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Tubo de ensaio

Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

Metrópole

Em Metrópole, os espectadores se vêem refletidos ao longo de toda a peça

Formada por artistas egressos da graduação de Artes Cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a Inquieta Cia. de Teatros apresentou Metrópole na Sala de Ensaios do Centro Cultural São Paulo, no contexto da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. O espetáculo foi concebido para se apresentar em espaços com esse caráter e aproveita de modo interessante a parede coberta de espelhos, especialmente no que diz respeito ao poucos movimentos de luz, feitos apenas com uma lanterna e alguns desenhos no espelho. Os espectadores se vêem refletidos ao longo de toda a peça e podem observar-se ou observar os demais enquanto a cena se desenrola. Essa estratégia, que faz o espectador dar-se conta de si mesmo o tempo todo, encaixa a experiência em um lugar de expectativa moderada. Nos vemos inseridos em um contexto de experimentação, estamos todos na sala de ensaio, como se fôssemos cobaias-cúmplices.

No encontro de intercâmbio entre grupos, os integrantes se apresentaram como um grupo de origem acadêmica, que se encontrou na faculdade de teatro e começou a trabalhar a partir desse contexto. Não é um grupo iniciante, mas talvez seja o grupo mais jovem no contexto da Mostra. Isso aparece no espetáculo em alguns aspectos, como na lida com o trabalho do ponto de vista técnico e do ponto de vista temático.

Do ponto de vista técnico, parece que há uma ansiedade com o próprio fazer teatral que em alguns momentos acaba ficando na frente, aparecendo mais do que o trabalho em si. A intensidade que aflora nos corpos de Silvero Pereira e Gyl Giffony (que também assina a direção) em muitos momentos fica em primeiro plano. Isso pode ser uma opção estética, mas ficou a impressão de que os artistas poderiam regular a voltagem pra dar a ver mais nuances, mais delicadezas. O excesso de energia no trabalho atorial pode se confundir com uma limitação técnica. A fricção entre os dois personagens e a proximidade com os espectadores produz um calor interessante, mas o trabalho acaba contando demais com isso. É como se o vigor fosse mais de juventude que de elaboração poética.

a Inquieta Cia. de Teatros é o grupo mais jovem da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.

a Inquieta Cia. de Teatros é o grupo mais jovem da Mostra Latino-Americana de Teatro


Do ponto de vista temático, dos assuntos abordados e dos enfrentamentos da dramaturgia de Rafael Barbosa com o material reunido para a produção do texto, a peça esbarra nesse lugar da pesquisa incipiente. O entendimento do que é a opção pela vida na arte às vezes parece um pouco romântico, como se tudo fosse 8 ou 80. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra – poderíamos dizer. A persistência demanda concessões e recusas em uma justa medida. É possível construir um lugar de criação artística para si enquanto ainda se ganha o pão com outros meios. Nos debates realizados na Mostra, a viabilidade econômica da continuidade dos grupos, a necessidade de ter uma sede, uma regularidade, foram assuntos importantes. É interessante ver que o grupo colocou isso em jogo na própria criação. Nesse sentido, imagino que o espetáculo tenha uma empatia imediata com o público de jovens e jovens adultos, especialmente entre espectadores que lidam com esses questionamentos no seu dia a dia. E a empatia com o público jovem no teatro não deve ser subestimada.

A peça começa com um prólogo impactante, numa referência ao universo de Caio Fernando Abreu, cheio de fantasia e brilho. Depois, o acender das luzes revela a crueza da realidade. Essa discrepância entre um falso glamour das iludidas do prólogo e a realidade maçante do trabalho braçal do rapaz que desistiu da vida artística apresenta de maneira econômica uma ideia geral de uma imagem possível do lugar do artista: uma mistura de fantasia e realidade, de epifania e dureza.

Fica a curiosidade de conhecer outras peças do grupo, para enxergar o seu trabalho em um contexto mais amplo, e o desejo de ver o que os integrantes da Inquieta Cia. de Teatros estarão fazendo daqui a alguns anos.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Cheiro forte de vinho barato

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Irmãos se digladiam por vocação ao teatro. Foto: Fernanda Pessoa

Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, joga frestas de luz sobre o lugar da vocação na vida de cada um, e na sua esteira convoca para outras questões como sorte, perseverança, oportunidades. O espectro pode ser ampliado, mas no caso domar e projetar esse talento estão no âmbito das artes, mais especificamente do teatro numa cidade de pedra.

Num piscar de olhos, fui transportada ao longa-metragem Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, de 1979, e sua Caravana Rolidei. A uma cena específica em que o ator alagoano José Márcio Passos, na pele de um poeta que peleja para mostrar escritos a Lord Cigano (José Wilker). No filme, o poeta é preterido por um sanfoneiro arretado. Nos bastidores, José Márcio perdeu o papel do sanfoneiro Ciço, para o ator e cantor Fábio Júnior.

