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Precisamos repensar o sentido de existir
Crítica de Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1)

Andrezza Alves e Marcondes Lima em Portugal e Enne Marx, no Recife. Foto Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1) se apresenta como um experimento cênico virtual, uma abertura de processo, um work in progress. No material de divulgação, os artistas afirmam que, – diante do quadro em que o Brasil se encontra, com as mortes pela Covid-19, pela Polícia Militar, por feminicídio e por fome – “precisamos repensar, mais que nunca, o sentido de existir, resistir, persistir. Yorick … é um dos frutos dessa reflexão”.

Exibido em duas sessões ao vivo durante o Festival Reside – Lab, com debate na sequência, o espetáculo em construção toca ou aproxima-se de questões nevrálgicas nesses dias de peste e da peste. Aponto algumas que consegui captar: valorização do ser humano, autoimagem, Lei Aldir Blanc e sua implantação em Pernambuco, direito ao trabalho e valorização do conhecimento de todos, empatia seletiva, direito ao luto, imigração, como lidar com o contato à distância, etiqueta no online, como produzir humor, como sobreviver sem atropelar o outro e sem perder a ternura.

Inspirado no Ato V, Cena I d’A Tragédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, a peça junta seis artistas: Andrezza Alves; Daniel Machado, Enne Marx, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana, que assina a direção. Os três que performam – Andrezza, Enne e Marcondes – foram estudar e morar em Portugal e passam – ou passaram, no caso de Enne, pela experiência da imigração no país europeu, nosso colonizador, e sentiram na pele a desconfiança que recai sobre estrangeiros. As performances deles estão carregadas dos atritos gerados por esses sentimentos de ressalvas no acolhimento pleno aos brasileiros em Portugal.

Andrezza e Marcondes. Foto captação de tela

Como sabemos, a cena dos Coveiros (Ato V, Cena I) de Hamlet, de Shakespeare está impregnada das marcas culturais do tempo em que foi escrita/encenada pelo bardo inglês. As milhares de versões dessa peça atualizam as marcas históricas de cada período. Na cena específica, dois coveiros, que ostentam a sabedoria do povo, chegam ao Cemitério de Elsinor, carregando pás e outras ferramentas.

No texto shakespeariano, as personagens citam as Escrituras, debatem a origem da nobreza, o julgamento de Ofélia, que tem como veredito o direito dela ganhar um enterro cristão, subvertem termos lógicos, produzem humor e podem instalar o riso pelo tom ambíguo, irônico e sarcástico. Hamlet e Horácio também entram na cena e o príncipe da Dinamarca filosofa sobre de quem seria um dos crânios desenterrados pelos coveiros. “Pode ser a cachola de um politiqueiro […] que acreditou ser mais que Deus”, na versão de Millôr Fernandes.

Fernandes indica inclusive que, no trato do humor, o tradutor não deve explicitar o que o autor busca deixar implícito, elucidar aquilo que ele quer deixar secreto, encorpar o humor que é fino ou tornar sutil o humor que é denso.

É uma sintonia fina. Penso que seja justamente esse o ponto mais susceptível do experimento. 

Traçar uma ligação entre a cena dos Coveiros e a realidade da pandemia que vivemos é um ideia interessante e pode-se seguir milhares de caminhos. Em Yorick há texto shakespeariano adaptado e a performance dos atores repleta de suas impressões, seus corpos atravessados pelas dores das centenas de milhares de vidas perdidas para a Covid-19. Em Hamlet, o humor funciona como um respiro da tensão trágica. 

Sabemos, como já nos ensinou o filósofo francês Henri Bergson, de que só há comicidade naquilo que é propriamente humano. Os mecanismos que provocam o riso são buscas constantes.

A literatura canonizada de Shakespeare foi escrita para ser encenada. Como prescreveria Hamlet à trupe de atores: – Adaptem a ação à palavra, a palavra à ação!

Rolhas de garrafas de vinho representam túmulos

O experimento utiliza um fundo de terra e sobre ele os quadrados se alternam, ocupam a tela inteira, dividem a tela, sem inovações no formato. E insistem na queda da conexão com a internet. Uma interação entre artistas e plateia executada durante a sessão é materializada nas perguntas feita aos espectadores. “Que figura pública você gostaria de ver enterrada?”; “O que te abate no dia a dia? O que te derruba? O que destrói fácil tua alegria”; “Que golpes, que traições, que rasteiras te arrasam?”…. Com direito a resposta do público pelo chat, que é visualizado na tela. São trocas que traçam vínculos de cumplicidade, mesmo que provisórios.

