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Alto da Boa Vista inspira cultura em Triunfo
Crítica dos experimentos cênicos
Da Laje-palco respeitável público e Dentra

Peça de Triunfo (PE) integra programação do Reside-LAB. Foto: Guilherme Andrade

Alto da Boa Vista, numa perspectiva de cima. Foto: captação de tela

Com a máscara da veinha em Da Laje-palco respeitável público o Alto. Foto: captação de tela

Com a máscara do careta. Foto: captação de tela

Depois de benzer o gato. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Triunfo fica em pleno Sertão pernambucano, distante 400km do Recife (quase sete horas de viagem de carro), na divisa dos estados de Pernambuco e Paraíba. Mas a cidade surpreende por algumas características incomuns da região do semiárido. Situada a 1.000 m acima do nível do mar, ostenta um clima ameno, com temperaturas que baixam a 6°C durante o inverno. Esse cenário peculiar guarda paisagens verdes, montanhas do vale do Pajeú e cachoeiras que contribuem para o município ser apelidado de oásis do Sertão. O ponto mais alto de todo estado de Pernambuco fica encravado lá, na zona rural: o Pico do Papagaio, com 1.260 metros de altitude. No centro ganham relevo o prédio do Cine Teatro Guarany, erguido em 1922, e as charmosas e coloridas edificações do século 19, fincadas nas ladeiras da cidade. As histórias e lendas do cangaço dizem que Lampião usou como esconderijo uma construção, de posição estratégica, conhecida hoje como Casa Grande das Almas. A cidade também abriga um Museu do Cangaço. Já a gruta denominada Furna dos Holandeses serviu de refúgio para remanescentes da tropa estrangeira depois da expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654.

Pensar em Triunfo é vislumbrar o folguedo dos caretas e sua variação, as veinhas. Os mascarados, que ganham protagonismo no carnaval, representam a cidade sertaneja. Essa brincadeira conta mais de um século e banca uma tradição transmitida de pais para filhos. As máscaras, com as bocas voltadas para baixo (da tragédia do teatro), adotam desenhos multiformes. Além das roupas coloridas, eles usam luvas e outros apetrechos – como chapéus enfeitados por fitas, tabuletas com mensagens irônicas ou picantes e chocalhos – para garantir o anonimato do brincante. E o mais importante: carregam os relhos, que são os chicotes que provocam um estalido fascinante e assustador ao mesmo tempo.

A atriz, diretora e produtora Bruna Florie fala desse lugar em Da laje-palco, respeitável público: o Alto, com a autoridade do pertencimento, de quem fez movimentos de saídas e retornos. Na real, ela elege um bairro para exaltar, um celeiro de artistas: o Alto da Boa Vista. “Eu cresci aqui”, começa narrando. Para reforçar “O Alto inspira cultura em Triunfo”. E mais na frente nos fazer cúmplices: “Conheço cada detalhe”.

Uma panorâmica, feita de cima com um drone, percorre os telhados das casas e Bruna passeia por ruas e memórias e cita pessoas marcantes do pedaço: família de músicos e artesãos de Seu Dão (que entrelaçava os cipós tão ligeiro quanto o olhar da menina); seus amigos Mazé e João Edson; Seu Zuza, “o careta mais exímio de Triunfo”; Seu João de Pastora, um dos criadores das cambindas; Maria de Zuza, que costura as peças dos artistas; seu primo Lúcio Fabio, que integrou o primeiro ateliê de arte do Alto; Neta, brincante e rezadeira, que deixa os meninos sambarem no terreiro; Nino Abraão e a Treca de Caretas Alto Astral.

O mundo visto do Alto é bordado, alimentado por poesia extraída do cotidiano, que celebra a vida e inventa outras razões para festejar. Da sua laje-palco, espaço que aloja caixas d’água, a atriz dança com o estandarte da Cambinda de Triunfo, de 2012. Ao portar a máscara do careta/veinha ela assume o silêncio enigmático desses brincantes e sai pelas ruas em sua performance com uma bengala e seu vestido vermelho: senta para descansar, para em um santuário, benze um gato.

Bruna Florie assume várias funções no trabalho Da laje-palco, respeitável público: o Alto, salientando sua inquietação. Ela colabora com vários coletivos de Triunfo: Pantim, Casa Espiral da Terra, Mangaio, RIPA (Rede Interiorana de Produtores, Técnicos e Artistas de Pernambuco) e o grupo de samba de coco e poesia “A Cristaleira”. Ela reúne no currículo outras dramaturgias, como Um conto de Lôre, Giro Espiral, Andeja, Dentra.

