Arquivo da tag: Maria Thaís

Olhares sobre o Nordeste brasileiro em cena no Itaú

Boca, com Erivelto Viana, do Maranhão, está na programação do Cena Agora, do Itaú Cultural, que dedica a  primeira edição à temática Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. Foto: Divulgação

Manifestações xenófobas e de ódio contra o povo nordestino vem e voltam. Já ocorreram de forma velada, em comentários comparativos de sotaque ou de postura, de posses ou de feições; ou em enxurrada de xingamentos na Internet. O atual presidente já utilizou o termo “paraíba” de forma depreciativa São atitudes fincadas na ideia de uma suposta superioridade de pessoas do Sudeste e do Sul. 

O Nordeste é uma invenção, asseverou o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., em sua tese de doutorado, publicada em livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, que se tornou uma das principais referências para desconstruir esse painel repleto de clichês preconceituosos.

Não se iluda. Não nos iludamos. Essa representação reducionista foi forjada pelas classes dominantes e é uma arma de manutenção de poder das elites.

O Nordeste – formado por 9 estados, uma extensão de 1.558.000 km², com 1.793 municípios –
não poderia ser chapado, com identidade única ligada à seca, à pobreza, um lugar atrasado e anacrônico.

Há riqueza e diversidade nessa região produtora de economia, de ciência, de tecnologia, de saberes e de cultura brasileira potente em variadas linguagens, literatura, cinema, música, pintura, teatro etc.

A região Nordeste, que surge na paisagem imaginária do país […], foi fundada na saudade e na tradição. […] Antes que a unidade significativa chamada Nordeste se constituísse perante nossos olhos, foi necessário que inúmeras práticas e discursos “nordestinizadores” aforassem de forma dispersa e fossem agrupados posteriormente.
Durval Muniz de Albuquerque Jr., A Invenção do Nordeste e Outras Artes,

 

O projeto Cena Agora, que o Itaú Cultural promove desta quinta-feira a domingo (de 15 a 18 de abril), às 20h, dedica sua primeira edição à temática Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas com o propósito de tramar/elaborar uma pluralidade de perspectivas sobre o enunciado, tensionando as construções estereotipadas ou colonizadas das identidades nordestinas frente à heterogeneidade polifônica dessa constelação.

A programação virtual é orientada na criação de cenas teatrais curtas, de cerca de 15 minutos, acionando questões contemporâneas como alavancas poéticas. Fazem parte dessa primeira edição seis trabalhos inéditos, criados por artistas da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco e Rio Grande do Norte, seguidas por conversas dos elencos com críticos e artistas convidados. As atividades serão transmitidas pela plataforma Zoom. Os ingressos gratuitos podem ser reservados via Sympla. Mais informações no site www.itaucultural.org.br.

Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, exibe o trabalho Sem título. Foto: Rafael Telles 

Cena Agora – Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas começa nesta quinta-feira, com a mesa de abertura, uma conversa do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do já citado livro A invenção do Nordeste e outras artes com Galiana Brasil, gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural. O livro inspirou o espetáculo teatral A invenção do Nordeste, do grupo Carmin, do Rio Grande do Norte, que questiona o papel estereotipado do nordestino.

As repetições do senso comum em relação ao fluxo dos nordestinos para o sudeste, tanto em um recorte histórico, quanto em um contexto mais atual, são investigadas na cena do grupo de teatro Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, com elenco dirigido por Fernando Yamamoto, na sexta-feira, 16.

Ainda na sexta-feira será mostrado, cênica e poeticamente, um pequeno recorte da caminhada de vida da yalorixá Mãe Rosa de Oyá, sacerdotisa do Ilê Axé Oyá L´adê Inan, na cidade baiana de Alagoinhas, intitulado Onan Yá – A caminhada da sacerdotisa. A criação é da diretora teatral e dramaturga baiana Onisajé, que assina a direção, o roteiro e a concepção e conta no elenco com a atriz e dançarina Fabíola Nansure e o ator Nando Zâmbia. Neste dia, eu, Ivana Moura, e Pollyanna Diniz,  as “Yolandas”, vamos conduzir a conversa pós-cenas. 