A lembrança me veio porque estão no âmago da discussão entre os dois irmãos da peça esses meandros do caminho artístico. Em algum momento, amargurado, Caetano (o mais velho) diz que foi o teatro que desistiu dele. Ele atendeu ao chamado, mas não foi suficiente para vencer os embates subjetivos e objetivos. Ensimesmou-se.

Caetano “abriu mão” do teatro para fabricar bolos, tortas e pães sob encomenda. Sem avisar, seu irmão Charles aparece para uma visita, ou melhor, para passar uma temporada e volta com esse assunto do teatro, com essa febre do teatro, com esse vírus do teatro. Quer contaminar novamente Caetano. Diz que escreveu uma peça para ele.

O texto é de um jovem dramaturgo carioca, radicado em Fortaleza, Rafael Barbosa. Apreendo influências de Caio Fernando Abreu em sua escritura. Há outras, lógico, mas Caio pulsa mais forte. Em cena estão os atores Silvero Pereira e Gyl Giffony, este segundo também diretor do espetáculo. Em termos de atuação, Silvero se destaca e talvez a atuação de Gyl merecesse um olhar de fora.

Já como diretor Gyl Giffony empreende voo mais alto para materializar essa relação ambígua de dois artistas com a cidade. Na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, Metrópole fez quatro sessões (duas terça e duas quarta), na Sala de Ensaio 1 do Centro Cultural São Paulo. Assisti à última.

Para chegar ao espaço da apresentação o público desce escadas percorre corredores, é um labirinto. O local escolhido está afinado com a proposta da encenação. Quando o público adentra, o ambiente está escuro. Uma luz tênue de lanterna ajuda a localizar os assentos.
Ainda na penumbra o ator Silvero Pereira começa a contar a história de um garoto que consultou a vidente Agnes e se “descobre” Audrey Hepburn, atriz belga de filmes como Bonequinha de luxo e A princesa e o plebeu. O personagem Caetano conta que os rapazes, os atores daquela cidade correram para saber da vidente quem foram, entre estrelas de cinema e cantoras famosas, em vidas passadas.

Nesses momentos Silvero Pereira canta lindamente numa louvação ao “monstro teatro”. A cena despojada avança.

Público também é espelhado nos questionamentos de Metrópole

Público também é espelhado nos questionamentos de Metrópole

Depois da revelação desse sonho despudorado, as luzes se acendem e aparece Charles. Um estranhamento inicial se instala e eles se enfrentam feito dois búfalos e aos poucos somos informados que eles são irmãos, com diferenças de posturas com relação ao teatro. Enquanto um desistiu, o outro persiste. Um se trancou no seu apartamento, o outro ainda busca enfrentar o mundo. Espaços abertos e fechados em duelo de metalinguagem.

O espetáculo oscila entre claros e escuros. A plateia está sentada defronte de espelhos. O público fica sentado em dois blocos e suas imagens também estão refletidas. Os intérpretes circulam entre esses blocos de gente, atuando na frente, atrás, e dos lados dos espectadores. Duas portas, de onde eles entram e saem, sinalizam que há saídas. Talvez uma aposta da dramaturgia e da direção de que a suposta falência da vocação não deve ser encarada como absoluta, mesmo com todos os danos e traumas.

Mas é um reflexo pertinente sobre o desalento do ofício de ator (e seus derivados) como proposta profissional que garanta dignidade para custear a sobrevivência. Urgente e latejante.

Os sujeitos às vezes se digladiam na cena, às vezes se permitem delicadezas. O ator batendo ovos em uma tigela cria uma sonoridade estridente que vai marcando a ação em alguns momentos. Os aspectos sujo, urbano e vivo são destacados nas ações com farinha, papel e vinho, no figurino de Charles e nos patins sobre os quais ele desliza.

Na sessão que assisti, numa cena com mais intensidade, o ator Gyl Giffony joga vinho nos espelhos, sem querer quebra um pedaço e se corta. A cena progride mais real, deixando no ar aquele cheiro forte de vinho barato.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Transfiguração da carne

Crítica da peça Carnes Tolendas, do grupo Banquete Escênico
Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

A dramaturgia é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena

A dramaturgia é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena

Destas Carnes Tolendas, poderíamos fazer diversos cortes. O trabalho do grupo de Córdoba oferece, como anuncia seu nome, um banquete de possibilidades para a cena. Como numa refeição completa, a peça oferece entrada, salada, diferentes pratos, com temperos variados, sobremesa e aperitivo(s). A dramaturgia – assinada pela diretora María Palacios e pela atriz Camila Sosa Villada – é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena, que é ora depoimento, ora citação, ora comentário, deslizando do mimético ao performativo numa dinâmica que de tempos em tempos vai renovando o pacto com o espectador.

