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Festival Reside Amaro
Uma experiência artística inovadora no Recife

Vizinhos no bairro de Santo Amaro participam de ações artísticas. Foto: Rogério Alves

O Festival Reside Amaro, que ocorre nestes dias 7, 8 e 9 de fevereiro de 2025, é mais que um evento no calendário cultural do Recife; é um manifesto vivo, uma declaração ousada sobre o potencial transformador da arte quando esta pulsa organicamente com o tecido social de uma comunidade.

Paula de Renor, uma produtora cultural com uma visão ousada, sempre sonhou em realizar um festival teatral inovador, diferente dos modelos tradicionais. A inspiração que faltava surgiu quando ela conheceu o trabalho do Teatro Bombón e o conceito de “teatro vecinal” (teatro de vizinhança) da artista argentina Monina Bonelli. Com essa nova perspectiva, Paula uniu forças com Bonelli e o curador Celso Curi para dar vida ao Reside Amaro, um projeto que leva o teatro para o coração do bairro de Santo Amaro, no Recife. Essa proposta única transforma a comunidade no centro pulsante da experiência teatral, promovendo uma colaboração íntima entre artistas e moradores locais para criar performances autênticas e envolventes.

A escolha de Santo Amaro como palco para esta experiência não foi aleatória. O bairro, com sua rica vivência histórica e cultural, serve como um microcosmo perfeito do Recife e, por extensão, do Brasil urbano contemporâneo.

“Santo Amaro é um paradoxo vivo,” aponta Roger de Renor, produtor e ativista cultural e vizinho inspirador. Neste território, casarões coloniais expõem a luta pelo espaço urbano com prédios altíssimos. Comunidades de pescadores, cujas tradições remontam a séculos, convivem lado a lado com startups de tecnologia de ponta.

Esta complexidade sociocultural de Santo Amaro serve como um terreno fértil para o tipo de narrativas plurais que o Reside Amaro busca explorar.

Monina Bonelli_Paula de Renor_Celso Curi._Foto Rogério Alves

O Reside Amaro destaca-se por sua natureza site-specific, onde cada apresentação é cuidadosamente elaborada para se integrar e dialogar com o ambiente específico em que ocorre. Esta técnica transforma espaços cotidianos – desde casas particulares até bares locais – em cenários teatrais singulares, criando uma experiência imersiva tanto para os artistas quanto para o público.

O aspecto comunitário do festival é igualmente central. Ao envolver ativamente os moradores de Santo Amaro no processo criativo, o Reside Amaro opera essa via de mão dupla: traz o teatro para a comunidade, mas também traz a comunidade para o teatro. Esta abordagem resulta em performances que são autênticas reflexões das histórias, culturas e experiências locais.

A maioria das performances é criação original, desenvolvida especificamente para o festival. Outra característica marcante do Reside Amaro é seu caráter processual. Muitas das ações e performances começaram a ser desenvolvidas apenas nas últimas semanas antes do festival. Este curto período de gestação confere às apresentações um frescor e uma espontaneidade raramente vistos em produções teatrais tradicionais. 

“É fascinante ver como as técnicas de teatro comunitário desenvolvidas em Buenos Aires se adaptam e ganham novos significados no contexto de Recife”, observa Monina Bonelli. “Há um diálogo intercultural acontecendo aqui que é verdadeiramente enriquecedor”.

Espetáculos internacionais Rainha, com Maiamar Abrodos e Da Melhor Maneira com Federico Liss e David Rubinstein. Foto: Divulgação

O festival apresenta duas peças argentinas em espanhol com legendas em português. Rainha (Reina en el Gondo), dirigida e escrita por Natalia Villamil e estrelada por Maiamar Abrodos, retrata a vida de uma mulher transgênero idosa no Gondolín, um hotel-refúgio em Buenos Aires, explorando suas memórias e reflexões sobre identidade. Já Da Melhor Maneira (De la mejor manera) é uma obra de Jorge Eiro, Federico Liss e David Rubinstein, dirigida por Eiro e atuada por Liss e Rubinstein. Esta peça acompanha dois irmãos que retornam ao bar da família durante o velório do pai, enfrentando o vazio deixado por sua perda e o desafio de seguir em frente diante de um “abismo silencioso”.

