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O aquário absurdo e a profusão de imagens no Woyzeck de Andriy Zholdak

Woyzeck. Foto: Lígia Jardim

Woyzeck. Foto: Lígia Jardim

Enquanto a Ucrânia amarga uma situação de guerra, com 5,2 milhões de pessoas morando em áreas de conflito, o diretor ucraniano Andriy Zholdak, radicado na Alemanha, apresenta um Woyzeck em estado de tensão permanente. Uma sociedade presa dentro de um aquário transparente, que se movimenta em espaços circunscritos e delimitados. Podem ser todos ratos de laboratório ou coelhos, ou simplesmente homens animalizados, acorrentados a situações de dominação e fatalidade.

Assim como o próprio texto do alemão Georg Büchner, a performance midiática proposta pelo diretor ucraniano tem caráter político. A questão no primeiro plano continua sendo o desamparo e as relações de poder num mundo absurdo; no caso da encenação, especificamente, em diversas instâncias: desde as referências mais diretas e facilmente assimiláveis, com imagens que ressaltam a desigualdade social e a citação de que “somos 15 milhões de pobres”, o imperialismo, o militarismo, a globalização, até disputas internas que se dão noutras instâncias, como no campo da própria teatralidade.

Patrice Pavis já dizia no livro A encenação contemporânea que, na concorrência entre a imagem fílmica e o corpo real do ator, não é necessariamente esse último que ganha. No caso do Woyzeck proposto por Zholdak podemos dizer que o que se instaura é uma desorientação (propositada, obviamente) espacial do espectador. Desde o inicio, quando passamos por uma antessala e nos deparamos com a visceralidade da atuação dos performers em deliberada anarquia, até estabelecermos uma relação de frontalidade com o espetáculo, percebemos que o que se revela é uma instalação visual e sonora. O diretor bebe nos campos de várias linguagens, música, cinema, artes visuais, para compor um espetáculo que não se deixa enquadrar por um elemento sobrepujante de condução. Pode ser facilmente estudo de caso da teoria do teatro pós-dramático do alemão Hans-Thies Lehmann.

Cenas acontecem também dentro de aquários

Cenas acontecem também dentro de aquários

Direção é do ucraniano Andriy Zholdak

Direção é do ucraniano Andriy Zholdak

A fricção entre os vários componentes dessa ópera caótica nos deixa inicialmente aturdidos. As camadas vão se sobrepondo a cada instante com signos que não serão compreendidos em sua totalidade. Nem essa é, de maneira alguma, a intenção do diretor, que assina ainda roteiro dramático e coreografia. Assim como os atores, estamos nadando em aquários, perdidos na profusão das imagens que nos remetem a um mundo de seres absurdos no ano de 2108, seja em alguma grande metrópole ou numa nave espacial com destino a Saturno. De qualquer maneira, assim como acontece no palco, somos levados a recorrer a uma edição de imagens, de texto, de expressões e sonoridades, mesmo que, no espectador, os significados possam ser depurados muito tempo depois.

O texto de Büchner, com sua fragmentação de dramaturgia, um “drama de farrapos”, como pontua Anatol Rosenfeld, é um aliado na construção da engenhosa teatralidade de Zholdak. Sobre o texto, Anatol Rosenfeld complementa: “É um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. (…) Tal fato desfaz a perspectiva temporal; boa parte das cenas pode ser deslocada, a primeira cena não é mais distante do fim do que a sétima ou a décima-quarta”.

A escritura cênica no campo visual encontra reverberação no corpo do ator, submetido a uma experiência rigorosa. O caos é orquestrado e coreografo em minuciosos detalhes pelo diretor. Se a escritura cênica é marcada pelo excesso e pela profusão e multiplicidade de imagens, o efeito que isso tudo produz na plateia, no entanto, é de muito distanciamento ao final das duas horas de sessão. Como se toda frieza das relações em cena também fosse transposta para o espectador. A tentativa de humanizar aqueles seres se mostra vã. Os limites do aquário, mesmo que invisíveis, não são rompidos ainda que a cena aconteça no telhado, numa possibilidade frustrada de expansão. Quando, ao final de contas, tenta-se falar de amor, não há laços construídos que se encaixem em padrões a que estejamos minimamente familiarizados. O único ponto de conexão com alguma delicadeza possível é a criança; a esperança remota de que, em 2108, o mundo de Zholdak não esteja definitivamente instaurado em sua totalidade.