Todas as pontuações de sarcasmo e ironia com a imagem, a reputação e posicionamentos dos malditos políticos brasileiros são bem-vindas e elevam a temperatura. Muitas rolhas de garrafas de vinho são apresentadas como túmulos, que aumentam durante a conversa.

O trabalho começa com Andrezza batendo no teto. Depois olha para a câmera e pergunta: “A morte, a merda, a miséria, a pústula, a praga, a peste, a fome, a infâmia, a febre podem gerar uma boa dramaturgia?”.

Depois muda de registro – da live, abertura de processo, demonstração de trabalho, experimento cênico ou que seja – com o contraponto de Enne, que diz que soa um pouco arrogante o começo. A outra rebate que essa “simpatia sintética tem dado nos nervos, da afabilidade forçada…” E vira a chave, no tom de falsete de simpatia criticando quem é simpático no online. Pareceu-me afetado. E se a intenção era estabelecer a hilaridade da cena, para mim não funcionou.

É difícil sincronizar intenção, fala dos atores, tempo, sonoridade teatral e a função do clown contemporâneo de traçar papel social e político, ter tiradas aprofundadas, com enigmas, comentários de verdades profundas com humor.

Ou assumir a função de bobo da corte, daquele que com sagacidade conta para o rei aquilo que os outros não tem coragem de dizer, como já fez Yorick do título, de dizer as verdades brincando, como lembra Hamlet ao pegar no crânio de Yorick.

O experimento encerra com duas cenas gravadas, muito bonitas. A sequência em que Andrezza se maquila  e, vestida de Ofélia, entra no rio, quer dizer na banheira, e a passagem de Enne com uma ficha no pé em um local que lembra um necrotério. Isso ao som de La Llorona, uma canção popular mexicana de domínio público, com música de Andres Henestrosa, interpretada à capela por Marcondes Lima.

Andrezza, vestida de Ofélia

Para concluir, provisoriamente, minha reflexão sobre o experimento, traço uma linha da preocupação dos artistas com o sentido de existir e recorro a um ensaio, do qual gosto muito, da filósofa Judith Butler: Pode-Se Levar Uma Vida Boa Em Uma Vida Ruim?, na tradução de Aléxia Cruz Bretas.

Não há um caminho fácil de resposta. A vida de cada pessoa é única e o mundo é constituído de desigualdades, opressões, e cada vez mais formas de apagamento.

O texto de Judith Butler foi proferido durante a cerimônia de entrega do Prêmio Adorno, em Frankfurt, em 11 de setembro de 2012. Moral e política a partir das reflexões adornianas ganharam outros argumentos para discutir limites da ética na contemporaneidade. É possível levar uma “vida boa” frente aos dispositivos de desumanização, precarização da vida e partilha desigual da vulnerabilidade?

“A conduta ética ou a conduta moral e imoral é sempre um fenômeno social – em outras palavras, não faz absolutamente qualquer sentido falar em conduta ética e moral separadamente das relações entre os seres humanos, e um indivíduo que existe puramente para si mesmo é uma abstração vazia”.
Theodor W. Adorno,
Problems of Moral Philosophy, trans. Rodney Livingstone, Polity Press, Cambridge, 2000, p. 19, citado no ensaio de Judith Butler

Butler aponta que parece que a moralidade, desde o início, está ligada à biopolítica. “Por biopolítica entendo aqueles poderes que organizam a vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária como parte de uma gestão mais ampla das populações através de meios governamentais e não governamentais, e que estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si”.

É uma negociação constante com essas formas de poder. Mas é desigual. E até a pergunta dói. “As vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas?”
E ela então discorre que nos mecanismos políticos nem todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário. As vidas de quem são passíveis de luto, e as de quem não são?

No Brasil comandado por Bolsonaro, a política de morte foi fortalecida, muito antes da pandemia da Covid-19. Não avistamos no horizonte um futuro seguro e vivemos com a sensação de vida danificada como experiência cotidiana.

É a necropolítica, um conceito concebido pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe, que trata da soberania do Estado que dita quem pode viver e quem deve morrer.
Isso é inaceitável. Nossos corpos defendem vida digna para todos seres viventes.