Figuras em situações ou dilemas heroicos reverberam na cena do sábado. O coletivo No barraco da Constância tem! do Ceará, exibe O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. O jangadeiro cearense Manuel Olímpio Meira (1903-1942), conhecido como Jacaré, viajou até o Rio de Janeiro, em 1941, para reivindicar ao presidente Getúlio Vargas os direitos trabalhistas de sua classe pesqueira. A empreitada foi bem-sucedida e ele foi convidado, no ano seguinte, pelo cineasta Orson Welles, a participar de um filme sobre os pescadores e a reproduzir com sua tripulação a cena da chegada dos jangadeiros à baía de Guanabara. Mas, durante as gravações, a embarcação virou e Jacaré desapareceu e nunca foi encontrado. A cena explora inúmeras hipóteses sobre sumiço de Jacaré.

Coletivo Agridoce, de Pernambuco, apresenta cena inspirada no romance Homens e Caranguejos, de Josué de Castro.  Foto: Anny Stone / Divulgação

O Coletivo de dança-teatro Agridoce, de Pernambuco, é o outro convidado da noite e apresenta a cena Rhizophora – Estudo nº 01, baseado no livro Homens e Caranguejos, de Josué de Castro. A fome é apontada por Josué de Castro como a grande tragédia existencial, política e estética brasileira. Escrito em 1966, Homens e Caranguejos é o único romance do cientista, que narra a história de vida de um menino pobre que descobre o mundo a partir da miséria e da lama do mangue.

O ator, diretor e dramaturgo amazonense Henrique Fontes é quem faz a mediação da conversa com os elencos e o público nessa noite. Autor da dramaturgia da premiada peça A Invenção do Nordeste, ao lado de Pablo Capistrano, Fontes é sócio fundador e atual presidente do Espaço Cultural Casa da Ribeira, no Rio Grande do Norte.

O artista Erivelto Viana, do Maranhão, sob direção de Urias de Oliveira, analisa no experimento Boca a energia evocação no encontro (entre) eu/Exu. O dentro, o fora, o centro, o tudo e o nada são pensados poeticamente .

O grupo Dimenti, da Bahia, fecha essa primeira etapa da programação com Web-Strips: Volume Encruzilhadas, que tem como ponto de partida o projeto de 2018 Strip Tempo – stripteases contemporâneos, motivado pela pergunta: como despir a poética de uma carreira? Com direção de Jorge Alencar e codireção de Larissa Lacerda e Neto Machado, a cena revela zonas relativamente ocultas do corpo e da carreira de cada artista. Na configuração de vídeo-performances reúne os artistas Fábio Osório Monteiro, Jaqueline Elesbão e João Rafael Neto, que desnudam corpos, casas, carreiras, a memória e o digital.

No domingo, nós, as Yolandas, seremos as responsáveis pela condução da conversa.

O recorte Encruzilhada Nordeste(s):(contra)narrativas poéticas terá continuidade em maio, durante três finais de semana, de quinta-feira a domingo, contando, ao todo, com a participação de todos os estados do Nordeste no projeto e de grupos/artistas que estão sediados também noutras regiões.

Serviço:
Cena Agora – Encruzilhada Nordeste
De 15 a 18 de abril (quinta-feira a domingo), sempre às 20h

No site do Itaú Cultural: www.itaucultural.org.br
Todos as apresentações são seguidas de bate-papo com o elenco.
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla.
Mais informações em: www.itaucultural.org.br

PROGRAMAÇÃO

15 de abril, quinta-feira, 20h

Mesa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas
Com Maria Thais e Durval Muniz
Duração: 90 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla.

16 de abril, sexta-feira, 20h

Onan Yá – A caminhada da sacerdotisa
De Onisajé (BA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Pollyana Diniz e Ivana Moura
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: Livre
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Um breve recorte da caminhada de vida da yalorixá Mãe Rosa de Oyá, sacerdotisa do Ilê Axé Oyá L´adê Inan, na cidade baiana de Alagoinhas. sua ação sacerdotal, e o encruzilhamento de suas identidades de mulher negra, nordestina, periférica, sacerdotisa de axé.

