou por povoar a cena com couros de bode, elementos característicos das terras e estradas do sertão.

Tematicamente, esta nova versão de Uma Mulher Vestida de Sol apresenta uma perspectiva artística distinta em relação à montagem de 2002. Naquele ano, Maria Paula Costa Rêgo criou a peça Uma Mulher Vestida de Sol – Romeu e Julieta, engajando elementos shakespearianos tanto na encenação quanto na direção de arte. A produção anterior, embora enraizada no texto de Suassuna, estabelecia um diálogo com a tradição teatral clássica de maneira que sutilmente evocava as obras do bardo inglês.

Em contraste, esta nova interpretação opta por uma imersão mais profunda no universo “arianesco”. A versão atual ressalta elementos característicos da obra de Suassuna, como a conexão intrínseca com a terra e as complexidades da cultura sertaneja. A disputa pela terra, tema central na obra original, ganha novas dimensões nesta montagem. O espetáculo estabelece paralelos sutis com debates contemporâneos sobre o conflito entre agronegócio e agricultura familiar, atualizando a narrativa para o contexto atual brasileiro.

Além disso, questões como o machismo e o feminicídio, temas presentes na dramaturgia original, são aqui exploradas sob um prisma atual. O Grial opta por examinar essas problemáticas de forma mais direta, sem abrir mão da poesia e da força lírica da narrativa de Suassuna.

Esta nova montagem, quando comparada à versão de 2002, revela uma notável transformação na leitura artística do Grupo Grial sobre o material original. Tal mudança reflete escolhas estéticas distintas e demonstra uma resposta às dinâmicas sociais e culturais das últimas duas décadas.

A ideia da luta por terra e a força nefasta do patriarcado estão presentes no espetáculo. Foto: Eric Gomes

A recusa do Grupo Grial em oferecer respostas fáceis exige do público uma participação ativa, uma disponibilidade para cocriar significados. Cada elemento do espetáculo – seja um gesto, uma nota musical ou uma palavra falada – funciona como um estímulo à sensibilização, instigando o espectador a questionar suas concepções sobre arte, tradição e identidade nordestina.

É importante reconhecer que a proposta artística do Grial nesta produção pode apresentar desafios de recepção para parte do público. A complexidade e a natureza interpretativa da obra podem não ser imediatamente acessíveis a todos os espectadores, especialmente aqueles menos familiarizados com as nuances da dança contemporânea. No entanto, é crucial lembrar que a dança, como forma de expressão artística, frequentemente opera no campo do abstrato e do simbólico. A compreensão total ou imediata nem sempre é o objetivo principal, e sim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Um dos desafios para o Grial reside em encontrar um equilíbrio entre a expressão de sua proposta artística e a criação de pontos de conexão com um público diversificado. Isso não implica necessariamente em simplificar a obra, mas em criar dimensões de sentido que possam ressoar de maneiras variadas com espectadores distintos, enriquecendo assim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Ficha Técnica

Direção coreográfica: Maria Paula Costa Rêgo
Intérpretes criadores: Aldene Nascimento e Emerson Dias
Direção musical/Intérprete/Poeta: Miguel Marinho
Intérprete cantora: Bruna Alves
Iluminação: Luciana Raposo
Sonoplastia: Jordy
Figurino: Biam Diphá
Cenografia: Grupo Grial

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Quaderna mostra truques do país dos conchavos
Crítica do espetáculo
As Conchambranças de Quaderna

 Jorge de Paula e Fábio Espósito em As Conchambranças de Quaderna. Foto: Ivana Moura

 Jorge de Paula e Guryva Portela. Foto: Ivana Moura

Jorge de Paula, Fábio Espósito, Henrique Stroeter e Guryva Portela.  Foto: Ivana Moura

Guryva Portela, Jorge de Paula, Henrique Stroeter, Fábio Espósito e Carlos Ataíde (no chão). Foto: Ivana Moura

O espetáculo As Conchambranças de Quaderna (1987), com texto de Ariano Suassuna (1927-2014), direção de Fernando Neves e realização da Beijo Produções Artísticas e Cia Vúrdon de Teatro Itinerante, se desenvolve em torno do peculato. Essa palavrinha vem do termo latino peculatus, cuja origem, por sua vez, vem de pecus — (gado) — que constituía a primitiva moeda para realização de compras e pagamento de multas. Peculato é a ação de subtrair ou desviar bem ou dinheiro por parte de funcionário público que deveria ser o guardião. Ouvimos a expressão com frequência nos noticiários. O sujeito se apropria de um bem que ele tem acesso em função do cargo que exerce. A partir desse abuso de confiança, o (mau) servidor comete o crime (Código Penal, artigo 312) e está prevista pena de 2 a 12 anos de prisão e multa.

