Arquivo mensais:janeiro 2011

Deleite coreográfico dentro da piscina

Foto: Hans von Manteuffel/ Divulgação

Em Palavra úmida, a água é mais que o suporte para o elenco da Cia. dos Homens exercitar a liberdade de movimentos e criação. Passa a ser um elemento, quase um código, uma chave, uma palavra mágica de uma viagem entre passado acalentador e futuro incerto. Digo melhor, da memória do útero, de onde todos nós saímos, ao pavor de que a água, esse bem da humanidade, acabe pela ação predatória dos próprios humanos. Isso é um pouquinho da leitura que se pode fazer da encenação da Cia. dos Homens, que está em temporada, no Clube Líbano Brasileiro, no Pina.

A trupe comandada por Cláudia São Bento ergueu uma estrutura coberta com tenda plástica preta formando uma caixa cênica. O público fica alojado numa arquibancada de 200 lugares. A estreia, tinha pouca gente. Do lado, corria uma partida de futebol society, com direito aos gritos de guerra dos atletas. É, os espaços mais experimentais também trazem suas inconveniências. Mas não chegou a atrapalhar. Quando a sessão começou, o público ficou magnetizado, entre curiosidade, apreensão e torcida para que tudo desse certo. Afinal, o projeto é pra lá de interessante. A proposta, esse mergulho literal da companhia no estado líquido, merece arquibancada lotada.

No início do espetáculo, de costas para o público, Cláudia São Bento segurava Maria São Bento, sua filha de 12 anos. Da perspectiva da plateia não dava para ver que tinha uma garota em seu colo, antes de iniciar a apresentação. Nem que os outros bailarinos estavam dentro da piscina. Luz, música e tudo começou a ser revelado. A mãe bailarina faz o movimento iniciático para sua garotinha, que boia entregue, sem medo.

Pioneira na dança contemporânea em Pernambuco, a Cia. dos Homens é uma das poucas que vem sistematicamente trabalhando com pesquisas de movimentos, que investigam novas possibilidades da dança em sintonia com esses tempos. Há muitos momentos belos da encenação.

É poderosa a evocação do mito de Narciso, com os bailarinos à beira da piscina encantados com suas próprias imagens. As brincadeiras de crianças com suas boias são divertidas. Há também solos e coreografia em grupo na beira da piscina, como a assinada por Airton Tenório e dançada por Cláudia (Sinal de trânsito). Outra em que prevalece a composição do grupo formado por Ana Paula Ferrari, Paula Stuhrk, Isabel Ferreira, Fernanda Lobo e Jorge Sabino.

E há coreografias emocionantes. Uma delas é depois que ouvimos o poema Na água, de Eduardo Baszoczyn, quando o elenco volta e flutua em movimentos delicados, fluidos, que escondem pela técnica o esforço de um ano de treinamento duro e todas as dificuldades de se mexer dentro d’água.

* Texto publicado originalmente em 3 de abril de 2008, no Diario de Pernambuco

SERVIÇO
O espetáculo Palavra úmida fica em cartaz até 6 de fevereiro, no Clube Líbano, no Pina. A temporada Começou dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos, mas prossegue às quintas e sextas-feiras, às 21h, e aos sábados e domingos, com sessões às 17h e às 21h. As arquibancadas comportam apenas 150 pessoas a cada apresentação.

Da equipe anterior, atuam na atual montagem Cláudia São Bento, Ana Paula Ferrari e Isabel Ferreira. Os homens são Jefferson Figueiredo, o cubano Luís Rúben Gonzalez e Allan Delmiro, o mais novo na trupe. A temporada foi viabilizada com recursos do Funcultura.

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Frescor de Mamãe comeu minha vida

Mamãe comeu minha vida. A encenação integrou a edição de ontem (27/01) do Curta Teatro especial para o 17° Janeiro de Grandes Espetáculos. Foi a estreia da cineasta Kátia Mesel no teatro. Ela também adaptou para o palco o conto de Cyl Gallindo.

Dúvidas e segredos femininos são revelados com nuances, que são reforçadas pela opção da diretora de dividir a personagem por quatro atrizes: Ana Cláudia Wanguestel, Viviane Bezerra, Galiana Brasil e Rita Marize. O feminino é explorado pelo olhar de Kátia com a cumplicidade das quatro intérpretes.

A direção optou por um tom mais leve, quase cômico para mostrar o que a repressão sexual é capaz de fazer com uma mulher. Ou como esses papéis são exercidos desde a infância até a vida adulta, com seus pudores, medos, composturas e descomposturas, excitações, vergonha e gozo. As várias facetas da Valentina expõem em palavras o que antes só cabia revelar ao espelho.

Como uma das características do projeto é levar a cena montagens curtas dirigidas por cineastas com atores da cidade, cujo processo tenha sido rápido, percebemos a pulsação criativa durante a apresentação. O público se torna totalmente cúmplice do ato criador. Com gradações, Ana Cláudia Wanguestel e Galiana Brasil representam o lado mais exposto da personagem; Viviane Bezerra e Rita Marize o aspecto mais contido, reprimido.

