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Olhares sobre o Nordeste brasileiro em cena no Itaú

Boca, com Erivelto Viana, do Maranhão, está na programação do Cena Agora, do Itaú Cultural, que dedica a  primeira edição à temática Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. Foto: Divulgação

Manifestações xenófobas e de ódio contra o povo nordestino vem e voltam. Já ocorreram de forma velada, em comentários comparativos de sotaque ou de postura, de posses ou de feições; ou em enxurrada de xingamentos na Internet. O atual presidente já utilizou o termo “paraíba” de forma depreciativa São atitudes fincadas na ideia de uma suposta superioridade de pessoas do Sudeste e do Sul. 

O Nordeste é uma invenção, asseverou o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., em sua tese de doutorado, publicada em livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, que se tornou uma das principais referências para desconstruir esse painel repleto de clichês preconceituosos.

Não se iluda. Não nos iludamos. Essa representação reducionista foi forjada pelas classes dominantes e é uma arma de manutenção de poder das elites.

O Nordeste – formado por 9 estados, uma extensão de 1.558.000 km², com 1.793 municípios –
não poderia ser chapado, com identidade única ligada à seca, à pobreza, um lugar atrasado e anacrônico.

Há riqueza e diversidade nessa região produtora de economia, de ciência, de tecnologia, de saberes e de cultura brasileira potente em variadas linguagens, literatura, cinema, música, pintura, teatro etc.

A região Nordeste, que surge na paisagem imaginária do país […], foi fundada na saudade e na tradição. […] Antes que a unidade significativa chamada Nordeste se constituísse perante nossos olhos, foi necessário que inúmeras práticas e discursos “nordestinizadores” aforassem de forma dispersa e fossem agrupados posteriormente.
Durval Muniz de Albuquerque Jr., A Invenção do Nordeste e Outras Artes,

 

O projeto Cena Agora, que o Itaú Cultural promove desta quinta-feira a domingo (de 15 a 18 de abril), às 20h, dedica sua primeira edição à temática Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas com o propósito de tramar/elaborar uma pluralidade de perspectivas sobre o enunciado, tensionando as construções estereotipadas ou colonizadas das identidades nordestinas frente à heterogeneidade polifônica dessa constelação.

A programação virtual é orientada na criação de cenas teatrais curtas, de cerca de 15 minutos, acionando questões contemporâneas como alavancas poéticas. Fazem parte dessa primeira edição seis trabalhos inéditos, criados por artistas da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco e Rio Grande do Norte, seguidas por conversas dos elencos com críticos e artistas convidados. As atividades serão transmitidas pela plataforma Zoom. Os ingressos gratuitos podem ser reservados via Sympla. Mais informações no site www.itaucultural.org.br.

Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, exibe o trabalho Sem título. Foto: Rafael Telles 

Cena Agora – Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas começa nesta quinta-feira, com a mesa de abertura, uma conversa do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do já citado livro A invenção do Nordeste e outras artes com Galiana Brasil, gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural. O livro inspirou o espetáculo teatral A invenção do Nordeste, do grupo Carmin, do Rio Grande do Norte, que questiona o papel estereotipado do nordestino.

As repetições do senso comum em relação ao fluxo dos nordestinos para o sudeste, tanto em um recorte histórico, quanto em um contexto mais atual, são investigadas na cena do grupo de teatro Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, com elenco dirigido por Fernando Yamamoto, na sexta-feira, 16.

Ainda na sexta-feira será mostrado, cênica e poeticamente, um pequeno recorte da caminhada de vida da yalorixá Mãe Rosa de Oyá, sacerdotisa do Ilê Axé Oyá L´adê Inan, na cidade baiana de Alagoinhas, intitulado Onan Yá – A caminhada da sacerdotisa. A criação é da diretora teatral e dramaturga baiana Onisajé, que assina a direção, o roteiro e a concepção e conta no elenco com a atriz e dançarina Fabíola Nansure e o ator Nando Zâmbia. Neste dia, eu, Ivana Moura, e Pollyanna Diniz,  as “Yolandas”, vamos conduzir a conversa pós-cenas. 

Figuras em situações ou dilemas heroicos reverberam na cena do sábado. O coletivo No barraco da Constância tem! do Ceará, exibe O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. O jangadeiro cearense Manuel Olímpio Meira (1903-1942), conhecido como Jacaré, viajou até o Rio de Janeiro, em 1941, para reivindicar ao presidente Getúlio Vargas os direitos trabalhistas de sua classe pesqueira. A empreitada foi bem-sucedida e ele foi convidado, no ano seguinte, pelo cineasta Orson Welles, a participar de um filme sobre os pescadores e a reproduzir com sua tripulação a cena da chegada dos jangadeiros à baía de Guanabara. Mas, durante as gravações, a embarcação virou e Jacaré desapareceu e nunca foi encontrado. A cena explora inúmeras hipóteses sobre sumiço de Jacaré.

Coletivo Agridoce, de Pernambuco, apresenta cena inspirada no romance Homens e Caranguejos, de Josué de Castro.  Foto: Anny Stone / Divulgação

O Coletivo de dança-teatro Agridoce, de Pernambuco, é o outro convidado da noite e apresenta a cena Rhizophora – Estudo nº 01, baseado no livro Homens e Caranguejos, de Josué de Castro. A fome é apontada por Josué de Castro como a grande tragédia existencial, política e estética brasileira. Escrito em 1966, Homens e Caranguejos é o único romance do cientista, que narra a história de vida de um menino pobre que descobre o mundo a partir da miséria e da lama do mangue.

O ator, diretor e dramaturgo amazonense Henrique Fontes é quem faz a mediação da conversa com os elencos e o público nessa noite. Autor da dramaturgia da premiada peça A Invenção do Nordeste, ao lado de Pablo Capistrano, Fontes é sócio fundador e atual presidente do Espaço Cultural Casa da Ribeira, no Rio Grande do Norte.

O artista Erivelto Viana, do Maranhão, sob direção de Urias de Oliveira, analisa no experimento Boca a energia evocação no encontro (entre) eu/Exu. O dentro, o fora, o centro, o tudo e o nada são pensados poeticamente .