A trilha sonora traz uma camada a mais da riqueza cultural de Triunfo. O eletrococo muderno de Jéssica Caitano manda muito bem na cena ao misturar repente, coco, rap e beats e sintéticos. São ideias sonoras muito potentes, com músicas autorais de Jéssica e Chico Correa, responsável pelo componente instrumental, com beats, samplers e programações. 

Nesse período pandêmico tive oportunidade de conhecer alguns grupos que geralmente estariam fora do meu raio. Fiquei satisfeita com o trabalho de Bruna Florie. Aliás, admiro muito os realizadores, os que enfrentam e superam as dificuldades e/ou, apesar delas, concretizam sonhos com orgulhosa alegria.

Mesmo sozinha na gravação, a artista carrega consigo meio mundo de gente que atravessou  seu caminho, e muitos outros da sua ancestralidade, que sempre souberam do prazer da brincadeira compartilhada entre parentes e amigos. Os artistas do Alto da Boa Vista, como ela diz, vem sendo visita, passagem, memória, resistência, engrenagem. Salve, salve a cultura brasileira.

Dentra

Dentra, com Bruna Florie. Foto Divulgação

O corpo está repassado de um ruidoso mundo externo. O corpo ocupa um espaço no universo. Nessa proposta, o corpo físico é distinguido, fragmentado e desconstruído para desligar-se do mundo, silenciar e ouvir a voz interior. Em Dentra ouvimos o sussurro não pronunciado de Bruna Florie “O corpo é a nossa casa, a mais pessoal, a mais primordial. Precisamos cuidar bem dele”.

O experimento cênico Dentra convoca outras texturas poéticas além das memórias coletivas de Da laje-palco, respeitável público: o Alto. Clama por intimidades, aconchegos, outros afetos. Temporada de escuta; respiração como renovação.

As máscaras nas paredes, as peças das roupas de baixo no varal, um tom melancólico de recolhimento com o quase cheiro de terra úmida.

Dia desses a Tristeza bateu. “Escutei-a. escutei-me”. Ela escutou, abriu as janelas.

O tempo pulsa em cada pequeno objeto.

Vivemos tempos voltados para dentro.

Com uma boneca de pano, ela mostra que é possível suturar as dores, embelezar-se com um vestido. Tudo é delicado.

A feitura do chá é a criação de uma pintura. Pés mergulhados.

Na casa de bonecas ela enfia a cabeça. Closes bonitos nos olhos. Eles falam muitas coisas. Você entendeu?

Aproveitar o tempo hoje. Abraçar as experiências. Encarar suas sombras interiores. Acolher-se, solidarizar-se, valorizar-se. A realidade já está cruel demais. Vibre de emoção. Cada amanhecer é uma nova possibilidade.

Da laje-palco: respeitável público, o Alto
Ficha técnica:

Direção, roteiro, atuação e produção: Bruna Florie
Assistente de produção e videomaker: Guilherme Andrade
Filmagens com drone: Maycon Jonathan
Maquiagem: Karol Virgulino
Participações especiais de artistas do Alto da Boa Vista: Joaneide Alencar, Carlinhos Artesão e Jéssica Caitano
Edição, fotografia e direção de arte: Bruna Florie
Trilha Sonora:  Beat the Burglar – Scott Holmes, Repente – Jéssica Caitano & Chico Correa, Música Lab II– Jéssica Caitano & Paulo Beto, Canarin – Jéssica Caitano & Chico Correa

DENTRA
Ficha técnica:

Direção geral e produção: Bruna Florie
Roteiro: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Assistente de produção I e videomaker: Guilherme Andrade
Assistente de produção II: Geibson Nanes
Trilha sonora: Sad walk with sad piano – komiku, Amaryllis Flower – Ivy Meadows, Dreaming of You – Komiku
Edição, montagem, fotografia: Bruna Florie e Guilherme Andrade
Direção de arte, atuação e poema Dentra: Bruna Florie

 

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Da culpa à libertação
Crítica de Vulvas de quem?

