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Precisamos repensar o sentido de existir
Crítica de Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1)

Andrezza Alves e Marcondes Lima em Portugal e Enne Marx, no Recife. Foto Captação de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor (Parte 1) se apresenta como um experimento cênico virtual, uma abertura de processo, um work in progress. No material de divulgação, os artistas afirmam que, – diante do quadro em que o Brasil se encontra, com as mortes pela Covid-19, pela Polícia Militar, por feminicídio e por fome – “precisamos repensar, mais que nunca, o sentido de existir, resistir, persistir. Yorick … é um dos frutos dessa reflexão”.

Exibido em duas sessões ao vivo durante o Festival Reside – Lab, com debate na sequência, o espetáculo em construção toca ou aproxima-se de questões nevrálgicas nesses dias de peste e da peste. Aponto algumas que consegui captar: valorização do ser humano, autoimagem, Lei Aldir Blanc e sua implantação em Pernambuco, direito ao trabalho e valorização do conhecimento de todos, empatia seletiva, direito ao luto, imigração, como lidar com o contato à distância, etiqueta no online, como produzir humor, como sobreviver sem atropelar o outro e sem perder a ternura.

Inspirado no Ato V, Cena I d’A Tragédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, a peça junta seis artistas: Andrezza Alves; Daniel Machado, Enne Marx, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana, que assina a direção. Os três que performam – Andrezza, Enne e Marcondes – foram estudar e morar em Portugal e passam – ou passaram, no caso de Enne, pela experiência da imigração no país europeu, nosso colonizador, e sentiram na pele a desconfiança que recai sobre estrangeiros. As performances deles estão carregadas dos atritos gerados por esses sentimentos de ressalvas no acolhimento pleno aos brasileiros em Portugal.

Andrezza e Marcondes. Foto captação de tela

Como sabemos, a cena dos Coveiros (Ato V, Cena I) de Hamlet, de Shakespeare está impregnada das marcas culturais do tempo em que foi escrita/encenada pelo bardo inglês. As milhares de versões dessa peça atualizam as marcas históricas de cada período. Na cena específica, dois coveiros, que ostentam a sabedoria do povo, chegam ao Cemitério de Elsinor, carregando pás e outras ferramentas.

No texto shakespeariano, as personagens citam as Escrituras, debatem a origem da nobreza, o julgamento de Ofélia, que tem como veredito o direito dela ganhar um enterro cristão, subvertem termos lógicos, produzem humor e podem instalar o riso pelo tom ambíguo, irônico e sarcástico. Hamlet e Horácio também entram na cena e o príncipe da Dinamarca filosofa sobre de quem seria um dos crânios desenterrados pelos coveiros. “Pode ser a cachola de um politiqueiro […] que acreditou ser mais que Deus”, na versão de Millôr Fernandes.

Fernandes indica inclusive que, no trato do humor, o tradutor não deve explicitar o que o autor busca deixar implícito, elucidar aquilo que ele quer deixar secreto, encorpar o humor que é fino ou tornar sutil o humor que é denso.

É uma sintonia fina. Penso que seja justamente esse o ponto mais susceptível do experimento. 

Traçar uma ligação entre a cena dos Coveiros e a realidade da pandemia que vivemos é um ideia interessante e pode-se seguir milhares de caminhos. Em Yorick há texto shakespeariano adaptado e a performance dos atores repleta de suas impressões, seus corpos atravessados pelas dores das centenas de milhares de vidas perdidas para a Covid-19. Em Hamlet, o humor funciona como um respiro da tensão trágica. 

Sabemos, como já nos ensinou o filósofo francês Henri Bergson, de que só há comicidade naquilo que é propriamente humano. Os mecanismos que provocam o riso são buscas constantes.

A literatura canonizada de Shakespeare foi escrita para ser encenada. Como prescreveria Hamlet à trupe de atores: – Adaptem a ação à palavra, a palavra à ação!