O cômico em Ariano Suassuna funciona como mina explosiva. Abre caminho ao diálogo e escuta do público, na perspectiva do questionamento crítico e reflexivo. Com as armas do humor, da astúcia e da habilidade de resolver conflitos, o personagem mítico-poético Pedro Dinis Quaderna vence suas batalhas n’As Conchambranças de Quaderna.

A obra de Ariano Suassuna é composta por três atos: O Caso do Coletor Assassinado, Casamento com Cigano pelo Meio e A Caseira e a Catarina ou O Processo do Diabo. Teve apenas três montagens – no Recife (1987 e 2004) e no Rio de Janeiro (2011) – e foi publicada somente em 2018. N’As Conchambranças de Quaderna, Suassuna resgata Pedro Dinis Quaderna, personagem do seu Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971).

O projeto As Conchambranças de Quaderna foi viabilizado, em 2019, através do ProAC de Produção e Temporada de Espetáculos Inéditos de Teatro – Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. A encenação com os três atos poderia chegar a três horas de duração. A produção seguiu as recomendações das medidas sanitárias e do distanciamento social durante a pandemia do coronavírus, elegendo o primeiro ato da peça, O Caso do Coletor Assassinado, para a montagem, de cerca de uma hora.

Na peça, um “suposto” desfalque cometido pelo coletor de impostos da cidade gera uma crise política entre o Sertão do líder da oligarquia rural Dom Pedro Sebastião e o governo do estado da Paraíba. Dom Pedro Sebastião é Padrinho e protetor de Quaderna. Esse protagonista usa sua lábia, seu discurso para resolver contendas e fazer com que todos ganhem, principalmente ele mesmo.

As personagens são tipos e a encenação de Fernando Neves salienta as caricaturas na sua montagem em que os elementos do circo-teatro imprimem as diretrizes estéticas. Os papeis codificados, as peripécias, o trato popular no visual e a crítica social à política, à ganância, à hipocrisia, à xenofobia são tratados como andamento de uma partitura pelo diretor.

Neves confere à cena uma dinâmica lépida e fagueira, farta de marcações hilárias, efetuada com alegria pelo elenco. Em As Conchambranças de Quaderna os atores parecem se divertir, fazem folia com os próprios códigos.

 O músico Abuhl Júnior. Foto: Ivana Moura

Para garantir esse festim, o encenador conta com o músico Abuhl Júnior, ao vivo na bateria e percussão, que enriquece a ação dos atores na partitura e sonoridades incidentais.

O tempo e o ritmo com exatidão são valiosos para Neves, especialista em circo-teatro, estética que se dedica desde sempre com a família Santoro Neves ou há duas décadas, junto ao grupo Os Fofos Encenam.

No universo desse Sertão de Quaderna, as relações com quem exerce cargo de destaque são determinantes. O aspecto monetário e os elementos financeiros traduzem os pequenos embates de poder e sua sustentação.

Suassuna subverte hierarquias consagrando Imperador e Rei, Decifrador-armorial, Gênio da Raça, Monarca da Cultura Brasileira, Imperador do Reino do Sete-Estrelo do Escorpião e candidato a Gênio Máximo da Humanidade o “afilhado” de um importante coronel. O Padrinho é aconselhado por Quaderna na resolução de problemas políticos que precisam de estratégia, audácia, inteligência, rapidez, senso de conciliação. Quaderna, nesta encenação, saúda as manifestações de religiosidade afro-brasileiras, como as reverências em honra à Jurema, durante a apresentação.

Para desenvolver o espetáculo, o chão é festivo. A maquiagem é carregada, quase uma máscara. O ritmo das cenas é rápido. A dança nordestina está impregnada no corpo dos atores. Destaco o cavalo-marinho, um auto dos festejos natalinos. O folguedo possui 76 figuras nas categorias humana, fantástica e animais. Talvez venha daí qualquer coisa além de humana na postura das personagens.