Além das performances, o Reside Amaro tem um forte componente educacional. Alunos do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Santo Amaro estão ativamente envolvidos em todas as etapas do festival, desde a concepção até a execução. Esta iniciativa aprimora o aprendizado dos estudantes, contribuindo para a formação de uma nova geração de artistas.

Com mais de 70 apresentações distribuídas ao longo de três dias, o festival oferece uma programação diversificada e acessível. Todas as apresentações são gratuitas, com ingressos distribuídos uma hora antes de cada sessão. O evento também prioriza a acessibilidade, oferecendo tradução em Libras para várias performances e garantindo que os espaços sejam acessíveis para pessoas com deficiência.

PROGRAMAÇÃO

CASA 1 (Rua Capitão Lima) CENTRAL DE INFORMAÇÕES

Casa 2 Rua (Rua Capitão Lima) LENE CONVIDA
Performance participativa onde Lene estreia um programa de entrevistas intimista. Recebe personalidades para conversas sinceras e inspiradoras sobre Pernambuco.
Dramaturgia/Direção: Giordano Castro, Mateus Condé.
Atuação: Lene Maria.
07/02: 19h30-22h, 08-09/02: 18h30-21h30. Fluxo contínuo.

Casa 3 (Rua Capitão Lima) COMUNHÃO MUSICAL
Espetáculo musical que une diferentes gerações e histórias de vida. Performances de um padre, uma cozinheira e um cantor profissional.
Direção musical: Douglas Duan.
Vozes: Padre Caetano, Alê Maria, Carlinhos Monteverde.
07/02: 19h, 08-09/02: 18h.

Casa 4 (Rua da Piedade) ÁLBUM DOS VIZINHOS
Projeção de retratos que capturam a essência dos moradores da vila. Transformação de memórias em arte, reforçando laços comunitários.
Fotos: Rogério Alves. Coordenação: Ingredy Barbosa.
07/02: 19h30-22h, 08-09/02: 18h30-21h. Fluxo contínuo.

Casa 5 (Rua Capitão Lima) SOM NA RURAL
Festa itinerante que transforma as ruas em palco de celebração. Picadeiro sonoro que constrói novas histórias e memórias.
comunicação: Roger de Renor. DJ: Dj Vibra.
07/02: 22h-23h.

Casa 6 (Travessa do Ferreira) HEY, HEY, HEY! ROBERTO É O NOSSO REI!
Karaokê em homenagem a Roberto Carlos, realizando o sonho de João Paulo. Inclui mural no Beco do Roberto, multiplicando a presença do Rei.
Artista vizinho: João Paulo Silva. Artista ativador: Douglas Duan.
07/02: 20h-22h, 08-09/02: 19h-21h30. Fluxo contínuo.

Casa 7 (Rua da Piedade) ALTA VIGILÂNCIA
Instalação dramatúrgica que explora a cultura da fofoca em Pernambuco. Narradoras compartilham histórias bisbilhotadas na rua Piedade.
Dramaturgia: Newton Moreno. Narradoras: Amanda Menelau, Márcia Luz.
07/02: 20h-22h, 08-09/02: 19h-21h30.

Casa 8 (Rua da Piedade) CASINHA DE ROGÊ
Instalação/performance que convida à intimidade da casa de Roger de Renor. Reflexões sobre cidades horizontais, utopias e memória. Performance: Roger de Renor.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 20h e 21h, 08-09/02: 19h e 20h.