Ficha Técnica:
Direção, roteiro e concepção: Onisajé (Fernanda Júlia)
Atuantes: Mãe Rosa de Oyá, Fabíola Nansure e Nando Zâmbia
Direção de imagem, edição e iluminação: Nando Zâmbia
Figurino e maquiagem: Fabíola Nansure
Direção musical e trilha: Jarbas Bittencourt
Locação: Ilê Axé Oyá L´adê Inan

Sem título
Com Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de  Ivana Moura e Pollyanna Diniz Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: Livre
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. Mais informações em: www.itaucultural.org.br

Sinopse:
O trabalho propõe uma relação de jogo com o público, questionando recorrências do senso comum em relação ao fluxo dos nordestinos para o sudeste, tanto num recorte histórico, quanto num contexto mais atual, em especial sobre São Paulo ser a nova capital do Nordeste.

Ficha Técnica:
Direção: Fernando Yamamoto
Assistência de direção: Diogo Spinelli
Elenco: Camille Carvalho, Diogo Spinelli, Nicoli Dichoff, Paula Queiroz e Renata Kaiser
Produção: Rafael Telles

17 de abril, sábado, 20h

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir
Com o coletivo No barraco da Constância tem! (CE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Henrique Fontes
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
O jangadeiro Jacaré desaparece em 1942, forjando um enorme buraco. Na história, na rede ou no tecido do espaço e do tempo, essa fenda apresenta inúmeras hipóteses a respeito do seu sumiço e da sua saga. A fábula do nordestino em direção ao epicentro do Brasil toma outros rumos, inaugurando novas possibilidades empreendedoras com a profecia do seu reaparecimento.

Ficha Técnica:
Direção, roteiro e interpretação: Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte
Edição e montagem: Breno de Lacerda
Realização: No barraco da Constância tem!

RHIZOPHORA – Estudo nº 01
Com o Coletivo de dança-teatro Agridoce (PE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Henrique Fontes
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Baseado no romance Homens e Caranguejos, de Josué de Castro, Rhizophora conta a história do anti-herói João Paulo, que se vê em um dilema quando a construtora onde ele trabalha resolve construir um condomínio de luxo no lugar onde fica a comunidade onde ele morou. Entre lembranças da infância ribeirinha nos manguezais e planejamentos megalomaníacos, começa uma grande viagem ao passado e um retorno a sua ancestralidade.

Ficha Técnica:
Dramaturgia e Adaptação: Coletivo de Dança-Teatro Agridoce
Direção: Aurora Jamelo e Nilo Pedrosa
Elenco: Aurora Jamelo, Flávio Moraes, Igor Cavalcanti, Nilo Pedrosa e Sophia William
Coreografia: Sophia William
Preparação de elenco: Sophia William
Direção artística: Aurora Jamelo
Cenografia: Aurora Jamelo e Nilo Pedrosa
Figurinos: Aurora Jamelo
Iluminação: Aurora Jamelo
Produção: Coletivo de Dança-teatro Agridoce
Produção executiva: Flávio Moraes e Sophia William
Foto: Anny Stone, Jessica Maia, Erick Sgobe, Zito Junior
Assessoria de imprensa: Igor Cavalcanti Moura
Vídeo: Tuca Colleto
Captação de som: Anderson Barros
Realização Agridoce

18 de abril, domingo, 20h

Boca
Com Erivelto Viana e Urias Oliveira (MA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Pollyanna Diniz e Ivana Moura
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 18 anos (nudez frontal)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. Mais informações em: www.itaucultural.org.br

Sinopse:
O dentro, o fora. O tudo e o nada. O centro. Boca que tudo come, buraco da criação. Corpo lugar de passagem, atravessamento, encruzilhadas. Energia evocação no encontro (entre) Exu/Eu.
Ficha técnica:
Concepção: Erivelto Viana e Urias de Oliveira
Criação e performance: Erivelto Viana
Direção: Urias de Oliveira

Web-Strips: Volume Encruzilhadas
Com o grupo Dimenti (BA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Ivana Moura e Pollyanna Diniz
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 18 anos (nudez frontal)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Desnudar corpos, casas, carreiras, a memória e o digital. Web-Strips buscam despir o trajeto estético e erótico de criadores contemporâneos da Bahia, enquanto também revela a intimidade de seus ambientes domésticos. Utilizando cenas, figurinos, trilhas sonoras e coreografias do repertório dos/as artistas em cena, propõe outras percepções ao famoso striptease (do inglês strip, desnudar; e tease, provocar), gênero tão popular quanto marginal, presente desde as casas noturnas até os clássicos do cinema.