 

Márcia Cruz em cena no experimento Vulvas de quem?. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No último domingo, 21 de março, morreu Nawal El Saadawi, escritora egípcia feminista, autora de mais de 50 livros, entre ensaios, romances e peças. Em A face oculta de Eva, Saadawi conta que, aos seis anos de idade, teve o clitóris cortado. A mãe sorria. O cenário era o chão de um banheiro. Ao longo de sua trajetória como ativista, o combate à circuncisão feminina foi uma das suas principais causas. Numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 2016, a autora salientou a diversidade das mulheres e das suas lutas: “Vivemos em um mundo dominado por um sistema religioso, patriarcal e racista. Mas o nível de opressão varia de acordo com o tempo e de um lugar ao outro, segundo o grau de consciência da maioria e os poderes políticos das mulheres e homens lutando por liberdade, justiça e dignidade”.

Esse grau de consciência de que fala Saadawi tem se ampliado nas últimas décadas, num movimento que é complexo, porque as pautas feministas, assim como outras pautas sociais, são cooptadas pelo sistema capitalista, alienante por princípio. De toda maneira, a discussão sobre feminismo explodiu fronteiras, ganhou dimensão de debate público, embora ainda enfrente muitas distorções. Por exemplo: ontem à noite, 23 de março, o Brasil votou para que uma mulher que estava vivendo um relacionamento tóxico fosse eliminada do Big Brother Brasil. O principal oponente dela era um homem que fez piadas homofóbicas. O comportamento da mulher, taxada de trouxa aos quatro ventos do país, foi julgado, porque além de não perceber as armadilhas da relação, ela ainda se ajoelhou e fez uma declaração de amor em rede nacional.

Carla Diaz é uma atriz que cresceu sob os holofotes da televisão. Branca, loira, cabelão liso, magra, menininha, cumpre os pré-requisitos do estereótipo de beleza padrão. Ainda assim, não está a salvo do relacionamento abusivo. Nenhuma de nós está. Em qualquer idade, classe social, cumprindo ou não os padrões, mais um degrau na escala da opressão. A ressaca moral que, provavelmente, vai assombrá-la por um tempo, é parecida com àquela da personagem de Márcia Cruz em Vulvas de quem?, experimento cênico com direção de Cira Ramos e texto de Ezter Liu, uma realização da Cia Maravilhas de Teatro.

Aliás, talvez seja mais apropriado dizer “das personagens”. Sem seguir uma cronologia linear, Márcia Cruz vai dos 7 aos 93 anos, explorando os mecanismos da relação que se transforma em abuso, físico, psicológico, moral. “Quem vendou teus olhos com esse trapo sujo e depois te chamou de cega?”. “Quem queimou teu passaporte na pia do hotel e disse que ir não era uma opção?”. “Quem passou tua autoestima no liquidificador?”.

A atriz trilha o caminho do reconhecimento, desse instante em que a mulher tem a coragem de se olhar, mergulhar em si, e admitir que caiu na esparrela do abusador. O cenário é um banheiro, com a personagem de frente para o espelho, o público, que a acompanha nesse exercício de dor profunda. Márcia é uma atriz que passeia pelas filigranas da atuação – vai do choro e do grito rasgado ao riso de libertação com desenvoltura de quem tem anos de experiência e talento.

Personagens se olham no espelho e percebem relacionamentos abusivos. Foto: Morgana Narjara

Como o cerne da questão é identificar o abuso, o sentimento inicial que escorre desse texto, dessa personagem, é o da culpa. Vulvas de quem? Culpa de quem? Como eu não percebi? Como não me dei conta? Só que, como num ciclo vicioso, que atravessa o tempo e as gerações, como explicita a dramaturgia, é muito difícil se libertar, tanto do relacionamento quanto da culpa, que não deveria nem nos pertencer. Há um limite tênue, tanto no experimento como na vida. Parem de nos culpabilizar. Paremos de nos culpabilizar.

O desafio é enorme: mostrar a realidade da violência e da opressão no teatro, num experimento cênico de poucos minutos, que envereda pela elaboração discursiva de um cenário fiel ao cotidiano. Não há muitas permissões para a abstração, além da poesia crua do texto. O fluxo da jornada dessas personagens é o da repetição, até que a música de Flaíra Ferro irrompe no ambiente. Como um mantra, uma oração que clama por cura. “Eu quero me curar de mim, quero me curar de mim”.