O grupo Dimenti, da Bahia, fecha essa primeira etapa da programação com Web-Strips: Volume Encruzilhadas, que tem como ponto de partida o projeto de 2018 Strip Tempo – stripteases contemporâneos, motivado pela pergunta: como despir a poética de uma carreira? Com direção de Jorge Alencar e codireção de Larissa Lacerda e Neto Machado, a cena revela zonas relativamente ocultas do corpo e da carreira de cada artista. Na configuração de vídeo-performances reúne os artistas Fábio Osório Monteiro, Jaqueline Elesbão e João Rafael Neto, que desnudam corpos, casas, carreiras, a memória e o digital.

No domingo, nós, as Yolandas, seremos as responsáveis pela condução da conversa.

O recorte Encruzilhada Nordeste(s):(contra)narrativas poéticas terá continuidade em maio, durante três finais de semana, de quinta-feira a domingo, contando, ao todo, com a participação de todos os estados do Nordeste no projeto e de grupos/artistas que estão sediados também noutras regiões.

Serviço:
Cena Agora – Encruzilhada Nordeste
De 15 a 18 de abril (quinta-feira a domingo), sempre às 20h

No site do Itaú Cultural: www.itaucultural.org.br
Todos as apresentações são seguidas de bate-papo com o elenco.
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla.
Mais informações em: www.itaucultural.org.br

PROGRAMAÇÃO

15 de abril, quinta-feira, 20h

Mesa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas
Com Maria Thais e Durval Muniz
Duração: 90 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla.

16 de abril, sexta-feira, 20h

Onan Yá – A caminhada da sacerdotisa
De Onisajé (BA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Pollyana Diniz e Ivana Moura
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: Livre
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Um breve recorte da caminhada de vida da yalorixá Mãe Rosa de Oyá, sacerdotisa do Ilê Axé Oyá L´adê Inan, na cidade baiana de Alagoinhas. sua ação sacerdotal, e o encruzilhamento de suas identidades de mulher negra, nordestina, periférica, sacerdotisa de axé.

Ficha Técnica:
Direção, roteiro e concepção: Onisajé (Fernanda Júlia)
Atuantes: Mãe Rosa de Oyá, Fabíola Nansure e Nando Zâmbia
Direção de imagem, edição e iluminação: Nando Zâmbia
Figurino e maquiagem: Fabíola Nansure
Direção musical e trilha: Jarbas Bittencourt
Locação: Ilê Axé Oyá L´adê Inan

Sem título
Com Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de  Ivana Moura e Pollyanna Diniz Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: Livre
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. Mais informações em: www.itaucultural.org.br

Sinopse:
O trabalho propõe uma relação de jogo com o público, questionando recorrências do senso comum em relação ao fluxo dos nordestinos para o sudeste, tanto num recorte histórico, quanto num contexto mais atual, em especial sobre São Paulo ser a nova capital do Nordeste.

Ficha Técnica:
Direção: Fernando Yamamoto
Assistência de direção: Diogo Spinelli
Elenco: Camille Carvalho, Diogo Spinelli, Nicoli Dichoff, Paula Queiroz e Renata Kaiser
Produção: Rafael Telles

17 de abril, sábado, 20h

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir
Com o coletivo No barraco da Constância tem! (CE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Henrique Fontes
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
O jangadeiro Jacaré desaparece em 1942, forjando um enorme buraco. Na história, na rede ou no tecido do espaço e do tempo, essa fenda apresenta inúmeras hipóteses a respeito do seu sumiço e da sua saga. A fábula do nordestino em direção ao epicentro do Brasil toma outros rumos, inaugurando novas possibilidades empreendedoras com a profecia do seu reaparecimento.

Ficha Técnica:
Direção, roteiro e interpretação: Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte
Edição e montagem: Breno de Lacerda
Realização: No barraco da Constância tem!

RHIZOPHORA – Estudo nº 01
Com o Coletivo de dança-teatro Agridoce (PE)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Henrique Fontes
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 10 anos (para melhor fruição com o tema)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Baseado no romance Homens e Caranguejos, de Josué de Castro, Rhizophora conta a história do anti-herói João Paulo, que se vê em um dilema quando a construtora onde ele trabalha resolve construir um condomínio de luxo no lugar onde fica a comunidade onde ele morou. Entre lembranças da infância ribeirinha nos manguezais e planejamentos megalomaníacos, começa uma grande viagem ao passado e um retorno a sua ancestralidade.

Ficha Técnica:
Dramaturgia e Adaptação: Coletivo de Dança-Teatro Agridoce
Direção: Aurora Jamelo e Nilo Pedrosa
Elenco: Aurora Jamelo, Flávio Moraes, Igor Cavalcanti, Nilo Pedrosa e Sophia William
Coreografia: Sophia William
Preparação de elenco: Sophia William
Direção artística: Aurora Jamelo
Cenografia: Aurora Jamelo e Nilo Pedrosa
Figurinos: Aurora Jamelo
Iluminação: Aurora Jamelo
Produção: Coletivo de Dança-teatro Agridoce
Produção executiva: Flávio Moraes e Sophia William
Foto: Anny Stone, Jessica Maia, Erick Sgobe, Zito Junior
Assessoria de imprensa: Igor Cavalcanti Moura
Vídeo: Tuca Colleto
Captação de som: Anderson Barros
Realização Agridoce

18 de abril, domingo, 20h

Boca
Com Erivelto Viana e Urias Oliveira (MA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Pollyanna Diniz e Ivana Moura
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 18 anos (nudez frontal)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. Mais informações em: www.itaucultural.org.br

Sinopse:
O dentro, o fora. O tudo e o nada. O centro. Boca que tudo come, buraco da criação. Corpo lugar de passagem, atravessamento, encruzilhadas. Energia evocação no encontro (entre) Exu/Eu.
Ficha técnica:
Concepção: Erivelto Viana e Urias de Oliveira
Criação e performance: Erivelto Viana
Direção: Urias de Oliveira

Web-Strips: Volume Encruzilhadas
Com o grupo Dimenti (BA)
Após a apresentação, acontece um bate-papo com mediação de Ivana Moura e Pollyanna Diniz
Duração: 15 minutos
Capacidade: 270 lugares
Classificação Indicativa: 18 anos (nudez frontal)
Pela plataforma Zoom. Ingressos via Sympla. 