Rolhas de garrafas de vinho representam túmulos

O experimento utiliza um fundo de terra e sobre ele os quadrados se alternam, ocupam a tela inteira, dividem a tela, sem inovações no formato. E insistem na queda da conexão com a internet. Uma interação entre artistas e plateia executada durante a sessão é materializada nas perguntas feita aos espectadores. “Que figura pública você gostaria de ver enterrada?”; “O que te abate no dia a dia? O que te derruba? O que destrói fácil tua alegria”; “Que golpes, que traições, que rasteiras te arrasam?”…. Com direito a resposta do público pelo chat, que é visualizado na tela. São trocas que traçam vínculos de cumplicidade, mesmo que provisórios.

Todas as pontuações de sarcasmo e ironia com a imagem, a reputação e posicionamentos dos malditos políticos brasileiros são bem-vindas e elevam a temperatura. Muitas rolhas de garrafas de vinho são apresentadas como túmulos, que aumentam durante a conversa.

O trabalho começa com Andrezza batendo no teto. Depois olha para a câmera e pergunta: “A morte, a merda, a miséria, a pústula, a praga, a peste, a fome, a infâmia, a febre podem gerar uma boa dramaturgia?”.

Depois muda de registro – da live, abertura de processo, demonstração de trabalho, experimento cênico ou que seja – com o contraponto de Enne, que diz que soa um pouco arrogante o começo. A outra rebate que essa “simpatia sintética tem dado nos nervos, da afabilidade forçada…” E vira a chave, no tom de falsete de simpatia criticando quem é simpático no online. Pareceu-me afetado. E se a intenção era estabelecer a hilaridade da cena, para mim não funcionou.

É difícil sincronizar intenção, fala dos atores, tempo, sonoridade teatral e a função do clown contemporâneo de traçar papel social e político, ter tiradas aprofundadas, com enigmas, comentários de verdades profundas com humor.

Ou assumir a função de bobo da corte, daquele que com sagacidade conta para o rei aquilo que os outros não tem coragem de dizer, como já fez Yorick do título, de dizer as verdades brincando, como lembra Hamlet ao pegar no crânio de Yorick.

O experimento encerra com duas cenas gravadas, muito bonitas. A sequência em que Andrezza se maquila  e, vestida de Ofélia, entra no rio, quer dizer na banheira, e a passagem de Enne com uma ficha no pé em um local que lembra um necrotério. Isso ao som de La Llorona, uma canção popular mexicana de domínio público, com música de Andres Henestrosa, interpretada à capela por Marcondes Lima.

Andrezza, vestida de Ofélia

Para concluir, provisoriamente, minha reflexão sobre o experimento, traço uma linha da preocupação dos artistas com o sentido de existir e recorro a um ensaio, do qual gosto muito, da filósofa Judith Butler: Pode-Se Levar Uma Vida Boa Em Uma Vida Ruim?, na tradução de Aléxia Cruz Bretas.

Não há um caminho fácil de resposta. A vida de cada pessoa é única e o mundo é constituído de desigualdades, opressões, e cada vez mais formas de apagamento.

O texto de Judith Butler foi proferido durante a cerimônia de entrega do Prêmio Adorno, em Frankfurt, em 11 de setembro de 2012. Moral e política a partir das reflexões adornianas ganharam outros argumentos para discutir limites da ética na contemporaneidade. É possível levar uma “vida boa” frente aos dispositivos de desumanização, precarização da vida e partilha desigual da vulnerabilidade?

“A conduta ética ou a conduta moral e imoral é sempre um fenômeno social – em outras palavras, não faz absolutamente qualquer sentido falar em conduta ética e moral separadamente das relações entre os seres humanos, e um indivíduo que existe puramente para si mesmo é uma abstração vazia”.
Theodor W. Adorno,
Problems of Moral Philosophy, trans. Rodney Livingstone, Polity Press, Cambridge, 2000, p. 19, citado no ensaio de Judith Butler

Butler aponta que parece que a moralidade, desde o início, está ligada à biopolítica. “Por biopolítica entendo aqueles poderes que organizam a vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária como parte de uma gestão mais ampla das populações através de meios governamentais e não governamentais, e que estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si”.