Criança participa de encenação

Criança participa de encenação

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Críticas: “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali

"Nós somos semelhantes a esses sapos". Foto: Lígia Jardim

“Nós somos semelhantes a esses sapos”. Foto: Lígia Jardim

Deslocamentos e ironias vitais
Por Ivana Moura – Satisfeita, Yolanda?

Um casal de noivos entra e dá uma volta em círculo no palco. Do lado direito, um grupo de músicos. Na segunda volta, ele coloca a mão no ombro dela e fala algo ao seu ouvido. Depois parece bêbado (da festa?). Mudam de posição, de ritmo. Outro homem com perna amputada e com muletas vai atrás. O barulho metálico das muletas grita. Depois de uma volta, ele pisa no vestido da noiva e congela. Continua o percurso. Pisa novamente no vestido dela e paralisa a cena, como numa fotografia. O homem das muletas chuta a mulher. Ela cai. E depois se agarra ao pescoço dele. É arrastada. Tenta se segurar a outras partes do corpo dele. Ele pula como sapo. Ela sobe no seu ombro.

Lembrei-me da canção O Quereres, de Caetano Veloso (“Ah! Bruta flor do querer / Ah! Bruta flor, bruta flor”). Esses desejos que se alternam, esses quereres em permanente deslocamento. Deslocamento, aliás, é uma chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que apresentou em seguida o duo Ali.

As andanças pelo palco, em círculos primeiramente e em muitos outros desenhos. O deslocamento do eixo gravitacional provocado pela falta de uma perna de Hedi Thabet e que se expande para os outros dois bailarinos. A provocação do deslocamento do olhar do espectador. E ainda a projeção dos deslocamentos migratórios mundiais e suas questões de identidades, também ressaltadas pelo repertório musical (melodias tradicionais tunisianas e gregas – rebetiko) e a ascendência dos artistas.

O corpo mutilado vai à luta. Subverte lógicas. Desafia o outro. A linguagem física é rica de significações. Alteridade: um e outro no fluxo do desejo por uma mesma mulher, alternância equilíbrio/desequilíbrio dos corpos, desafio às leis da gravidade. Acrobacias de tirar o fôlego. Esses “sapos” borram fronteiras. Saem dos eixos em seus giros. Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos e de dança contemporânea, “Nós somos…” explora a aventura de um triângulo amoroso plausível, que avança em oposições contraditórias no deslocamento do desejo.

Já em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois homens. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente. E o humor e a ironia permeiam os dois espetáculos. Mais grave em “Nós somos semelhantes…”, com suas ameaças de perda e mais vitalizante em Ali, com sua força e alegria de viver.

Companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi - leva três bailarinos ao palco

Companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi – leva três bailarinos ao palco

Corpos em infinita multiplicação e mutação
Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena

Há algo de espanto em um primeiro momento. Sensação logo transformada em beleza a ser admirada. O que antes poderia soar como piedade cede lugar à comunhão, ao encontro com o outro, à celebração. A imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência, desviando o olhar da perda para a multiplicação dos corpos em cena. Juntos, performers e espectadores atravessam a fronteira da deficiência e da individualidade para chegarem ao território da eficiência só possível de ser alcançada na complementaridade. Movimento compartilhado entre todas as partes.

“Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, programa de dois espetáculos apresentado pela companhia Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA), da França, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. O fato de um dos bailarinos ter perdido uma de suas pernas não é ignorado pelo trabalho (nem pelo público), mas também não é seu ponto principal ou final. É a partir desta ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos.

Tendo como ponto de partida um mote até mesmo banal, a relação de amor e ódio que cerca um triângulo amoroso, nasce uma dramaturgia corporal vigorosa, em que o arquétipo da perfeição do casal, em sua caminhada nupcial, é desestabilizada por um terceiro elemento, uma espécie de intruso que insiste em se fazer presente. Enquanto um a faz girar, o outro a faz flutuar, num jogo de oposição que os transforma assim em duplos complementares, que só se definem e existem na comparação com o outro.

Desestabilizar parece ser um verbo que permeia ambos os espetáculos: reverter expectativas, romper convenções, criar outros olhares ainda não experimentados para o que se entende por (e no) corpo.