É interessante que neste Janeiro de Grandes Espetáculos tantas montagens discutam, falem, reflitam sobre questões sexuais, gozo, posições masculinas e femininas, em primeiro plano como Cabaré das Donzelas Inocentes, Animal Agonizante e Improvável, por exemplo.

Mamãe comeu minha vida é uma boa estreia de Kátia Mesel, diretora que se dedica ao cinema há quatro décadas e assina Recife de dentro para fora e do longa O Rochedo e a Estrela, no teatro.

O projeto Curta teatro foi idealizado pelos atores Sandra Possani e Kleber Lourenço, junto com o cineasta Pedro Severien. Vem reunindo gente de teatro e de cinema, do ano passado. Nessa edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, o “Curta Teatro Especial” abrigou também Ópera de Martino, com direção de Valdir Oliveira; A minha vaidade quer, por Pablo Polo.

O Espaço Muda, aliás, vem ganhando terreno na fomentação das artes cênicas, das artes plásticas, da música, da moda, lançamentos de livros, etc. Completou um ano semana passada e praticamente todo dia tem uma atração diferente. Virou um ponto de parada obrigatório para quem está ligado na cultura da cidade.

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A aposta do fim de semana

Ir ao teatro é sempre uma aposta. Mas a experiência normalmente compensa. Por isso, toda sexta-feira, vamos compartilhar com vocês os nossos ‘palpites’ para o fim de semana. Podem ser espetáculos que estão estreando, como esta semana, o que deixa o jogo ainda mais arriscado – já que não garantimos a qualidade. De qualquer forma, se você aceitar a dica e, porventura, não gostar, volte aqui ao Yolanda, comente, discuta. E isso que queremos!

Bom, hoje a dica é conferir o espetáculo A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar, com direção de Carlos Carvalho. A montagem reúne brincantes da cultura popular, como Mestre Grimário, e atores experientes, como Auricéia Fraga. O texto foi inspirado no livro A mãe, do russo Máximo Gorki. A sessão é às 21h, no Teatro Apolo, no Bairro do Recife. Ingressos: R$ 10 (preço único).

Além dessa, seguem outros palpites para o seu fim de semana:

Hoje (sexta):
O amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, em duas sessões, às 19h e 21h, no Teatro Hermilo Borba Filho (já saiu crítica aqui no Yolanda). Ingressos: R$ 10.

Sábado (29):

O fio mágico, às 16h, no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro. Ingressos: R$ 10 (estamos preparando a crítica, mas pode apostar!)
Dinossauros, às 19h, no Teatro Apolo (é sábado e domingo). Ingressos: R$ 10
Os fuzis da Senhora Carrar, às 21h, no Hermilo Borba Filho (também já saiu crítica por aqui)

Domingo (30):

O pássaro de papel, às 10h30, no Santa Isabel. Ingressos: R$ 10.
No meio da noite escura tem um pé de maravilha, às 16h, no Marco Camarotti. Ingressos: R$ 10
Quase sólidos, às 21h, no Barreto Júnior. Ingressos: R$ 10

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Lágrimas de um guarda-chuva dialoga com Fellini e Bergman

Fotos: Ivana Moura

Uma obra de arte se oferece em múltiplas leituras e é captada de acordo com o repertório de seu público. Muitas chaves estão disponíveis para interpretações em Lágrimas de um guarda-chuva. O espetáculo tem texto do mineiro Eid Ribeiro, adaptação e direção de Antonio Cadengue, elenco formado por Silvio Pinto, Cira Ramos, Arilson Lopes, Bobby Mergulhão e Marcelino Dias. Além de cenografia, figurinos e adereços de Marcondes Lima, trilha sonora original e produção da Rec Produtores Associados. Do “molho” de chaves de Cadengue, que qualquer espectador pode verificar no programa da peça, encontramos a possibilidade abrir algumas portas. Vamos entrar.

É outono. E acompanhamos Sansão, o mágico, e Angelina/Zambê, a mulher-gorila que adivinha o futuro das pessoas, chegarem a uma cidade abandonada, que pode ser em qualquer lugar do mundo. Saberemos depois, com o surgimento do jovem Carmelo, que o povo da cidade foi embora para fugir de uma epidemia. Na sua forma delirante de encarar o mundo, Carmelo também chega como portador do futuro e diz que traz na mala o destino de Sansão. E o amor pode até brotar nesse tempo pós-cólera.