É uma negociação constante com essas formas de poder. Mas é desigual. E até a pergunta dói. “As vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas?”
E ela então discorre que nos mecanismos políticos nem todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário. As vidas de quem são passíveis de luto, e as de quem não são?

No Brasil comandado por Bolsonaro, a política de morte foi fortalecida, muito antes da pandemia da Covid-19. Não avistamos no horizonte um futuro seguro e vivemos com a sensação de vida danificada como experiência cotidiana.

É a necropolítica, um conceito concebido pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe, que trata da soberania do Estado que dita quem pode viver e quem deve morrer.
Isso é inaceitável. Nossos corpos defendem vida digna para todos seres viventes.

Ficha técnica:

Yorick e os Coveiros do Campo Santo de Elsinor
Criação cênica e dramaturgia: Andrezza Alves, Enne Marx, Daniel Machado, Geraldo Monteiro, Marcondes Lima e Quiercles Santana
Dramaturgia: Quiercles Santana e William Shakespeare
Performance: Andrezza Alves, Enne Marx e Marcondes Lima
Direção de arte: Marcondes Lima
Assistência de direção, foto, vídeo e edição: Daniel Machado e Geraldo Monteiro
Designer e direção musical: Daniel Machado
Criação em arte-tecnologia e plataformas digitais: Geraldo Monteiro
Produção: Andrezza Alves
Direção geral: Quiercles Santana

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Julgamento de Hamlet, Cabaré e A Visita

Espetáculo Por favor, Continue (Hamlet) conta com a participação de não atores. Foto: Divulgação

Espetáculo Por favor, Continue (Hamlet) conta com a participação de não atores. Foto: Divulgação

janeiro-de-grandes-espetáculos-SSSSHamlet, de William Shakespeare é uma mina inesgotável de enigmas sobre o homem e a justiça. Ao fingir-se de louco e refletir profundamento sobre o pedido de vingança pelo espectro do pai, Hamlet avança num labirinto complexo e surpreendente. Os encenadores Roger Bernat e Yan Duvyendak recorrem ao personagem mais famoso do bardo inglês em Por favor, Continue (Hamlet). Na montagem espanhola, a irrepetibilidade do teatro ganha força. Um experimento que reúne atores e profissionais da justiça, do local em que é encenado. A advogada e professora Liana Cirne Lins é uma das pessoas que vai fazer parte do júri, entre outros profissionais da área jurídica. A apresentação ocorre hoje e amanhã, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife. Liana será a advogada de Hamlet na apresentação de amanhã. A entrada é gratuita, os ingressos serão distribuídos com uma hora de antecedência, e a peça tem duração prevista de duas horas e meia.

Fazer a realidade julgar a ficção, utilizando o procedimento criminal em vigor no país da exibição é um procedimento contundente. A fábula expõe um jovem que mata o pai de sua namorada, durante uma festa de casamento em um subúrbio. A única testemunha do ato é a mãe do jovem. Os nomes reais foram substituídos por nomes de ficção: o acusado é Hamlet; Polônio a vítima; a ex-namorada do acusado, Ofélia é a autora da denúncia; a mãe, Gertrudes. Hamlet assegura que o homicídio foi um acidente. Ofélia quer a pena máxima para o assassino de seu pai.

Se Hamlet é culpado; se foi premeditado é o que o júri vai decidir. Ao recrutar esses espectadores emancipados Roger Bernat e Yan Duyvendak transformam esse espaço cênico em ágora, em que os habitantes de uma cidade podem dar sentido a polis, aos destinos da polis. Por outro lado, a dupla de encenadores também reforça que, mesmo diante de regras previamente estabelecidas, o resultado de um julgamento também é uma combinação de subjetividades, pois as leis se abrem a variadas interpretações. Os excessos e absurdos do sistema capitalista estão na mira da dupla. E eles questionam como os valores de algumas subjetividades, a partir de quem tem o poder de julgar – e condenar – impõe suas decisões ao coletivo em detrimento da pluralidade.