Em Ali, o trio se desfaz e cede lugar a um dueto. Numa espécie de dança-duelo, Mathurin Bolze e Hedi Thabet se perseguem, se chocam, se debatem, se conectam, redescobrem seus próprios corpos. O que antes era falta, torna-se soma. A presença constante de uma ausência. Parte-se das muletas como apoio e suporte para transformá-las em trampolins para grandes saltos, como extensões dos próprios corpos, que, mais que objetos, tornam-se também matéria, corpo, carne, membro.
Uma perna a menos se transforma em várias pernas a mais, como num milagre da multiplicação ou uma brincadeira de criança. São partes de um todo que só se constitui na hibridização desses dos corpos performáticos que dividem a cena, num movimento constante de mutação de formas, imagens, dinâmicas, perspectivas.

A quase ausência de elementos no palco (apenas um lustre e cadeiras) ressalta ainda mais o foco na escrita que nasce do corpo e para ele retorna. É na extrema fisicalidade que o trabalho encontra seu apoio. Assim como os elementos aos quais a própria companhia recorre para construir sua poética cênica, que agrega principalmente circo, dança e teatro, os corpos dos performers também assumem um caráter híbrido, estilhaçado, expandido, ampliado. Uma outra anatomia possível se configura no encontro e na metamorfose entre eles.

O virtuosismo em ambos os espetáculos deixa de ser mera exibição das habilidades técnicas dos bailarinos, embora estas sejam incontestáveis, para se tornar também possibilidade de reinvenção e reconfiguração corporal, na criação de formas não mais somente humanas, mas praticamente mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem. Ao construir um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio, o grupo francês MPTA reconstrói a própria ideia de humano na contemporaneidade, quando o apoio solitário parece não ser mais uma alternativa possível.

Um trechinho do espetáculos “Nós somos semelhantes a esses sapos”:

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Sábado à noite tem teatro

Em nome do jogo. Foto: Guga Melgar/Divulgação

Em nome do jogo. Foto: Guga Melgar/Divulgação

O texto original da peça Em nome do jogo, intitulado Sleuth, foi escrito em 1970 pelo inglês Anthony Shaffer. Além de várias montagens no teatro, ganhou duas versões cinematográficas: em 1972, com Laurence Olivier e Michael Caine; e em 2007, com Michael Caine e dessa vez Jude Law. O texto e os filmes foram bastante premiados – a lista inclui o prêmio Tony de melhor peça.

É um texto inteligente, de suspenses e reviravoltas. E aqui ainda ganhou as pitadas de humor nas tiradas sobre casamento, relacionamento e o quanto uma mulher pode ser cara para um homem. Nem precisava tanto para que a plateia do Teatro da UFPE desse risada no sábado à noite – logo no início do espetáculo, nos primeiros movimentos do ator Marcos Caruso (sim, o que fez Leleco em Avenida Brasil), alguém na primeira fila já se descontrolava com uma gargalhada aparentemente sem causa.

Marcos Caruso é Andrew Wyke, escritor de romances policiais que convida o amante da sua esposa para uma conversa. É um ator talentoso; domina o texto, as nuances dele e as mudanças que elas provocam no personagem; e até a risada que deixa Andrew com jeito de idiota e que a determinado momento nos causa irritação, serve ao propósito de mostrar o quanto aquele personagem é desequilibrado, embora extremamente calculista.

Erom Cordeiro é o amante Milo Tindolini; e também cumpre bem o seu papel. Os dois têm uma troca interessante em cena, sem desníveis na atuação. E tudo é muito bem marcado e amarrado, com soluções cênicas interessantes, a maioria delas ligadas ao cenário. A direção é de Gustavo Paso, com codireção de Fernando Philbert; e o cenário – bonito, com escadas, espelhos, trabalhando reflexos, luz e sombra, também tem assinatura de Paso e ainda de Ana Paula Cardoso e Carla Berri.

Só que tudo isso serve ao propósito de entreter. Nada contra. Deveria mesmo ir além? É como um desses filmes que ocupam o nosso tempo por duas horas – e no caso da peça a primeira hora é bem mais interessante do que a segunda; mas depois que acabam tudo está do mesmo jeito. Não fica uma reflexão, um sentimento, um lampejo de vida ou de morte, que fosse. Mas é competente no que se pretende – entreter. E que mal há, não é mesmo? Que falta farão essas duas horas na sua existência? Algo tem que ficar além do: “E aí, gostou da peça? Vamos jantar onde?”.

Educação, dinheiro, descaso – É triste ver a situação em que se encontra o Teatro da UFPE. Ontem a peça estava prestes a começar – já passava um bom tempo das 21h; e as pessoas entravam no teatro com lanche, salgadinho, refrigerante, água. Tudo que teoricamente é proibido dentro do teatro. Ou será que deixou de ser? Também não havia ninguém do staff do teatro para fazer esse controle.