Há uma força, que se desprende do texto, da música e, principalmente da atuação, que é do campo da catarse – tanto que reforça a ideia da cura. Que nos alcança e nos fere diretamente pela identificação. O espelho está escancarado, refletindo os rostos de todas nós. Que, para além da consciência da opressão, venha a superação. Porque, como diria Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. Antes que seja tarde.

Ficha técnica:
Texto: Ezter Liu
Direção: Cira Ramos
Elenco e produção: Márcia Cruz
Sonoplastia: Fernando Lobo
Música: Flaíra Ferro
Iluminação: Luciana Raposo
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Cia Maravilhas de Teatro

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Clara e Conceição foram ver o mar
Crítica de Transbordando Marias

Clara e Conceição Camarotti (foto) trabalham juntas em Transbordando Marias. Foto: Reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

No meu corpo, sou muitas. As que vieram antes, as que virão depois. Carrego comigo todas elas. Em Transbordando Marias, espetáculo que abriu a programação de encenações do festival Reside Lab – Plataforma PE, no corpo da atriz e bailarina Maria Clara Camarotti estão imbricadas as vivências da sua mãe e da sua avó, numa teia complexa que traça paralelos, coincidências e viradas de rumo entre histórias temporalmente distintas, mas ligadas pela ancestralidade.

Há algum tempo, ando absorvida pela leitura do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Mergulhada na história de Kehinde, nascida em Savalu, no reino de Daomé, na África, em 1810. É uma personagem forte, que sente a ancestralidade pulsando no corpo, nos sonhos, nas crenças compartilhadas com o seu povo. Transbordando Marias me levou de volta às primeiras páginas do livro.

Kehinde era uma ibêji, como são chamados os gêmeos entre os povos iorubás. Pela tradição, ibêjis eram símbolo de boa sorte e de riqueza. Com Kehinde e Taiwo atadas ao próprio corpo, uma na frente e outra atrás, a mãe das crianças dançava no mercado para ganhar dinheiro. A primeira lembrança de existência de Kehinde eram os olhos da Taiwo. “Éramos pequenas e apenas os olhos ficavam ao alcance dos olhos, um par de cada lado do ombro da minha mãe, dois pares que pareciam ser apenas meus e que a Taiwo devia pensar que eram apenas dela. Não sei quando descobrimos que éramos duas, pois acho que só tive certeza disto depois que a Taiwo morreu. Ela deve ter morrido sem saber, porque foi só então que a parte que ela tinha na nossa alma ficou somente para mim”.

Clara Camarotti dança, não no mercado, mas no espaço de um casa, como se fosse a mãe de Kehinde. Com a mãe e a avó, que também podem significar casa. Assim como o corpo que habitamos, com todas as suas singularidades, casa. Sabe que não é apenas uma. Tem consciência de que são três. São várias, incontáveis, presentes ali naquela sala, através da sua dança.

O elo entre as três mulheres é o número 9, aquele que simboliza o encerramento de ciclos. Que rompe com as estruturas de violência reproduzidas a cada geração. A avó foge dos maus-tratos do marido depois de nove anos, deixando a filha de nove anos, levando consigo apenas a mais nova, de nove meses. A mãe foge de casa com o circo, aos nove anos, porque queria ser atriz. A rejeição sofrida pelo grupo de amigas aos nove anos com a justificativa de que era uma criança feia.

Clara Camarotti dança a história das mulheres da família. Foto: Reprodução de tela

A perspectiva documental, autobiográfica, é uma das potências do trabalho, que consegue estabelecer zonas fluidas entre ficção e realidade. Afinal, memória também é construção, (re)elaboração de sentidos e narrativas. Quando contamos, nos insurgimos contra o esquecimento. Damos uma oportunidade, traço de imensa generosidade, para que os outros também se apropriem da narrativa, carreguem consigo, passem adiante.

Ao trazer para a cena a mãe, a atriz Conceição Camarotti, 67 anos, Clara entrega um presente precioso ao espectador. Conceição é uma atriz gigante, que preenche a tela, que instaura um tipo estranho e raro de cumplicidade imediata. Está em cena sendo questionada pela filha se gostaria de interpretar um papel, se preferia improvisar ou simplesmente ser ela mesma. Consegue fazer as três coisas. Ora provando o figurino, ora contando histórias deliciosas de uma jovem destemida numa sociedade patriarcal, sentada numa mesa, na cozinha de um sítio, ora reproduzindo, livremente, as falas da velha Maria Josefa, louca, mãe de Bernarda Alba, personagem célebre de Federico Garcia Lorca.