Casa 9 (Rua da Piedade) INDO PARA LÁ
Performance documental sobre uma travessia imaginária de barco. Explora conversas, histórias e imagens que permanecem na memória. Direção: Quiercles Santana. Atuação: Clau Barros, Dorgival Fraga. Duração: 30min. Capacidade: 20 pessoas/sessão. 07/02: 20h e 21h, 08-09/02: 19h e 20h.

Casa 10 (Rua da Piedade) PRONTA PRA GUERRA; PULANDO FOGUEIRAS E DECORANDO O TEXTO COM FUXICOS
Performance inspirada na vida de Joana d’Arc e Ivete Alves de Mesquita. Explora a luta pela existência através de costura, fuxicos e memórias.
Dramaturgia/Encenação: Anderson Leite.
Atuação: Augusta Ferraz.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão. 07/02: 20h30 e 21h30, 08-09/02: 19h30 e 20h30.

Casa 11 (Rua da Piedade) NO FRIGIR DOS OVOS TUDO TEM SOM
Performance documental que explora os sons e aromas da cozinha. Inspirada na vida de Geraldo Maximiano de Lima, o Rei do Omelete.
Direção: Quiercles Santana. Atuação: Djalma Albuquerque, Anne Andrade, Lua Alves.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 20h30 e 21h30, 08-09/02: 19h30 e 20h30.

Casa 12 (Rua Capitão Lima) SABOR DO DESTINO
Audioguia e experiência sensorial baseada na vida de Detinha. Percurso sonoro guiado pelos sabores, com participantes de olhos vendados.
Dramaturgia/Direção: Júnior Sampaio.
Narração: Fabiana Pirro.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 20h e 21h, 08-09/02: 19h e 20h.

Casa 13 ((Rua Capitão Lima) RITO DE PASSAGEM
Performance em movimento conduzida por HBlynda até a casa de Reina. Compartilha desafios enfrentados na jornada de reafirmação de identidade.
Criação/Performance: HBlynda Morais.
Duração: 30min.
Capacidade: 30 pessoas/sessão.
08-09/02: 19h.

Casa 14 (Rua Capitão Lima) AMARO
Exibição do curta-metragem desenvolvido durante a residência do festival. Retrata um dia na vida de Amaro, homem emocionalmente contido.
Roteiro/Direção: Diogo Cabral.
09/02: 19h-21h. Fluxo contínuo.

Casa 15 (Rua Capitão Lima) RECEITA PARA CONTAR HISTÓRIAS
Performance documental sobre histórias familiares e receitas. Mistura memórias do Maranhão a Pernambuco através do doce de banana.
Dramaturgia/Direção: João Pedro Pinheiro, Larissa Pinheiro. Com: Lannje Falcão, Aurian Falcão.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 20h30 e 21h30, 08-09/02: 19h30 e 20h30.

Casa 16 (Rua Capitão Lima, 410) UMA DOR MENOR
Teatro documental sobre impasses de um enterro familiar. Explora o conflito entre luto pessoal e cerimônia pública de um político.
Dramaturgia/Atuação: Ivana Moura.
Direção: Luiz Felipe Botelho.
Duração: 30min.
Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 20h30 e 21h30, 08-09/02: 19h e 20h30.

Casa 17 (Rua Capitão Lima, 408) RAINHA
Peça argentina sobre a vida de uma mulher transgênero idosa. Explora memórias e reflexões sobre identidade no hotel Gondolín.
Dramaturgia/Direção: Natalia Villamil. Atuação: Maiamar Abrodos.
Duração: 60min.
Capacidade: 30 pessoas/sessão.
08-09/02: 19h30.

Casa 18 (Rua Capitão Lima – auditório da TV Jornal) NOS BASTIDORES DOS PROGRAMAS DE AUDITÓRIO: CONHEÇA A HISTÓRIA DA TV JORNAL
Vídeo que relembra 65 anos da TV Jornal pernambucana. Destaca programas de auditório e participações importantes.
Criação/Produção: TV Jornal.
Duração: 5min. Capacidade: 20 pessoas/sessão.
07/02: 19h, 19h15, 19h30 e 19h45.