Mas esse não é o único problema. O carpete está completamente pintado por marcas de chiclete; o ar condicionado não funciona – a gente passa a noite se abanando e dá graças a Deus quando a peça acaba e recebe uma brisa no foyer; há fiação exposta logo atrás da porta de vidro – é só olhar para o alto. E não estamos nem falando das condições técnicas para receber uma montagem.

Ouvi que o aluguel por noite do Teatro da UFPE não custa menos de R$ 6 mil. É uma pergunta tão óbvia, né? Mas tem que ser feita, paciência: onde está sendo investido esse dinheiro? Porque no teatro, visivelmente, é que não é.

Para completar o capítulo ‘sábado à noite no teatro’, lá pelas tantas, no meio do espetáculo, uma luz se acende. Um espectador mais atento nota que, no Teatro da UFPE, nas laterais, há pelo menos duas salas com janelões de vidro. A luz acesa da sala obviamente interfere na cena e na plateia. E a luz permaneceu ligada até que alguém fosse lá e avisasse o que não deveria precisar: ‘está atrapalhando’. Ainda assim, a porta da sala foi aberta e fechada várias vezes depois disso, com a luz do corredor alcançando a plateia. Será que não tinha outra sala naquele teatro enorme para fazer a apuração da noite?

Por outro lado, um problema recorrente desta vez não aconteceu: nenhum celular atrapalhou a cena (milagre!) e câmeras fotográficas também não foram utilizadas. Ainda há de existir uma luz no fim do túnel.

Em nome do jogo
Quando: hoje, às 19h
Onde: Teatro da UFPE
Quanto: R$ 50 e R$ 25 (meia-entrada)
Informações: (81) 3207-5757

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Seu rei mandou ir ao teatro!

Seu Rei Mandou...faz única sessão no Marco Camarotti dia 7

Seu Rei Mandou…faz única sessão no Marco Camarotti dia

Seu rei mandou agradecer a Luciano Pontes e Cia Meias Palavras. Pela criação, adaptação, concepção, figurinos, produção executiva, atuação, diversão, jeito de mandão e delícia de humor na montagem Seu Rei Mandou…. Neste caso, a realeza – as crianças – são críticas mais competentes e eficientes do que qualquer um de nós cheios de quiprocós ou teorias tentando problematizar o simples. E elas se divertem, participam, riem, se deixam levar pelas histórias de um mundo mágico. São coautoras efetivas na construção desse espetáculo. O que dizer do garoto que paticipou da sessão que vi no Janeiro de Grandes Espetáculos, no Teatro Marco Camarotti?

Luciano Pontes conta três histórias – A lavadeira real, O rato que roeu a roupa do rei, e O rei chinês Reinaldo Reis. É um trabalho baseado na pesquisa do ator na contação de histórias e traz a carga da sua experiência como palhaço nos Doutores da Alegria.

Às vezes a gente esquece (vivo dizendo isso por aqui!) – vamos mesmo ao teatro para ouvir uma história. E isso para quem se dedica a escrever, para o ator, para o diretor, não é uma tarefa nada fácil. Mas quando essa história é bem contada, quando há uma organicidade, uma energia, uma vitalidade. Ah…é mágico. Um prazer para quem tem a oportunidade de estar do outro lado.

Em Seu Rei Mandou… os artifícios são todos bastante simples. O ator-narrador usa pequenos tapetes, uns leques. Como alguém que viveu muito em meio aos tecidos, graças a mãe, como ele mesmo gosta de dizer, Luciano idealizou e, mais ainda, conseguiu executar lindos figurinos. É alguém que se preocupa com o detalhe e isso mostra a compreensão e a responsabilidade que esse ator sabe ter ao subir ao palco.

A música agrega imensamente ao trabalho – fato que Luciano não é um cantor; mas aqui não há problemas nisso. O parceiro de cena e flauta é Gustavo Vilar. É tudo muito bem costurado, poético, leve, sedutor no ótimo sentido da palavra.

Uma questão que acho que Luciano Pontes ainda vai trabalhar muito é a dramaturgia. Porque, claro, teatro é processo. Sei que não é necessário compreender tudo; mas às vezes, em alguns momentos do texto, como no último quadro, acho que essa comunicação poderia ser facilitada; talvez com algumas pequenas alterações na linguagem mesmo.