Please,  Continue  (Hamlet)  /  Por  Favor,  Continue  (Hamlet)  (Roger  Bernat  –  Espanha)Quando: Dias  12  e  13  de  janeiro  de  2016  (terça  e  quarta),  19h30,
Onde: Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife
Quanto: gratuito  (distribuição  de  senhas a partir de 1h antes)
Duração: 2h30
Classificação etária: a partir de 14 anos

 Autoria e direção cênica: Roger Bernat e Yan Duvyendak
Direção técnica: Txalo Toloza
Produção executiva: Helena Febrés Fraylich

Cabaré Diversiones. Foto: Sulamita Ferreira.

Cabaré Diversiones. Foto: Sulamita Ferreira.

O Vivencial foi um grupo de subversão e desbunde dos anos 1970. Na época, Henrique Celibi era o caçula do grupo. Ele resgata esse clima irreverente e debochado, desbocado, malicioso e sensual na montagem.  Personagens e números musicais do passado combinam com novos textos, numa grande colagem. Um exercício de liberdade.

Cabaré Diversiones (Produção: Henrique Celibi – Olinda/PE)
Quando: Dia 12 de janeiro de 2016 (terça), 20h,
Onde: Teatro Apolo
Quanto: R$ 20 e R$ 10
Duração: 1h40
Classificação etária: a partir de 16 anos

Textos: Carlos Eduardo Novaes, Glauco Matoso, Fernando Pessoa, Luiz Fernando Veríssimo, Guilherme Coelho e Henrique Celibi
Cenário, coreografia, figurino, roteiro, trilha sonora e direção: Henrique Celibi
Iluminação: Beto Trindade
Preparação vocal: Cindy Fragoso
Operação de som e luz: Renato Parentes
Elenco: Carlos Mallcom, Cindy Fragoso, Filipe Enndrio, Flávio Andrade, Henrique Celibi, Ítalo Lima, Robério Lucado, Sharlene Esse e Valeska Nascimento, com participação especial de Ághata Simões

A Visita, com o ator Severino Florêncio (PE). Foto: Marcos Nascimento

A Visita, com o ator Severino Florêncio (PE). Foto: Marcos Nascimento

Antônio retorna ao lugar da sua infância e encontra tudo mudado. Um deserto de pessoa e de animal. Os homens viraram uma mistura de gente, barro e bicho. O personagem busca na memória o sentido da vida para povoar de afetos o vazio do lugar e do seu coração.

A Visita (Grupo de Teatro Arte­Em­Cena – Caruaru/PE)
Quando: Dias 12 e 13 de janeiro de 2016 (terça e quarta), 20h
Onde: Teatro Capiba (SESC Casa Amarela)
Quanto: R$ 20 e R$ 10
Duração: 1h
Classificação etária: a partir de 12 anos

Texto: Moncho Rodriguez
Direção, figurino, adereços e maquiagem: Nildo Garbo
Iluminação: Edu de Oliveira
Execução de adereços: Naldo Fernandes
Execução de figurino: Iva Araújo
Cenotécnico: Arnaldo Honorato
Produção e atuação: Severino Florêncio

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Hamlet para adultos espertos e crianças

Davi Taiu e Erickson Almeida em O Príncipe da Dinamarca. Foto: João Caldas

Davi Taiu e Erickson Almeida em O Príncipe da Dinamarca. Foto: João Caldas

O perturbado personagem Hamlet, do dramaturgo inglês William Shakespeare é tão rico e complexo que muitas vezes as encenações destacam um aspecto dessa personalidade. Para aproximar essa figura das crianças, a Cia. VagalumTum Tum, de São Paulo, privilegiou o humor no espetáculo O Príncipe da Dinamarca.

Nesta versão, todos os personagens são palhaços e caveiras que circulam por um cemitério, brincando com a máxima de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”. Sem medo de tratar de assassinatos, suicídios e vinganças violentas para os pequenos.

A direção é de Angelo Brandini, e no elenco estão os atores Davi Taiú, Anderson Spada, Christiane Galvan, Erickson Almeida, Teresa Gontijo e Val Pires – todos eles também nos Doutores da Alegria, em São Paulo.