Ficha técnica:

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor
Criação cênica e dramaturgia: Andrezza Alves, Enne Marx, Daniel Machado, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana
Dramaturgia: Quiercles Santana e William Shakespeare
Performance: Andrezza Alves, Enne Marx e Marcondes Lima
Direção de arte: Marcondes Lima
Assistência de direção, foto, vídeo e edição: Daniel Machado e Geraldo Monteiro
Designer e direção musical: Daniel Machado
Criação em arte-tecnologia e plataformas digitais: Geraldo Monteiro
Produção: Andrezza Alves
Direção geral: Quiercles Santana

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As duras linhas do diário de um ator na pandemia
Crítica de 72 dias

Paulo de Pontes registra cotidiano de um artista em isolamento em 72 dias. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A matéria da Folha de S. Paulo, publicada neste domingo, 28 de março de 2021, registra: “O Brasil voltou a bater recorde na média móvel de mortes por Covid neste domingo: 2.598. É o maior número desde o início da pandemia e um crescimento de 42% se comparado com a última semana, o que indica tendência de alta nos óbitos pela doença (…)”.

Nós não esperávamos tamanha tragédia. Nenhum pesadelo poderia ter previsto essa realidade. Para uma pessoa comum, não os estudiosos ou os infectologistas, ou gente da área, isso nunca passaria pela cabeça, que estaríamos vivendo uma pandemia nessas dimensões. E, mais ainda, que duraria tanto tempo.

Em março do ano passado, quando do dia para a noite tudo fechou e pairava uma sensação de incerteza e de insegurança diante de um risco que não conhecíamos, fizemos projeções. Boa parte delas a partir da gravidade da situação que acompanhávamos pela televisão na Europa e na Ásia. Mesmo assim, irreais. No solo 72 dias, exibido na programação do Reside Lab – Plataforma PE, o ator Paulo de Pontes conta que imaginou que o isolamento social duraria 15 dias. Um ano depois, o acachapante saldo de mais de 300 mil mortos no Brasil, ilusões desfeitas, cenário devastador de guerra. No experimento, como diz o título, foram 72 dias.

O solo se estrutura como um diário de criação gravado por um ator durante este período pandêmico. Na conversa com um amigo do outro lado da tela, ele insiste que não precisa de companhia, que ficaria bem sozinho nas duas semanas que durariam aquela situação mais grave. Como muitos de nós privilegiados, nos agarramos às possibilidades de encontrar coisas boas no meio de tudo aquilo: seria uma chance de parar um pouco, descansar, dedicar-se a atividades que não tínhamos tempo no cotidiano. Finalmente fazer yoga. Levanta a mão quem se identifica! No caso do personagem, montar um espetáculo solo depois de tantos anos de carreira, de ter se empenhado sem intervalos aos projetos de outras pessoas. A metalinguagem se coloca como recurso de maneira muito fluida, quase intuitiva. Somos nós, os espectadores, que estamos ali, aceitando o convite para acompanhar a peça sendo criada em tempo real, quando o pedido por companhia beira o desespero.

O material dramatúrgico se apoia praticamente por completo no real e no autobiográfico. Paulo de Pontes é um ator com uma carreira longeva e profícua, com muitos personagens e projetos em seu repertório. De fato, quando começou a pandemia, ele estava morando no teatro, o espaço da Casa Maravilhas, que serviu como cenário para a gravação. A dramaturgia foi criada em parceria com Quiercles Santana, que também assina a direção. Virou um mergulho nos sentimentos e nas emoções cotidianas que foram se modificando ao longo dos dias arrastados do isolamento. Veio o cansaço, a solidão, o medo, a exaustão.

Diante do acirramento da crise, com o material da vida real pulsando, também surge a preocupação com a situação dos artistas, a necessidade batendo à porta, a sobrevivência que se instaura como pressão diariamente. A campanha de demonização dos artistas como uma política que vem sendo colocada em prática há alguns anos, mas que agora sobe alguns degraus, fazendo jus e coro à necropolítica implantada por este desgoverno, enfrentada por gente como Paulinho. Gente como os artistas que participaram do Reside. Que continuam se articulando, criando, conversando, resistindo, questionando “Quem mandou matar Marielle Franco?”, cansando, mas levantando a cabeça no momento seguinte. E não por romantização, ato de bravura ou qualquer coisa que o valha, mas porque não há outra possibilidade. Porque o teatro é a vocação, faz falta ao corpo, ao espírito.