A imagem da atriz, seu corpo, sua voz e sua presença nos convidam a entender o seu organismo complexo, que supera a oposição entre homem e mulher e constrói um lugar de beleza da convivência entre masculino e feminino. A dimensão confessional do trabalho aparece tanto no corpo de Camila quanto na construção do texto e na encenação. Dos poucos objetos utilizados na cena, alguns fazem o papel de ponte com o real, são vestígios da história pessoal da atriz. E o desenho do seu corpo na visualidade da cena remete às mudanças que ela propôs a si mesma no processo de travestimento: ela se contorce, se provoca o desequilíbrio, se revira como se procurasse a identidade do lado do avesso.

Mas o recorte específico que proponho aqui, rapidamente, é a relação criada com os textos de Federico García Lorca. Alguns trechos de peças do poeta e dramaturgo espanhol são citados no espetáculo. As mulheres de Lorca são colocadas em situação de espelhamento com a condição complexa do corpo de Camila. A maternidade, tomada pela sociedade em que vivemos como o alfa e o ômega da realização de ser mulher, é uma impossibilidade para personagens com Yerma e D.Rosita, assim como para Camila. E esse “assim como” é um certo nó.

O corpo travesti faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne

O corpo travesti faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne


O discurso de Yerma sobre seu ventre seco ganha contornos angulosos na voz de Camila. A ideia de esterilidade é aqui subvertida, transfigurada. Por transfiguração entendo uma alteração de estatuto, uma passagem incomum – lembrando que o termo é usado tanto no contexto religioso (a Transfiguração de Cristo) quanto na teoria da história da arte moderna e contemporânea (a transfiguração do lugar comum no pensamento de Arthur Danto). O corpo travesti (e em uma medida mais profunda, transexual) faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne e dá à luz uma mulher feita. Uma transfiguração.

E todo esse processo traz em si uma teatralidade particular. Carnes Tolendas me parece falar dessa teatralidade de ser homem, de ser mulher e de estar em um mundo que insiste em dar as regras de uma dramaturgia clássica. O travestimento tem uma teatralidade na vida. Colocá-lo em cena, como questão e como condição, dobra a teatralidade do corpo e desdobra nosso entendimento do mundo.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Corpos de intervalo

Camila. Foto: Fernanda Pessoa.

Camila Sosa embaralha lembranças com o universo de Lorca. Foto: Fernanda Pessoa.


Ao explorar cenicamente uma condição de intervalo entre ser homem e mulher, a atriz Camila Sosa Villada, potencializa a poética do seu espetáculo confessional Carnes Tolendas: Retrato Escénico de un Travesti com trechos da vida e obra de Federico Garcia Lorca. No início da encenação, uma figura toca um tango. Uma outra se multiplica em várias identidades, mãe, pai, facetas da sociedade e o filho travesti. A tocadora de acordeon, que também é a diretora María Palacios, sai. A atriz Camila Sosa Villada se debulha física e emocionalmente e se mistura aos personagens lorquianos.

A atriz trouxe das experiências do passado o material para a construção desse documentário cênico. Mas esses fatos reais recebem camadas de ficção na cena. Seja pela inclusão do universo do poeta e dramaturgo espanhol; ou pelo distanciamento temporal dos episódios, que faz um “ajuste” nessa memória.

É uma narrativa fragmentada em várias vozes. Mas tendo como posto de enunciação a protagonista. Camila transita entre personagens com o seu gestual e o registro vocal, que delimita cada um. São cenas fortes e palavras duras, repressões e ofensas da sociedade. “Eu sangrei em beijos”; “Sois a essência da merda em pó”; “Nesta casa eu não quero travestis”; “Lubrificador transsexual sujo”.

A família rejeita a personagem, e a atriz expõe esses confrontos com as frases ditas como navalhas, para ferir. É uma performance dinâmica e com poucos gestos a intérprete se transforma no pai violento, na mãe submissa, nos exploradores sexuais.

Seu cavalo é bem treinado e exibe excelente técnica teatral. E vai se transformando. Se distanciado daquele ambiente caseiro, para um mundo nada acolhedor.

Carnes tolendas traz figurino e cenário minimalistas

Carnes tolendas traz figurino e cenário minimalistas


A atriz leva ao palco roupas do menino que foi: “Faz muito tempo eu estive dentro destas roupas”, constata num melancólico suspiro sobre a impossibilidade de ter filhos e numa alusão também a Yerma, de Lorca.

O figurino e o cenário são minimalistas. O que dá ainda mais destaque às palavras, aos gestos, à atuação.