Impossível não se divertir com as sacadas nas respostas rápidas com as crianças, ao ver o ator chamando a mãe que realmente estava na plateia, o domínio de cena no jogo com o espectador, com a criança. Ao final da montagem, até o mais carrancudo dos seres, terá um sorriso de canto a canto da boca. A professora sentada no chão comenta – “incrível, né? Ah, se os professores soubessem contar histórias assim e se tivessem esse domínio todo com as crianças.”

No Janeiro de Grandes Espetáculos a montagem ganhou o Prêmio Apacepe de melhor diretor, figurino e iluminação. A próxima oportunidade de ver a peça por aqui é na Mostra Marco Camarotti de Teatro para a Infância e Juventude, no dia 7 de março, às 10h. O Teatro Marco Camarotti fica no Sesc Santo Amaro.

Este ano, a mostra dá destaque ao Mão Molenga, com quatro espetáculos do grupo. Em breve, a programação completa aqui no Yolanda!

— Nós já tínhamos falado sobre Seu Rei…aqui no Yolanda.
Confira a crítica de Ivana Moura sobre o espetáculo.

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Finalmente, Hamlet!

Clowns de Shakespeare fez estreia nacional de Hamlet no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Clowns de Shakespeare fez estreia nacional de Hamlet no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura

Ainda nos espantamos com as reflexões de Hamlet. Mesmo com o desgastado e banalizado “Ser ou não ser?”. O questionamento sobre viver ou sucumbir diante da degradação humana é profundo. O melancólico príncipe descobre que há algo de podre no Reino da Dinamarca. Mas vasculhando bem talvez seja possível concluir que essa podreira pode estar em qualquer lugar, no seu país, na sua empresa ou até na sua casa. Não duvide.

Essa peça de Shakespeare abre para múltiplas possibilidades de leituras. Da questão política (do bem público) às elucubrações íntimas, que abarca laços de parentesco, de sangue e de vingança, o desequilíbrio do respeito na relação entre sexos, a psicologia de personagens exemplarmente esculpidos. É um desafio renovado a cada montagem compreender o ser humano em sua grandeza e imperfeições.

Como todos sabem, Hamlet-pai foi assassinado por seu irmão Cláudio, que desposa a rainha Gertrudes e assume a coroa. Hamlet enlouquece, ou finge enlouquecer, primeiro com a suspeita, depois com a constatação da culpa do usurpador. Consegue, com frieza e expedientes engenhosos, planejar a vingança clamada pelo espectro do pai, que provoca mortes por todos os lados.

A companhia Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), investiu nessa tragédia numa busca de radicalização de linguagem. Depois de Sua Incelença, Ricardo III, que possibilitou a projeção nacional e a abertura para caminhos internacionais, o grupo convidou o encenador Marcio Aurelio para comandar a empreitada. Ele é especialista tanto na obra do bardo inglês quanto no método Brecht. E sabe investigar como poucos o que foi feito dos valores sólidos, como a ética, diante das negociatas desses tempos líquidos. Dirigiu lindamente Marilena Ansaldi em Hamletmachine, de Heiner Müller, um daqueles pontos de revolução da cena brasileira e Agreste, de Newton Moreno, entre dezenas de outras montagens.

Direção da montagem é de Marcio Aurelio

Direção da montagem é de Marcio Aurelio

O Hamlet dos Clowns e de Marcio Aurelio fez estreia nacional no último dia 19 de janeiro, no Teatro de Santa Isabel, dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. A montagem foi aplaudida de pé nas duas sessões. Com esse Hamlet começaram as comemorações dos 20 anos de fundação do grupo.

No palco, uma torre de andaimes é o principal elemento cenográfico – com rodas e uma porta corrediça, ela é movimentada durante a encenação e pontua falas com sonoridade. Da torre, dois contrarregras trocam a cor da cortina que enquadra a cena de preto para vermelho.

A peça começa com a aparição de oito figuras, sete fantasiadas com a máscara do protagonista. Sinal de Brecht na proposta. Esse Hamlet ergue uma “poética da representação”. Os loucos são os outros, Hamlet é o normal. Mas é um lúcido que precisa se fingir de louco. Essa é uma das principais chaves da encenação de Aurelio. Um desafio cênico e tanto para a trupe potiguar. Mais um sinal de distanciamento brechtiano é a maquiagem pálida dos personagens, exceto a do príncipe.