Experimento utiliza material biográfico. Foto: Keity Carvalho

O experimento é cru em sua natureza dramatúrgica. Escancara o cotidiano de muitos artistas durante a pandemia, que provavelmente passaram por situações semelhantes. Mas essa dureza também nos afasta em certa medida, porque é uma realidade que já nos é muito próxima, que está em nossas próprias casas. Criado no calor do momento, o experimento ainda carrega uma carência de elaboração poética, talvez semântica, talvez em sua capacidade de abstração. Faz falta transcender o cotidiano ou ser capaz de promover conexões que não se atenham só aos fatos mais óbvios, mas se desprendam, possam ir além.

Neste jogo, Paulo de Pontes é um ator com estofo, que agarra a nossa atenção em 72 dias sem nos permitir dispersar. As precariedades nessa experimentação da linguagem do audiovisual, no isolamento imposto por uma pandemia, são incorporadas à dimensão processual do trabalho e fazem sentido, inclusive na condução da dramaturgia. Afinal, trata-se de um ator que está se virando sozinho, como a grande maioria, para continuar criando, para não perder os laços com alguma dimensão de realidade. Para não perder a oportunidade da dimensão da cura que o teatro nos proporciona a cada novo mergulho. Em 72 dias, o teatro pulsa como necessidade, como linguagem que corre nas veias, que escorre pela câmera. Corte seco e direto.

Ficha técnica:
Dramaturgia: Paulo de Pontes e Quiercles Santana
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Streamer: Márcio Fecher
Produção executiva: Márcia Cruz
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Pontes Culturais e Cia Maravilhas de Teatro

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Paulo de Pontes flameja em experimento cênico
Crítica de Inflamável

O ator Paulo de Pontes, no camarim improvisado na sua casa. Foto: captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

“Como se faz com o nervosismo?”, pergunta o ator Paulo de Pontes, de cara lavada, enquanto aguarda o público para a sessão virtual no Festival Reside Lab – Plataforma PE, de Inflamável, um experimento cênico, com poemas de Alexsandro Souto Maior e direção de Quiercles Santana. “Estou sentindo o mesmo friozinho na barriga que sinto no teatro, a mesma ansiedade, é incrível”.

Dá o primeiro sinal!

“Uma loucura que está o mundo!”, exclama. “Mas continuamos resistindo, experimentando, provando que a gente está vivo”.

No camarim improvisado em sua casa, Paulinho ressalta suas crenças. “O que é mais importante é a vida. E o amor. A gente perdeu muita gente, família, amigos, colegas, conhecidos”.

Começa a se trocar.

“Tem muita gente resistindo, experimentando, continuando a fazer arte. Precisamos valorizar essas iniciativas. Eu parabenizo (nós também) Paula de Renor (diretora geral e curadora do Reside Festival BR – edição especial Reside LAB Plataforma PE)”.

Coloca a lente de contato. Anuncia os patrocinadores. E oferenda a experiência às pessoas que partiram por complicações da Covid-19. Fala que precisamos aprender com essa pandemia a compreender a voz do outro, “Viva a vida! E viva o teatro!”

inflamável junta três poemas de Alexsandro Souto Maior. Foto: Captação de tela

Estamos enclausurados. Estamos enclausurados. Estamos enclausurados reverbera esse experimento cênico, onde a luz é pouca, o espaço é ínfimo e o efeito de claustrofobia nos atinge. Convivemos com o insuportável testemunho de perdas de milhões de vida e no Brasil essa sensação é agravada pela mão genocida que ocupa o  mais alto cargo do Executivo.

A Sonata para Piano nº14 em Dó sustenido menor, Op. 27, nº 2, de Ludwig van Beethoven, – mais conhecida como Moonlight Sonata (Mondscheinsonate em alemão), a Sonata ao Luar, que ostenta características introspectivas, quase de uma marcha fúnebre, – dá o tom grave na peça logo no início.

Os três poemas escolhidos, do livro Inflamável, de Alexandre Souto Maior, lançado em 2019, elaboram profundas conexões com o mundo contemporâneo, como também conectam nossas feridas, do patriarcado, da exploração, da colonização.

O Homem do Pau Brasil, A Margem e Descolonizado trançam a dramaturgia que acessa o passado e tensiona o presente. “Esses homens que não são de folhas / que não são do pau-brasil / Gritam palavras de ordem / Ao som de coturnos e fuzis na mão / Querem mesmo me plantar enterrar”. Plantar no original do poema, enterrar na peça.

A Margem propõe um diálogo com um ausente que reivindica ser “… a palafita enlameada / De dejetos / Da casa grande” e “o porão de um navio / Cheio de gritos e gemidos”. Essas lamentações são entrecortadas por frases do Nero brasileiro, que alardeou: “Não sou coveiro”; “É muito mimimi”; “Eu prefiro filho morto…”; “Vocês reclamam demais”.