Sinopse:
Desnudar corpos, casas, carreiras, a memória e o digital. Web-Strips buscam despir o trajeto estético e erótico de criadores contemporâneos da Bahia, enquanto também revela a intimidade de seus ambientes domésticos. Utilizando cenas, figurinos, trilhas sonoras e coreografias do repertório dos/as artistas em cena, propõe outras percepções ao famoso striptease (do inglês strip, desnudar; e tease, provocar), gênero tão popular quanto marginal, presente desde as casas noturnas até os clássicos do cinema.

Ficha Técnica:
Direção: Jorge Alencar
Codireção: Larissa Lacerda e Neto Machado
Com: Fábio Osório Monteiro, Jaqueline Elesbão, João Rafael Neto
Direção de fotografia, câmera e som direto: Larissa Lacerda
Edição: Lane Costa e Larissa Lacerda
Trilha sonora: Ricardo Caian
Direção de Produção: Ellen Mello
Equipe de Produção: Fábio Osório Monteiro, Marina Martinelli, Francisco Sena e Trini Opelt
Financeiro: Marília Pereira
Comunicação: Marcatexto
Realização: Dimenti Produções Culturais

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Caixa Cultural Recife: agente da censura?

 

Abrazo, peça suspensa de se apresentar na Caixa Cultural Recife

Pergunta que martela os miolos: O que vamos fazer diante do avanço do autoritarismo? Os artistas estão preparados para reagir ao alastramento da censura no Brasil? Como armar estratégias de sobrevivência nesses tempos? O episódio do cancelamento do espetáculo infantil Abrazo, do grupo teatral Clowns de Shakespeare, de Natal, capital do Rio Grande do Norte, pela Caixa Cultural Recife, vem na esteira de recentes censuras a montagens teatrais. A Caixa alegou genericamente que a trupe havia descumprido o contrato. A peça expõe um país em que demonstrações de afeto estão proibidas e explora temas da ditadura, censura e repressão.

A montagem foi barrada no sábado, 7 de setembro. A primeira sessão foi apresentada às 15h. Logo depois, foi realizado um debate com a plateia. Poucos minutos antes da sessão das 18h, o público – que já estava na fila – foi avisado da suspensão da peça sem maiores explicações. Próximo das 20h, funcionários da CEF chamaram um representante do grupo para uma reunião. Foi Fernando Yamamoto, que ainda tentou levar o produtor Rafael Telles, mas a senhora disse que só se reuniria com apenas um. Eram três representantes da CEF. Táticas de intimidação usam do expediente de deixar o oponente em menor número.

Vinte minutos depois, Yamamoto retorna ao teatro da Caixa Cultural Recife, onde estão os integrantes do grupo, além dos produtores locais Tadeu Gondim e André Brasileiro. Disse que iria conversar com o grupo para tomar alguma decisão.

O grupo não se pronunciou oficialmente nas primeiras horas depois do cancelamento, mas nas na internet as demonstrações de solidariedade e de indignação contra a ação arbitrária da Caixa começaram a circular. O diretor do espetáculo Marco França, que atualmente mora em São Paulo, divulgou em suas redes sociais que a Caixa Cultural censurou as sessões. “Uma censura travestida com argumentos jurídicos. Vivemos um momento de barbárie no país, onde a verba pública para pesquisa e educação são cortadas, onde livros são censurados, onde artistas estão sendo perseguidos e tendo suas obras censuradas. Não nos calarão! Enquanto houver espaço para falar, estaremos aqui denunciando.”

A Caixa Cultural não assume a pecha de censura e atesta ter cancelado as sessões de Abrazo por um “descumprimento contratual”. Mas não especifica qual ou quais as cláusulas desrespeitadas pelo grupo Clowns de Shakespeare. A trupe teatral, que ficou perplexa com a suspensão do contrato, classifica a justificativa da instituição de “genérica”.  “Não reconhecemos qualquer indício de infração que pudesse ter sido eventualmente cometida, pois cumprimos com tudo que estava contratualmente previsto”, divulgou o Clowns de Shakespeare em nota oficial.

Abrazo é inspirado em O Livro dos Abraços, do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), e o contrato para apresentações na Caixa Cultural Recife estava firmado para os fins de semana 7, 8 e 14 e 15 de setembro. A narrativa mostra um país onde não é permitido às pessoas se abraçar ou demonstrar qualquer tipo de afeto.

Sem uma palavra falada sequer – porque também é proibido falar, a fábula infantil, expõe o efeito das guerras e proibições na vida das pessoas através de mímicas, desenhos e projeções. Com roteiro dramatúrgico de César Ferrario e direção de Marco França, a peça tem no elenco os atores Dudu Galvão, Camille Carvalho e Paula Queiroz, que se revezam entre os personagens do rapaz, da florista, do soldado, do índio, da avó, de um general e do menino.

Cena da peça Arena Conta Zumbi

Na década de 1960, uma das respostas do Teatro de Arena à feroz censura da representação de peças brasileiras realistas foi a estreia em 1965 e temporada de dois anos do espetáculo Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com música de Edu Lobo. A peça narrava a saga dos quilombolas no Brasil-Colônia, em resistência ao domínio português. Defendia a construção de uma outra realidade, mais justa e igualitária.

Eu vivo num tempo de guerra
Eu vivo num tempo sem sol
Só quem não sabe das coisas
É um homem capaz de rir

Ah, triste tempo presente
em que falar de amor, de flor
é esquecer que tanta gente
está sofrendo tanta dor

Tempo de Guerra é um dos momentos mais emblemáticos do musical Arena Conta Zumbi, um desafio à ditadura militar. A canção de Augusto Boal, Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri é inspirada no poema Aos que virão depois de nós, de Brecht, música posteriormente gravada por Maria Bethânia.

É um tempo de guerra
é um tempo sem sol
É um tempo de guerra
é um tempo sem sol

Veja bem que preparando
o caminho da amizade
não podemos ser amigos ao mal
ao mal vamos dar maldade!

Desde o golpe de 2016 que a cultura brasileira vem sendo alvo de perseguições políticas, veladas ou escancaradas. O governo e seus asseclas nas instâncias federal, estadual e municipal e outras figuras situadas em pontos estratégicos buscam desestabilizar todo e qualquer pensamento crítico com cortes de verbas, de editais, com a divulgação de fake news. A principal estratégia é atacar pelo lado econômico, minando as condições de sobrevivência.