Então, a dança do cavalo-marinho é bem ágil, enérgica, entusiasta, com um ritmo bem-marcado por um sapateado que sugere o galope dos cavalos. A sambada tem passos rasteiros intercalados de saltos, que se chama “bater mergulho”.

Nesse clima, o que os atores mostram vivamente é a confusão entre a natureza do que é público e privado. Se o território é brincante, a trilha sonora – assinada por Renata Rosa (cantora, compositora e rabequeira) e de Caçapa (arranjador, violeiro e compositor pernambucano) acentua, reforça o clima exultante do espetáculo.  

A criação visual do artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano, é uma obra de arte excepcional por si mesma. Os telões do cenário estão carregados do Brasil real e profundo. Os criativos figurinos, inspirados na estética armorial e na cultura nordestina, são assinados por Carol Badra.

Jorge de Paula e Fábio Espósito. Foto: Ivana Moura

O ator Jorge de Paula, que interpreta o Quaderna, brilha em cena. Ele associa sutileza, gestualidade, carisma, fôlego com graça e humor. É bom na ironia e na desfaçatez. Uma construção forte, que transmite muita empatia ao público. Quem assistiu Um Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, da recifense Trupe Ensaia Aqui e Acolá, sabe que o talento desse ator vem de longe.

Fábio Espósito tem uma atuação desconcertante como Evilásio Caldas. Sua experiência de palhaço, seu timing para comédia dão leveza à cena. Como um bom mágico, ele nos surpreende com as piadas, os silêncios e partitura corporal. Um brincante que contagia.

Guryva Portela faz Dom Pedro Sebastião e acentua as características do autoritarismo, machismo de forma bem exagerada na mira do grotesco para provocar o riso.

Carlos Ataíde como Seu Belo. Foto: Ivana Moura

Bruna Recchia, em primeiro plano, no papel da Presidente da Comissão de Inquérito. Foto: Ivana Moura

Os outros papéis são menores e cada um tem sua importância, concebidos na mesma linha do exagero, escolhida pela encenação. Henrique Stroeter faz o matador Joaquim brejeiro que trabalha basicamente com o gestual de segurar o rifle e amedrontar com a força bruta; Carlos Ataíde interpreta Seu Belo, funcionário do Cartório, medroso e engraçado e Bruna Recchia a Presidente da Comissão de Inquérito, que investe na maximização da caricatura da paulistana com seu olhar exótico sobre o nordestino, que pode tanto despertar o riso ou a irritação, depende do espírito do espectador.  

A trama reporta às farsas medievais, ancorada na astúcia da figura principal da peça e sua desenvoltura para solucionar as confusões. Na galeria de figuras de As Conchambranças de Quaderna não nos cabe julgamento moral. O crime de peculato, acobertado pelos personagens, traz junto com o riso prazeroso o alerta para que fiquemos atentos ao mundo real, ao Brasil que massacra seus artistas.

Essa crítica é necessária ao país que se sustenta em acordos e tramoias para se garantir no poder. De um país que vê passar a chamada de “PEC do Calote”, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que viabiliza o financiamento do Auxílio Brasil (programa que substitui o Bolsa Família), mas para isso abre espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022 às custas do não pagamento das dívidas judiciais do governo. Entre outros probleminhas.

Do espetáculo As Conchambranças de Quaderna fica um gostinho de quero mais, já que esta montagem está circunscrita ao primeiro ato. Do Brasil da “PEC do Calote” precisamos estar atentos e fortes para a luta.

Jorge de Paula e Fábio Espósito. Foto: Ivana Moura

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Não sei, só sei que foi assim que eles chegaram tão longe

Auto da Compadecida é encenado pela Dramart Produções há 20 anos. Fotos: Pollyanna Diniz

A ideia é que, quando eles completassem 18 anos encenando o texto Auto da Compadecida, encerrassem a carreira. Mas Ariano Suassuna estava no teatro naquelas que seriam, supostamente, as últimas apresentações. E aí, um pedido dele fez a atriz e produtora Socorro Rapôso retroceder. “Socorro (Rapôso), quem faz 18 anos apresentando um espetáculo faz 20”. Pois bem, os 20 realmente chegaram e agora um novo adeus é ensaiado pelo elenco da Dramart Produções. As derradeiras apresentações estão marcadas para hoje, às 20h, e amanhã, às 19h, no Teatro de Santa Isabel.