A presença incendiada de Paulo Pontes oscila entre a suavidade e a revolta com Descolonizado. Cochicha com doçura “Canto o que me sussurra um guanumbi / O que me conta uma cabocla / O que me confessa um rouxinol”, para insurgir feroz “Quando pisar nesta terra / Peça licença…”

Imagens projetam um Recife, cidade tão bela cortada por rios, mas que sangra. Seus artistas inquietos fazem o melhor para honrar a tradição aguerrida dessas terras. Encaram ainda a incompreensão política do papel da arte e da cultura no contexto de uma cidade, de um estado, de um país.

E, neste março, em que fez três anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, a pergunta ecoa na peça. Quem mandou matar Marielle e por quê? Só poderemos pensar que a justiça está atuando como justiça quando essas respostas forem respondidas. O Brasil insurgente das periferias, que desafia o “apartheid racial não oficial” e que enfrenta de peito aberto o patriarcado, exige respostas.

Por que matar uma vereadora eleita em exercício do mandato foi um anúncio de que esse país  ficou mais covarde ao se tornar mais conivente com genocídios de negros, de indígenas, de mulheres. Por que um pouco do Brasil morreu em 17 de abril de 2016 com a abertura do impeachment de Dilma Rousseff, mais um pouco em 14 de março de 2018 com o assassinato de Marielle e Anderson, e mais um pouco com a administração do ódio de Bolsonero, que vem provocando uma tragédia sem precedentes. É muito eloquente o silêncio sobre quem ordenou o crime e por quais razões.

A direção da peça é assinada por Quiercles Santana

Inflamável

Paulo de Pontes é um ator militante. Desde que voltou ao Recife para fazer um trabalho pontual – isso já faz três anos – foi ficando e atuou em uma dezena de espetáculos – com grandes elencos, em dupla, em solo. Se envolveu com a política cultural da cidade do Recife e de Pernambuco, nas lutas com outros artistas e agentes culturais, desde a campanha pelo Teatro do Parque a articulações por editais e outras frentes. Um trabalho nem sempre visível.

Como ator, ele é intenso e totalmente entregue, daqueles artistas apaixonados e apaixonantes. Quando ocorre uma sinergia entre atuação, encenação e dramaturgia é um prazer vê-lo em cena; quando não, reconhecemos o seu esforço.

O experimento cênico junta muitos talentos, com a direção do sempre criativo Quiercles Santana, um dos encenadores mais febris de Pernambuco. O resultado causa uma suspensão reflexiva desse lugar em que pulsam vida e morte. Pelos discursos nômades, somos convocados a percorrer as entranhas do país com suas dores enraizadas nas injustiças sociais.

Feito com uma única câmera de celular, um projetor de imagens, uma janela antiga como cenário, um técnico para modular luz e som, e um ator altamente inspirado, que movendo-se em um exíguo espaço flameja em arte.

Inflamável é um breve poema de resistência. Ao expor os aspectos sombrios desses tempos em situação-limite, de abandono, do mundo paralisado por uma pandemia, atingido pela crise financeira e do Brasil em alta-tensão provocada pelos desmandos da política, a peça aponta para a carga de resistência, para a potência de combate. Não à toa a palavra adiconeg fecha a transmissão. Temos consciência, temos força e temos esperança de que esse jogo vai mudar.

Ficha Técnica:
Autor: Alexsandro Souto Maior
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Produção executiva: Márcia Cruz
Realização: Pontes Culturais

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Crise existencial de ator pernambucano na quarentena

Paulo de Pontes passa a quarentena dentro de um teatro, que é também sua casa. Foto: Keity Carvalho

Um ator em confinamento durante 72 dias, dentro de um teatro que é a sua própria casa. Ele está em vias de enlouquecer. Delírios, incertezas, sonhos, conflitos pessoais. No contexto desses dias de isolamento são exploradas a dúvida do futuro, a solidão de um artista e como ele constrói, como ele pensa o mundo, como ele reage à pandemia. De acordo com Paulo de Pontes 72 dias – WORK IN PROCESS é um exercício, um experimento, um diário de bordo pandêmico. “Desde que começou a quarentena estou levantando possibilidades, refletindo sobre a experiência de vida, o teatro, minha carreira, o teatro pernambucano, os problemas políticos. É um reality teatral pandêmico, com performance, vídeo e tecnologia, que pode se tornar um embrião para um espetáculo”.