Casa 19 (Rua Capitão Lima) CASAR, PARA QUE?
Quadrilha que desafia superstições sobre casamento. Celebra o casamento de dona Neta e Luiz com pompa e circunstância.
Direção/Coreografia: Mônica Lira. Casal: Erivonete Barbosa, Luiz Elias.
08/02: 21h30-23h.

Casa 20 (Rua Capitão Lima – na rua) BOI MARINHO
Cortejo que mistura tradições populares, com destaque para o Cavalo Marinho. Ativação com alunos da Escola Sylvio Rabello e vizinhos.
Mestre/Direção: Helder Vasconcelos. Contra mestra: Laura Tamiana.
09/02: 18h-18h40.

Casa 21 (Rua Capitão Lima – Restaurante Casa Capitão) DA MELHOR MANEIRA
Peça argentina sobre dois irmãos lidando com a perda do pai. Explora o luto e o desafio de seguir em frente após uma perda.
Dramaturgia: Jorge Eiro, Federico Liss, David Rubinstein. Direção: Jorge Eiro.
Duração: 60min.
Capacidade: 30 pessoas/sessão.
08-09/02: 20h.

FICHA TÉCNICA

Idealização
Monina Bonelli

Criação
Monina Bonelli e Celso Curi

Artista criador convidado
Quiercles Santana

Curadores
Paula de Renor e Celso Curi

Vizinho inspirador
Roger de Renor

Vizinha embaixadora
Ingredy Barbosa

Assistente de criação
Márcio Allan

Artistas convidados
Álefe Passarin, Amanda Menelau, Anderson Leite, Augusta Ferraz, Bailarinos da Quadrilha Evolução (Damas – Giovanna Seabra Paiva Carneiro, ⁠Hellen Cavalcante, Perollah Hair, Rayssa Gomes de Vasconcelos, Thadgya Dos Santos Silva e Thais Maely Sidronio. Cavalheiros – Adones Vasconcelos, Aleson Willam Souza, Anthony Matheus de Aquino, Lourival Rodrigues, Rodrigo de Oliveira e ⁠Wladiel Queiroz), Boris Trindade Júnior (palhaço Tapioca), Carlinhos Lua, Carlinhos Monteverde, Carlos Santos, Clau Barros, David Rubinstein, Dj Vibra, Douglas Duan, Fabiana Pirro, Federico Liss, Giordano Castro, HBlynda Morais, Helder Vasconcelos e o Boi Marinho, Ivana Moura, Jeison Wallace, Jerlane Silva (palhaça Bilack), João Pedro Pinheiro, Jorge Eiro, Júlio Brito, Júnior Sampaio, Jurema Fox, Kleber Santana, Larissa Pinheiro, Luiz Felipe Botelho, Maiamar Abrodos, Mônica Lira, Natalia Villamil, Newton Moreno, Pinho Fidelis, Rafael Chamié e Roger de Renor.

Vizinhos artistas
Alê Maria, Alice Barbosa, Aurian Falcão, Dorgival Fraga (Paizinho), Erivonete Barbosa (dona Neta), Everton de Holanda Júnior, Geraldo Maximiano de Lima (Rei do Omelete), Ivete Alves de Mesquita, Joana d’Arc Dantas Mesquita, João Paulo Silva, Lannje Falcão, Lene Maria, Ligia Vieira, Luiz Elias, Maria José (dona Detinha), Maria Laura (Laurinha), Padre Caetano e Thiago Santos.

Artistas Residentes
Alunos do CIT / Sesc Santo Amaro – Anne Andrade, Bibi Santos, Caví Baso, Diogo Cabral, Djalma Albuquerque, Fanny França, Lua Alves, Márcio Allan e Mateus Condé.