Texto tem trechos inspirados na personagem Maria Josefa, de Lorca. Foto: Reprodução de tela

Nesta situação de pandemia, quando morremos literalmente sem fôlego, numa metáfora materializada, triste e cruel da nossa realidade, Conceição pede que a filha abra a porta, que a deixe ver o mar. Assim como ela, a filha e os filhos da filha também terão cabelos brancos, como a espuma da onda do mar, bubuia, que é doce, beija a praia, mas tem a força de levar tudo embora. O tema da velhice perpassa a dramaturgia como condição inerente, espelho-tela refletindo a imagem da velha atriz preta, potência de vida, encarando o soco no estômago das limitações trazidas pelos anos. Ao mesmo tempo, existência, resistência.

Transbordando Marias foi criado em conjunto por uma equipe de artistas: além de Maria Clara Camarotti, Naná Sodré, do grupo O Poste Soluções Luminosas, Maria Agrelli, Silvinha Góes e Conrado Falbo, esses últimos parceiros de Clara no Coletivo Lugar Comum. O trabalho foi possível graças ao edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco. Gestado durante a pandemia, as questões técnicas, desde a captação das imagens e do som até a edição, são o ponto mais frágil do trabalho. A sensação é de que, embora tenha uma dramaturgia e uma atuação consistentes, com muitas possibilidades, trata-se ainda de uma semente, de um experimento que pode virar árvore frondosa.

Dá esperança pensar que podemos ter, em algum momento de um futuro que quiçá nos seja próximo, um espetáculo documental, Clara e Conceição Camarotti pisando o palco de um teatro. Ou um filme, já que as telas amam o talento de Conceição. Vou puxar a sardinha para o nosso lado, que venham logo, sem demora, as três batidas de estaca do Teatro de Santa Isabel, anunciando que a sessão já vai começar.

Clara Camarotti. Foto: Reprodução de tela

Ficha Técnica:
Concepção e direção geral: Maria Clara Camarotti
Elenco: Conceição Camarotti e Maria Clara Camarotti
Texto livremente inspirado na personagem Maria Josefa, da peça A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca
Equipe de criação: Maria Clara Camarotti, Nana Sodré, Maria Agrelli, Silvinha Góes, Conrado Falbo
Trabalho contemplado pelo edital emergencial Cultura em Rede do Sesc Pernambuco.

 

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Festival de acervo, reconstrução de teias
Uma avaliação do 27º Janeiro de Grandes Espetáculos

Espetáculo Depois do fim do mundo, no Teatro de Santa Isabel. Foto: Arnaldo Sete

Teatro de Isabel tem capacidade para 570 lugares, mas só está recebendo até 140. Foto: Arnaldo Sete

Podia ser o carro do ovo anunciando promoção nas ruas do bairro. Não! Era Romildo Moreira divulgando a primeira edição do Janeiro de Grandes Espetáculos. Em 1995, apesar de já contar com propaganda na televisão, o projeto – que ainda não era chamado de festival – criado pela Prefeitura do Recife, tinha como um dos objetivos popularizar o teatro e a dança. “Não lembro exatamente quanto era o ingresso, mas era muito mais barato do que cinema. Saíamos no carro de som, dizendo ‘se você não conhece o Teatro de Santa Isabel, chegou a hora’. Íamos nos pontos de ônibus, no Centro, no Derby, na Encruzilhada, em Água Fria, em Afogados”, relembra Moreira, hoje diretor do Teatro de Santa Isabel.

Corta para 2021, 27ª edição do festival, que desde 1998 passou a ser realizado pela Apacepe (Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco) e se tornou uma das principais mostras do estado. Pandemia de coronavírus, teatros fechados ou vazios durante meses, grupos e artistas enfrentando crises em diversos âmbitos. Durante 22 dias, 48 espetáculos participaram da programação do JGE Conecta, sendo 35 deles on-line e o restante apresentados presencialmente, nos teatros do Recife.

Para um festival que sempre teve no público – e na bilheteria – um dos seus esteios, uma programação no meio de uma pandemia foi um desafio. No Teatro de Santa Isabel, por exemplo, a ocupação normal é de 570 lugares. Com as restrições, apenas 140 espectadores podem ser recebidos.