O público vai ver como ator trabalha um processo. Paulo de Pontes transformou esse processo o mais próximo possível de uma apresentação cênica. O diretor Quiercles Santana fez a direção virtualmente, da sua casa. 

A dramaturgia se baseia na realidade, mas vai ser criada praticamente ao vivo, a partir do roteiro desenvolvido por ator e diretor, performada a partir das memórias de Paulo, sua trajetória artística no Recife, em São Paulo, nessa volta para o Recife.

O programa tem previsão de durar 40 minutos. “uma coisa rápida urgente e eu tenho que condensar esses 72 dias em 40 minutos. é praticamente improvisação dirigida”, diz ele.

“Assista sem a preocupação de achar que é teatro… isso não tem nome…para mim que sou ator, tudo é teatro, tudo na vida é teatro. Mas como as pessoas em meio a uma pandemia estão muito preocupadas em nominar esse negócio que a gente está levando para internet. Estão muito preocupadas com isso… eu não estou… é um experimento cênico de um ator em crise construído a partir de memórias do confinamento”.

Sobre o teatro pernambucano quais as conclusões?
O caos!
Parece que se rema contra a maré o tempo todo.
Mas há muita luta e resistência.
Artistas passando fome.
Tudo lento demais nas secretarias de cultura. Parece que trabalham contra o artista

Quem sabe a lei Aldir Blanc resgate pelo menos 30 por cento dos escombros.

Uma cidade que não conhece seus próprios artistas… daí … uma luta pra dar conta de um cadastro obsoleto dos mapas culturais é motivo de estresse e incerteza de que a lei Aldir Blanc vá contemplar a todos… nunca houve interesse dos órgãos de cultura do estado em cadastrar seus artistas e isso atrasa a vida numa pandemia… agora querem resolver tudo em menos de um mês?

Vínhamos querendo organizar isso há 2 anos no BATENDO TEXTO NA COXIA e nem a classe deu atenção… agora tá aí uma realidade que nos obriga uma organização burocrática em tempo recorde… artista não é prioridade nem pra receber cachê

Dia 5 entregaremos a Casa maravilhas… menos um espaço de resistência na cidade
E por aí vai.

E vai para onde?

Pra lugar nenhum… vamos ficar só com a Cia maravilhas para realizar os projetos apenas

Que pena!!!!

É… mas continuamos na luta

Ator voltou para o Recife, para passar uma temporada.  E não parou de trabalhar. E foi ficando…

Ele ressalta que sua construção pessoal, social e artística foi toda no Recife. Na prática. “Tudo que aprendi, como me transformei no profissional que sou, é tudo fruto do que aprendi no Recife. Com a Seraphim (cia dirigida por Antonio Cadengue), Trupe do Barulho, José Manoel, Companhia do Sol, grandes diretores, Cinderela, com as minhas peças, com o trabalho para escolas”.

Ele passou 14 anos em São Paulo, com os Fofos em Cena. Com um convite de trabalho no Recife viu a possibilidade de passar uma temporada. Que temporada foi essa que o “cabra” já está na capital pernambucana há quase três anos sem botar os pés em Sampa?! “Acabei me envolvendo. Eu voltei também porque quero fazer teatro com os meus amigos, com a minha raiz, com as pessoas com as quais eu comecei, que eu me identifico. Aí eu voltei para o Recife e desde então eu não paro de trabalhar”.

Só de montagens teatrais foram mais de 10 em menos de três anos. Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, O Baile do Menino Deus, Obsessão, Cinderela a História que sua mãe não contou, Em nome do Desejo, A ceia dos Cardeais, Procenium – teatro-jogo 2.0, Berço Esplêndido, Muito Tempo Com Você, só para citar algumas.

Além disso ele abriu junto com a atriz e produtora Márcia Cruz, a Casa Maravilhas e comprometeu-se com movimentos políticos culturais. “Eu me acorrentei ao Teatro do Parque dentro do movimento Virada Cultural Teatro Parque. Se não fosse o movimento talvez o Parque ainda estivesse abandonado”.

Teatro do Parque. Plateia. 

Hall de entrada. Fotos: Reprodução da TV Globo 24/08

O equipamento da prefeitura do Recife está fechado há pelo menos uma década. Com idas e vindas na reforma, está em processo de restauração desde 2015, paralisada no mesmo ano e retomada em 2018 depois de muita articulação e pressão da classe cultural recifense. O Teatro do Parque completou 105 anos no dia 24 de agosto. Está com promessa de ser reaberto em novembro.