A trajetória da trupe nordestina é ponteada por espetáculos de humor, com e sem referências regionais. Sua Incelença, Ricardo III foi o primeiro drama histórico dos Clowns. Mas na montagem, dirigida por Gabriel Villela, houve uma subversão de tom. A utilização de uma linguagem circense diluiu o clima da peça, com uma profusão de elementos, cores e informações.

O teatro do Marcio é mais enxuto, minimalista e coreografado. Quase como um jogo de xadrez, ele explora o que sobra das relações humanas na escalada pelo poder.

O diretor trabalha com os espelhamentos. Hamlet vai da loucura simulada a quase debilidade para conseguir indícios da morte do pai. Como alguns estudiosos entendem, os Clowns assumem a visão de que a loucura de Hamlet é uma loucura encenada. Mas o viés é épico.

Um microfone no palco é utilizado em algumas falas. Inclusive quando Ofélia e a rainha Gertrudes dizem, em momentos diferentes, “Eu obedeço”, num indício da posição feminina diante das decisões masculinas.

O herói busca resolver seus dramas internos, familiares e palacianos. Mas sua missão não é uma mera vingança pessoal, mas uma tentativa de purificar o seu país, a Dinamarca.

A trupe de atores que visita Hamlet é nomeada de Clows de Shakespeare, numa valorização metalinguística. Existe uma simplicidade dos elementos cênicos, como a luz que cria cenas de grande plasticidade e ganha contorno especial na manifestação do fantasma do rei a Hamlet. Tudo é assentado para projetar a potência do texto.

Titina Medeiros é Ofélia

Titina Medeiros é Ofélia

A força descomunal da peça shakespeariana não se realiza em sua plenitude. Os atores no geral são bons, mas não estavam bem nas duas apresentações no Recife. Os personagens bem construídos pelo dramaturgo inglês perdem em dispositivo. Dos oito atores em cena, apenas César Ferrario (Polônio e Laertes) e Marco França (Rei Claudius e Fantasma) se dividem em dois papéis. Os outros assumem apenas um: Camille Carvalho (Rosencrantz), Dudu Galvão (Horácio), Joel Monteiro (Hamlet), Marco França Paula Queiroz (Guildenstern), Renata Kaiser (Rainha Gertrudes) e Titina Medeiros (Ofélia).

A atuação de Joel Monteiro não convence no papel de Hamlet. Ele parece sem os atributos necessários para dar conta da complexidade do protagonista. No trato com Ofélia, ele não consegue realçar a sedução, a dureza selvagem e o fingido desdém, em momentos distintos. A faceta do sangue frio para executar ardilosamente seu plano é frouxa. Procurei algo no olhar do protagonista que lembrasse a determinação do poderoso chefão – quando manda matar o irmão-, naquela cena em que Hamlet se livra dos antigos colegas Rosencrantz e Guildenstern, que poderiam atrapalhar o seu plano. Hamlet é um personagem forte, que se finge de louco e débil. São muitas sutilezas pedidas ao intérprete. E nas duas apresentações, Joel Monteiro não atendeu às exigências.

Existe uma clara desafinação entre a proposta de Marcio Aurelio e o que se viu no palco do Teatro de Santa Isabel nas duas noites do Janeiro de Grandes Espetáculos. Renata Kaiser como a Gertrudes é afetada e parece estar sempre na superfície da personagem. Titina Medeiros faz uma Ofélia pesada e bem mais velha que a personagem. Falta-lhe leveza e frescor. Marco França parece ainda muito apegado aos trejeitos de Ricardo III e criou Claudius com pouca determinação e malevolência que a figura desperta. O Espectro do rei ele faz melhor.

Para destoar para o lado positivo está o ator César Ferrário, nos papéis de Polônio e Laertes. Como Polônio ele destaca a sutileza: entre o pedantismo, quando está em posição superior e o puxa-saquismo, quando precisa bajular os mais poderosos. Seu gestual, sua voz, suas intenções têm aquele traçado humano cheio de defeitos e algumas qualidade. É uma construção rica.

Esperamos que o espetáculo evolua para as apresentações no Festival de Curitiba. Todos os curadores que estavam aqui no Janeiro fizeram questão de ver a montagem e deve ser assim também em Curitiba. Lá eles se apresentam nos dias 29 e 30 de março, no Teatro Bom Jesus.

Grupo participa da mostra principal do Festival de Curitiba com Hamlet

Grupo participa da mostra principal do Festival de Curitiba com Hamlet

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