O grupo faz a última de uma série de apresentações neste sábado (12), às 16h, no Teatro Marco Camarotti, no Sesc de Santo Amaro. Os ingressos são distribuídos gratuitamente uma hora antes do espetáculo.

 

Erickson Almeida, Anderson Spada e Tereza Gontijo estão nesta versão de Hamlet Erickson Almeida, Anderson Spada e Tereza Gontijo estão nesta versão de Hamlet

Serviço:

O Príncipe da Dinamarca

Onde: Teatro Marco Camarotti  – SESC de Santo Amaro, Rua Treze de Maio, 455, Santo Amaro.

QuandoQuinta-feira (10), às 10h e às 15h – exclusivamente para escolas públicas; sexta-feira (11), às 10h, e no sábado (12), às 16h.

Quanto: Entrada gratuita, com ingressos distribuídos uma hora antes.

Informações: (81) 3216 1728

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Macbeth em essência

<i>Macbeth</i>. Fotos: Pollyanna Diniz

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O general Macbeth volta vitorioso de uma guerra. Em recompensa é condecorado pelo rei Duncan, da Escócia. As bruxas fazem vaticínios a respeito do futuro de Macbeth e anunciam que ele será rei. Banquo, outro general do exército do rei Duncan, recebe a notícia de que não será rei, mas pai de uma poderosa dinastia. Macbeth fica insuflado pelas profecias das bruxas e a ideia do assassinato lhe perturba o espírito; e, instigado pela mulher, a pérfida Lady Macbeth, mata o rei e assume o trono. Depois tece uma fileira de crimes. A trama revela o lado mais perverso do homem. O enredo é conhecido e cada encenador o conduz da sua forma.

Macbeth é considerada a peça mais soturna de William Shakespeare (1564-1616). A tragédia deve ter sido escrita entre 1603 e 1607, com a primeira encenação em 1611. Nessa época, as mulheres não atuavam no teatro. Gabriel Villela, diretor da montagem apresentada neste fim de semana no Teatro de Santa Isabel, optou por um elenco somente de homens, como ocorria nas encenações shakespearianas. Dessa forma, o casal Macbeth é interpretado por Marcello Antony e Claudio Fontana, que dividem a cena com Helio Cicero, Marco Antônio Pâmio, Carlos Morelli, José Rosa, Marco Furlan e Rogerio Brito. Os intérpretes são maduros e o elenco é harmonioso.

A encenação de Gabriel Villela é compacta. O diretor cria um narrador (Carlos Morelli), inexistente no Macbeth original. A montagem valoriza a narrativa e o narrador convoca o espectador a imaginar. O narrador traz um livro na mão, e é como se a encenação saísse das páginas daquele livro. A tradução do inglês de Marcos Daud opta pela prosa direta e isso facilita uma narrativa límpida.

O espetáculo tem uma teatralidade bem demarcada. Villela reduziu as situações dramáticas. A movimentação coreográfica dos atores cria uma beleza e traça desenhos no palco e de postura. O corpo e os gestos são contidos. A utilização de recursos do teatro Nô japonês permite que algumas ações sejam apenas sugeridas. O sangue vertido aparece na forma de fiapos de lã vermelha. O diretor nesta montagem prioriza o texto e a poética de Shakespeare. As bases centradas na voz dos atores e nas palavras do bardo inglês.

Para regular a voz, o encenador contou em sua equipe com a italiana Francesca Della Monica, que desenhou a concepção de voz do espetáculo. Ela desenvolveu uma prática que denomina de antropologia da voz e que articula a espacialização da voz e de abertura da textura vocal para o campo dos mitos. A ideia é que a plateia desenhe as imagens enquanto ouve os atores. Mas tem muito mais gente nos bastidores para garantir a clareza desse belo espetáculo. Babaya é responsável pela direção de texto. A musicalidade da cena ficou a cargo de Ernani Maletta. Gabriel Villela contou com três assistentes de direção, César Augusto, Ivan Andrade e Rodrigo Audi.