 

“Então eu também me envolvi. Senti essa necessidade de lutar, não apenas artisticamente, com minha força política. Eu acredito e quero que Recife volte a ser o que era em termos de teatro, da dignidade do teatro. O Recife é um celeiro de artistas competentíssimos, talentosíssimos, que não fica devendo a nenhum lugar do mundo. Só precisa ser reconhecido e respeitado. E isso foi mola propulsora para lutar também politicamente, junto com os meus amigos. Vamos lá ser mais um grito, mais uma voz, mais uma mão, mais uma força”.

E aí a gente abriu a Casa Maravilhas. Com muita garra para receber esses artistas, mesmo sem dinheiro, sem ter o respeito necessário que a gente precisa ter dos órgãos públicos de Cultura, né?

É isso que não é só o meu trabalho artístico, mas é essa força de construir e reconstruir uma dignidade, para nós no mercado de trabalho.

Porque a gente tinha um trabalho melhor antes de eu ir para São Paulo, e está cada vez mais escasso conquistar esse mercado de trabalho.

E Casa Maravilhas a gente teve uma série de ações positivas na cidade. Uma casa pequena, mas a gente conseguiu, em dois anos, fazer cursos de formação, receber grupos. E aí veio a  pandemia.

Com a pandemia o primeiro pensamento foi: ‘vamos entregar a casa, porque não tem dinheiro para pagar, a gente não tem recursos”. Pensamos melhor e ficamos trabalhando o nome da casa, porque a gente pensava que seria pouco tempo de quarentena.

Abrimos um canal no YouTube para oferecer conteúdo de teatro, de literatura. A gente criou o  Ocupa Maravilhas, para grupos se apresentarem na casa. Isso mudou para o formato virtual com a quarentena. Então muitos artistas se apresentaram virtualmente dentro da Casa Maravilhas sem público.

Isso foi o que nos segurou até agora, além da vaquinha que nós fizemos.

O diário de bordo junta experimentos do que Paulo de Pontes pensa como cidadão, como artista no momento da pandemia e o que vislumbra para o futuro. “Criei 16 exercícios, que estão disponíveis no canal do YouTube. São experimentos para câmera, que atrás é teatro. Claro que não tem público, é uma coisa solitária, mas o exercício em si é para o artista de teatro, ele não diferencia nada”.

Eu tô no meio de uma guerra. Não quero conceituar nada. Isso é a minha experiência no teatro, então não tem porque o negar: isso é teatro. Eu estou dentro disso fazendo todo meu instrumento, que sou eu mesmo, é teatral embora, eu esteja fazendo dentro de um celular, para um celular, virtualmente para um público.

Além de Paulo de Pontes, o técnico Fernando Calábria divide o local, com os devidos cuidados, porque o trabalho mistura vídeo, projeções. “A gente conseguiu a liberação do Sonic Júnior, (Juninho, marido de Tati Azevedo, que é músico), e a gente precisava de uma trilha legal com a liberação do músico, né?, para não cair a transmissão”.

 

Serviço
72 dias – WORK IN PROCESS
Segunda, 28/09, 20h
No YouTube SESC PE
Grátis

Ficha técnica
72 dias – WORK IN PROCESS
Criação e atuação: Paulo De Pontes
Dramaturgia: Quiercles Santana e Paulo De Pontes
Direção: Quiercles Santana
Direção de arte e vídeos: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnica: Fernando Calábria
Fotos: Keity Carvalho
Produção: Márcia Cruz
Realização: Companhia Maravilhas de Teatro – Sesc PE – Cultura em Rede Sesc PE.

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Carta para Alice, que anseia abraçar Pessoa

A peça, que segue em março para Portugal, faz uma reflexão sobre as perdas que temos ao longo da vida e sobre o ímpeto de viver.

Três sessões da peça Espera o outono, Alice, da AMARÉ Grupo de Teatro faz parte da campanha “Alice em Portugal”

                                                                                                                         Por Natali Assunção *

Alice, de um ano para cá a vida tem sido um turbilhão, né? Estreamos em janeiro de 2018 depois de um longo processo mergulhados nas necessidades, angústias e sonhos des envolvides. Lembra que, no início, queríamos adaptar Esperando Godot de Beckett? Desse referencial inicial levantamos diversos pontos que nos ligam. O cinema nos impregnou e quase virou título do espetáculo e textos nossos e de autores como Pedro Bomba, Marla de Queiroz, Hilda Hilst, Carl Sagan e Felipe André, por exemplo, também nos atravessaram. Estudamos view points e nos lançamos em um mergulho vertiginoso.