E, como estamos desde março de 2020 vivendo a realidade das restrições da pandemia, passada a euforia das primeiras experiências de teatro on-line e de quase um ano de sessões realizadas quase que exclusivamente pelas plataformas digitais, há uma sensação de cansaço das telas. Não que o formato esteja com os dias contados, que não seja teatro, que não tenha a mesma importância, que não tenha público. Nada disso! Mas a impressão, por exemplo, é de que os grupos têm muito mais dificuldade de “lotar” suas plateias virtuais do que há alguns meses, um movimento semelhante ao que aconteceu com as lives, retomadas agora no carnaval.

Ainda assim, para quem está resistindo, cumprindo as medidas de isolamento social, interagir numa comunidade, mesmo que virtualmente, faz muita diferença. Tanto é que continuamos acompanhando um movimento de conversas e debates pós-espetáculos bastante interessante. Temos visto um interesse genuíno dos espectadores de dialogar sobre o que viram, de partilhar a recepção. A experiência de estar junto a outras pessoas, no mesmo momento, assistindo ao espetáculo, é diferente de ver algo sozinho no YouTube.

Num dos frames de divulgação do festival, antes de cada espetáculo on-line, o público lia: “Esperamos que aprecie, esteja sozinho ou junto de quem você gosta”. Mas o festival perdeu a oportunidade de promover a construção dessa comunidade de maneira efetiva. Cada espectador estava por si, não houve interação, não sabíamos quantas pessoas estavam assistindo ao mesmo tempo e o espectador tinha, inclusive, a facilidade (entendemos que, nessas circunstâncias, era uma facilidade) de abrir o link no horário informado, mas de assistir algumas horas depois, enquanto o vídeo não expirasse.

Houve uma série de conversas ao vivo, geralmente pela manhã, chamadas de Palavração. Foi um conteúdo importante, significativo, onde havia essa dimensão de comunidade. Mas essa programação não foi divulgada com a mesma antecedência dos espetáculos. A crítica – que, durante anos, foi parte muito importante do festival – também não teve espaço nos debates.

Mesmo com o Palavração, quando pensamos que um dos trunfos do Janeiro é justamente a capacidade de agregar as pessoas, que vão ao teatro para ver os espetáculos, mas também para se encontrar, para estarem juntas, parece haver um descompasso entre os princípios do digital e do presencial, para além da materialidade propriamente dita. Nem sempre vamos ao teatro durante o Janeiro de Grandes Espetáculos especificamente pela peça. O encontro faz parte desse contexto.

No mesmo sentido, a experiência da feitura ao vivo também é completamente diferente de ver um espetáculo pré-gravado. Acompanhar uma montagem sendo levantada em tempo real, ver que os atores assumiram os riscos, a experimentação da linguagem. Se “teatro é ao vivo”, como gosta de repetir Paulo de Castro, diretor geral do festival, não foi isso que aconteceu no digital. Essa foi a principal fragilidade do JGE Conecta. O festival optou por uma edição de arquivo – praticamente todos os grupos participaram da programação com gravações de espetáculos de seus acervos.

Não ignoramos que essa opção pode ter sido feita principalmente por questões técnicas, pelas ausências de garantia de conexão, de capacidade estrutural dos grupos de realizarem seus experimentos. As dificuldades são motivos justos.

Mas, como um dos resultados, tematicamente, foi um festival que, com algumas exceções, pouco discutiu nos seus espetáculos a realidade que estamos vivendo. Não foi isso que vimos refletido nas telas. Estávamos descolados temporalmente. Não quer dizer que os espetáculos não tenham sido relevantes, não tragam em si questões pertinentes e atemporais, mas não estavam necessariamente conectados com esse momento tão crítico.

De qualquer maneira, a atuação de José Manoel Sobrinho como gerente de programação foi um ganho indiscutível. Observando de fora, parece ter sido ele que deu unidade ao trabalho da comissão de seleção, formato que existe há muito tempo. Cada edição tem uma nova comissão. A deste ano foi composta por Gheuza Sena, Genivaldo Francisco, Djaelton Quirino e Clara Isis Gondim.

Os contornos da programação foram delimitados de uma maneira mais clara – espetáculos nacionais ligados a grupos de pesquisas ou pessoas vinculadas às universidades ou a instituições como o Sesc, espetáculos do interior do estado e espetáculos da recém-criada Mostra de Escolas Independentes de Teatro, Dança e Circo.