Montagem do combatente grupo Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte

Nota da Caixa Cultural Recife / Caixa Econômica Federal

A Caixa informa que por descumprimento contratual cancelou o espetáculo Abrazo, com apresentações programadas no espaço cultural do banco. O contrato com o Clowns de Shakespeare foi rescindido, conforme comunicado ao grupo nesta data

Nota do grupo Clowns de Shakespeare

No último sábado, dia 7 de setembro de 2019, após haver realizado a primeira apresentação do espetáculo Abrazo na Caixa Cultural Recife, fomos surpreendidos com o cancelamento da segunda sessão do dia, assim como das demais apresentações que seriam realizadas no dia seguinte.

Nesta segunda-feira recebemos um comunicado oficial da Caixa Econômica Federal informando a rescisão do contrato relativo ao restante desta temporada, que se estenderia até o próximo domingo, 15 de setembro, sob a genérica alegação de descumprimento contratual.

Nenhum esclarecimento adicional nos foi dado, o que nos moveu a solicitar da Caixa o parecer jurídico e a decisão administrativa relativos a essa rescisão, com detalhamento para que possamos analisar e nos posicionar apropriadamente sobre o caso.

Até o momento estamos perplexos diante dessa atitude, uma vez que não reconhecemos qualquer indício de infração que pudesse ter sido eventualmente cometida, pois cumprimos com tudo que estava contratualmente previsto.

O contrato de patrocínio celebrado com a Caixa decorreu de edital no qual se habilitou e foi selecionado o Grupo Clowns de Shakespeare, dentro das normas legais de seleção de projetos.

Esperamos que essa justificativa, genérica e lacônica, seja esclarecida pela Caixa, de forma a possibilitar ao grupo defender-se de tal alegação.

Agradecemos o apoio maciço que estamos recebendo de diversos setores da sociedade, e voltaremos a nos pronunciar tão logo a nossa solicitação de esclarecimentos seja atendida pela Caixa.

 

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Ah! que dia mais feliz… com Clowns de Shakespeare

Foto: divulgação .

Marco França interpreta Benedicto e Renata Kaiser, Beatriz. Foto:divulgação.

A IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo (da Cooperativa Paulista de Teatro), começou festiva, com doses de fina ironia sobre as fraquezas humanas (que são muitas e risíveis) e a busca constante pela experiência do amor. Com duas sessões no Teatro Jardel Filho (Centro Cultural São Paulo) o grupo Clowns de Shakespeare apresentou o espetáculo Muito Barulho Por Quase Nada, adaptação da obra do bardo inglês, com temperos potiguar e mineiro, dos diretores Fernando Yamamoto (integrante dos Clowns), e Eduardo Moreira, um dos fundadores do Grupo Galpão, de Belo Horizonte.

Muito barulho por quase nada é uma encenação do repertório do grupo, erguida em 2003, quando o coletivo completou 10 anos de atividades. Os Clowns tiraram a encenação da cartola, na passagem dos 20 anos. E o que é melhor, com toda a vivência de anos de palco, resultado do confronto e cumplicidade com públicos diversos; com a lapidação do trabalho de corpo e voz do conjunto rumo a uma comédia popular. Isso dá mais graça e leveza ao jogo.

O elenco se entrega a essa brincadeira com alegria e domínio cênico. O time de atores lança mão de muitas sutilezas dos personagens para arrancar o riso dorminhoco de dentro de cada um. Como nos espetáculos populares do Nordeste do Brasil, a montagem está repleta de riqueza nas minúcias, mas com simplicidade. Essa aproximação de Shakespeare clássico da cultura popular se estabelece e o grupo já dá a dica no próprio título, com a inclusão da palavra “quase”. Das três versões da obra de William Shakespeare que assisti dos Clowns – Sua Incelença Ricardo III, HamletMuito barulho por quase nada parece a melhor resolvida na graça popular, nas subversões, na incorporação de um material (gestual e sonoro) urbano e contemporâneo

É um espetáculo luminoso, em que o elenco dança, faz pantomima, canta, toca vários instrumentos. E alguns atores interpretam mais de um personagem.

Música executada ao vivo  pelos atores é um dos trunfos da montagem. Foto Ivana Moura

Música executada ao vivo pelos atores é um dos trunfos da montagem. Foto Ivana Moura

Na peça, o patriarca viúvo Leonato anseia por casar sua sobrinha Beatriz e sua filha Hero. A paixão romântica e idealizada se instala na relação de Hero e Claudio. Mas os caminhos do amor são mais tortuosos entre Benedicto e Beatriz, que preparam o terreno amoroso a partir de um duelo de palavras nada lisonjeiras. O anfitrião Sr. Leonato, o Príncipe Dom Pedro e outros personagens buscam unir essas duas criaturas ágeis no pensamento e que desdenham dos sentimentos nessas comemorações de retorno vitorioso da guerra.

Mas não faltam os golpes baixos. Por inveja das conquistas de Claudio, Don John (o irmão bastardo do Príncipe) forja uma situação para incriminar de deslealdade a doce Hero.

O grupo Clowns de Shakespeare desenvolve há anos uma pesquisa sobre a presença cênica do ator, a música na cena, e teatro popular de comédias. Além disso, a equipe investiga as técnicas do clown em amplo diálogo estético com o imaginário nordestino e seus heróis que subvertem as lógicas.

Com um elenco afinado, os atores mostram domínio de suas funções. Marco França interpreta Benedicto e Corniso, e explora o jogo com maestria das técnicas do clown e as variações da comédia (do melodrama ao musical).

Joel Monteiro como Dom John e Paula Queiroz Borracho. Foto: Ivana Moura

Joel Monteiro como Dom John e Paula Queiroz como Borracho. Foto: Ivana Moura

A personagem Beatriz, da atriz Renata Kaiser, é cheia de atitudes nessa peleja amorosa. Há uma graça selvagem na aparente dureza da donzela. Paula Queiroz explora facetas opostas como a suave Hero e como o cafajeste interesseiro, Borracho, quando usa máscara e tem um gestual mais caricatural. Joel Monteiro faz um Mensageiro nas dobras do clichê e de grande apelo popular e trabalha os detalhes para diferenciar a personalidade dos irmãos Dom Pedro, e Dom John. João Ricardo Aguiar faz o divertido Leonato e o bocó Vinagrão. Camille Carvalho explora as idiossincrasias de Margarete.