Beco do Roberto
Produção: Arte da Imagem Produções
Apoio: Gabinete de Inovação Urbana

Fotos álbum dos vizinhos
Rogério Alves

Fotos registro
Gianny Melo

Fotos e vídeos making of
Ivo Barreto e Wesley Kawaai

Comunicação comunitária
Djalma Albuquerque

Designer
Clara Negreiros

Assessoria de imprensa
Márcio Bastos

Gestão de redes sociais
Cognos Comunicação – Luiza Maia e Tiago Barbosa

WebDesigner / Front-End
Sandro Araújo (SandroWeb)

Acessibilidade comunicacional
CENTRAE

Coordenador de produção
Ivo Barreto

Produção
Remo Produções Artísticas
Paula de Renor e Wesley Kawaai

Assistente de produção
Elias Vilar

Coordenador técnico
Eron Villar

Assistente técnico
Caví Baso

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Cinderela, um fenômeno imortal

Jeison Wallace na peça Cinderela, A História que a Sua Mãe Não Contou… Foto: Renan Andrade / Divulgação

Cinderela, a história que sua mãe não contou… transpõe o clássico conto de fadas para a realidade do subúrbio do Recife, compondo Cinderela e as outras personagens femininas interpretadas por atores. A peça usa e abusa da grosseria verbal e do deboche ao situar a protagonista como uma “bichinha” negra e periférica, com trejeitos exagerados, vocabulário cheio de gírias e bordões como o famoso “Oxe, mainha!”, que caiu na boca do povo.

A montagem se tornou um fenômeno teatral nos anos 1990 e revelou o desconcertante talento e a força midiática do ator Jeison Wallace. Mais de três décadas após a estreia, a peça da Trupe do Barulho ainda surpreende o público com seu humor ácido, personagens caricatos e um enredo recheado de referências à cultura pop e à periferia pernambucana.

Neste domingo, o espetáculo faz duas apresentações especiais no Teatro Guararapes para celebrar seus 32 anos. O Guararapes é um teatro com 2.495 poltronas entre plateia e balcão e as duas sessões estão praticamente lotadas. 

As sessões comemorativas trazem de volta ao palco parte do elenco original como Roberto Costa no papel da Fada Madrinha e Paulo de Pontes como a Madrasta, além dos atores convidados André Lins, Luan Alves, Petreson Eloy, Rick Thompson e Venâncio Torres, que se revezam em outros papeis. Wallace assina a direção e atualizou pontualmente o texto para dialogar com o momento atual.

Paulo de Pontes, como a Madrasta e Jeison. Foto: Foto: Renan Andrade / Divulgação

A protagonista desta releitura subverte todos os estereótipos associados à Cinderela tradicional. Longe da princesa alva e delicada, temos aqui uma mulher negra que desafia os padrões estéticos vigentes. Sua aparência é marcada por uma maquiagem carregada, cabelos desgrenhados e óculos chamativos, elementos que a distanciam do ideal de beleza feminino socialmente imposto.

Seu comportamento também rompe com as expectativas de recato e fragilidade comumente atribuídas às personagens femininas dos contos de fada. Ela se movimenta com firmeza e determinação, seus gestos são amplos e por vezes obscenos, nada da delicadeza e comedimento esperados de uma princesa. Sua fala é igualmente transgressora, reproduzindo a prosódia e o linguajar típicos das periferias recifenses, permeados de gírias e palavrões.

Essa construção da personagem se afasta radicalmente da imagem clássica da Cinderela, propondo uma representação que desafia noções preconcebidas de gênero, raça e classe. Ao trazer para o centro da narrativa uma protagonista que incorpora marcadores sociais frequentemente marginalizados, a montagem provoca reflexões sobre os estereótipos que permeiam tanto os contos de fada quanto a própria sociedade.

Uma curiosidade da montagem é a substituição do tradicional sapatinho de cristal por uma peruca. Na fuga do baile, Cinderela acaba perdendo o adereço, que se torna a chave para o príncipe reencontrá-la. Assim, ele passa a percorrer o reino fazendo as moças experimentarem a peruca, na esperança de achar sua amada.