No início você ainda não estava materializada, mas no decorrer dessa teia você nos chegou com essa energia imensa, com esse sorriso largo de envolver o mundo! Você sabia que o ambiente se ilumina quando você chega e que nós morremos de saudade quando você não está por perto? Na verdade é meio assustador quando você diz que vai ali e volta já e demora muito para retornar. Faz falta.

Hoje eu gostaria de um abraço seu. Quem sabe sair para dançar? Tanto de você carrego em mim e quanto de mim você leva contigo, né!? Tanta coisa vem se passando que, às vezes, eu fico até tonta com o tudo que se segue. Os dias têm sido difíceis e pensar em você traz um pouco de paz, acalanta o coração. Engraçado, volta e meia me pego perdida admirando a lua e me pergunto se você está fazendo o mesmo.

Hoje, na verdade, não consegui ver a lua, mas tenho pensado nisso porque de vez em quando esqueço das cores e tudo parece cinza. No entanto ali, no palco, quando estamos juntas, tudo se alinha e, por um momento, penso que nos encontramos. Que verdadeiramente nos encontramos porque aquele espaço ainda nos reserva o encontro, essa magia de estarmos juntes. Olhos nos olhos. Então a perspectiva de te ver na sexta (15) e no sábado (16), às 20h, com mais um encontro no domingo (17), às 18h, lá no Teatro Arraial (R. da Aurora, 457 – Boa Vista) é de uma alegria imensa!

Estou ansiosa com essa perspectiva de estarmos em Portugal. É muito bonito ver que nossos passos se expandem. Veja bem, depois de tantos percalços e de forma totalmente independente, assim como fizemos no nosso primeiro espetáculo, Amar é crime, baseado no livro homônimo de Marcelino Freire, estreamos e, nesse nascimento, fomos vistos pelos Gambuzinos com um pé de fora, grupo português que, na época, realizava um intercâmbio com outro grupo pernambucano, o Resta 1 Coletivo de Teatro, nosso grupo irmão. Quem diria, né? Recebemos o convite e agora temos quatro apresentações em vista para além-mar hahahaha Mar… Tô rindo porque eu sei do seu apreço pelo mar.

Seria ótimo um mergulho numa noite de lua cheia. Vamos? Podemos terminar a noite dançando para secar a água salgada do nosso corpo. Mas voltando, temos então duas apresentações no Festival Ao teatro!, em Benedita, e ainda uma em Idanha-a-Nova e uma em Lisboa. É bom levar nosso trabalho para novas trocas porque, às vezes, poxa Alice, vou te confessar, às vezes, parece que tudo é muito difícil. Eu sei, eu sei, “tudo é muita coisa”;)

Acho que já falei demais, olha como os ponteiros seguem soltos… Mal posso esperar para te ver…

• O AMARÉ Grupo de Teatro iniciou uma campanha para levar Espera o outono, Alice para Portugal. Além de conferir as apresentações no Teatro Arraial, nas quais haverá ainda a venda de alguns produtos relacionados ao espetáculo, você também pode contribuir com qualquer valor por meio da conta:

CONTA POUPANÇA
BANCO DO BRASIL
AGÊNCIA: 3243-3
CONTA: 42.073-5
VARIAÇÃO: 51

Aproveita se segue o grupo nas redes sociais: @amaregrupodeteatro

                                           * Natali Assunção é atriz do espetáculo Espera o Outono, Alice

Espera o outono, Alice, do AMARÉ Grupo de Teatro, foi o terceira montagem a sair do festival. Foto Arnaldo Sete

Espetáculo traça reflexão sobre as perdas ao longo da vida e sobre o ímpeto de viver. Foto Arnaldo Sete

Serviço

Espera o outono, Alice
Quando: 15 e 16 de fevereiro (sexta-feira e sábado), às 20h, e 17 de fevereiro (domingo), às 18h
Onde: Teatro Arraial Ariano Suassuna – Rua da Aurora, 457, Boa Vista
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), à venda na bilheteria 1h antes do início de cada sessão e antecipado no Site Sympla – Espera o outono Alice
Classificação indicativa: 14 anos Informações: 3184-3057 / 97914-4306

Direção: Quiercles Santana e Analice Croccia.
Elenco: Bruna Justino, Paulo César Freire, Isabelle Barros e Natali Assunção

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