Ficha Técnica:
Direção: Jorge Alencar
Codireção: Larissa Lacerda e Neto Machado
Com: Fábio Osório Monteiro, Jaqueline Elesbão, João Rafael Neto
Direção de fotografia, câmera e som direto: Larissa Lacerda
Edição: Lane Costa e Larissa Lacerda
Trilha sonora: Ricardo Caian
Direção de Produção: Ellen Mello
Equipe de Produção: Fábio Osório Monteiro, Marina Martinelli, Francisco Sena e Trini Opelt
Financeiro: Marília Pereira
Comunicação: Marcatexto
Realização: Dimenti Produções Culturais

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Recusa é um ato político

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

Recusa é mais que um espetáculo. É um projeto portentoso de investigação de identidades, da Cia Teatro Balagan, com direção de Maria Thaís, a partir de pesquisa sobre ameríndios. O resultado amplo escapa aos sentidos numa primeira mirada. Pode provocar estranhamento pela profusão de referências de discursos que foram canibalizados durante o processo de construção da cena. Discursos jornalístico, antropológico, geopolítico e mítico. Mas aqui a lógica é outra.

Foram mais de três anos e meio de pesquisa, inclusive com incursão à Terra Indígena Sete de Setembro, dos integrantes da Aldeia Gãpgir, do povo Paiter Suruí, em Rondônia. Isso criou um caleidoscópio de pontos de vista que exige do espectador uma entrega maior para acompanhar a narrativa.

A direção musical de Marlui Miranda sustenta, embala e projeta as múltiplas vozes em tensão da “multidão” que ocupa o palco: dos dois índios Piripkura; dois heróis ameríndios, Pud e Pudleré, e todos os outros que eles inventam (humanos, animais, espíritos e coisas), metamorfoseando, em padre, onça fazendeiro, cantora e mais.

E também são convocados traços de personagens de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa. E haja fôlego dos atuadores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto.

Para dar conta dessa pluralidade, a Cia Balagan trabalha o teatro a partir de outros paradigmas (que eles foram caçando e devorando), numa reinvenção da linguagem cênica. A identidade é vista de forma plural. A recusa das figuras inspiradoras da peça – de se submeter a um processo civilizatório – é um ato político.

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

No Dossiê do espetáculo, publicado na revista Sala Preta, em junho do ano passado, os atores explicam que Recusa está ancorada, fundamentalmente, em duas bases conceituais: “perspectivismo ameríndio (canibalizado – e, ao nosso modo, reinventado como cena – do pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) e duplicidade (autonomia, e interação de diferenças devoradas nos trabalhos de Beatriz Perrone-Moisés e Manuela Carneiro da Cunha)”.

E detalham: “O primeiro conceito provocou-nos com a impossibilidade do sujeito apreender a realidade em sua totalidade, restando-lhe apenas uma parcela dela ou uma perspectiva sobre ela. O outro lembra-nos que, diversamente do pensamento euro-ocidental, fundado na busca permanente por uma unidade (lógica, coerente em si mesma e, não raro, excludente porque desqualifica tudo o que a ela não se assemelha), o pensamento ameríndio alicerça-se na busca por duplicidade, multiplicidade”.

O espetáculo é narrado e cantado em português e línguas ameríndias ou criadas pelos atores. A fisicalidade dos intérpretes foi forjada na preparação corporal de Ana Chiesa Yokoyama, que inclui os ensinamentos do Butô, o que dá uma leveza aos corpos e como eles atentam “uma nova perspectiva de tempo: não linear, não organizada em termos cronológicos, mas cíclica”.

Recusa desestrutura qualquer ideia preconcebida sobre os ameríndios, rejeita os estereótipos e revela com exuberância traços da riqueza dessas culturas ocultadas por discursos / posições dominantes.

O que dizer sobre a atuação dos dois atores? Aqueles seres que quase voam em cena, que nos encantam com suas vozes, que mergulham num jogo cênico de forma plena e provocam um tsunami na cabeça do espectador (pelo menos, foi assim comigo). A cenografia e figurinos de Márcio Medina, iluminação de Davi de Brito comungam na expressão dessa corajosa experiência artística e de vida.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

Postado com as tags: , , , , , , , ,

Nós, os curiosos

Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

Recusa. Fotos: Fernanda Pessoa

Espetáculo Recusa, da da Cia Teatro Balagan. Fotos: Fernanda Pessoa

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força


O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda. O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que – mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

Postado com as tags: , , , , , , , ,