Nesse movimento, perdemos a chance – sem as barreiras do deslocamento, das passagens de avião caríssimas na alta temporada, das dificuldades de produção – de ver espetáculos de grupos mais consagrados na programação. Por outro lado, houve a oportunidade de enveredar por produções de grupos que estão fora dos eixos mais tradicionais, que têm uma dificuldade de circulação maior. São escolhas, caminhos que sempre têm seus ônus e bônus.

Pele negra, máscaras brancas. Foto: Adeloyá Magnoni

Pele negra, máscaras brancas. Foto: Adeloyá Magnoni

Processo Medusa. Foto: Tássio Tavares

Nesse cenário, fizemos a crítica de nove espetáculos da programação: um internacional (À um endroit du début/Senegal), dois nacionais (Caipora quer dormir/DF e Pele negra, máscaras brancas/BA), dois pernambucanos (Sentimentos Gis/Petrolina e Cachorros não sabem blefar/Caruaru) e quatro trabalhos ligados a escolas (Experimento Multimídia: Um jogo dialético/Sesc Santo Amaro, Processo Medusa/Núcleo Biruta de Teatro, Ubu, o Rei do Gago/Escola João Pernambuco e Contos em Dor Maior/Escola Fiandeiros de Teatro).

Nessa programação mais enxuta, o peso da Mostra de Escolas Independentes de Teatro e Dança foi bastante relevante. É uma mostra importante, que pode ter um espaço de destaque no festival. Mas numa edição presencial – ou mesmo numa futura edição híbrida – talvez isso tivesse que ser equilibrado de uma melhor maneira. O festival não é de escolas. Não é nem justo dar essa “responsabilidade” aos experimentos cênicos, que possuem caráter didático fundamental, não estão necessariamente focadas na encenação propriamente dita, nos resultados artísticos.

Sem dúvidas, um dos ganhos foi uma presença maior dos espetáculos do interior no festival, uma demanda antiga. Mas uma expectativa – que também não é recente – é de que o Janeiro pudesse contribuir de uma forma mais efetiva e perene para a cena pernambucana. O Janeiro poderia ser o espaço para a proposição de intercâmbios, de trabalhos em conjunto, de trocas que talvez pudessem abrir novos caminhos estéticos. Em alguns momentos isso aconteceu, mas não com a força e a constância que poderia. Seja entre grupos do interior e da capital, entre grupos ou artistas nacionais e grupos pernambucanos, entre grupos brasileiros e estrangeiros. Não numa perspectiva colonizadora, mas numa ideia de troca, de construção de laços e de possibilidades conjuntas.

Mesmo assim, neste ano tão difícil, a resistência de realizar o festival precisa ser comemorada. E, mais ainda, já que foi levado ao espectador com competência, da equipe técnica, da equipe curatorial, da equipe de produção. Todas essas áreas pareciam muito mais bem resolvidas entre si, como se o trabalho estivesse fluindo numa harmonia maior.

Outra impressão importante é a de que a classe, ou parte dela, voltou a se envolver de forma um pouco mais próxima. Por sua trajetória, o festival sempre teve muita importância para os artistas pernambucanos, mas a censura ao espetáculo O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, em 2018, acarretou uma cisão. O festival, naquele momento, não mais representava a classe, que ajudou a construí-lo e mantê-lo. Essa relação parece estar sendo tecida novamente. Com cautela, com respeito e com afeto. Em prol da arte.

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Corpos trans afirmam que estão na luta pela vida
Crítica de O Evangelho Segundo Vera Cruz

 Elke Falconiere, Dante Olivier, Jailton Jr., (em pé) Rodrigo Cavalcanti e Joe Andrade. Elenco da peça O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, de Pernambuco, dirigida por Rodrigo Dourado, que recria episódios da censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns (PE),  em 2018.

“Negra, pobre, periférica, travesti”. É assim que Erika Hilton, a primeira vereadora transexual de São Paulo – a mulher mais bem votada no Brasil – se apresenta. Como a maioria das mulheres trans, ela foi inviabilizada durante a maior parte dos seus 27 anos de vida. Sua vitória é individual e coletiva. É uma resposta ao avanço da extrema-direita. Muitas outras vêm sendo dadas. Contra o fascismo e o conservadorismo. Na política, na arte, na arte que é política. 