O Grupo Banquete, de Córdoba, faz uma procissão dos deuses destronados. A carnavalização da cena para sobreviver ao insulamento, aos amores clandestinos, ao autoritarismo. Na concepção de Bakhtin, a carnavalização possibilita a inversão, com os marginalizados se apoderando do centro simbólico.

Essa subversão em Carnes Tolendas vem em torrentes de ironia, apontada para uma sociedade que nega, renega, despreza, diminui, desqualifica. Ao se maquiar, se travestir, ela fala: “Eu tenho nojo dos gordos. Eu tenho nojo dos judeus. Eu tenho nojo das pessoas que limpam os vidros e os sinais. Eu tenho nojo da empregada que limpa a minha casa. Eu tenho nojo dos meninos com síndrome de Down. Eu tenho nojo das prostitutas. Eu tenho nojo dos drogados. Eu tenho nojo dos ladrões”, e conclui dizendo que tem nojo de todos e de cada um da plateia. O público aplaude.

Carnes Tolendas é um espetáculo com dramaturgias textual e cênica fortes, que articula questões importantes da contemporaneidade, com uma poética que destaca as sutilezas humanas e suas frágeis condições. Para fechar sua atuação esmerada, a atriz se expõe em nu artístico num flash, numa imagem fugidia.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Recusa é um ato político

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

Recusa é mais que um espetáculo. É um projeto portentoso de investigação de identidades, da Cia Teatro Balagan, com direção de Maria Thaís, a partir de pesquisa sobre ameríndios. O resultado amplo escapa aos sentidos numa primeira mirada. Pode provocar estranhamento pela profusão de referências de discursos que foram canibalizados durante o processo de construção da cena. Discursos jornalístico, antropológico, geopolítico e mítico. Mas aqui a lógica é outra.

Foram mais de três anos e meio de pesquisa, inclusive com incursão à Terra Indígena Sete de Setembro, dos integrantes da Aldeia Gãpgir, do povo Paiter Suruí, em Rondônia. Isso criou um caleidoscópio de pontos de vista que exige do espectador uma entrega maior para acompanhar a narrativa.

A direção musical de Marlui Miranda sustenta, embala e projeta as múltiplas vozes em tensão da “multidão” que ocupa o palco: dos dois índios Piripkura; dois heróis ameríndios, Pud e Pudleré, e todos os outros que eles inventam (humanos, animais, espíritos e coisas), metamorfoseando, em padre, onça fazendeiro, cantora e mais.

E também são convocados traços de personagens de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa. E haja fôlego dos atuadores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto.

Para dar conta dessa pluralidade, a Cia Balagan trabalha o teatro a partir de outros paradigmas (que eles foram caçando e devorando), numa reinvenção da linguagem cênica. A identidade é vista de forma plural. A recusa das figuras inspiradoras da peça – de se submeter a um processo civilizatório – é um ato político.

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

No Dossiê do espetáculo, publicado na revista Sala Preta, em junho do ano passado, os atores explicam que Recusa está ancorada, fundamentalmente, em duas bases conceituais: “perspectivismo ameríndio (canibalizado – e, ao nosso modo, reinventado como cena – do pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) e duplicidade (autonomia, e interação de diferenças devoradas nos trabalhos de Beatriz Perrone-Moisés e Manuela Carneiro da Cunha)”.

E detalham: “O primeiro conceito provocou-nos com a impossibilidade do sujeito apreender a realidade em sua totalidade, restando-lhe apenas uma parcela dela ou uma perspectiva sobre ela. O outro lembra-nos que, diversamente do pensamento euro-ocidental, fundado na busca permanente por uma unidade (lógica, coerente em si mesma e, não raro, excludente porque desqualifica tudo o que a ela não se assemelha), o pensamento ameríndio alicerça-se na busca por duplicidade, multiplicidade”.

O espetáculo é narrado e cantado em português e línguas ameríndias ou criadas pelos atores. A fisicalidade dos intérpretes foi forjada na preparação corporal de Ana Chiesa Yokoyama, que inclui os ensinamentos do Butô, o que dá uma leveza aos corpos e como eles atentam “uma nova perspectiva de tempo: não linear, não organizada em termos cronológicos, mas cíclica”.

Recusa desestrutura qualquer ideia preconcebida sobre os ameríndios, rejeita os estereótipos e revela com exuberância traços da riqueza dessas culturas ocultadas por discursos / posições dominantes.

O que dizer sobre a atuação dos dois atores? Aqueles seres que quase voam em cena, que nos encantam com suas vozes, que mergulham num jogo cênico de forma plena e provocam um tsunami na cabeça do espectador (pelo menos, foi assim comigo). A cenografia e figurinos de Márcio Medina, iluminação de Davi de Brito comungam na expressão dessa corajosa experiência artística e de vida.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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