Enquanto o vidraceiro não vem

Duas figuras solitárias, com algum desvio de comportamento. Eles guardam segredos, quase traumas que tentam apagar socialmente. Eles também preferem não ficar muito em evidência. Talvez pensem que seja melhor passar despercebidos. No dia a dia tentam se esconder por traz de padrões dominantes, mas algo sinaliza para alguma diferença: um gesto, um silêncio. O espetáculo O acidente tem uma pulsação bem contemporânea, mas focaliza o oposto do que é exigido o tempo inteiro pela publicidade com gente eternamente feliz. Nesse microcosmo em que se passa a peça, numa falsa festa é revelado o lado negativo dos desejos frustrados, das ambições minadas, de vidas sem glamour ou eventos especiais.

Para salientar tudo isso o diretor Fausto Filho investe no processo da conquista de intimidade dos dois personagens, Mário e Miriam, colegas de trabalho, que frequentam as mesmas festas da firma, trocam algumas palavras e são dois completos desconhecidos. O texto é do mesmo autor de Novas diretrizes em tempos de paz, Bosco Brasil, e traz uma delicadeza na revelação dos medos, das inseguranças, das fraquezas humanas. E quanto mais fracos, mais humanos parecem. A montagem de O acidente é do Visível Núcelo de Criação e no elenco estão Sandra Possani e Kéber Lourenço.

No pequeno espaço reservado aos atores, o personagem Mário aguarda. Miriam chega e, aos poucos, eles começam a descortinar suas intenções um com o outro. Tudo próximo de algo que pode ocorrer no cotidiano. Além do bom texto de Bosco Brasil, as atuações de Kléber Lourenço e Sandra Possani são convincentes e chamam a plateia para o campo deles. Não dão sossego ao espectador. Com sutileza nos detalhes, um andamento cheio de personalidade, um jogo dinâmico entre os jogadores, o espetáculo rasga um pouco do queremos esconder. Dos equívocos nas intepretações dos sinais apresentados pelo outros. Isso é engraçado.

O cenário bem intimista, com poucas peças que representam um pequeno apartamento, um sofá, uma pequena estante, um telefone. A separação entre público e plateia é feita com a disposição de livros espalhados pelo chão. A iluminação sombria é reveladora do estado de espírito das personagens. E a trilha sonora garante um clima nervoso, de quem tem sempre algo em suspenso.

Mas mesmo com um emprego burocrático, com pouca grana no final do mês, com tudo que a vida cobre e tira de cada um deles, e de nós também, o texto de Bosco Brasil, a encenação e as atuações trazem uma nesguinha de otimismo. De que algo pode se iluminar quando o amor diz que existe e, mesmo que ele não seja verdadeiro, instala-se a confiança. O fardo da existência pode ficar mais leve, mesmo com o peso da contabilidade e dos números, das brincadeiras machistas dos rapazes da empresa e da incompreensão da maioria.

SERVIÇO
O Acidente tem sessão hoje às 19h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Avenida Cais do Apolo, s/n, bairro do Recife. Fones: 3355-3321, 3355-3318, 3355-33119).
Dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. Ingresso R$ 10 (preço único e promocional).

Fotos: Ivana Moura

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