A peça sempre foi sucesso por onde passou – foram mais de 350 mil espectadores. “Viajamos o país inteiro. Passávamos muito tempo fora e, quando a gente chegava aqui, era para fazer longas temporadas. Ficamos em cartaz no Santa Isabel, no Parque, no Barreto Júnior”, conta Williams Sant’Anna, que está no elenco há 19 anos como Chicó. O ritmo de temporadas só diminuiu um pouco quando o ator Sóstenes Vidal, que faz João Grilo, assumiu compromissos fora do Recife. Os projetos pessoais do elenco – no palco são 15 atores – levaram o grupo a decidir encerrar o ciclo – embora, que fique claro, isso não é consenso. E todos, aí sim, sem exceção, têm um carinho enorme pela peça.

Quem pensou em montar o Auto da Compadecida foi o diretor Marco Camarotti, falecido em 2004. As marcas da direção, aliás, ainda são as mesmas que ele deixou – até hoje, não foi substituído na ficha técncia. “Ele é a alma desse espetáculo. Minha função é zelar pelo que ele fez, ir polindo. Ele queria uma peça assim: circense, com comunicação direta com o público, nada sofisticado”, complementa Sant’Anna, que também assina a assistência de direção.

O texto mais famoso de Ariano Suassuna (principalmente depois que virou minissérie e filme) é respeitado na íntegra. “Ele só autorizava que eu e Sóstenes (Vidal, que interpreta João Grilo), que somos os bufões, colocássemos ‘cacos’ no texto. Dizia que Ariano não precisava de coautor”, relembra. “Muito antes da minissérie e depois do filme, nós já lotávamos casas no Brasil inteiro”, comenta o João Grilo.

Do elenco original, restaram Sóstenes Vidal, Hélio Rodrigues (palhaço), Cleusson Vieira (sacristão), Luiz César (Padre João), Célio Pontes (Severino do Aracaju) e, claro, Socorro Rapôso (A Compadecida). Aos 80 anos, a produtora e atriz é a principal entusiasta do espetáculo. “Ela fez com que estivéssemos juntos até hoje, no palco. Esse mérito é dela”, diz o ator Hélio Rodrigues.

O ator e jornalista Leidson Ferraz, que interpreta o frade e o demônio, lembra que estreou no espetáculo em 1995. “O Santa Isabel estava lotado, até a torrinha. A sensação de ver aquele teatro lotado ficou em mim”, rememora. “O texto é ótimo, o elenco também. E é um espetáculo muito querido pelo público. A plateia é muito receptiva”, complementa.

A “caloura” no elenco é Maria Oliveira, que faz a mulher do padeiro há dois anos (inclusive, no domingo, quem vai interpretar o papel é Margarida Meira, que encenou esse personagem por vários anos). Maria não concorda que o espetáculo seja encerrado. “Agora que estava no melhor da brincadeira! Acho que deveríamos repensar”.

Bom, cá para nós, eu também não acredito que eles consigam encerrar. Acho que amanhã, Ariano vai chegar de mansinho e, mais uma vez, ninguém terá como negar um pedido do mestre. Até porque, mesmo aos 80 anos, Socorro Rapôso tem energia e disposição para levar esse espetáculo por mais uns 20 anos. E que ninguém duvide.

Será que eles conseguem encerrar a carreira do espetáculo?

ELENCO: Socorro Rapôso (A Compadecida), Sóstenes Vidal (João Grilo), Williams Sant’Anna (Chicó), Luiz César (Padre João), Cleusson Vieira (sacristão), Maria Oliveira (mulher do padeiro), Luiz de Lima Navarro (padeiro), Max Almeida (bispo), Leidson Ferraz (frade e demônio), Buarque de Aquino (Antônio Moraes e Encourado), Célio Pontes (Severino do Aracaju), Márcio Moraes (Galego, o Cabra), Hélio Rodrigues (Palhaço) e Didha Pereira (Manuel) e ainda cinco músicos da banda Querubins de Metal.