Por alguns momentos os atores deixam transparecer a própria arte interpretativa, embaralhando personagens, como um delicioso flash de metateatro.

Foto: divulgação

João Ricardo Aguiar no papel de Leonato. Foto: divulgação

Os cenários, os figurinos e os adereços de João Marcelino são coloridos e levam para a cena a beleza do Nordeste em alusão à riqueza cultural da região, como nas sandálias dos cangaceiros de Lampião, nas casacas dos vaqueiros e nos bordados e rendas nordestinas e mineiras.

A música ocupa um lugar especial na montagem e tem direção de Marco França. São músicas singelas. Uma delas, com Marco França ao violão, é um acróstico com o nome Beatriz. “Ah, mais que dia feliz! Ah, como estou tão feliz! Quem me ama? Quem me ama? Be-a-triz!”. A iluminação de Rogério Ferraz simples e eficiente.

A graça está no corpo dos atores, se espalha pelo palco e contagia o público, que aplaudiu fervorosamente às sessões do espetáculo da sexta-feira, dedicadas ao crítico Sebastião Milaré, homenageado da Mostra.

Beatriz (Renata Kaiser), à direita, escuta sobre a paixão de Benedicto por ela. Foto: Ivana Moura

Beatriz (Renata Kaiser), à direita, escuta sobre a paixão de Benedicto por ela. Foto: Ivana Moura

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que vai acompanhar a mostra.

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“Não conseguimos conceber teatro que não tenha relação direta com o pensamento”

Clowns de Shakespeare estreia Hamlet. Foto de ensaio feita por Pablo Pinheiro

Clowns de Shakespeare estreia Hamlet. Foto de ensaio feita por Pablo Pinheiro

O grupo potiguar Clowns de Shakespeare estreia hoje, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos, o espetáculo Hamlet, com direção de um dos encenadores mais importantes do país, Marcio Aurélio. A companhia começa a comemorar aqui no festival os 20 anos de atuação. Além de Hamlet (que será encenada hoje e amanhã, às 21h, no Santa Isabel), apresentam O capitão e a sereia (peça inédita no Recife), nos dias 22 e 23, às 19h, no Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro); e Sua Incelença, Ricardo III, em única sessão, no dia 26, às 18h, no Pátio do Mosteiro de São Bento, em Olinda. O Clowns também lança o projeto Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste com uma mesa redonda na segunda-feira (21), às 17h, no Centro Cultural Correios, e faz uma oficina de 22 a 25, das 9h às 12h30, também nos Correios, intitulada Clowns de Shakespeare – Prática e pensamento.

Conversei com Fernando Yamamoto, que geralmente dirige as montagens do grupo, sobre o processo de criação da companhia, a aproximação com Marcio Aurelio, o trabalho de grupo, a importância de Sua Incelença, Ricardo III. Foi uma das entrevistas que fiz, em dezembro, para a construção da matéria sobre os 20 anos do grupo, que saiu na edição de Janeiro da Revista Continente.

Direção dos espetáculos do Clowns geralmente é de Fernando Yamamoto

Direção dos espetáculos do Clowns geralmente é de Fernando Yamamoto

ENTREVISTA // FERNANDO YAMAMOTO

Vocês estão num movimento de reaproximação com Shakespeare? Logo depois de Ricardo III, porque a decisão de montar Hamlet? Como está sendo esse processo de criação, já que Sua Incelença parece ter “absorvido” tanto vocês? Como esquecer um pouco aquelas referências pra trabalhar com outra obra de Shakespeare? Ou quais referências continuam as mesmas?
Desde Muito Barulho por Quase Nada, em 2003, não montávamos um Shakespeare. Partimos para um Brecht – O Casamento do Pequeno Burguês (2006) e três espetáculos com dramaturgia própria: Roda Chico (2005), Fábulas (2006) e O Capitão e a Sereia (2009). No entanto, desde 2007 já sentíamos uma necessidade de não só retornar a Shakespeare, como partir para uma obra não cômica. É quando nos aproximamos do teórico polonês Jan Kott e, principalmente, do Gabriel Villela e do Marcio Aurelio, durante uma residência que fizemos no TUSP, em São Paulo. Como costumamos trabalhar o planejamento do grupo com dois, três anos de antecedência, já iniciamos o flerte com os dois para montar essas obras. No caso de Hamlet, em especial, é uma peça que o Marcio é um grande especialista, já montou e pesquisou muito em cima dela, e surge para nós num momento em que todos estamos passando, ou perto de passar, pela “crise da meia idade”, que é uma das questões que o Shakespeare aborda. A troca com o Marcio e sua assistente, Ligia Pereira, tem sido de grande aprendizado para nós, principalmente porque eles trabalham com uma linguagem muito diferente do Gabriel Villela, que é mais próxima ao que o grupo já tinha.

Marcio Aurelio, da Cia Razões Inversas, assina direção de Hamlet. Foto: Pablo Pinheiro

Marcio Aurelio, da Cia Razões Inversas, assina direção de Hamlet. Foto: Pablo Pinheiro

Qual a contribuição de Marcio Aurelio neste espetáculo?
Como citei antes, a aproximação com o Marcio vem desde 2007, na residência no TUSP, quando tivemos cinco encontros de investigação em cima justamente de Hamlet. Além de todo o encanto por tanto conhecimento e generosidade, pudemos assistir a dois trabalhos da companhia dele, a Razões Inversas, que nos instigaram ainda mais a poder passar por um processo de montagem com ele, que foram o Anatomia Frozen e Agreste. Ele está passando quatro meses em Natal, num processo de de verdadeira troca, já que tem trazido sua bagagem e procedimentos, mas com muita escuta e observação sobre a forma como nós trabalhamos, nossa linguagem, para que possamos construir de fato um espetáculo que marque o encontro entre ele e nós.