Marcello Antony dá o texto sem nenhum coloquialismo. Da sua boca saem palavras graves e fortes e sua postura apresenta a deterioração do espírito do seu personagem. Claudio Fontana interpreta Lady Macbeth com brilhantismo. Ele evita a caricatura e o falsete. E o resultado é impressionante. Fontana se apropria da imagem de uma gueixa. O ator expressa feminilidade deslizando pelo palco. Ele usa uma máscara branca de gueixa e uma túnica negra esvoaçante. Marco Antônio Pâmio está forte na pele de Banquo. Rogerio Brito, Marco Furlan e José Rosa fazem as três bruxas e arrancam humor e ironia de várias situações.

O figurino tem muito de Gabriel Villela e ele assina o figurino em parceria com Shicó do Mamulengo, que também esteve com o diretor na montagem Sua Incelença, Ricardo III. A indumentária de guerra (coletes, armaduras e escudos) foi confeccionada a partir de 30 malas antigas de couro e papelão.

Pilares compostos a partir de teares mineiros sobrepostos formam uma grande torre. O cenário é de Marcio Vinicius. As cadeiras que ocupam o centro do palco em algumas cenas são de um cinema desativado de Carmo do Rio Claro, cidade natal do diretor. A iluminação é de Wagner Freire e a direção de movimento de Ricardo Rizzo.

Foram três apresentações de Macbeth no Recife, no Teatro de Santa Isabel, com casa lotada. Um ótimo Gabriel Villela. E como já disse Shakespeare: “A vida não passa de uma história cheia de som e fúria, contada por um louco e significando nada”.

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De: Pollyanna / Para: Ophélia

Ophélia conversando com o seu amigo coveiro. Foto: Rodrigo Moreira

Querida Ophélia,
Foi tão bom encontrá-la na última semana na V Mostra Capiba de Teatro! O público ficou encantado com a atuação segura e ao mesmo tempo delicada de Pollyanna Monteiro. Trazer ao primeiro plano a sua história, dizer o que ela – e o que nós – pensamos e traçar uma relação tão íntima e sem atropelos com o texto de William Shakespeare é uma descoberta. De que existem maneiras de recontar os clássicos sem a sisudez dos “grandes” atores e diretores. De que dá para ser um “galo de campina” como Paulo Michelotto, diretor, conseguindo dar leveza, mas ao mesmo tempo sustentação, para um trabalho que agarra a plateia pela simplicidade e pouca pretensão.
É bem verdade que existem muitos pontos de fuga na sua dramaturgia – e isso nem é um defeito, já que os atores da Cia de Teatro e Dança Pós-Contemporânea d’ Improvizzo Gang estão bem acostumados a lidar com o imponderável. A participação do público, embora eu ache que isso possa se tornar mais natural ainda à montagem, é um desses elos com o inesperado. Vai que o príncipe não aceita ser príncipe? Não teria o menor problema, tenho certeza. Você logo conseguiria outro. Eram muitas pessoas na plateia que podiam também ocupar os papéis de rei, rainha, coveiro.
De maneira muito informal, a dramaturgia nos alcança, vai nos tomando aos pouquinhos; é forte, profunda. A conversa que você trava com o coveiro e a capacidade de passear tão tranquilamente entre esses personagens, já que a participação do rapazinho de cabelos cacheados ficou restrita à ótima dublagem, são pontos fortes na sua história. Também há intrigas, relacionamentos perdidos, mas há bem mais o encontro com o que se é de verdade, com a realidade que nos cerca, com a dimensão que tomamos de nós mesmos.
A iluminação desenhada por Cleisson Ramos dá os contornos da sua trajetória. E como é lírica a forma como o espetáculo começa. Contando exatamente o seu fim, embora isso nem de longe signifique que a esperança para você acabou. O silêncio é temporário.
Dê um beijo por mim em Pollyanna Monteiro, mesmo nome, mesma terra e, quem sabe se tivermos mais um tempinho juntas, descobrimos até parentes em comum. Mande minhas saudações ao diretor Paulo Michelotto. É ótimo ver a sua irreverência e a maneira com que quebra as regras no palco e constrói as suas próprias, para depois tornar a quebrá-las.
Espero reencontrá-la em breve,
Pollyanna Diniz

Pollyanna Monteiro como Ophélia

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