Serviço:

Auto da CompadecidaQuando: Hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: (81) 3355-3323

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Como é bom este tal de ócio…

Montagem tem texto de Ariano Suassuna e direção de João das Neves

Elogio ao “ócio criador do poeta”, Farsa da boa preguiça é uma das obras-primas de Ariano Suassuna. A peça foi escrita em 1960, cinco anos após Auto da Compadecida. O texto é composto de três atos que podem ser representados de forma independente. Seguindo a tradição medieval, Suassuna termina cada ato com um exemplo, uma lição. A montagem do encenador João das Neves transforma as três pequenas histórias exemplares numa verdadeira festa nordestina. Essa versão estreou em 2009, quando o diretor completou 50 anos de carreira. De hoje a sábado, estará no Teatro de Santa Isabel.

“Há um ócio que é puro desperdício. Mas há outro tipo de ócio que é necessário para a atividade criadora”, comenta o diretor, um dos fundadores do Grupo Opinião, um marco cultural de resistência à ditadura militar dos anos 1960 e 1970. “No Brasil, até a década de 1930, quem fazia música era visto como vagabundo. O pobre coitado ficava treinando o instrumento o dia inteiro, e pensavam que ele não estava trabalhando. Por outro lado, os filhos da elite passavam horas estudando piano e isso era considerado educação”, compara João das Neves.

“Eu sou adepto do ócio criativo, acho importante esse respiro para arte”, defende o ator Guilherme Piva. “Na arte, na criação, na interpretação, é importante ter esses momentos de vazio. A força da criatividade gera muita dor, muita angústia, muito prazer, ela mexe e precisa desse descanso. A peça fala disso”, arremata Piva.

Em Farsa da boa preguiça, o poeta de cordel Joaquim Simão (Guilherme Piva) e sua religiosa mulher Nevinha (Daniela Fontan) são tentados pelo casal mais rico da cidade, Aderaldo Catacão (Jackyson Costa) e Clarabela (Bianca Byington), que tem um relacionamento aberto. Apesar dos ricos acharem os pobres inferiores, eles querem estabelecer uma relação sensual com eles. Três demônios fazem de tudo para que o pobre casal caia no pecado, enquanto dois santos tentam intervir. Entre a tentação e a salvação, diálogos ricos em humor e ação cheia de encontros e desencontros.

“Ao encenar esse texto, queremos reverenciar o mestre Ariano Suassuna e sua obra. Queremos celebrar, com carinho e alegria, aquilo que somos: artistas do povo brasileiro” atesta João das Neves. Essa celebração de som e cor é composta também pela música de Alexandre Elias (com referências nordestinas e medievais), pelo cenário de Ney Madeira, pelos figurinos coloridos de Rodrigo Cohen e pelos mamulengos do Nordeste, criados sob orientação do artista plástico Gil Conti. E além do quarteto principal, também estão no elenco os atores Leandro Castilho, Vilma Melo, Fábio Pardal e Francisco Salgado.

O processo de construção do espetáculo teve início com um mergulho na cultura nordestina. O ator Guilherme Piva conta que, entre as atividades, passaram por leitura e criação de poemas de cordel e aulas de dança e música, confecção e manipulação de bonecos. Mas, além da riqueza dos elementos nordestinos, Farsa da boa preguiça trabalha com a distinção entre pobreza, riqueza e miséria. Um rico pode ser até mais miserável que um pobre. Pois isso estaria ligado com fortunas de outros territórios, e não só material. No caso de Aderaldo, escravo de seus bens, ele se torna um ser miserável. Revela toda sua mesquinhez em falas como: “Eu não vou na casa de minha mãe para ela não visitar a minha e não desequilibrar meu orçamento”. Ele não compreende que um pobre possa ser feliz e critica Simão: “Ele se faz de feliz só para me fazer raiva!”.

Peça fica em cartaz até sábado, no Teatro de Santa Isabel

Já Simão possui uma leveza dos que sabem driblar a vida. Quando Clarabela lhe pergunta se ele é autêntico, ele responde: “Não senhora, eu sou um pouco asmático, autêntico, não”. Farsa da boa preguiça é bom divertimento com reflexão crítica.

“A história do rico que virou pobre
que ficou mais rico ainda
e foi pro inferno viver ao lado do cão!
E do pobre, do pobre que virou rico
e ficou pobre e novo!
Foi-se embora pelo Sertão!”

Serviço:

Farsa da boa preguiça
Quando: Hoje, às 20h; amanhã, às 21h e sábado, às 20h
Onde: Teatro de Santa Isabel (Centro)
Quanto: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
Informações: 3355-3324

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