Elenco original, com Edilson Rygaard como Príncipe. A foto é de Jô Ribeiro, ator, produtor cultural e maquiador, que atuou em váriias funções na Trupe do Brarulho, morto em 2020

O espetáculo estreou na sessão da meia-noite no Teatro Valdemar de Oliveira, espaço histórico recentemente atingido por um incêndio e que corre o risco de desaparecer, cedendo lugar a mais um empreendimento imobiliário. Diante de um público escasso e certo desdém da classe artística, a montagem foi inicialmente relegada pela crítica. No entanto, com uma habilidade impressionante, a Trupe do Barulho reverteu a situação. ]

O elenco dos primeiros anos era formado por Jeison Wallace, Aurino Xavier, Edilson Rygaard, Flávio Luiz, Inaldo Oliveira, Jô Ribeiro, Luciano Rodrigues, depois Paulo Pontes, Roberto Costa.

Cinderela permaneceu em cartaz por uma década e estabeleceu recordes de bilheteria e público no Recife. A peça, escrita por Henrique Celibi, ator e dramaturgo que veio a falecer em 2017, estreou originalmente em 20 de setembro de 1991 .

A célula primeira do espetáculo foi encenada pelo próprio Celibi em 1985 numa boate recifense. Quando Jeison Wallace assumiu a montagem, o texto foi enriquecido com novas camadas e improvisos, que acabaram sendo incorporados à obra. Esse processo resultou em uma dramaturgia que foi além da criação inicial de Celibi, agregando as vozes e contribuições de Wallace e dos diversos atores que fizeram parte da jornada da peça ao longo desses anos.

O deboche e a irreverência eram suas armas de ataque, incorporados em todos os aspectos da produção. Na entrada, um dos integrantes do grupo entregava a cada espectador um pedaço de papel higiênico, avisando: “A peça é uma merda”. Com isso, além de usar o tradicional jargão de boa sorte do teatro, “merda”, eles tentavam já de antemão anular, ou zombar, das possíveis críticas negativas.

Apesar do crescente sucesso de público, Cinderela, A História que a Sua Mãe Não Contou enfrentou resistência de parte da classe artística pernambucana. Muitos diziam que “aquilo não era teatro”.

Um momento decisivo para a popularização do espetáculo foi o Carnaval de 1992. A convite do jornalista José Mário Austregésilo, o grupo realizou a cobertura televisiva do desfile do bloco “As Virgens do Bairro Novo”, em Olinda, pela TV Jornal. Essa exposição na mídia despertou a curiosidade do público sobre a montagem, que parecia ser infantil, mas trazia um humor adulto e transgressivo.

No entanto, no ano seguinte, a diretoria do bloco proibiu a participação da Trupe do Barulho. Em seu livro reportagem Cinderela: História de um Sucesso Teatral dos Anos 90, Luís Augusto Reis, relata isso e especula que pode ter sido porque o travestismo do grupo, apesar das semelhanças, diferia significativamente do costume local de homens se vestirem de mulher no carnaval, parodiando o “travesti suburbano”. Ou talvez porque os atores ofuscaram os outros integrantes com seu talento e improviso.

Sem se abater, eles partiram então para a cobertura do tradicional bloco Galo da Madrugada, ampliando ainda mais a visibilidade de Cinderela.

Essa sequência de eventos foi fundamental para consolidar a popularidade do espetáculo. A cada aparição no Carnaval, mais pessoas ficavam intrigadas com aquela releitura irreverente do conto de fadas e queriam conferir a peça nos teatros. Assim, mesmo enfrentando preconceitos e resistências iniciais, “Cinderela, A História que a Sua Mãe Não Contou” foi conquistando seu espaço e se firmando como um fenômeno cultural que rompeu barreiras e atraiu um público diverso, como na apresentação no ginásio Geraldão para 15 mil pessoas, e entrou para o imaginário do Recife.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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