Como essa encenação se estabelece? Há, por exemplo, papeis definidos para cada ator ou há uma troca?
Fizemos uma grande intervenção dramatúrgica, numa linguagem contemporânea que não se preocupa em contar linearmente a fábula, mas sim buscar o recorte que nos interesse para apresentar a obra no máximo da sua potência. Assim, dos oito atores que estão em cena, apenas o César (Ferrario) e o Marco (França) se dividem em dois papéis, os demais têm apenas um: Camille Carvalho (Rosencrantz), César Ferrario (Polônio e Laertes), Dudu Galvão (Horácio), Joel Monteiro (Hamlet), Marco França (Rei Claudius e Fantasma), Paula Queiroz (Guildenstern), Renata Kaiser (Rainha Gertrudes) e Titina Medeiros (Ofélia).

O trabalho com diretores convidados é uma constante? De que forma isso enriquece o trabalho e, ao mesmo tempo, como é possível manter a linguagem própria ao grupo? No momento do impasse, qual opinião prevalece? A do diretor ou dos atores?
O Hamlet é o segundo trabalho com diretor convidado. Antes dele, apenas o Ricardo III teve essa característica. O Muito Barulho por Quase Nada e O Casamento do Pequeno Burguês tiveram o Eduardo Moreira, do Galpão, como diretor convidado, mas nos dois casos ele dividiu a direção comigo, então não se tratava de uma direção externa. Os demais espetáculos tiveram a minha direção. Essa premissa de trabalhar com profissionais convidados, não só na direção, como também na direção musical, figurino, cenário, etc., é uma busca por uma oxigenação na nossa prática, para não corrermos o risco de ficarmos sempre circulando nos próprios vícios. Durante os processos, os diretores têm total autonomia – inclusive no meu caso. No entanto, nestas duas experiências (e com o Eduardo Moreira também) sempre tivemos uma relação muito dialógica. Mas a ideia é sempre aproveitar esses diretores convidados para conhecer melhor suas formas de trabalho.

Sua Incelença, Ricardo III trouxe projeção internacional ao grupo. Foto: Pablo Pinheiro

Sua Incelença, Ricardo III trouxe projeção internacional ao grupo. Foto: Pablo Pinheiro

O que significou Sua Incelença na trajetória de vocês? É o mesmo movimento que aconteceu, por exemplo, com Muito barulho por quase nada ou não? Quais foram os momentos mais marcantes de Sua Incelença? Desde a montagem até agora, na recepção do público?
Sem dúvida o Ricardo III proporcionou ao grupo um grande crescimento em diversos aspectos, principalmente de projeção do nome dos Clowns pelo país, e o início do processo de internacionalização. Acho que o momento em que o espetáculo surgiu foi muito oportuno, já que já tínhamos um certo nome e respeito pelo país, mas que foi muito incrementado pelo encontro com o Gabriel Villela e todo o peso do seu nome. É difícil fazer uma comparação com o Muito Barulho, já que sem dúvida foram marcos na nossa história, mas que de certa forma o Fábulas também foi, assim como O Capitão e a Sereia. São muitos momentos marcantes nessas quase 100 apresentações que o espetáculo já cumpriu. A estreia em Curitiba foi um deles, sem dúvida. A residência que fizemos no Complexo do Alemão, pouco tempo depois dos conflitos que lá aconteceram, foi outro. No Festival de São José do Rio Preto, fizemos a abertura para uma arena com 7.000 pessoas! Alguns dias depois, apresentamos na área rural da cidade, para cerca de 100 pessoas, ao lado de um pasto de boi, numa das melhores apresentações do trabalho até agora. Além disso, as duas viagens internacionais, no Chile e na Espanha, também foram marcantes. No Chile destacaria a apresentação que fizemos na frente do La Moneda, palácio do governo, onde Salvador Allende sofreu o golpe militar e foi assassinado. Para nós, contarmos a fábula desse vilão sanguinário e cruel nesse cenário tão impregnado pela história foi muito emocionante.

Como é que esse grupo se reuniu lá atrás, há 20 anos? Houve muitas mudanças na composição do grupo? E uma pergunta clichê, mas que é bastante difícil. Como manter um grupo artístico, um grupo teatral, por tanto tempo?
Da formação inicial, ainda restam três fundadores, eu, a Renata Kaiser e o César Ferrario. A forma como conseguimos construir e manter o grupo é muito difícil de definir. Sem dúvida um dos mais importantes fatores para isso foi conseguirmos estabelecer um equilíbrio entre os desejos pessoais e as demandas do coletivo. Ninguém trabalha nos Clowns com o objetivo de projeção individual, o grupo sempre está à frente. No entanto, é fundamental que as inquietações de cada integrante tenha espaço dentro do grupo. Investimos muito no grupo, dedicamos muito para construir esse projeto artístico que é o projeto de vida de todos nós. No entanto, quando analiso friamente de onde saímos e onde estamos, vejo que é uma história absolutamente improvável, construir um grupo tão sólido e com uma qualidade artística internacional numa cidade tão árida culturalmente como Natal.

Como se dá o processo de gestão do grupo? O apoio da Petrobras, por exemplo? O que significou esse apoio na trajetória de vocês?
Por mais que o patrocínio da Petrobras, que está próximo de terminar, não contemple nem metade dos gastos que o grupo tem, ele significou uma mudança radical na estrutura dos Clowns. A possibilidade de termos um montante fixo mensalmente, que cubra alguns gastos como aluguel da sede, salário de um secretário, uma parte do salário dos demais integrantes, etc, possibilita uma maior tranquilidade para que possamos de fato investir no aprimoramento artístico, sem precisar abrir concessões. O processo de gestão do grupo é algo em constante reavaliação e transformação. Nesse aspecto, temos uma premissa de tentar sempre buscar o equilíbrio entre o pensamento e a prática, que as questões administrativas sempre levem em consideração os princípios éticos e artísticos que o grupo traz na cena.

Fábulas (2006)

Fábulas (2006)

Como era o cenário teatral em Natal há quase 20 anos, quando vocês surgiram? E no Brasil? O teatro de grupo já tinha essa força?
Nós somos meio isolados na nossa geração em Natal. Até existem outros artistas da nossa geração, mas grupos não. Naquele momento, Natal tinha dois grupos muito tradicionais, o Estandarte e o Alegria Alegria, e um grupo que era uma referência para nós, o Tambor, capitaneado por João Marcelino. Apesar de formado por artistas mais velhos do que nós, o Tambor era mais ou menos contemporâneo, no entanto não resistiu muito tempo. Houve um hiato nessa história, e depois de muitos anos começa a surgir uma outra geração de grupos na cidade, como o Atores à Deriva, Facetas, Mutretas e Outras Histórias, Bololô, Arkhétypos, dentre outros, alguns deles inspirados na nossa experiência. Nacionalmente, era um momento de retomada do teatro de grupo. Começamos a fazer teatro no período em que os famosos encontros de teatro de grupo de Ribeirão Preto aconteceram.

