Lágrimas de um guarda-chuva dialoga com Fellini e Bergman

Fotos: Ivana Moura

Uma obra de arte se oferece em múltiplas leituras e é captada de acordo com o repertório de seu público. Muitas chaves estão disponíveis para interpretações em Lágrimas de um guarda-chuva. O espetáculo tem texto do mineiro Eid Ribeiro, adaptação e direção de Antonio Cadengue, elenco formado por Silvio Pinto, Cira Ramos, Arilson Lopes, Bobby Mergulhão e Marcelino Dias. Além de cenografia, figurinos e adereços de Marcondes Lima, trilha sonora original e produção da Rec Produtores Associados. Do “molho” de chaves de Cadengue, que qualquer espectador pode verificar no programa da peça, encontramos a possibilidade abrir algumas portas. Vamos entrar.

É outono. E acompanhamos Sansão, o mágico, e Angelina/Zambê, a mulher-gorila que adivinha o futuro das pessoas, chegarem a uma cidade abandonada, que pode ser em qualquer lugar do mundo. Saberemos depois, com o surgimento do jovem Carmelo, que o povo da cidade foi embora para fugir de uma epidemia. Na sua forma delirante de encarar o mundo, Carmelo também chega como portador do futuro e diz que traz na mala o destino de Sansão. E o amor pode até brotar nesse tempo pós-cólera.

Sansão e Angelina estão juntos e em algo compactuam, até o dia da virada. Antes disso, três cegos cantadores se apresentam atraídos pela mulher-macaco e contam atos cruéis que cometeram uns contra os outros. O lirismo e a atmosfera mágica predominam na encenação que desnuda um pouco da condição humana com a performance desses vagabundos, que espelham desejos mesquinhos. Mas algo angustiante e sinistro também paira no ar. O leitmotiv é “sobreviver num mundo adverso”. Para isso vale quase tudo. As normas que deveriam reger as relações ficam temporariamente suspensas e há muitas inversões de leis e hierarquias. E lógico que o grotesco exerce efeito onírico.

Mas o tempo é o senhor de todas as coisas, espreitado pela danação. E enquanto as folhas caem dos urdimentos cênicos, num efeito carregado de poesia, o tempo é expandido e o teatro dialoga com o cinema de Federico Fellini, de Ernst Ingmar Bergman e acena para Andrei Tarkovsky. As referências textuais de Michel de Ghelderode e de Samuel Beckett se impõem nos gestos, nas pausas e no ritmo de Lágrimas de um guarda-chuva.

O passado e o futuro convergem pelo erotismo, o gozo como lembrança do divino e projeção de prazer. E Cadengue convoca o grotesco medieval, em seu aspecto lúgubre, mas associado ao lúdico e ao riso. E cria imagens poderosas ao juntar valores aparentemente contraditórios como o elevado e o baixo, o belo e o feio. Em algum momento, a condição existencial daqueles indivíduos fica nivelada. A peça leva para o palco o aspecto libertador do riso, mas que nem de longe chega à gargalhada.

No geral, o espetáculo é muito bonito, a atuação dos atores é boa, a cenografia deslumbrante; os figurinos, o som e a luz se harmonizam. E Cadengue imprimiu rigor ao texto.

SERVIÇO

Lágrimas de um guarda-chuva
Hoje (27), às 21h, Teatro de Santa Isabel
Ingresso: R$ 10 (preço único promocional)

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