Sansão e Angelina estão juntos e em algo compactuam, até o dia da virada. Antes disso, três cegos cantadores se apresentam atraídos pela mulher-macaco e contam atos cruéis que cometeram uns contra os outros. O lirismo e a atmosfera mágica predominam na encenação que desnuda um pouco da condição humana com a performance desses vagabundos, que espelham desejos mesquinhos. Mas algo angustiante e sinistro também paira no ar. O leitmotiv é “sobreviver num mundo adverso”. Para isso vale quase tudo. As normas que deveriam reger as relações ficam temporariamente suspensas e há muitas inversões de leis e hierarquias. E lógico que o grotesco exerce efeito onírico.

Mas o tempo é o senhor de todas as coisas, espreitado pela danação. E enquanto as folhas caem dos urdimentos cênicos, num efeito carregado de poesia, o tempo é expandido e o teatro dialoga com o cinema de Federico Fellini, de Ernst Ingmar Bergman e acena para Andrei Tarkovsky. As referências textuais de Michel de Ghelderode e de Samuel Beckett se impõem nos gestos, nas pausas e no ritmo de Lágrimas de um guarda-chuva.

O passado e o futuro convergem pelo erotismo, o gozo como lembrança do divino e projeção de prazer. E Cadengue convoca o grotesco medieval, em seu aspecto lúgubre, mas associado ao lúdico e ao riso. E cria imagens poderosas ao juntar valores aparentemente contraditórios como o elevado e o baixo, o belo e o feio. Em algum momento, a condição existencial daqueles indivíduos fica nivelada. A peça leva para o palco o aspecto libertador do riso, mas que nem de longe chega à gargalhada.

No geral, o espetáculo é muito bonito, a atuação dos atores é boa, a cenografia deslumbrante; os figurinos, o som e a luz se harmonizam. E Cadengue imprimiu rigor ao texto.

SERVIÇO

Lágrimas de um guarda-chuva
Hoje (27), às 21h, Teatro de Santa Isabel
Ingresso: R$ 10 (preço único promocional)

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Enquanto o vidraceiro não vem

Duas figuras solitárias, com algum desvio de comportamento. Eles guardam segredos, quase traumas que tentam apagar socialmente. Eles também preferem não ficar muito em evidência. Talvez pensem que seja melhor passar despercebidos. No dia a dia tentam se esconder por traz de padrões dominantes, mas algo sinaliza para alguma diferença: um gesto, um silêncio. O espetáculo O acidente tem uma pulsação bem contemporânea, mas focaliza o oposto do que é exigido o tempo inteiro pela publicidade com gente eternamente feliz. Nesse microcosmo em que se passa a peça, numa falsa festa é revelado o lado negativo dos desejos frustrados, das ambições minadas, de vidas sem glamour ou eventos especiais.

Para salientar tudo isso o diretor Fausto Filho investe no processo da conquista de intimidade dos dois personagens, Mário e Miriam, colegas de trabalho, que frequentam as mesmas festas da firma, trocam algumas palavras e são dois completos desconhecidos. O texto é do mesmo autor de Novas diretrizes em tempos de paz, Bosco Brasil, e traz uma delicadeza na revelação dos medos, das inseguranças, das fraquezas humanas. E quanto mais fracos, mais humanos parecem. A montagem de O acidente é do Visível Núcelo de Criação e no elenco estão Sandra Possani e Kéber Lourenço.

No pequeno espaço reservado aos atores, o personagem Mário aguarda. Miriam chega e, aos poucos, eles começam a descortinar suas intenções um com o outro. Tudo próximo de algo que pode ocorrer no cotidiano. Além do bom texto de Bosco Brasil, as atuações de Kléber Lourenço e Sandra Possani são convincentes e chamam a plateia para o campo deles. Não dão sossego ao espectador. Com sutileza nos detalhes, um andamento cheio de personalidade, um jogo dinâmico entre os jogadores, o espetáculo rasga um pouco do queremos esconder. Dos equívocos nas intepretações dos sinais apresentados pelo outros. Isso é engraçado.

O cenário bem intimista, com poucas peças que representam um pequeno apartamento, um sofá, uma pequena estante, um telefone. A separação entre público e plateia é feita com a disposição de livros espalhados pelo chão. A iluminação sombria é reveladora do estado de espírito das personagens. E a trilha sonora garante um clima nervoso, de quem tem sempre algo em suspenso.

Mas mesmo com um emprego burocrático, com pouca grana no final do mês, com tudo que a vida cobre e tira de cada um deles, e de nós também, o texto de Bosco Brasil, a encenação e as atuações trazem uma nesguinha de otimismo. De que algo pode se iluminar quando o amor diz que existe e, mesmo que ele não seja verdadeiro, instala-se a confiança. O fardo da existência pode ficar mais leve, mesmo com o peso da contabilidade e dos números, das brincadeiras machistas dos rapazes da empresa e da incompreensão da maioria.

SERVIÇO
O Acidente tem sessão hoje às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Avenida Cais do Apolo, s/n, bairro do Recife. Fones: 3355-3321, 3355-3318, 3355-33119).
Dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. Ingresso R$ 10 (preço único e promocional).

Fotos: Ivana Moura

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