Aqui vocês vão lançar também o projeto Cartografia do Teatro de Grupo do Nordeste. Qual a importância desse levantamento? Dá para apontar, por exemplo, características comuns ao teatro feito no Nordeste?
O projeto surge justamente com essa inquietação. Circulamos muito pelo Nordeste e em cada estado encontramos parceiros que vivem realidades muito parecidas com as nossas, sejam de conjuntura política, gestão ou inquietações estéticas. Esse mapeamento revela facetas opostas nesse sentido: por um lado, existem recorrências claras, como a dependência aos mecanismos de financiamento federais, ou quase inexistência de grupos que conseguem garantir a manutenção de todos os seus integrantes; de outro, ao conhecer mais de perto cada experiência, fica a evidência que cada experiência é muito diversa da outra, e essa diversidade é muito saudável justamente para que um grupo possa alimentar-se das soluções encontradas pelo outro.

Muito barulho por quase nada, espetáculo de 2003

Muito barulho por quase nada, espetáculo de 2003

Queria falar um pouquinho sobre os espetáculos dos Clowns. Para você, Fernando, quais os mais marcantes?
Cada espetáculo teve sua importância e seu momento. Alguns deles foram divisores de água. A Megera DoNada (1998), marcou a transição da primeira fase do grupo, de total amadorismo, dentro da escola, para a nossa legitimação na classe teatral potiguar. O outro salto foi Muito Barulho por Quase Nada, que apresentou o grupo pro resto do país, fez com que circulássemos pelas cinco regiões, conhecêssemos muitos outros grupos, pensadores, críticos e outros profissionais. O Fábulas proporcionou importantes prêmios. O Capitão e a Sereia é provavelmente o trabalho mais especial para os integrantes do grupo que participaram, porque conseguimos como nunca experenciar um processo de pesquisa que dialogou diretamente com o momento e o pensamento do grupo. Foi também a primeira estreia fora de Natal, no SESI Vila Leopoldina, em São Paulo. Depois disso, o Ricardo traz a projeção do nome do grupo e o começo da internacionalização. Agora estamos ansiosos para ver como o próprio grupo responde à radicalização de linguagem que o Hamlet está trazendo.

Quando o grupo conseguiu uma projeção maior? Foi com Muito barulho? O que tinha de especial nessa montagem?
São projeções diferentes. Com o Muito Barulho, aparecemos para o Brasil. No Fábulas, ganhamos os principais prêmios do segmento no país. E com o Ricardo, tivemos um espaço muito especial nos grandes festivais brasileiros, abrindo vários deles (Curitiba, Brasília, Rio Preto e Belo Horizonte), e um espaço na mídia nacional também inédito. Acho que o Muito Barulho foi um trabalho que, por um lado, mostrou ao país que era possível se fazer um teatro de qualidade em Natal. Acredito que foi um choque, no melhor sentido da palavra. Por outro lado, a força do trabalho era a solaridade do grupo, em especial naquele momento de juventude dos integrantes. Acho que é um espetáculo um tanto naïf, e por isso também ele ganha um charme a mais. Temos a intenção de em 2013 remontá-lo, para que participe das atividades de comemoração dos 20 anos do grupo.

O capitão e a sereia é baseado na obra de um pernambucano e tem o cavalo marinho como inspiração. Foto: Maurício Cuca

O capitão e a sereia é baseado na obra de um pernambucano e tem o cavalo marinho como inspiração. Foto: Maurício Cuca

O capitão e a sereia teve profissionais de oito estados envolvidos. Como foi isso? Como vai ser reapresentar esse espetáculo aqui?
O Capitão foi um processo muito especial, sem dúvida o mais próximo do que consideramos o ideal. Conseguimos formar uma equipe de grande qualidade, inclusive com a participação fundamental de dois pernambucanos, o Helder Vasconcelos e o André Neves. Apesar de ser baseado na obra de um pernambucano e ter o cavalo marinho como inspiração, o Capitão ainda é inédito em Recife! Estamos muito ansiosos em poder levá-lo ao Janeiro, porque serão duas estreias na capital pernambucana.

Vocês estiveram muito próximos do Galpão ao menos em duas ocasiões: Muito barulho por quase nada e O casamento do pequeno-burguês. Qual a importância do Galpão no trabalho de vocês? Ou mais especificamente do Eduardo Moreira?
Começamos a fazer teatro sob a influência direta do Galpão. Eles sempre foram a nossa maior referência, seja no aspecto estético, poético, seja no organizacional, de gestão. O Eduardo foi o elo de aproximação da gente com eles, mas depois desses dois trabalhos temos uma relação muito íntima, seja no compartilhamento dos mesmos parceiros – como no caso do Ernani Maletta, Babaya, Gabriel Villela, Mona Magalhães, Francesca della Monica -, seja na troca constante que temos com eles. Para nós é uma honra imensurável poder hoje ter como parceiros e amigos aqueles que um dia foram nossos ídolos “inatingíveis”.

O casamento do pequeno burguês, montada em 2006

O casamento do pequeno burguês, montada em 2006

Qual a importância do teatro infantil na trajetória de vocês?
Apesar de termos tido algumas outras experiências menores, de fato a nossa relação com o teatro infantil se concentra no Fábulas. Foi uma experiência muito marcante, que ampliou nossa compreensão do fazer teatro e trouxe frutos especiais. No entanto, apesar de ter sido muito bom para nós, hoje não temos encontrado sentido em seguir nessa seara, pelos desejos e inquietações que povoam nosso imaginário hoje.