É um marco. Mas nada é tão simples nesses tempos. Os paradoxos gritam. Mulheres eleitas vereadoras e prefeitas, negras, foram ameaçadas de morte. Eles continuam tentando intimidar, limar as afirmações, confiscar os lugares. 

É sobre intimidação, repressão, agressão, intolerância que trata o espetáculo pernambucano O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, dirigido por Rodrigo Dourado. O trabalho tensiona documento e ficção e convoca os episódios condenáveis de censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns, Pernambuco, em 2018. A montagem foi proibida de se apresentar no Festival de Inverno de Garanhuns, depois de ter sido selecionada pela curadoria do evento.

De maneira criativa e contunde, Vera Cruz recria o périplo da Rainha do Céu, que envolve política, justiça, católicos e neopentecostais, seguidores versus arte e liberdade artística, desobediência civil e re(existência).

De forma breve, a atriz trans Renata Carvalho em corporeidade não-normativa interpreta Cristo, em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. As reflexões da peça são as pregadas pelo Cristianismo, como o perdão, compaixão, combate à intolerância preconceito, e toda forma de opressão. Não é isso que ensinam as religiões? Não é tão simples. Renata que o diga. Sua montagem sofreu muitas proibições e retaliações em vários lugares.

Em Garanhuns, a peça foi convidada, excluída da programação, reinserida pela justiça, articulada para fazer sessões paralelas, perseguida. Qual o poder dessa peça que desperta tantas reações?

O Evangelho Segundo Vera Cruz traça dobraduras para salientar que vivemos num pais racista, machista, misógino, transfóbico, LGBTfóbico e que tem horror a pobre.  Vera Cruz é o nome desse lugar fictício, que pode ser o agreste pernambucano onde se passaram os fatos, que remete ao passado colonial brasileiro; ou outro Brasil afora. Colonial, colonialismo, cristianismo, público sendo usado como privado são questões que atravessam a montagem.

Duas atrizes trans (Joe Andrade e Elke Falconiere), um ator trans (Dante Olivier) e mais dois atores cis (Jailton Júnior e Rodrigo Cavalcanti) estão no elenco. Das janelas do Zoom, elxs equalizam sentimento de indignação, revolta, insubordinação. Inflamam de verdades quem sofre na pele as perseguições e a falta de oportunidades. Articulam o clima de instabilidade e praticamente desenham para quem não quer ler o que é ser uma pessoa trans num país como o nosso.

Além das situações que a atriz Renata Carvalho viveu recriadas para a cena online, o dramaturgo e diretor Rodrigo Dourado criou um conflito paralelo à contenda pública, a trama de um casal LGBT formado por um homem cis e um homem trans, que lideram o  movimento para levar a peça à cidade. Os quadrados do Zoom funcionam bem para impor a dinâmica da reinserção e retirada consecutiva da encenação, espelhando o que ocorreu com Renata Carvalho em 2018.

Além do bom desempenho técnico com a plataforma, O Evangelho Segundo Vera Cruz garante o humor ácido e a alternância entre crítica social, posicionamento político e dose de revolta represada por séculos de opressão. O resultado é instigante.  

Em dado momento, a atriz Joe Andrade interage com a plateia, do chat da Plataforma Zoom, ao perguntar se pessoas trans subtraem as oportunidades de trabalho das pessoas cis gêneros. Isso ocorre após uma acalorada renovação da fala da atriz Renata Carvalho sobre o tema do transfake no teatro. É chamada de transfake a prática de atores cis assumirem personagens trans e travestis, Por isso, em abril de 2017 o Coletivo T criou o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga não ao Trans Fake’ 

São muitas nuances, provocações de O Evangelho Segundo Vera Cruz, para marcar um posicionamento firme diante do cenário turbulento que inspirou a peça e da complexa realidade em que vivemos.

O mundo tão distópico quanto na ficção ganha relevo no vídeo, que conta com a participação da atriz Renata Carvalho, e é bem desconcertante. Utilizando imagens de arquivos da história do mundo, antigas e recentes, a narrativa se impõe como uma verdadeira guerra em que as vidas transgêneras se defendem para preservar a própria existência. Eu só pouparia a estátua de Ariano Suassuna. 

A esperança de futuro e a reação violenta também vão depender dos ataques. Os corpos dissidentes estão se articulando em força e inteligências para não serem mortos.  Não dá mais para recuar na busca por liberdade, com dissidência e desobediências para o pleno exercício das subjetividades.

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