Qual a relação de vocês com Recife? Quando vieram ao Janeiro pela primeira vez? Porque iniciar essa comemoração aqui?
Sempre fomos muito bem recebidos no Recife, e em especial nessa dobradinha Janeiro de Grandes Espetáculos/Teatro Santa Isabel. Acho que fomos pela primeira vez em 2005, com Muito Barulho, e voltamos com Roda Chico, ambos para abrir o Janeiro. Foram apresentações muito marcantes pra nós. Agora, estamos numa grande expectativa, porque será muito especial abrir os 20 anos no Janeiro, no Santa Isabel, estreando o Hamlet e conseguindo levar, finalmente, o Capitão para Recife. Além desses motivos, e da própria questão do calendário, pelo Janeiro ser o primeiro grande festival brasileiro no ano, estávamos também devendo essa ida. A Paula de Renor tentava nos levar de novo há alguns anos, mas em geral estamos de férias nesse período. Quando ela nos convidou para a edição do ano passado, e tive que declinar mais uma vez porque iríamos para o Santiago a Mil, no Chile, me comprometi com ela a levar uma série de atividades para lançar os 20 anos nesta edição de 2013, e que bom que o Janeiro apostou e tudo deu certo!

Quais são as preocupações estéticas e conceituais do Clowns hoje com relação ao teatro? Que teatro vocês querem fazer? O que discutir hoje?
Essa é uma pergunta difícil de responder, tanto pela complexidade que exige para respondê-la, quanto pelo fato que está em constante transformação. Em determinado momento, quando o grupo completou dez anos, acho que a nossa principal atitude política era provar, para os outros e para nós mesmos, que era possível fazer um teatro de qualidade no Nordeste, no Rio Grande do Norte, em Natal. Naquele momento, isso já bastava, era suficiente. É nesse contexto que surge o Muito Barulho, o Fábulas, o Casamento. No entanto, cumprida essa etapa, as demandas vão se tornando cada vez mais exigentes. Hoje não conseguimos conceber um teatro que não tenha uma relação direta com o pensamento. Algumas questões vêm nos provocando, como o papel do artista latinoamericano, ou como encaramos o passar do tempo, para proporcionarmos um envelhecimento, dos integrantes e do grupo, que possibilite que nos reinventemos, que mantenhamos vivo e renovado o sentido de fazermos teatro dentro dos Clowns. É nessa perspectiva que as questões estéticas precisam se alinhar.

E porque os Clowns insistem em fazer teatro?
Acredito que insistimos porque é no teatro que encontramos o nosso lugar no mundo, é a nossa forma de nos reconhecermos, propormos reflexões e idealizarmos transformações. É nessa perspectiva coletiva, que tanto anda no contrafluxo do que a lógica estabelecida tenta nos empurrar, que nos legitimamos como artistas e como cidadãos.

Vídeo dos 20 anos do Clowns:

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Clown sanguinário

Sua Incelença, Ricardo III estava na grade da Virada Multicultural. Fotos: Daniela Nader

No Nordeste de nem tão antigamente, os mortos não eram enterrados sem que antes fossem cantadas ou rezadas as incelências. E todo “doutor” podia ser chamado por alguém mais cheio de dedos ou embromações de “Sua Incelença”. Foi a partir dessa brincadeira semântica que o Clowns de Shakespeare rebatizaram a obra do dramaturgo inglês. Sua Incelença, Ricardo III finalmente foi apresentada no Recife (dentro da programação da Virada Multicultural), depois de já ter sido vista em vários festivais, como Curitiba (onde a peça estreou nacionalmente, antes só tinham sido feitas apresentações, antes mesmo da montagem finalizada, em Acari, no Rio Grande do Norte), Brasília, Rio e Porto Alegre. A direção da montagem é assinada por Gabriel Villela.

No Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, a semiarquibancada da trupe (eles não conseguiram autorização para montar uma arquibancada maior, como em outros lugares) foi erguida bem na esplanada. Como o espaço era mesmo muito reduzido, o público sentou no chão, ficou nas laterais, mas deu um jeitinho de conferir a performance desse importante grupo que já tem dezoito anos de estrada.

Montagem fez apenas uma sessão no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem

Desta vez, a história de truculência e a trajetória de assassinatos de Ricardo para chegar ao poder ganharam embalagem circense. As referências ao mambembe, ao improviso, à estética e criatividade dos clowns se sucedem ao longo da montagem. E é com um humor mais ácido que eles atravessam a violência com força, mas leveza. As crianças mortas viraram coco vendido na praia; o nobre que estava prestes a ser assassinado era uma cabeça de boneca.

O público entra na ilusão proposta pela montagem já a partir da música, que tem de referências nordestinas ao rock inglês. E a partir daí não tem problema ser um matador sanguinário no momento e noutro se travestir de duquesa com peruca loira e longo vestido vermelho.

A música é fundamental para a encenação construída pelo grupo

Ah….já soube que os Clowns vão pagar a “dívida” que tem com Pernambuco em grande estilo! Já existe a ideia de que eles comecem a comemorar os 20 anos da companhia aqui, em 2013, no Janeiro de Grandes Espetáculos. O grupo vai remontar Muito barulho por quase nada, peça de 2003 que teve direção conjunta de Fernando Yamamoto e Eduardo Moreira, do Grupo Galpão; além disso, já deve ter estreado o novo projeto: Hamlet, com direção de Márcio Aurélio. A ideia é apresentar essas peças e talvez outras do repertório, fazer oficinas, debates. Esperamos que tudo se concretize mesmo! Vamos cobrar!

Ficha técnica:
Direção geral: Gabriel Villela
Elenco: Camille Carvalho, Dudu Galvão, César Ferrario, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz, Renata Kaiser e Titina Medeiros
Assistência de direção: Ivan Andrade e Fernando Yamamoto
Texto original: William Shakespeare
Adaptação dramatúrgica: Fernando Yamamoto
Consultoria dramatúrgica: Marcos Barbosa
Figurino: Gabriel Villela
Cenário: Ronaldo Costa
Assistente de figurino: Giovana Villela
Aderecista: Shicó do Mamulengo
Costureira: Maria Sales
Direção musical: Marco França, Ernani Maletta e Babaya
Arranjos vocais: Ernani Maletta e Marco França
Arranjos instrumentais: Marco França
Preparação vocal: Babaya
Direção vocal para texto e canto: Babaya
Música instrumental original: Marco França
Pesquisa musical: Gabriel Villela e o grupo
Preparação corporal: Kika Freire
Iluminação: Ronaldo Costa

Próximo projeto do grupo é montar Hamlet, com direção de Márcio Aurélio

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